Open-access Práticas discursivas na participação social em saúde mental

Discursive practices in mental health social participation

Resumos

Este artigo analisa as práticas sociais de usuários, gestores e trabalhadores no tocante à participação social na política de saúde mental entre participantes da II Conferência Municipal de Saúde Mental – Intersetorial de Montes Claros, Minas Gerais. Trata-se de pesquisa qualitativa, com realização de entrevistas semiestruturadas. As falas foram interpretadas por meio da análise de discurso textualmente orientada. Os resultados apontam para a heterogeneidade de concepções sobre a participação social. O estudo revela que apenas a realização de conferências de saúde mental não garante a incorporação dos diversos segmentos sociais no controle social em políticas de saúde mental no município.

Participação social; Saúde mental; Pesquisa qualitativa


This article analyzes the social practices of users, managers and employees regarding the social participation in mental health policy between participants of the II Municipal Conference of Mental Health – Intersectoral of Montes Claros, Minas Gerais. This is a qualitative research, with the realization of semi-structured interviews. The lines were interpreted by means of the textually oriented discourse analysis. The results point out to heterogeneity of conceptions about social participation. This study reveals that only the mere accomplishment of conferences about mental health does not guarantee the incorporation of several social segments in the social control in mental health policies in the municipality.

Social participation; Mental health; Qualitative research


Introdução

A participação da população é reconhecida como um dos pilares do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo nos conselhos e conferências de saúde suas principais formas de legitimação.

Alguns autores apresentam uma convergência quanto à definição de participação como “a capacidade que têm os indivíduos de intervir na tomada de decisões em todos aqueles aspectos de sua vida cotidiana que os afetam e envolvem” (VIANNA; CAVALCANTI; CABRAL, 2009, p. 222).

Nesse sentido, Escorel e Moreira (2008) abordam a amplitude de significados para o termo participação, seus múltiplos sentidos, e concluem que se trata de algo intrínseco à vida social. Esses autores afirmam que:

no processo de formalização da participação social no setor de saúde no Brasil ‘o controle social’ passou a expressar a possibilidade de a sociedade controlar o Estado por meio de instâncias participativas. (ESCOREL; MOREIRA, 2008, P. 1001).

A partir da Constituição Brasileira de 1988, abriram-se as perspectivas para uma prática democrática de controle social na área da saúde, através de fóruns participativos. Começaram a surgir possibilidades de a sociedade civil interferir na gestão pública, seja no que se refere à orientação de ações do Estado ou no que diz respeito aos gastos estatais para atendimento dos interesses coletivos.

Escorel e Moreira (2008) sinalizam, ainda, que a Conferência de Atenção Primária em Saúde de Alma-Ata constituiu marco histórico de reconhecimento da importância da participação na reorganização dos sistemas de saúde. No Brasil, após dez anos da Declaração de Alma-Ata, intensa mobilização social criou as condições para que a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) consolidasse a participação popular como um dos pilares para a reformulação da política nacional de saúde. Foram introduzidos os mecanismos participatórios em processos de tomada de decisão em políticas de saúde. As propostas da 8ª Conferência Nacional de Saúde foram consideradas no texto da Constituição Brasileira de 1988, na Lei 8080, de 1990, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), e na Lei 8.142, de 1990, que trata da participação da comunidade na gestão do SUS. Esses arranjos representam avanços porque incluíram vários atores sociais nas esferas políticas (STRALEN ET AL., 2006).

A participação social em saúde, no Brasil, é regulamentada através dos conselhos e das conferências de saúde. Essas instâncias colegiadas são obrigatórias em todo o País. As conferências têm a função de formular e propor diretrizes para a política de saúde. Os conselhos são órgãos colegiados compostos por representantes do governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários. Têm um caráter consultivo, de auscultação da sociedade.

Os conselhos de saúde são arranjos participativos que pretendem ser mecanismos de divisão de poder. Eles são órgãos de representação mista de atores da sociedade civil e de atores estatais. Para Vianna et al. (2009), as conferências e os conselhos de saúde consolidaram-se na condição de espaços de mediação, participação e intervenção de interesses e valores plurais.

Por sua vez, Stotz (2006) aponta que essas instâncias colegiadas não têm sido populares, nem ambientes de debates e discussões que remetam às situações de saúde locais. Ao contrário: esses fóruns têm se comportado como processo de credenciamento para indicação de delegados para as etapas estadual e nacional. Contudo, há um consenso entre vários autores de que experiências de mobilização popular são imprescindíveis para garantir a participação democrática nas conferências de saúde; e de que, quando os segmentos sociais, sobretudo aqueles que estão à margem da sociedade civil, passam a refletir sobre a sua realidade e perceber os problemas de sua comunidade, começam-se a desvendar possibilidades de enfrentamento desses problemas. Nesse sentido, as conferências são um caminho para aprofundar processos democráticos no SUS.

Embora a literatura apresente posições divergentes com relação ao poder decisório dessas instâncias colegiadas, elas vêm sendo aperfeiçoadas. Conferências gerais e temáticas na saúde são realizadas periodicamente. Por sua vez, os conselhos de saúde receberam importantes reforçadores com a Resolução 453, de 10 de maio de 2012, que estabelece diretrizes para sua instituição, reformulação, reestruturação e funcionamento, aprofundando seu papel na formulação e proposição de estratégias e no controle das políticas de saúde (CNS, 2012).

Especificamente no campo da política de saúde mental, a participação social no Brasil é efetivada através da realização de conferências de saúde mental e da participação dos diversos segmentos em comissões de saúde mental. Nessa direção, já foram realizadas quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental, precedidas por conferências estaduais e municipais. Entre elas, este estudo destaca a Conferência Municipal de Saúde Mental – Intersetorial, em 2010, no município de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil, como objeto de investigação, com o objetivo de elucidar as práticas sociais relativas aos processos participativos na política de saúde mental, na perspectiva de Norman Fairclough (2001), para quem o discurso é reconhecido como prática social que apresenta duas dimensões subjacentes: ideologia e relações de poder.

Considerando a importância desse fórum participativo para tecer um diagnóstico da situação da saúde mental nos municípios, bem como para propor melhorias nesse tipo de cuidado, a pesquisa aqui relatada traz uma análise das práticas sociais de usuários, gestores e trabalhadores de saúde com relação à participação em saúde mental. Considera-se que as formas pelas quais esses segmentos vivenciam e expressam discursivamente esses fóruns participativos refletem seu envolvimento social na construção das políticas públicas de saúde locais.

Saúde mental e participação social

Na década de setenta, num contexto de denúncias sobre maus tratos e violação de direitos humanos em instituições psiquiátricas, surgem as primeiras experiências de remodelação dos serviços em saúde mental no Brasil, envolvendo a mobilização de trabalhadores, familiares e da imprensa. Na constatação de ausência de dignidade humana nas instituições de ‘tratamento’ marcadas pelo regime do isolamento, foram gestadas novas modalidades assistenciais de base comunitária e territorial.

Em 1978, tais denúncias – aliadas a uma postura crítica sobre as políticas de saúde mental e a assistência psiquiátrica – levaram ao Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, que suscitou importantes mobilizações sociais em direção ao Movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira, em busca de uma nova maneira de cuidar da pessoa com sofrimento mental, baseada na desinstitucionalização da loucura e sob o paradigma da atenção psicossocial.

No final dessa década, foi fundada a primeira associação de familiares de pessoas com sofrimento mental registrada no Brasil: a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração pelo Trabalho (Sosintra). Posteriormente, nas décadas de oitenta e noventa, ocorreu uma multiplicação de organizações e associações formadas por usuários, familiares e profissionais dos recém-inaugurados serviços de atenção psicossocial (ALMEIDA; DIMENSTEIN; SEVERO, 2010).

Em um contexto de ampliação dos processos democráticos na saúde, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, delibera pela realização de conferências temáticas no País, entre elas, as da área de saúde mental. Assim, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987. Na conferência, foi destacada a necessidade de uma nova legislação e inversão do modelo assistencial centrado no hospital.

Em direção à ampliação da participação em saúde mental, no mesmo período, realizou-se o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, cujo lema foi: Por uma sociedade sem manicômios. Instituiu-se nesse congresso o dia 18 de maio como o Dia Nacional de Luta Antimanicomial (AMARANTE, 2008).

Com experiências de implantação de serviços de base comunitária no País, no ano de 1992, realizou-se a 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental, com o tema central Atenção Integral e Cidadania. Essa Conferência foi, também, inspirada na Conferência de Caracas, realizada em 1990, que instituiu princípios para a reorganização da assistência à saúde mental na região das Américas (BRASIL, 2004).

O ano de 2001 distinguiu-se pela realização da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental, sob o temário: Cuidar, sim. Excluir, não – Efetivando a Reforma Psiquiátrica, com Acesso, Qualidade, Humanização e Controle Social, ano em que foi aprovada a Lei 10.216, que trata dos direitos das pessoas com transtornos mentais e reorienta a assistência à saúde mental em direção a um modelo comunitário de atenção integral no País (BRASIL; CNS, 2002).

Convocada através da Resolução nº. 433, de janeiro de 2010, a 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial ocorreu nesse mesmo ano. Um conjunto de ações foi determinante para sua realização: esforços do movimento de usuários, familiares e trabalhadores em saúde, com a Moção nº. 12, da 13ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em novembro de 2007; a Marcha dos Usuários da Saúde Mental, de setembro de 2009; e a recomendação da Reunião Ampliada da Comissão Intersetorial de Saúde Mental, de outubro de 2009, pela sua realização (BRASIL; CNS, 2010).

Tendo como principal objetivo fortalecer o debate da saúde mental no Sistema Único de Saúde, em articulação com outros setores, a 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial foi realizada em 2010, precedida das etapas estaduais e municipais.

Em cumprimento à etapa municipal, Montes Claros (MG) realizou a Conferência Municipal de Saúde Mental – Intersetorial. Foi a sua segunda conferência de saúde mental, e teve como objetivos analisar a política de saúde mental no município, promover o debate, propor estratégias intersetoriais e indicar delegados para a etapa estadual (CMS, 2010).

Método

Considerando os objetivos deste estudo, optou-se por uma pesquisa qualitativa, do tipo descritiva. A opção por essa metodologia se deu na perspectiva de que, segundo Minayo (2004), ela é capaz de abranger a questão do significado e da intencionalidade ligada aos atos, às relações e às estruturas sociais.

Montes Claros foi escolhido como estudo de caso por se tratar de município que, na década de 1970, representou um marco em termos de experiência inovadora de aplicação do princípio da participação popular em política de saúde, através do Projeto Montes Claros, que inspirou o movimento sanitário brasileiro para estabelecimento de diretrizes norteadoras da reformulação do sistema de saúde e de reorganização de serviços (ESCOREL, 2008).

Constituíram como sujeitos da pesquisa os representantes de usuários de saúde mental, trabalhadores e gestores de saúde que participaram da Conferência Municipal de Saúde Mental – Intersetorial de Montes Claros (MG), em 2010. Os sujeitos foram selecionados aleatoriamente a partir da lista de presença. Inicialmente, foram selecionados doze sujeitos, quatro de cada segmento. No entanto, foram realizadas dez entrevistas. O número de entrevistados foi definido ao adotar-se o processo de amostragem por saturação teórica, que permite suspender a inclusão de novos participantes quando os dados coletados tornam-se redundantes ou reincidentes (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008).

Sobre o perfil dos dez entrevistados, quatro são representantes de usuários de saúde mental, três na condição de representantes de trabalhadores de saúde e três como representantes de gestores de saúde. Entre os representantes de usuários de saúde mental, dois são do gênero feminino e dois do gênero masculino. A idade média dos entrevistados é 53 anos. Quanto à escolaridade, um dos entrevistados é pós-graduado, dois possuem curso superior incompleto e um tem ensino fundamental incompleto. Nenhum deles havia participado, anteriormente, de conferências de saúde. Dos representantes de trabalhadores de saúde, todos são do gênero feminino. A idade média desse segmento é 32 anos. No que se refere à escolaridade, um é pós-graduado e dois têm ensino superior completo. Dois deles relataram já ter participado de outras conferências de saúde. Acerca dos representantes de gestores de saúde, os três entrevistados são do gênero feminino e funcionários do município. A idade média desse segmento é 43 anos. Uma das participantes tem ensino médio, um tem curso superior incompleto e um possui curso superior completo. Apenas um deles não havia participado anteriormente de conferências de saúde.

Para a coleta de dados, adotou-se a entrevista semiestruturada, com questões norteadoras que permitiram aos entrevistados discorrer livremente sobre o tema proposto.

A primeira fase da interpretação dos dados foi sistematizada a partir da leitura do material, buscando identificar as correlações entre as falas e o objeto de investigação do estudo e tendo como referência a análise do discurso, que é uma metodologia de análise que “[...] visa a compreender o modo de funcionamento, os princípios de organização e as formas de produção social dos sentidos” (MINAYO, 2004, p. 211).

Em seguida, os dados foram interpretados à luz da Análise de Discurso Textualmente Orientada (ADTO), proposta por Norman Fairclough (2001). Trata-se de uma concepção tridimensional do discurso. A primeira dimensão, chamada textual, considera a tradição de análise textual e linguística, também denominada descrição. A segunda dimensão, conceituada de interpretação, trata-se da prática discursiva, que se relaciona com os processos de produção, distribuição e consumo textual, cuja natureza (dos processos) varia entre diferentes tipos de discurso. A terceira dimensão, também interpretativa, é denominada prática social, e envolve o discurso como prática política e ideológica.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Soebras, CEP/Soebras, protocolo número 01424/10, e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado pelos participantes.

Resultados e discussão

As diferentes posições dos atores sociais na participação em saúde

Adotando o termo ‘discurso’ para considerar o uso da linguagem como prática social enraizada em estruturas sociais, verifica-se que a formação discursiva dos sujeitos entrevistados sobre a participação social na saúde é marcada pela heterogeneidade, refletindo as marcas ideológicas presentes nos textos. Entre os representantes de usuários, a ideia de participação social na saúde transita entre movimento social, militância, cultura, atuação nas instâncias de controle social e participação na conferência de saúde. Para além da análise textual, verifica-se uma prática discursiva de distanciamento das instâncias de controle social e a compreensão da participação social limitada à participação na conferência, levando os sujeitos a se afastar das instâncias de controle social e até mesmo ao desconhecimento da existência desses fóruns participativos na política de saúde local, em que as questões locais da política de saúde mental possam ser debatidas e encaminhadas. A seguinte fala ilustra essa questão:

Eu acho a sociedade muito omissa com relação à saúde, principalmente a saúde mental. [...] A não ser as associações e o Dia 18 de maio, que é considerado o dia da Luta Antimanicomial, você não vê ninguém preocupado com a situação [...]. (U3).

No discurso dos trabalhadores de saúde entrevistados permeia a concepção de participação social na saúde ligada à atividade interna do serviço, postura altruísta e participação exclusiva nas conferências de saúde. Nesse caso, a participação social é reconhecida, prioritariamente, como atividade assistencial. Os sujeitos entrevistados relatam: “Tudo que eu sei está relacionado ao meu trabalho aqui no Caps” (T1), complementado por “Eu contribuo para que possa salvar vidas. Então, é um trabalho gratificante, porque trabalhar com a saúde é você poder ajudar alguém [...]” (T2). Tal perspectiva, para além de uma análise textual, aponta as marcas da ideologia que imputam o caráter assistencial de serviços de saúde, em detrimento da busca de autonomia dos sujeitos.

O entendimento da participação social limitada à participação na conferência de saúde destaca-se na fala de um dos sujeitos entrevistados desse segmento social:

É momento de se discutir as políticas para ajudar no manejo, na organização dos serviços de saúde do município, ajudar a decidir o que vai ser feito do dinheiro. Poder levantar as dificuldades e limitações que existem no município para a gente estar melhorando. O primeiro objetivo mesmo seria levantar as dificuldades, as limitações do serviço de saúde em geral. (T3).

Na fala dos representantes de gestores de saúde, a participação social na saúde é reconhecida como participação na conferência e uma atividade de inserção social relacionada ao tratamento médico. Embora haja uma valorização da participação social nos discursos dos sujeitos participantes, há também uma prática social discursiva de desconhecimento de suas instâncias de participação e a atribuição da participação aos usuários. A conferência de saúde é reconhecida como espaço para participação social dos usuários:

Eu acho que, hoje, participação social está sendo muito importante. Antigamente não tinha isso. A gente trabalha mais no tratamento da cura, e nem sempre a gente resolve tudo [...] nós trabalhamos com os usuários [...], e, infelizmente, se não tiver o social participando mais ativo de que o tratamento, tem horas que o social é mais importante do que o tratamento médico mesmo. (G1).

Como reconhece Côrtes (2009), há uma polissemia de significados para o termo participação social nas falas dos três segmentos. Nota-se que, entre os sujeitos entrevistados, os representantes de usuários de saúde mental têm mais elaborado o conceito de participação social como movimento social e atuação nas instâncias de controle social.

Há uma prática distanciada dos processos participatórios na saúde: “Eu acho que não tem muita participação social na saúde. O usuário cobra muito, mas não busca participar” (G3). Também há uma tendência a considerar somente a conferência de saúde como mecanismo de participação social, caracterizando um afastamento do exercício da cidadania por parte desse segmento.

Segundo Fairclough (2001), as ideologias representam construções da realidade por meio da incorporação de significações que desembocam em relações de poder e reproduzem dilemas e contradições dentro e fora dos grupos. Nesse sentido, o estudo aponta para a limitação da compreensão da participação social na política de saúde mental por parte dos segmentos envolvidos.

Discursos dos entrevistados sobre conselho de saúde

O segmento de usuários de saúde tem o entendimento do conselho de saúde como órgão de representação e poder deliberativo. As falas indicam uma valorização da atuação do conselho de saúde em direção ao discurso hegemônico na política de saúde, no sentido de fortalecimento das instâncias de controle social. Contudo, a prática social predominante é de distanciamento dessa instância de participação e de pouca valorização do controle social na saúde. O seguinte trecho ilustra tal achado:

Eu nunca fui em nenhuma reunião do conselho, mas a política que existe hoje é a de privilegiar a participação dos usuários e dos trabalhadores no sistema. Conselhos, inclusive, vetam, votam e decidem sobre o repasse de recursos pra cada setor. Mas eu acho a reunião pouco divulgada. Inclusive, a maioria da população, usuária da saúde, não sabe da existência do Conselho de Saúde, que ele tem uma função deliberativa, que pode contribuir na gestão da saúde. (U2).

Os trabalhadores de saúde adotam uma prática de distanciamento do conselho como espaço de debate das questões de saúde. A seguinte fala aponta para essa direção: “Não tenho contato nenhum, nunca tive. Na época da faculdade, tive uma participação como ouvinte pra saber o que estava acontecendo em saúde no município” (T3). Tal achado corrobora a incipiente problematização da assistência e da gestão, bem como os indícios de desvalorização desse fórum em processos de tomada de decisão no campo da saúde mental.

Por sua vez, os gestores de saúde reconhecem o conselho de saúde como fórum de discussão. Entretanto, o discurso desse segmento salienta uma prática social de descrédito com relação à sua capacidade de influenciar a melhoria dos serviços de saúde prestados à comunidade:

Eu acho que os conselhos de saúde são bons. Eles reúnem as propostas que buscam melhorias para a saúde. Eles estão presentes em cada município e são compostos de usuários de saúde, trabalhadores, gestores/prestadores de serviço. [...] Eu sei que o conselho municipal leva as propostas para o conselho estadual, que leva para o federal. Eu vejo que tem os conselhos, mas não tem melhorias. (G3).

O discurso predominante nos três grupos é de não reconhecimento do conselho de saúde como importante instância participativa e espaço de deliberação sobre a política de saúde mental. Isso se confirma no distanciamento que os três segmentos têm desse fórum participativo.

Tal concepção dos sujeitos entrevistados reproduz a visão de Martins et al. (2008), de que, no Brasil, ainda não se experimentou um progresso sequencial dos direitos civis, políticos e sociais, uma vez que o conceito de cidadania ainda se encontra em lento processo de atribuição de valor e apresenta heterogeneidade de formas de manifestação. E, segundo Fairclough (2001), uma mudança estrutural desse quadro encontrado só poderia advir da problematização das práticas discursivas tradicionais e sua transformação.

As formações discursivas sobre conferência de saúde no controle social

Entre os usuários de saúde entrevistados, a análise indica que esse segmento tem a conferência como fórum de discussão de política pública, de capacitação e resolução de problemas. Contudo, os seus discursos estão marcados pela descrença com relação ao potencial de a conferência influenciar os processos de tomada de decisão, refletindo uma prática social de desvalorização da participação do usuário: “É igual biscoito de polvilho, faz muito barulho e não enche nada” (U3).

Tal achado vai em direção à visão de Oliveira e Conciani (2009), para os quais a cultura de não participar está relacionada a uma herança histórica advinda do período colonial e da ditadura no Brasil. Os discursos sobre conferências se expressam na seguinte fala:

A de saúde mesmo eu não participei, mas parece que ela não tem acontecido com uma certa frequência. Há um vazio, há uma questão cultural mesmo que precisa ser trabalhada. Ela precisa ser trabalhada para ver se a gente consegue avançar nesse sentido de estar construindo uma política pública e criar meios de viabilizar essa política pública criada pelos conselhos, e não essa criada nos gabinetes.(U1).

Entre os trabalhadores entrevistados, a conferência de saúde é identificada como aperfeiçoamento técnico e reconhecida como valorização do trabalho. Tais achados culminam numa prática social de vivenciá-la, exclusivamente, como fórum técnico, seja para aprendizado, seja para troca de experiências, bem como para a melhoria do serviço de saúde:

[...] para discutir vários assuntos, discutir os casos atendidos e as vitórias nos atendimentos [...] para passar alguns conhecimentos para pessoas que não conhecem o percurso que foi feito pra se chegar ali. (T1).

Para os representantes dos gestores, essa instância de controle social é reconhecida como arena da política partidária e de interesses divergentes. Outras concepções, como polemização de ideias e resolução de problemas comunitários, aparecem na análise textual.

A conferência de saúde, hoje, infelizmente, está entrando muita política partidária, que ainda atrapalha. Há muito tempo é assim [...] E a política da saúde é outra, é participação, é atender melhor a população. (G1).

O discurso da conferência como espaço de interesses divergentes e plurais, encontrado nesse segmento pesquisado, vem sendo discutido na literatura atual sobre processos participativos em políticas públicas. Tal perspectiva tem no horizonte o desafio da mudança cultural com o consequente alargamento dos processos participativos.

Os representantes de usuários de saúde mental entrevistados têm a conferência de saúde mental como ambiente que possibilita avanços no processo democrático, embora destaquem o uso da saúde mental para tratar de questões políticas locais. Eles consideram esse fórum um processo pouco democrático, desigual nos critérios de inclusão, com desvalorização da participação dos usuários, o que culmina numa prática social de descrença nos processos democráticos de mudança: “Eles usam a saúde mental, fazem aquele reboliço todo, fazem aquele esparramo, e depois as coisas continuam na mesmice” (U3).

Nesse sentido, Côrtes (2002) afirma que a mediação entre projetos conflitantes para o setor de saúde tem sido tratada em outras instâncias, principalmente nos gabinetes dos gestores públicos de saúde, esvaziando o poder decisório do controle social.

Contudo, é nesse segmento que este estudo identifica um potencial crítico com relação à verticalização do processo de construção da conferência no município e o reconhecimento das possibilidades de empoderamento de usuários nesse contexto:

Eu continuo achando que a discussão está vindo sempre de cima pra baixo. Sempre se discute política no gabinete. [...] Mas o fundamental disso é que é preciso que aconteçam as conferências, porque é um espaço onde vai estar realmente criando a possibilidade dessa discussão, da criação das políticas públicas, de qual a participação efetiva dos usuários, servidores, de todo mundo.(U1).

Por sua vez, nas formações discursivas dos representantes dos trabalhadores de saúde, destaca-se a valorização da conferência como fórum técnico, confirmando uma prática social distanciada dos processos participativos na saúde. O seguinte recorte de fala ilustra o caráter técnico da conferência de saúde mental: “Acredito que a conferência é uma divulgação e é a qualificação dos profissionais” (T2).

Já os representantes de gestores reconhecem a conferência como espaço de discussões e busca de soluções. Contudo, ressaltam a sua pouca capacidade de influenciar processos decisórios: “A partir da conferência, surgem as soluções. Mas que não fique só no papel, que tenha prática” (G3).

A realização da etapa municipal como cumprimento de uma agenda nacional fica evidenciada neste estudo e vai em direção ao que tem sido relatado na literatura (STRALEN, 2006). É possível afirmar que trabalhadores e gestores participaram da conferência municipal de saúde mental apenas pela formalidade que suas funções exigem no cenário municipal.

Considerações finais

Na concepção da ADTO, os eventos discursivos tomados neste estudo são reveladores da relação dos sujeitos entrevistados com a prática de participação social. Há posições divergentes dos sujeitos entrevistados sobre a participação social e dos objetivos das conferências de saúde enquanto instâncias de controle social, apresentando lógicas contraditórias no tocante ao alargamento dos processos democráticos na saúde. O segmento dos usuários consegue definir com maior clareza a importância da participação social no controle social de políticas públicas e suas formas de inserção.

Este estudo revela que apenas a realização de conferências de saúde mental não garante a participação ativa dos diversos segmentos sociais no controle social na saúde. A concepção de participação social dos três segmentos restringe-se à conferência de saúde, ficando evidente o desconhecimento de outras formas de participação e de controle social. A participação no conselho de saúde é distante da realidade social dos sujeitos entrevistados.

Há um reconhecimento da importância da conferência de saúde mental entre os sujeitos entrevistados. Entretanto, atribuem limites à capacidade de as conferências de saúde mental produzirem mudanças e avanços na realidade de saúde do município. Os trabalhadores de saúde tendem a perceber as conferências como um espaço de aprimoramento técnico, reduzindo a função dessa instância na avaliação da situação de saúde e na proposição de diretrizes norteadoras de políticas de saúde.

Fica evidente neste estudo que apenas a incorporação desses segmentos na conferência não garante a sua integração no processo de participação social em políticas de saúde mental no município.

A partir da análise dos sujeitos entrevistados, este estudo demonstra que algumas barreiras precisam ser vencidas para que a presença desses segmentos signifique uma participação ativa nos processos decisórios. Faz-se necessária a formação política de usuários e trabalhadores em direção ao empoderamento na participação social e qualificação da participação em instâncias de controle social. Tal perspectiva encontra ressonância em Fairclough (2001), para quem a transformação da prática social passa pela problematização de seus discursos.

Algumas ações – como a construção de cartilhas informativas sobre a atuação do conselho de saúde, com data e local das reuniões, criação de fóruns de debate e comissão local de saúde mental – poderão estimular a inclusão desses segmentos em instâncias participativas na saúde.

No que se refere a uma participação mais efetiva e qualificada em conferências de saúde mental, sugere-se a realização de eventos preparatórios nos territórios, em que tanto usuários quanto trabalhadores de saúde e gestores possam ser informados sobre seus objetivos, e os temas poderiam ser trabalhados antecipadamente, para que, nas conferências futuras, os representantes já tenham as propostas que se aproximem da realidade e das necessidades locais.

Nesse cenário, as instituições de ensino poderão contribuir para o aprofundamento dos processos democráticos através do fomento de novos estudos e proposições de estratégias de incremento e acompanhamento dos fóruns de participação social. ■

  • Suporte financeiro: Fapemig, processo APQ 4429-5.06/07, pesquisa: Gestão Participativa no Sistema Único de Saúde: demandas, interesses e instituições e do Fundo Nacional de Saúde, processo 25000.219581/2007-67 Convênio 3568/2007, pesquisa: Estudos Qualitativos de Conferências de Saúde: o caso de Minas Gerais

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    Set 2013
  • Aceito
    Out 2014
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