Resumos
Este artigo tem como objetivo caracterizar o perfil e as relações laborais dos trabalhadores da Atenção Básica em Municípios de Pequeno Porte localizados no Paraná. Trata-se de estudo transversal descritivo, realizado em 49 municípios do norte do estado, por meio de questionário aplicado aos profissionais de saúde. Os resultados obtidos indicaram a existência de baixa precarização das relações de trabalho, diversidade profissional, escolaridade adequada ou superior ao cargo exercido e vínculos laborais formais. Foram classificados como aspectos negativos a inexistência de plano de carreira, um número insuficiente de médicos, a multiplicidade de vínculos empregatícios e o descumprimento de carga horária. Deste modo, recomenda-se a implantação de políticas específicas aos municípios avaliados, bem como a implantação de medidas de acompanhamento/avaliação.
Recursos humanos em saúde; Gestão em saúde; Força de trabalho; Atenção Primária à Saúde
This article aims to characterize the profile and the labor relationships of Primary Health Care workers in Small Sized Counties located in Paraná State. It is about descriptive cross-sectional study, applied in 49 counties in northern state, through an applied questionnaire to health professionals. The obtained results have indicated the existence of low precarious in labor relationships, professional diversity, appropriate or superior schooling to the held position and formal employment bonds. Were classified as negative aspects the lack of career plan, an insufficient number of physicians; the multiplicity of employments links, and non-compliance with hourly load. Therefore, it is recommended the implementation of specific policies for the evaluated municipalities, as well as the implementation of monitoring/ evaluation measures.
Human resources in health; Health management; Labor force; Primary Health Care
Introdução
O processo de descentralização dos serviços de saúde no País iniciou-se nos anos 1990, e, atualmente, todos os municípios devem responder minimamente pela gestão e pela execução de ações da Atenção Básica (AB) em seu território. No entanto, decorridas mais de duas décadas desse processo, ainda hoje, nem todos os municípios possuem capacidade técnica e gerencial para responder adequadamente às exigências requeridas por uma gestão tão complexa como é a do trabalho em saúde. Tais considerações se aplicam, especialmente, aos Municípios de Pequeno Porte (MPP), que, segundo o Ministério das Cidades (BRASIL, 2009), têm carência de estrutura para o planejamento e possuem baixa capacidade de gestão urbana para exercer a competência municipal constitucional.
São considerados MPP aqueles que possuem população de até 20.000 habitantes, que representam cerca de 70% dos municípios do Brasil (IBGE, 2010) e 79,2% dos municípios do estado do Paraná (PARANÁ, 2013). Apesar da baixa densidade populacional, esses municípios possuem uma alta capilaridade, sendo que, para muitos, a AB é a única modalidade de assistência à saúde existente.
Com o objetivo de instituir diretrizes nacionais da política de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde (MS) criou, em 2003, a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES), órgão que vem adotando estratégias indutoras para a qualificação da gestão, com investimentos técnicos, políticos e financeiros (PIERANTONI ET AL., 2008).
Apesar dos esforços para estruturar a área de Gestão do Trabalho no SUS, são reconhecidos desafios gerenciais diversificados e cada vez mais complexos, devido às transformações e exigências do trabalho contemporâneo, tais como: escassez de quadros qualificados para o exercício da gestão dos sistemas e serviços, precarização das relações de trabalho, além de várias questões relacionadas à inserção de trabalhadores no serviço, como a distribuição, a fixação, o desempenho profissional, a qualificação, a motivação, a accountability profissional e o resgate de padrões éticos (PIERANTONI ET AL., 2008; PINTO; TEIXEIRA, 2011).
Na área de gestão do trabalho no SUS, o processo de descentralização para os municípios transferiu para estes decisões e ações antes centralizadas. Nesse processo, os municípios estruturaram uma ampla rede de serviços de saúde no nível da AB e se tornaram importantes gestores da força de trabalho no SUS.
A gestão do trabalho é um elemento central para a implementação e a consolidação do SUS (PIERANTONI ET AL., 2008), especialmente no espaço da AB, em que a prática do cuidado se efetiva por meio da interação entre os trabalhadores e entre estes e os usuários.
Por Gestão do Trabalho no SUS, compreende-se a gestão e a ge rência de toda e qualquer relação de trabalho necessária ao funcionamento desse Sistema, e inclui ações de gestão e administração do trabalho, desenvol vimento do trabalhador, saúde ocupacional, além de ações que visem ao controle social nessa área (BRASIL, 2005). Ramos et al. (2009) consideram que
a gestão do trabalho no SUS envolve as questões relacionadas à vida funcional do trabalhador (ingresso, provimento, movimentação, enquadramento, desenvolvimento na carreira e garantia de direitos trabalhistas), as garantias de condições adequadas de trabalho, participação dos trabalhadores na formulação de políticas (Plano de Cargos, Carreiras e Salários) e na criação de espaços de negociação. (p. 44).
Para os MPP, há o desafio de estruturar a rede de AB, que se caracteriza pelos serviços de tecnologia de baixa densidade, em termos de equipamentos, e de alta complexidade nas abordagens preventiva, diagnóstica e terapêutica, isso é, concretizando-se, predominantemente, na dimensão das relações interpessoais. Desta forma, destacam-se como questões estruturantes para o desenvolvimento da rede de AB a estabilidade e o vínculo de trabalho dos profissionais das equipes de saúde, a capacitação permanente, a possibilidade de negociação das condições de trabalho, a fixação através da existência de plano de carreira, cargos e salários, entre outros aspectos (LACAZ, 2008).
Diante disso, a centralidade do papel dos trabalhadores constitui-se em grande desafio para a implementação da AB, pois é a partir das relações que se estabelecem entre trabalhador-usuário, usuário-trabalhador e trabalhador-trabalhador que ocorre a possibilidade de mudanças e melhorias na prática e no cotidiano dos serviços.
Embora os pequenos municípios representem o maior número, foram identificados poucos estudos que analisassem como a gestão do trabalho tem sido desenvolvida nessas localidades após o processo de descentralização do SUS, principalmente tendo como fonte os próprios trabalhadores. Portanto, conhecer quem são os sujeitos e as relações de trabalho daqueles que atuam na AB dos MPP possibilitará ampliar a capacidade de análise sobre a gestão do trabalho no SUS.
Nesse sentido, este estudo tem como objetivo analisar o perfil e as relações laborais dos trabalhadores que atuam na Atenção Básica do SUS em MPP.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal descritivo, realizado em 49 municípios do Norte do estado do Paraná, com população de até 20.000 habitantes, das áreas de abrangência de três regionais de saúde (RS): 16ª RS, de Apucarana, 17ª RS, de Londrina, e 18ª RS, de Cornélio Procópio. Dos municípios estudados, 16 possuíam até 5.000 habitantes (32,7%), 19 entre 5.001 e 10.000 (38,8%), oito com 10.001 a 15.000 (16,3%) e seis de 15.001 a 20.000 habitantes (12,2%). A somatória da população desses municípios compreendeu 399.189 habitantes (IBGE, 2010).
A população de estudo foi composta pelos trabalhadores que atuavam nos serviços de AB dos municípios. Foram identificados, inicialmente, pelo Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES), 2.385 trabalhadores. Por ocasião das visitas aos municípios para a coleta dos dados, 383 trabalhadores cadastrados já haviam se desligado das equipes ou estavam atuando em outras áreas que não eram na AB, e por isso foram excluídos; 333 não constavam no SCNES, mas estavam atuando nas equipes da AB, e por isso foram incluídos. Desse modo, a população inicial de estudo foi de 2.335 trabalhadores. Na coleta de dados, houve 470 perdas (trabalhadores em férias, licenças ou que não retornaram o instrumento após três tentativas de contato) e 185 recusas, totalizando 1.680 trabalhadores entrevistados (figura 1).
População de estudo, identificada mediante consulta ao sistema de cadastro nacional de estabelecimentos de saúde (SCNES) e visitas às UBS nos MPP das 16ª RS, 17ª RS E 18ª RS - Sesa - PR, 2010
Os dados foram obtidos no segundo semestre de 2010, por meio de um questionário semiestruturado, aplicado aos trabalhadores de saúde que atuavam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) dos municípios estudados. Os trabalhadores foram abordados em seus locais de trabalho e apresentados aos objetivos do estudo. Os que concordaram em participar preencheram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Para os que não estavam na unidade no dia da coleta, foi deixado o instrumento sob os cuidados da coordenadora da UBS, e devolvido, posteriormente, pelo malote da respectiva Regional de Saúde.
Os dados foram duplamente digitados no Programa EPI INFO, versão 3.5.1. Ao término da digitação, os dois bancos de dados foram confrontados na função comparação dos dados (data compare), permitindo a identificação de campos não concordantes. Após as correções, os dados foram analisados por meio de frequências simples e estudadas as seguintes variáveis: categoria profissional, gênero, faixa etária, formação, remuneração, tempo de atuação no serviço, formas de contratação e de vinculação ao trabalho, quantidade de vínculos empregatícios, inserção em um plano de carreiras, cargos e salários e carga horária semanal de trabalho.
Este estudo faz parte da pesquisa 'Gestão do processo de trabalho na rede de Atenção Básica de saúde em MPP da região Norte do Paraná', apoiada financeiramente pela Fundação Araucária, por meio da chamada de Projetos 08/2009 - Programa de Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde.
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da instituição a que estão vinculados os pesquisadores e aprovado sob parecer nº 232/09, CAAE nº 4255.0.000.268-09.
Resultados
Ao analisar os dados do SCNES e realizar a adequação dos profissionais que estavam atuando na AB (2.335) no período do estudo, verificou-se uma significativa quantidade e diversidade de categorias profissionais inseridas na AB desses municípios, como se observa na tabela 1.
Nos municípios estudados, verificou-se a relação de 5,85 profissionais de saúde/1.000 habitantes, sendo que, para os médicos, essa distribuição foi de 0,516/1.000 habitantes. Do total de trabalhadores que atuavam na AB, 63,5% faziam parte das Equipes de Saúde da Família (EqSF), o que correspondeu a uma média de 2,59 EqSF/município.
Quanto ao tempo de atuação, 69,2% dos Técnicos de Saúde Bucal (TSB), 40,6% dos Auxiliares de Enfermagem (Aenf), 40,6% dos enfermeiros, 40,0% dos médicos e 38,4% dos dentistas possuíam de nove a mais de 24 anos de atuação na área, e, do total de trabalhadores entrevistados, 10,5% possuíam menos de um ano de atuação. Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) eram os profissionais que estavam atuando há menos tempo nas equipes. Destes, 65,8% atuavam de um a seis anos nos serviços.
Quanto às características sociodemográficas dos profissionais, observou-se predominância de profissionais do sexo feminino em todas as categorias (81,3%), com exceção da categoria médica, na qual 75,3% eram do sexo masculino. Nas demais categorias profissionais, verificou-se que mais de 90% dos Auxiliares de Saúde Bucal (ASB), TSB, enfermeiros, Aenf, e ACS eram mulheres; 88,6% dos Técnicos de Enfermagem (Tenf) e 58,1% dos dentistas também eram do sexo feminino.
Quanto às faixas etárias, 76,5% dos profissionais encontravam-se em idades que variaram de 29 a 44 anos, e a categoria médica foi a única que apresentou maior concentração na faixa etária de 45 a 74 anos (52,9%).
Todos os profissionais possuíam escolaridade adequada ou superior ao exigido. Entre os trabalhadores, destacam-se os Aenf, ASB e ACS, haja vista que mais de 85% deles possuíam escolaridade acima do exigido para o cargo. Com relação aos ACS, categoria de maior número, verificou-se que 68,4% haviam concluído o ensino médio, 12,8% possuíam o ensino superior incompleto e 5,3% o ensino superior completo. Ainda com relação a essa categoria, 78,9% já haviam concluído a formação inicial de ACS, com carga horária de 440 horas. Entre as categorias de profissionais com graduação superior obrigatória, 58,1% dos médicos, 74,8% dos enfermeiros e 58,8% dos dentistas eram pós-graduados, sendo que, em nível de mestrado, foram identificados quatro dentistas, um enfermeiro, três médicos e um farmacêutico; nenhum profissional referiu nível de doutorado.
Houve predominância de seleção por concurso público ou teste seletivo, em que 79,3% de todos os profissionais referiram ter sido assim selecionados. Apesar dessa predominância, foi possível verificar que, aproximadamente, 20% dos profissionais foram selecionados por outros meios, como análise de currículo, entrevistas, indicações e outros.
As prefeituras foram responsáveis, diretamente, por 83,6% das admissões dos profissionais, sendo que 77,2% deles possuíam vínculos empregatícios formais, ou seja, Estatuto do Servidor Público (32,7%), ou foram contratados via Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) (44,5%); 4,1% por contratos temporários e 2,3% por cargos comissionados. Em contrapartida, 12,4% dos profissionais foram admitidos por meio de terceirizações. Os demais trabalhadores não informaram a forma de contratação (tabela 2).
A média salarial, calculada em Salários Mínimos (SM), referida pelos profissionais, foi de 11 SM para os médicos; 3,4 SM para os enfermeiros; 3,3 SM para os dentistas; 1,6 SM para os TSB; 1,4 SM para os Aenf e Tenf; e 1,1 para os ASB e ACS. O salário mínimo federal à época da coleta dos dados era de R$ 510,00.
Dos profissionais pesquisados, 79,5% responderam não estar incluídos em Plano de Carreiras, Cargos e Salários (PCCS), sendo essa situação predominante em todas as categorias.
Quanto ao número de vínculos de trabalho, 78,8% de todos profissionais referiram atuar em um único vínculo, ou seja, somente na AB daquele município. No entanto, 75,3% dos médicos referiram possuir de dois a mais de quatro postos de trabalho, e 61,7% dos dentistas de dois a três.
Quanto à carga horária semanal contratual, 84,6% dos profissionais referiram ter sido contratados para uma jornada semanal de 30 ou 40 horas. No entanto, um percentual menor de trabalhadores referiu cumprir tal carga horária (80,4%). Ainda no tocante à carga horária contratual, os profissionais médicos e dentistas se distinguem dos demais, tendo em vista que 28,2% dos médicos e 44,3% dos dentistas referiram ter sido contratados para uma jornada de 10 a 20 horas semanais (tabela 3).
Quanto à carga horária semanal total de trabalho, considerando todos os vínculos, 76,1% referiram cumprir jornada semanal de 30 a 40 horas. Novamente, os profissionais médicos e dentistas apresentaram resultado diferente dos demais, sendo que 54,1% dos médicos referiram cumprir de 40 a 60 horas semanais, e 71% dos dentistas de 30 a 60 horas semanais.
Discussão
A presença de equipes multiprofissionais foi bastante marcante. Além dos profissionais das equipes mínimas da Estratégia Saúde da Família (ESF), foram identificados fisioterapeutas, médicos veterinários, psicólogos, nutricionistas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, auxiliares de farmácia, educadores físicos. Esses profissionais têm potencial para exercer e apoiar ações de promoção, proteção e vigilância à saúde. Assim, a diversidade de categorias profissionais sugere, ainda que incipientemente, a perspectiva de ampliar a abrangência e o escopo das ações da AB, bem como o aumento de sua resolutividade.
No cômputo de todos os municípios, a média de EqSF/município foi de 2,59, o que corresponde, em média, a 3.143 pessoas por equipe. Com base na recomendação do Ministério da Saúde (BRASIL, 2012, p.55), que considera que "Cada Equipe de Saúde da Família deve ser responsável por, no mínimo, 4.000 pessoas, sendo a média recomendada de 3.000 [....]", pode-se afirmar que a cobertura das EqSF está dentro do padrão recomendado pelo MS ou próximo a ele. Tal dado, associado ao elevado percentual de trabalhadores que participavam das EqSF demonstra a grande inserção e a importância da ESF nos municípios avaliados.
Estima-se que, pelo menos, 1,3 bilhão de pessoas no mundo estejam sem acesso aos cuidados de saúde mais básicos, abaixo do percentual recomendado pela Joint Learning Iniciative, que é de 2,5 trabalhadores de saúde/1.000 habitantes, limite mínimo necessário para atingir a cobertura de saúde adequada (APUD PIERANTONI ET AL., 2008). Nos municípios estudados, verificou-se a relação de 5,85 profissionais de saúde/1.000 habitantes, ou seja, acima dos padrões referidos.
Ao se considerar o parâmetro ideal de um médico por 1.000 habitantes, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) (CAMPOS; MACHADO; GIRARDI, 2009), constata-se que a região estudada encontra-se abaixo do modelo desejado, pois o coeficiente encontrado foi de 0,516 médico/1.000 habitantes. No entanto, há de se considerar que neste estudo não foram computados profissionais atuantes em outros níveis de atenção, como hospitais, focando somente na AB. Mesmo assim, a proporção médicos/habitantes não deve se alterar significativamente, porque, na maioria dos MPP, os únicos serviços de saúde existentes são os da AB.
Segundo Carvalho, Santos, e Campos (2013), o planejamento da força de trabalho em saúde é um ato político e está condicionado não só ao conhecimento técnico, mas, também, entre outros fatores, ao modelo vigente de atenção à saúde, pois o número, o perfil e a distribuição de trabalhadores da saúde estão articulados a escolhas políticas e a valores e princípios a serem garantidos na organização dos sistemas de saúde. Referem que a razão médicos/habitantes, no Brasil, é o dobro da recomen dada pela Organização Mundial de Saúde, e questionam sobre o que explicaria o fato de a cobertura das EqSF ser maior nas áreas onde há menos médicos disponíveis (CARVALHO; SANTOS, CAMPOS, 2013). Embora haja médicos suficientes no País, a fixação dos mesmos em MPP é um dos grandes desafios para a construção do SUS.
Estudando-se as características sóciodemográficas dos profissionais das equipes da AB, observou-se predominância de profissionais do sexo feminino em todas as categorias, com exceção da médica, na qual a maioria era do sexo masculino. Segundo Wermelinger et al. (2010), desde os anos 2000, já era predominante a força de trabalho feminina na saúde, pois, entre os médicos, as profissionais do sexo feminino representavam 35,94%, e, entre os enfermeiros, 90, 39%. Entre os profissionais de nível técnico e auxiliar, a feminização também era expressiva, alcançando 86,93% dos técnicos e auxiliares de enfermagem.
A fixação dos profissionais na AB se constitui num desafio para a gestão do sistema. Também, sobre esse aspecto, este estudo sinaliza bons resultados, pois verificou-se que somente 10,5% dos profissionais atuavam há menos de um ano na AB desses municípios, 22,4% trabalhavam de um até três anos e 56,3% há mais de três anos. Os dados sugerem uma baixa rotatividade de profissionais em MPP e, possivelmente, um maior vínculo com a população. Pode-se inferir, também, que a realização de concursos públicos e a admissão por vínculos estáveis se constituam em estratégias potentes para a fixação desses profissionais.
No entanto, é necessário maior aprofundamento sobre os fatores determinantes da fixação e da rotatividade dos profissionais nos serviços de AB em MPP, tendo em vista a sua importância para a qualificação da gestão, visando, principalmente, às melhores formas de planejamento, seleção e fixação de profissionais. Tais questões se justificam tendo em vista que a fixação de equipe qualificada está intrinsecamente relacionada à cobertura e à resolubilidade dos serviços, pois, segundo Scherer et al. (2009, p. 723), "A construção do coletivo depende da presença de um mínimo de estabilidade e de certa permanência na organização, pois a confiança e a cooperação se constroem com o tempo".
Ao analisar a escolaridade dos profissionais, verificou-se que os ACS deste estudo apresentaram escolaridade acima da exigida para o cargo, condição que representa um grande avanço se comparada à época da implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) no Brasil, datada de 1991, quando a condição exigida era a de que soubessem ler e escrever. Mais recentemente, a Lei nº 11.350, de 2006, explicitou, em seu artigo 6º, que a conclusão do ensino fundamental e do curso de qualificação básica para formação de ACS são requisitos para o exercício da atividade (BRASIL, 2006). Quanto à formação inicial para ACS, verificou-se que 21,1% dos ACS da área em estudo necessitam dessa formação, tanto para atendimento da legislação como para oferecer melhor qualificação e melhores condições para o trabalho.
Há de se destacar que não só os ACS, mas a grande maioria dos profissionais das equipes possuía condições de escolaridade adequadas ou superiores às exigidas para o cargo. Os resultados demonstram que o fato dos profissionais atuarem em MPP, no interior do estado, não os impede de ter acesso a processos de formação e qualificação profissional.
Segundo Lacaz (2008), a educação e a formação de pessoal são formas de valorização da força de trabalho e, por consequência, um instrumento importante de gestão do trabalho. Com referência ao mesmo tema, Mendonça et al. (2010, p. 2357) comentam que
na área da saúde, os avanços da ciência e o desenvolvimento tecnológico acelerado, característicos do modo de produção atual, implicam a necessidade de uma constante atualização de seus profissionais e uma base de conhecimentos interdisciplinar sólida que lhes permitam enfrentar a diversidade e a 'adversidade' do processo de saúde no mundo atual.
Quanto à admissão e à manutenção dos trabalhadores, importantes resultados foram verificados neste estudo, pois as prefeituras foram diretamente responsáveis pela seleção e pela contratação de 83,6% do total dos profissionais de saúde que atuavam na AB dos municípios em estudo, sendo que 77,2% possuíam vínculos formais com os municípios.
A partir da década de 1990, passou a existir um mosaico de situações jurídicas e profissionais entre os trabalhadores de saúde, gerando novas formas de gestão do trabalho, como o aumento do número de profissionais con tratados como autônomos, terceirizados, incentivo à organização de seguros e planos privados disponibilizados por grupos de profissionais de saúde 'liberais', o que se apresenta como uma das mais graves consequências das medidas neoliberais, comprometendo o potencial político-organizativo e a gestão desses trabalhadores (CARVALHO; SANTOS, CAMPOS, 2013).
No entanto, verificou-se que as tendências de precarização das relações e a flexibilização das condições de trabalho, ocorridas a partir dos anos 1990, introduzidas pelo Plano Diretor da Reforma do Estado, cujas leis decorrentes regulamentaram a utilização de instituições privadas em associação com o Estado (BRASIL, 1995), não se mantiveram nas mesmas proporções iniciais. Ou seja, mesmo com as dificuldades que os gestores possam ter encontrado, como a complexidade da organização de concursos públicos, a fixação de profissionais e a Lei de Responsabilidade Fiscal (BRASIL, 2000), que estipula limites para gastos com pessoal e outras regulamentações que regem a administração pública, estão viabilizando meios para diminuir a precarização da força de trabalho em saúde.
Tais resultados sinalizam avanços na gestão do trabalho pelos pequenos municípios, se comparados a dois estudos anteriores (TOMASI ET AL., 2008; GIRARDI; CARVALHO, 2001). O primeiro pesquisou, em 2005, trabalhadores da AB na região Sul, em municípios com mais de 100.000 habitantes, e identificou que 59,0% destes haviam sido selecionados por concurso público, e 28,0% admitidos por meio de vínculos precários. E o outro, em 2001, indicou que, entre as regiões geográficas do Brasil, a região Sul apresentava os menores índices de participação das prefeituras na contratação dos profissionais das EqSF, com os índices de 76,2% para os dentistas, 72,8% para os Aenf, 67,2% para os enfermeiros, 62,1% para os médicos e 53,6% para os ACS.
Um fator limitante, que ainda se apresenta nos pequenos municípios, é a quase ausência de uma política de planos de carreira, cargos e salários, pois 79,5% de todos os profissionais estudados referiram não ter PCCS. A implantação do PCCS/SUS, com perspectivas de desenvolvimento da carreira, política definida para ingresso, evolução e avaliação de desempenho, deve contribuir para maior valorização e fixação dos profissionais nas equipes, para maior satisfação e realização profissional; e, no âmbito da gestão, como facilitador para o dimensionamento das equipes, planejamento e previsão orçamentária, sendo de atribuição e responsabilidade dos gestores das três esferas de governo sua elaboração e implantação conforme 'Princípios e diretrizes para a gestão do trabalho no SUS' (BRASIL, 2005).
A implantação e a implementação do PCCS podem refletir, indiretamente, na melhoria da qualidade do trabalho e no atendimento à população, tendo em vista as especificidades das equipes e a complexidade do trabalho em saúde. O desenvolvimento de mecanismos mais eficazes, que contemplem tanto as exigências de qualidade nos serviços quanto os anseios de melhores condições de trabalho para os profissionais, é um desafio, ainda, a ser superado (PIERANTONI ET AL., 2008),
Quanto aos salários, chama atenção o desequilíbrio entre os salários pagos aos profissionais de nível superior. Aos médicos pagava-se, em média, mais que o triplo dos salários dos dentistas e enfermeiros. De qualquer forma, mesmo os maiores salários podem ser considerados 'baixos', pois, já em 2009, discutia-se no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado n.o 140, que pretendia fixar o piso salarial para médicos e dentistas em sete mil reais por 20 horas semanais, bem acima dos valores salariais referidos pela maioria dos entrevistados dessas categorias (BRASIL, 2009). Esse fato provavelmente se relaciona com outros dois observados: a multiplicidade de vínculos empregatícios e as cargas horárias contratuais não cumpridas por médicos e dentistas. A adoção de PCCS, embora provavelmente implique maiores gastos, pode contribuir para resolver ou atenuar essas distorções.
Considerações finais
As informações apresentadas neste estudo propiciam um maior conhecimento das características da força de trabalho na AB em MPP.
A pesquisa revelou vários aspectos positivos, como a diversidade de categorias profissionais, a boa distribuição geral de trabalhadores de saúde por habitantes, a formação qualificada para atuação na AB, a seleção por concurso ou teste seletivo, vínculos empregatícios formais e legais. Por outro lado, evidenciou deficiências a serem sanadas, como o número insuficiente de médicos para a população considerada, ausência de planos de carreira, salários insuficientes e, por vezes, iníquos entre trabalhadores, multiplicidade de vínculos empregatícios e descumprimento da carga horária contratada por alguns profissionais.
Problemas identificados podem ser superados pontual e especificamente, mas, assumindo uma visão mais abrangente, há necessidade da instituição de políticas específicas para os MPP. Concordando com o Plano Diretor em Municípios de Pequeno Porte, pode-se afirmar que são necessários investimentos técnicos, financeiros e de qualificação da gestão, bem como a realização de pesquisas, medidas de acompanhamento e avaliação por parte das instâncias estaduais e federal, devido à carência de estrutura para o planejamento e a baixa capacidade de gestão urbana para exercer a competência municipal constitucional dessa parcela de municípios. O apoio possibilitará a estes darem respostas às necessárias transformações e aos desafios contemporâneos da gestão do trabalho no SUS e suas especificidades, uma vez que a descentralização lhes trouxe desafios que ainda não foram superados completamente.
Referências
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Suporte financeiro: Fundação Araucária, por meio da chamada de Projetos 08/2009 - Programa de Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde. Nº do processo: 11348/2010
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* Artigo resultante da pesquisa 'Gestão do processo de trabalho na rede de Atenção Básica de saúde em Municípios de Pequeno Porte da região Norte do Paraná', apoiada financeiramente pela Fundação Araucária, por meio da chamada de Projetos 08/2009 - Programa de Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2015
Histórico
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Recebido
Mar 2014 -
Aceito
Jul 2014