Open-access O Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Goiânia (GO): percepções dos profissionais e gestores

The Support Center for Family Health in Goiania (GO): perceptions of professionals and managers

RESUMO

O Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) foi criado em 2008 para fortalecer a Atenção Básica no Brasil. Em Goiânia (GO), foi implantado cinco equipes em uma região do município. O objetivo do estudo foi analisar o processo de implantação do Nasf em Goiânia a partir das percepções dos seus profissionais e gestores. Realizaram-se entrevistas, e os dados foram analisados a partir da técnica de análise temática. Conclui-se que o apoio matricial, a contratação de profissionais efetivos e a realização do processo formativo trouxeram avanços para o Nasf em Goiânia, embora com desafios frente às condições de trabalho e às resistências das Equipes de Saúde da Família.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde pública; Saúde da família; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

The Support Center for Family Health (Nasf) was created in 2008 to strengthen Primary Health Care in Brazil. In Goiania (GO), it was implanted five teams in a municipal area. The aim of the study was to analyze the deployment process of the Nasf in Goiania from the perceptions of its employees and managers. Interviews were conducted, and the data were analyzed from the technique of thematic analysis. If conclude that the matrix support, the recruitment of effective professionals and the accomplishment of the educational process brought advances to the Nasf in Goiania, although with challenges due to working conditions and the Family Health Teams' resistances.

KEYWORDS: Public health; Family health; Primary Health Care

Introdução

Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs) foram criados por meio da Portaria n° 154, de 24 de janeiro de 2008, republicada em 4 de março de 2008 pelo Ministério da Saúde. Tal política busca revisar de forma integrada e sistemática a prática de encaminhamento, redefinindo os papéis de referência e contrarreferência, em um processo de acompanhamento longitudinal e de plena integralidade do cuidado dos usuários, reforçando os atributos da Atenção Básica (AB) e o seu papel de coordenação do cuidado (BRASIL, 2008).

Os Nasfs podem ser constituídos por profissionais de diferentes campos do conhecimento, compartilhando as práticas em saúde nos territórios sob responsabilidade das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e/ou Equipes de Atenção Básica (EqAB) para populações específicas, tais como as ribeirinhas, as fluviais ou que são atendidas em consultórios na rua (BRASIL, 2008; BRASIL, 2009). Há três modalidades de Nasfs (1, 2 e 3), que diferem quanto à carga horária de trabalho e ao número de equipes ESF/EqAB que apoiam (BRASIL, 2012).

De acordo com dados de 2013, publicados pela Coordenação-Geral de Gestão da Atenção Básica (DAB/SAS/MS), foram implantados 1.987 Nasfs no País, sendo 1.527 do tipo 1 e 460 do tipo 2, conforme gráfico 1.

Gráfico 1
Implantação dos Nasfs no Brasil no período de janeiro de 2008 a janeiro de 2013

Embora se identifique um crescimento no número de Nasfs no País, a implantação dessa política ainda constitui-se em grande desafio. A proposta de trabalho fundada na corresponsabilização do cuidado e no planejamento coletivo de projetos terapêuticos contrasta com a realidade da maioria das equipes de ESF. Esse distanciamento vem provocando resistências para o desenvolvimento do trabalho conjunto entre profissionais do Nasf e das equipes de ESF, conforme apontam Menezes (2011), Andrade (2012), Azevedo (2012), Mafra (2012) e Santos (2012).

Na realidade de Goiânia, a implantação do Nasf aconteceu em 2008, envolvendo diversos profissionais e departamentos do serviço público de saúde do município. Com efeito, Goiânia implantou a modalidade Nasf Tipo 1, a qual se caracteriza pela composição de no mínimo cinco especialidades profissionais (BRASIL, 2008). A Secretaria Municipal de Saúde optou por realizar a implantação do Nasf de forma gradual, com apenas cinco equipes na região Noroeste da cidade (GOIÂNIA, 2009), aguardando que a proposta fosse se consolidando não apenas no município, mas também em nível nacional para fazer novas ampliações. Assim, este trabalho tem como objetivo analisar o processo de implantação do Nasf em Goiânia (GO) a partir das percepções dos seus profissionais e gestores.

Métodos

A investigação caracterizou-se como de campo e exploratória. Adotou-se, também, as elaborações de Minayo (2010) sobre os critérios para seleção da amostragem na pesquisa social em saúde, considerando a expressão da totalidade das múltiplas dimensões do objeto de estudo.

A pesquisa1 foi realizada na cidade de Goiânia (GO), na região Noroeste, especificamente, no local onde foram alocados os trabalhadores do Nasf. Utilizou-se como instrumento de coleta de dados a entrevista semiestruturada com oito profissionais do Nasf e três gestores (coordenador do Nasf, um representante do Distrito Sanitário Noroeste e outro da Coordenação da Estratégia Saúde da Família de Goiânia). Os profissionais do Nasf foram selecionados buscando contemplar a representação de um profissional por categoria e por equipe Nasf.

Para análise do material coletado, foi utilizada a técnica de Análise Temática, organizada em três momentos: i) Pré-análise: nessa fase, seleciona-se o material a ser analisado, estabelecendo um contato exaustivo com seu conteúdo; considerando as normas de validade qualitativa (exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência); e buscando responder às indagações iniciais. Essa fase pode ser dividida em leitura flutuante, a constituição do corpus ou da totalidade do material estudado e a (re)formulação de hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa. Foi nesse momento pré-analítico que definiram-se as unidades de registro e suas respectivas unidades de contexto a partir dos seguintes núcleos de sentido provisórios: 'as condições de trabalho e as relações político-administrativas do Nasf'; 'as contradições do trabalho do Nasf e das equipes de ESF'; e 'interdisciplinaridade como negação das especialidades profissionais'; ii) Exploração do material: nessa fase, ocorre a operação de codificação propriamente dita, na qual buscou-se 'reduzir' o material analisado às suas expressões significativas. As unidades de registro e contexto foram recortadas do material para, em seguida, poderem ser visualizadas com mais clareza em sua repetição e seu significado. No final, foi realizado um processo de classificação elencando as categorias empíricas e/ou teóricas advindas da análise; iii) Tratamento e interpretação dos resultados obtidos: buscou-se compreender o significado das informações obtidas por meio da presença ou frequência de núcleos de sentido. Retornou-se às questões e aos objetivos da pesquisa em um processo dialético de (re)construção do material empírico coletado, com novas mediações (MINAYO, 2010). No processo final de análise, os principais núcleos de sentido localizaram-se nas 'condições de trabalho e gestão dos serviços de saúde', na 'proposta de trabalho do Nasf' e na 'construção interdisciplinar do processo saúde-doença'. Para este artigo, enfatizam-se as análises que decorreram das condições de trabalho e da relação de trabalho do Nasf com as equipes de ESF.

Resultados e discussões

A política de saúde de Goiânia: um olhar a partir da ESF

Goiânia construiu sua política de saúde de forma tardia em relação a outros municípios brasileiros, dando impulso ao reconhecimento dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) apenas em 1998, com a criação da Secretaria Municipal de Saúde, sendo a penúltima capital brasileira a implantar o processo de municipalização da saúde (SILVA, 2008).

Esse processo foi permeado por conflitos entre os governos do estado e do município, de acordo com o autor citado acima, cristalizados por manobras tradicionais de clientelismo e coronelismo, indicando a pertinência da análise de Bourdieu (1996, 2009) e sua noção de campo como espaço relativamente autônomo, um mundo social com regras próprias, porém, permeável às influências de outros campos sociais e suas forças objetivas e formas de ação de suas autoridades. Os campos constituem a sociedade e podem ser compreendidos como

[...] microcosmos ou espaços de relações objetivas, que possuem uma lógica própria, não reproduzida e irredutível à lógica que rege outros campos. O campo é tanto um 'campo de forças', uma estrutura que constrange os agentes nele envolvidos, quanto um 'campo de lutas', em que os agentes atuam conforme suas posições relativas no campo de forças, conservando ou transformando a sua estrutura. (BOURDIEU, 1996, P. 50).

Observa-se, assim, que o trabalho em saúde, que caracteriza uma importante faceta desse campo, não se constitui de forma independente de outros campos de força como se identificou no contexto da cidade em estudo, o que pode ter ocorrido em outros contextos.

Segundo pesquisa do Ministério da Saúde, realizada com gestores municipais de dez centros urbanos do País, o Programa Saúde da Família (PSF) foi implantado em Goiânia em outubro de 1998, de forma gradual, em apenas um bairro, com sete Equipes de Saúde da Família (EqSFs) no primeiro ano e com perspectivas de chegar à implantação de 69 equipes nos dois anos subsequentes. Os motivos relatados pelos gestores para a implantação desse programa no município foram a expansão da cobertura para áreas de difícil acesso, com risco epidemiológico e elevada mortalidade infantil, assim como o fato de o PSF constituir-se como um novo modelo assistencial. Todavia, não se pretendia uma reorganização ampliada no sistema municipal de saúde no sentido de integrar a AB à rede assistencial (BRASIL, 2005).

Em Goiânia, o PSF foi implantado desvinculado da rede básica e foi concebido, inicialmente, como programa centrado na realização de atividades educativas individuais, com a criação de ESF [Equipes de Saúde da Família] volantes, fazendo visitas domiciliares de casa em casa, tendo, por vezes, apenas espaços comunitários como ponto de apoio ou uma sala em unidade de saúde tradicional. Em 2001, iniciava-se processo de articulação do programa com a rede assistencial e os novos gestores municipais compreendiam o PSF como estratégia para reorganizar a rede assistencial. Fora iniciada discussão interna para mudança do PSF, pretendendo-se um modelo que articulasse ações de promoção, prevenção e assistência individual. (BRASIL, 2005, P. 80).

Em 2001, existiam 75 EqSF, com número médio de 1.333 famílias por equipe e com percentual de cobertura populacional de 30%, distribuídas em 24 unidades de saúde. No processo de implantação, apenas uma unidade foi construída e sete EqSFs foram alocadas em unidades básicas tradicionais. Nesse cenário, apenas uma unidade básica foi convertida em saúde da família, e 15 unidades se configuravam como 'minipostos', situados em imóveis alugados/cedidos. Era frequente, na condição da maioria das EqSFs, a insuficiência de espaço para realização de atividades em grupo e o revezamento de profissionais dentro e fora da unidade em razão da pequena quantidade de consultórios (BRASIL, 2005).

Atualmente, a organização do serviço público de saúde do município de Goiânia ocorre por meio de sete Distritos Sanitários e 186 EqSF, distribuídas em 63 unidades de saúde, com cobertura de, aproximadamente, 40% da população (GOIÂNIA, 2015).

Segundo estudo realizado pelo Ministério da Saúde, em 2000, Goiânia destinava à área da saúde 4,5% do conjunto das despesas do município, recebendo recursos federais na ordem de 83,6% do total investido na área. Essa realidade foi identificada em outros centros urbanos estudados, os quais apresentavam gastos com saúde muito aquém do estipulado pela Emenda Constitucional 29, ou seja, de 15% no mínimo. Portanto, há predominância das transferências federais, com baixíssimas participações de recursos próprios dos municípios e praticamente nula participação das secretarias estaduais (BRASIL, 2005).

De 2000 a 2012, houve um aumento de cinco vezes nos gastos relativos à saúde no município, elevando-os para 24%. De acordo com Elias Rassi Neto (2012), houve ampliação na ordem de R$ 657 milhões, em 2010, R$ 760 milhões, em 2011 e R$ 900 milhões, em 2012. O então secretário de saúde, na época da coleta de dados da pesquisa, também salientou a realização de dois concursos públicos, os quais ampliaram, significativamente, o quantitativo de trabalhadores, de 5.594, em janeiro de 2006, para 10.715, no início de 2012.

As condições de trabalho do Nasf em Goiânia

A aprovação do projeto de criação do Nasf em Goiânia ocorreu em 2009, porém, o processo seletivo e o curso de formação dos profissionais selecionados aconteceram apenas em 2010. O trabalho propriamente dito do Nasf no território iniciou-se em junho de 2011, na região Noroeste de Goiânia, a qual foi escolhida por sua vulnerabilidade social, pela cobertura de, aproximadamente, 100% de ESF e pela sua tradição no acolhimento de experiências-piloto. Na ocasião, o Nasf era composto por 16 profissionais (incluindo a coordenação), distribuídos em quatro equipes.

A organização do Nasf em Goiânia baseou-se em uma experiência-piloto com matriciamento em saúde mental na região Noroeste, sendo as primeiras ações desse tipo na AB em Goiânia, a qual ocorreu entre os anos de 2007 e 2009, segundo relato de um dos gestores entrevistados. A partir do acúmulo de experiências nesse projeto, um dos profissionais participantes tornou-se apoiador, contribuindo nas reflexões sobre as possibilidades de matriciamento do Nasf e no acompanhamento das ações e do trabalho coletivo junto aos seus trabalhadores. A coordenadora do Nasf e uma psicóloga, que participaram da experiência-piloto citada, também eram profissionais do Núcleo. Essa experiência parece ter tido influência importante na forma como as equipes iniciaram o trabalho na região, no quantitativo de profissionais dessa área e nas ações em torno da saúde mental, que se tornaram centrais no trabalho desenvolvido. A influência da equipe de saúde mental na implantação do Nasf e no fortalecimento da lógica do apoio matricial também foi identificada na pesquisa de Patrocínio, Machado e Fausto (2015), em um município fluminense. Esse parece ser o caso em que um núcleo de saberes e práticas assume o protagonismo dentro de um campo de atuação (CAMPOS, 2000), o que pode ter ocorrido seja por sua primazia histórica, por competência de seus profissionais ou por interferência do campo político no âmbito da saúde.

Experiência semelhante foi relata por Souza (2013), que ressaltou a importância da presença de apoiadores matriciais no processo de implantação do Nasf no município de Sobral (CE), não só para reflexão sobre o trabalho, mas, também, na mediação do Nasf com as equipes de ESF. Em outras investigações, a falta dessa mediação foi lembrada como um aspecto negativo, como, por exemplo, no Nasf de Olinda (PE), onde os profissionais não conheciam a proposta de apoio matricial (MENEZES, 2011), assim como no de Piraí (RJ), devido às dificuldades dos trabalhadores no domínio do matriciamento (MAFRA, 2012).

No trabalho do Nasf, o apoio matricial é considerado central e se complementa com as 'equipes de referência', nesse caso, representadas pelas EqSFs (BRASIL, 2009). Nesse sentido, "equipes de referência representam um tipo de arranjo que busca mudar o padrão dominante de responsabilidade nas organizações [...]" (BRASIL, 2009, P. 11). O termo 'matricial' busca operar uma mudança na relação entre o especialista e o profissional de referência, estimulando processos horizontais e superando hierarquizações da administração clássica presentes nos sistemas de saúde. O termo 'apoio' refere-se à relação entre os profissionais com saberes, valores e papéis diferentes, sugerindo um processo 'dialógico' e compartilhado (CAMPOS; DOMITTI, 2007).

Na construção desse trabalho coletivo, os conceitos de campo e de núcleo constituem-se como fundamentais. Para Campos (2000), núcleo se refere à demarcação da identidade de uma área de saber e de prática profissional, mantendo certa abertura e flexibilidade com o campo, o qual é compreendido como um espaço com limites indefinidos onde as disciplinas buscariam apoio umas nas outras. "Metaforicamente, os núcleos funcionariam em semelhança aos círculos concêntricos que se formam quando se atira um objeto em água parada. O campo seria a água e o seu contexto" (CAMPOS, 2000, P. 221). Contudo, é preciso considerar que o apoio matricial é um arranjo relativamente novo e ainda carece de ser melhor compreendido, disseminado, incorporado e avaliado no trabalho em saúde. Por isso a importância de garantir um apoiador matricial e um acompanhamento mais próximo e dialogado da gestão no processo de implantação dos Nasfs no País.

Um dos elementos importantes que impactou as condições de trabalho do Nasf de Goiânia foi o tempo de duração de, aproximadamente, um ano do processo formativo dos seus profissionais. Esse período não foi planejado pela Coordenação de Estratégia Saúde da Família (Coesf) e ocorreu porque não havia verba de custeio para o Nasf. Além disso, os profissionais selecionados não poderiam sair dos seus locais de trabalho de origem sem que acontecessem novos concursos ou processos de remanejamento.

Os profissionais do Nasf relataram que houve avanços na organização do trabalho propiciados pelo longo período de formação dos trabalhadores, mas, também, momentos de muitas expectativas e angústias pela indefinição do início das atividades. Com efeito, também houve desistências de profissionais pela falta de afinidade com a proposta de trabalho do Nasf, em especial, dos médicos, que questionaram a prioridade no apoio às equipes de ESF em detrimento ao atendimento clínico diretamente à população (PROFISSIONAL DO NASF, MEDICINA, 16/5/2012).

Ainda, a precária condição inicial, caracterizada pela falta de profissionais e pelas equipes incompletas, fez com que fosse necessário um aumento do número de equipes de ESF por equipe Nasf para manter a cobertura de 100% em todo território da região Noroeste. Essa forma de distribuição dos profissionais do Nasf foi retratada por um dos gestores:

Então, o que a gente precisou fazer foi redistribuir o número de equipes pela quantidade de equipes de Nasfs. Então, os Nasfs têm mais equipes de referência [de saúde da família], em torno de 13 a 15, o que não é uma quantidade que permite um matriciamento adequado. Mas preferimos manter a cobertura completa e não deixar nenhuma equipe sem referência de Nasf, do que fazer essa seleção dentro do próprio Noroeste e ficar restrito a uma parte. (PROFISSIONAL DA GESTÃO DA COORDENAÇÃO DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA, 8/3/2012).

Em outros estados do País, como é o caso de Santa Catarina, os profissionais do Nasf e da ESF relataram dificuldades no trabalho diante do amplo território adscrito (ANDRADE et al., 2012). Esse elemento também foi apontado pelas equipes de ESF da região Noroeste de Goiânia, segundo informações dos profissionais do Nasf. Na contramão desse processo, em Belo Horizonte/MG, a diminuição da relação entre equipes de ESF e o apoio de equipes Nasf converteu-se em qualificação do trabalho (AZEVEDO, 2012).

A relação entre quantidade de equipes de ESF por equipes de Nasf foi alvo de críticas desde a criação da política, em 2008, onde se previa uma equipe para apoiar, no mínimo, 8 e, no máximo, 20 equipes de ESF. Provavelmente fruto desse questionamento, em 2011, essa relação foi reduzida para o apoio de 5 a 9 equipes de ESF (BRASIL, 2012).

No Nasf, em Goiânia, a garantia de contratação de profissionais efetivos foi central e acompanhou a implantação da política. Para os gestores e trabalhadores, foi importante garantir o vínculo dos profissionais por concurso público, o qual, entre outros elementos, possibilitou a diminuição da rotatividade dos profissionais, além de salários atrativos e demais vantagens. Não obstante, a seleção foi 'interna', trazendo para o Nasf trabalhadores com experiência no território e em outros serviços de saúde do município.

Parece-nos importante ressaltar que a contratação de profissionais por concurso público não parece ser frequente na realidade da maioria dos municípios. Casos como nas cidades cearenses de Crato, Fortaleza e Sobral, a contratação dos profissionais do Nasf se deu de maneira temporária, o que gerou alta rotatividade dos trabalhadores em razão do vínculo precário ou do término do contrato (SOUZA, 2013). Os baixos salários, inferiores aos de trabalhadores das equipes de ESF, e a forma de contratação dos profissionais do Nasf também dificultaram o processo de implantação dessa política em um município fluminense (PATROCÍNIO; MACHADO; FAUSTO, 2015).

Desde a inserção do Nasf no território, os trabalhadores enfrentam a falta de materiais e de profissionais. Essas condições foram reiteradamente apontadas pelos profissionais de Goiânia (GO), tanto pelos trabalhadores quanto pelos gestores, como uma das principais dificuldades na organização do trabalho do Nasf. Alguns profissionais detalham a condição de trabalho do Nasf:

Antes de a gente vir para o território, já existiam processos abertos com relação à condição do trabalho, computador que a gente identificava que era necessário, carros e outras coisas mais. A gente acabou iniciando o trabalho com carros cedidos pelo Distrito, depois a gente não tinha o carro e não tinha motorista. Então, motoristas foram cedidos pelo Distrito e hoje são de fato motoristas do Nasf [...] A gente só usa computadores pessoais, porque a gente tem construído uma dinâmica de trabalho que exige internet, computador. E a gente acaba que vai tendo que pagar para trabalhar. (PROFISSIONAL DO NASF, EDUCAÇÃO FÍSICA (1), 14/5/2012).

E o que eu acho que a gente tem que melhorar lá é a questão da estrutura física, dos recursos [...] não é muito diferente da secretaria, né? Então, falta muito recurso básico, como computador, internet, uma impressora, essas coisas assim mesmo. (PROFISSIONAL DA GESTÃO DISTRITAL DO NASF (2), 14/8/2012).

Para dois gestores, a falta de condição estrutural, material e de profissionais representa uma dificuldade na implantação, a qual gera insegurança nos profissionais quanto à continuidade e até à existência do Nasf no município. Em praticamente todas as investigações identificadas sobre a implantação do Nasf no País, encontraram-se indicativos de problemas relacionados à estrutura física das unidades de saúde, ao transporte para os profissionais e à falta de materiais, especialmente para as atividades de grupo e de educação permanente. Elementos que apontam para uma condição estrutural de precariedade generalizada dos serviços públicos de saúde, que pode ser intensificada com a implantação do Nasf. Nesse caso, o Nasf pode, também, tornar-se um serviço substitutivo à falta de equipes de ESF, o que distorce e fragiliza a proposta de fortalecimento e qualificação da saúde da família como uma estratégia de AB no Brasil.

As equipes da ESF e a proposta de trabalho do Nasf

Um dos principais desafios para os profissionais do Nasf foi a resistência das equipes de ESF com relação à proposta de trabalho. Os dados de campo indicam as expectativas dos trabalhadores da ESF, segundo as percepções dos profissionais do Nasf:

Exatamente, nesse primeiro momento, já ficou bem evidente qual era a expectativa deles [...] quando a gente falou que não seria a questão de assumir usuários, que seria uma pactuação ou um cuidado que seria compartilhado e tudo mais. Então, eu acho que pode ter criado um pouco desse pensamento: 'se o psicólogo não vai atender o paciente que a gente mandar para ele, então o que eles estão fazendo aqui?'. Eu acho que isso contribuiu um pouco para essa resistência de algumas equipes. (PROFISSIONAL DO NASF, FARMÁCIA, 1/6/2012).

[...] porque não são todas as equipes que aceitam o Nasf da forma que ele se propõe, que é o apoio matricial. Esperam de outra forma, que é a lógica do encaminhamento. (PROFISSIONAL DO NASF, NUTRIÇÃO, 8/5/2012).

Em outros municípios, a política de implantação do Nasf ocorreu de forma semelhante à de Goiânia. No processo de implantação no município de Fortaleza (CE), também se identificaram resistências e pouca integração entre os profissionais da ESF e do Nasf (SANTOS, 2012). De acordo com a autora, essa condição foi reforçada pela lógica do encaminhamento dos casos para os profissionais do Nasf. Além do estudo realizado em Fortaleza (CE), nas investigações realizadas em Santa Catarina (ANDRADE et al., 2012) e em Piraí (RJ) (MAFRA, 2012), também foram encontradas dificuldades no entendimento da proposta de trabalho. Na implantação em Belo Horizonte (MG), o Nasf foi compreendido como demanda (AZEVEDO, 2012). Em Olinda (PE), as resistências dos profissionais da ESF ocorreram porque eles se sentiam 'vigiados' pelos trabalhadores do Nasf (MENEZES, 2011).

Destaca-se que a reação de negação de algumas equipes de ESF à proposta de trabalho do Nasf se repetiu em vários municípios brasileiros. Embora seja importante a inserção de outros profissionais na AB, a proposta do Nasf vem acirrando as contradições da realidade de trabalho. Os profissionais do Nasf, além de não priorizarem o atendimento de demandas mais urgentes de encaminhamento de usuários, especialmente para a média complexidade, exigem da rotina de trabalho da ESF mudanças nas concepções dos trabalhadores que, de maneira geral, produzam impactos no modelo assistencial curativo, centralizador e biomédico. Essas dificuldades, em parte, estão vinculadas ao histórico distanciamento da formação profissional das necessidades e da realidade dos serviços de saúde, especialmente, da AB (ANJOS et al., 2013), que parece estar se explicitando com a implantação dos Nasfs no País. Embora também seja preciso reconhecer que algumas ações2 vêm sendo realizadas pelo Ministério da Saúde para induzir mudanças nesse quadro, com impactos ainda tímidos na realidade de trabalho.

Pode-se, também, compreender esses conflitos situacionais entre os profissionais provenientes, cada um deles, de diferentes núcleos profissionais com seus interesses científicos e políticos, assim como as relações de poder que se estabelecem entre eles (BOURDIEU, 2003). Os conflitos identificados nesta e em outras pesquisas podem, ainda, ser compreendidos como desdobramentos das dificuldades de uma passagem da disciplinaridade própria de cada profissão para a interdisciplinaridade e a interprofissionalidade, exigidas pelo apoio matricial e pelo trabalho em saúde (CAMPOS, 2006).

Na pesquisa de Souza (2013), nos municípios cearenses de Crato, Fortaleza e Sobral, observou-se que os principais profissionais que trabalhavam com as equipes de Nasf eram os Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Para a pesquisadora, além das práticas profissionais das equipes de ESF serem, de maneira geral, restritas aos trabalhadores de nível superior, elas são centradas em ações clínicas e individuais, assim como no atendimento da excessiva demanda de usuários, que dificultam o trabalho conjunto com os profissionais do Nasf. Esse contexto é propício para o estreitamento da relação entre os ACS e os trabalhadores do Nasf, porque os ACS conhecem as necessidades de apoio do território e também carecem de profissionais que atendam a essa demanda, especialmente em situações que exigem visitas domiciliares e em casos complexos.

Em um dos municípios estudados por Souza (2013), a falta de compreensão dos profissionais da ESF sobre o papel do Nasf fez emergir nomeações pejorativas como "Núcleo que não fazia nada" ou de "N.A.S.F: não se faz" (SOUZA, 2013, P. 79). Fato semelhante também foi identificado pelos trabalhadores do Nasf em Goiânia. Eles relataram que, em algumas equipes de ESF, quando alguém se posiciona sobre uma situação a partir de reflexões e problematizações, é interpelado como se estivesse 'nasfiando'.

Frente a esses dados, questiona-se se os profissionais da ESF não compreendem a proposta de trabalho do Nasf ou se se sentem limitados para realizar tais mudanças diante de uma realidade de trabalho que lhes impõe outras demandas mais urgentes. Sobre esse tema, Souza (2013, P. 131) argumenta: "as limitações colocadas são fruto do desconhecimento ou da não aceitação apresentada como desconhecimento?", já que, na maioria das vezes, a política Nasf é imposta, não sendo os profissionais inseridos no processo de implantação. Para Patrocínio, Machado e Fausto (2015), essa dificuldade poder ser considerada como um 'falso dilema', já que o apoio matricial não exclui o atendimento individual, embora ele deva ser coordenado de forma pactuada e conjunta com as equipes de ESF.

De maneira mais ampla, esse conflito também revela as disputas e os interesses que permeiam o trabalho nas unidades de saúde, isto é, em realizar um trabalho compartilhado ou o atendimento clínico e especializado da demanda (VOLPONI; GARANHANI; CARVALHO, 2015). É certo que as mudanças no sistema de saúde brasileiro são necessárias, contudo, essas não ocorrerão apenas pela vontade dos sujeitos, já que os atores sociais se posicionam a partir de projetos societários em disputa e reproduzem como sujeitos sociais as desigualdades que os constituem e que determinam suas consciências sobre o mundo e também sobre suas concepções a respeito do SUS (VIEIRA et al., 2006).

Apesar das dificuldades relatadas, também foi possível identificar falas de avanço no trabalho do Nasf junto às equipes de ESF e à população na região. Alguns trechos de entrevista abordam esses elementos:

Nós já notamos, apesar de ter equipes que ainda têm essa dificuldade de entendimento, que tiveram grandes avanços com algumas delas, principalmente unidades inteiras que, às vezes, ainda estavam desestruturadas, que a gente está auxiliando até no processo de trabalho. Então já está havendo, assim, uma fala diferente em relação ao Nasf [...], e agora a gente já percebe que tem usuários satisfeitos, agradecendo à equipe. (PROFISSIONAL DO NASF, MEDICINA, 16/5/2012).

A gente está conseguindo trazer para as EqSFs um contexto diferente de ver essas famílias. Então, acho que isso também é um grande avanço que a gente está conseguindo trazer de diferencial para a região. Embora isso ainda não reverbere do jeito que deve ser [...], mas eu vejo que daqui três, quatro anos a gente vai ter uma região que vai estar com uma EqSF bem implementada, com outros referenciais teóricos que, talvez, hoje, não tenha. Uma outra condição de atuação que vai ser a partir do Nasf [...]. (PROFISSIONAL DO NASF, EDUCAÇÃO FÍSICA (2), 8/5/2012).

Embora identificadas resistências das equipes de ESF com relação à proposta de trabalho do Nasf, os trechos acima sugerem algumas mudanças, ainda tímidas, talvez pela recente implantação da política, especialmente na reestruturação do processo de trabalho e nas concepções dos trabalhadores. De forma semelhante, na implantação do Nasf em municípios do Rio de Janeiro, foram identificados avanços no aprimoramento dos conhecimentos das equipes de ESF, no aumento do escopo das ações de cuidado em saúde e na maior resolutividade das demandas da população (PATROCÍNIO; MACHADO; FAUSTO, 2015). Embora com dificuldades e desafios, essas ações vêm instaurando um processo lento e gradual de ruptura com práticas hegemônicas, de reflexão sobre o processo de trabalho e produção do cuidado integral na AB (VOLPONI; GARANHANI; CARVALHO, 2015).

Conclusão

O processo de implantação do Nasf em Goiânia, segundo os profissionais investigados, enfrentou desafios, especialmente no que tange às condições de trabalho e às resistências da maioria das equipes de ESF quanto à proposta de trabalho do Nasf.

A análise dos dados permite afirmar que a presença de um apoiador matricial, a contratação de profissionais efetivos e a realização do processo formativo garantiram potencialidades ao Nasf em Goiânia. Contudo, essa não parece ser a realidade da maioria dos processos de implantação dessa política no País, conforme resultados de pesquisas aqui compartilhados.

De maneira geral, a proposta de trabalho do Nasf tem provocado resistências em algumas equipes de ESF que indicam, entre outros elementos, um distanciamento da realidade de trabalho e uma dificuldade no trabalho interdisciplinar exigido pelo apoio matricial, assim como pelo trabalho em saúde como um todo. Além disso, a maneira de organizar o trabalho do Nasf exige das equipes de ESF mudanças na rotina de trabalho que, em geral, estão concentradas em práticas assistenciais, curativas e individuais. Em meio a essas tensões, somadas às dificuldades advindas das condições de trabalho, os profissionais do Nasf, em diferentes regiões do País, experimentam aquilo que Souza (2013) denominou espaço de 'não lugar' nas unidades de saúde.

Embora existam particularidades em Goiânia, há semelhanças estruturais importantes com a maioria dos municípios brasileiros pesquisados no que se refere às condições precárias de trabalho do Nasf, especialmente na infraestrutura, na falta de profissionais efetivos e materiais, as quais expressam a fragilidade da proposta no fortalecimento dos princípios da AB e do seu papel de coordenação do cuidado na rede de serviços de saúde. Esse parece ser o grande desafio da consolidação do Nasf no Brasil, que remete aos limites da própria política de saúde brasileira, que, apesar dos avanços na implementação do SUS, nos últimos vinte anos, enfrenta problemas históricos e crônicos que vêm se agudizando em torno das questões do financiamento e da relação público-privada.

  • Suporte financeiro: não houve
  • 1
    A pesquisa foi autorizada pela Secretaria Municipal de Saúde e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, sob o parecer número 130/09.
  • 2
    São os casos, por exemplo, das ações da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Segets) na criação e avaliação de projetos como o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) e o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (Pet-Saúde). Além de outras propostas de formação pós-graduada, como as especializações em diferentes temas estratégicos da saúde pública, Residências Multiprofissionais em Saúde da Família, mestrados profissionais, entre outras.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    Mar 2016
  • Aceito
    Ago 2016
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