Open-access Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família

Productive restructuring in health: performance and challenges of the Family Health Support Center

RESUMO

Estudo de casos a fim de identificar estratégias para a atuação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, verificando seu processo de reestruturação produtiva, bem como seus desafios. Utilizaram-se as técnicas de análise documental, observação direta e entrevistas. Os resultados apontam que apoio da gestão, planejamento integrado, comunicação ágil, cogestão, reflexão sobre a prática, qualificação dos profissionais e infraestrutura adequada viabilizam a atuação compartilhada entre profissionais. Persistem desafios, como a inadequada formação para a prática do apoio matricial, no entanto, foi identificado um processo de reestruturação produtiva com potencialidade para ampliar ações e qualificar o cuidado em saúde.

PALAVRAS-CHAVE Saúde da família; Atenção Primária à Saúde; Avaliação de serviços de saúde; Gestão em saúde

ABSTRACT

Case studies to identify strategies for the Family Health Support Center, verifying its process of productive restructuring, as well as its challenges. Techniques of documentary analysis, direct observation and interviews were used. The results show that the support of management, integrated planning, agile communication, co-management, reflection on practice, qualification of professionals and adequate infrastructure enable the shared performance between professionals. Challenges remain such as inadequate formation for the practice of matrix support, however, a productive restructuring process with the potential to expand actions and qualify the health care was identified.

KEYWORDS Family healt; Primary Health Care; Health services evaluation; Health management

Introdução

O Ministério da Saúde (MS) criou, em 2008, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), que têm como diretriz central o apoio matricial em saúde para as equipes de referência. Este apoio tem como objetivo impactar o processo de trabalho, agregando conhecimento e práticas à Equipe de Saúde da Família (EqSF), aumentando sua resolutividade. Por se tratar de um dispositivo que tem como perspectiva a mudança no modo de produzir o cuidado, potencialmente dispara um processo de reestruturação produtiva, pois é capaz de alterar os produtos do trabalho da própria equipe.

A reestruturação produtiva na saúde, segundo Pires (1998, 2000), é caracterizada pela incorporação de novas tecnologias, mudança na gestão do trabalho - especialmente, a terceirização - e na relação entre a organização do trabalho e o modelo assistencial. Atém-se aos aspectos macroestruturais que definem a mudança no campo do trabalho em saúde.

Para Merhy e Franco (2009), a reestruturação produtiva é a resultante de mudanças no processo de trabalho, que ocorrem na reorganização do modo de produzir o cuidado, a partir das próprias equipes, no seu cotidiano. Ela pode acontecer pela incorporação de novas tecnologias; por mudanças ocasionadas por novas propostas organizacionais, como a 'implantação do Programa Saúde da Família (PSF)', nos anos 1990; e também por estruturação dos Nasf. Estes são dispositivos que, além de impactar o ambiente de trabalho, provocam mudanças nos processos de trabalho. A reestruturação pode ocorrer, também, por iniciativas das equipes em promover mudança nos processos de trabalho, reorganizando rotinas e fluxos assistenciais, compartilhando decisões e poder técnico. Pode-se perceber que não há uma oposição entre macro e micropolítica, o que se verifica é que as normas que definem a macropolítica interferem nos processos do cotidiano, no micro. Por outro lado, os trabalhadores e as equipes têm um grande protagonismo e também reorganizam seus processos de trabalho, no espaço cotidiano, sua micropolítica, dando seu conteúdo específico aos dispositivos protocolares e normativos.

Um dos indicadores para verificar um processo de reestruturação produtiva é a análise do processo de trabalho. Para ilustrar esta afirmação: caso ocorra uma inversão no uso das tecnologias de trabalho, pela EqSF, através da qual haja menor uso de componentes das tecnologias duras, alterando para maior o coeficiente das tecnologias relacionais, como recomenda, por exemplo, a diretriz do Acolhimento, inserida no Programa Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2010), isto configura um processo de reestruturação. Vários elementos podem, também, configurar a reestruturação produtiva, como acontece nas relações em rede estabelecidas entre trabalhadores, na intercessão com os usuários, nos modos de estabelecer e negociar planos de cuidado, enfim, o cenário de produção do cuidado é sempre complexo, e os processos de trabalho têm uma grande elasticidade, pois contam com certo grau de liberdade de ação dos trabalhadores. Neste cenário, o Nasf se apresenta como um dispositivo que pode alterar este processo de trabalho e se propõe a uma mudança na produção do cuidado pela EqSF. A análise acontecerá, portanto, dentro desse contexto.

Importa registrar que a reestruturação produtiva pode se dar na direção contrária, ou seja, representando um processo de recrudescimento do modelo biomédico em um processo de trabalho mais instrumental, com redução dos espaços de escuta e acolhimento ao usuário. Não há, a priori, uma valoração do processo de reestruturação. Ele é singular, e vai depender sempre da ação dos sujeitos-trabalhadores que operam os processos de trabalho e produção do cuidado. O estudo relacionado aos efeitos do Nasf sobre o cuidado em saúde deve considerar a potência de reorganização dos processos de trabalho e, a partir disto, o grau de mudança conquistado, que sempre pode variar.

Estudos sobre o processo de trabalho em saúde informam que há uma hegemonia do modelo biomédico, centrado na doença, e no ato prescritivo do médico, caracterizando um excessivo consumo de exames e medicamentos. Ao mesmo tempo, as relações de trabalho são hierárquicas, com valoração do conhecimento especializado, além de mediadas pelo alto consumo de equipamentos e medicamentos. Para produzir mudanças neste cenário, e o consequente aumento da resolutividade da EqSF, o trabalho do Nasf deve procurar impactar, para além do conhecimento, a forma como a própria EqSF significa o trabalho e o cuidado no cotidiano. Sendo assim, é fundamental um processo pedagógico, que impacte o plano da cognição e também da subjetivação, isto é, forme novas subjetividades, que representam um dos fatores de mudança dos sujeitos e, por consequência, do processo de trabalho. Novos sentidos são fundamentais para produzir novas práticas de cuidado.

O apoio matricial em saúde é uma metodologia de trabalho e um arranjo organizacional (CAMPOS; DOMITTTI, 2007) que objetiva assegurar retaguarda especializada, clínico-assistencial e técnico-pedagógica, para as equipes de referência. A EqSF, equipe de referência na Estratégia Saúde da Família (ESF), tem responsabilidade pela condução de casos individuais, familiares ou comunitários de forma longitudinal. E este trabalho nos cenários de práticas entre a EqSF e o Nasf, que são as Unidades de Produção do Cuidado, se transformam também em Unidades de Produção Pedagógica na medida em que o cotidiano do trabalho envolve um inexorável processo de ensino-aprendizagem (FRANCO, 2007). Trabalho e educação no campo da saúde são indivisíveis e, por isto, o Nasf deve utilizar as ferramentas da educação permanente, que melhor se adéquam a este tipo de formação no trabalho, para ativar as mudanças que ele objetiva. Um processo pedagógico implicado com a mudança do trabalho se coloca como dispositivo de reorganização da produção do cuidado, ou seja, pode contribuir para a reestruturação produtiva.

Outro aspecto importante do apoio matricial diz respeito à multiprofissionalidade, o que implica a construção de projetos terapêuticos integrados, quando necessário. A sua execução pode contemplar atendimentos e intervenções conjuntas, troca de conhecimentos e orientações com reavaliação ou reorientação de condutas, mantendo o caso sob os cuidados da equipe de referência. Os arranjos do apoio matricial e da equipe de referência buscam construir um espaço de interação de saberes e fazeres entre diversos profissionais, proporcionando uma ampliação do campo comum de conhecimento, o trabalho em redes, potencializando o trabalho e a resolutividade. Este campo comum deve possibilitar que a identidade construída pelo núcleo de saber de cada profissão possa se abrir para a atuação multiprofissional com interdisciplinaridade (CUNHA; CAMPOS, 2011).

A criação do Nasf aponta um movimento do Ministério da Saúde para a reestruturação produtiva do cuidado na Atenção Primária à Saúde (APS), apostando em processos relacionais, interdisciplinares e de corresponsabilização para um trabalho integrado entre as equipes, de apoio e referência, associando o trabalho e a educação no cotidiano. Frente ao caráter inovador do Nasf, estudos que visam ao conhecimento mais aprofundado são necessários, uma vez que as melhorias nos processos de produção do cuidado poderão ter reflexos significativos na qualidade e na resolutividade do atendimento à população.

O objetivo deste estudo é identificar estratégias utilizadas pela gestão e pelas equipes para viabilizar e potencializar a atuação do Nasf, verificar o processo de reestruturação produtiva do cuidado no qual ele se insere, e os desafios que persistem para sua integração à APS.

Métodos

Estudo de casos múltiplos, realizado em um estado do Sul do País, no período de março a setembro de 2015, com dois casos considerados implantados em uma análise prévia de implantação do Nasf. A análise de implantação envolveu três Nasf, um de cada modalidade, selecionados por critérios de credenciamento, desempenho e composição da equipe, e envolveu entrevistas com profissionais das EqSF, do Nasf e seus gestores; análise documental; e observação direta nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) vinculadas. Nesta análise, dois casos foram considerados implantados e um parcialmente implantado.

No presente estudo, que envolveu dois Nasf, os procedimentos utilizados para a coleta dos dados incluíram: i) análise de documentos relacionados ao Nasf nos municípios: projeto para implantação, Planos Municipais de Saúde, protocolos elaborados, relatórios de planejamento e programação de ações; ii) observação direta nas UBS, para verificar os aspectos estruturais, organizacionais e de operacionalização do trabalho do Nasf em conjunto com as EqSF, registrados em diário de campo; e iii) entrevistas com gestores e profissionais do Nasf e das EqSF.

As entrevistas ocorreram em lugares reservados, no ambiente de trabalho, de acordo com escolha e disponibilidade dos profissionais, e seguiram roteiro pré-elaborado e testado, com leitura prévia do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi respeitado o anonimato, nomeando-se os informantes como entrevistado seguido do número da entrevista (En). Foram 21 entrevistas: 2 gestores municipais (secretários municipais de saúde), 2 coordenadores da APS, 8 profissionais do Nasf - fisioterapeuta (2), psicóloga (2), nutricionista (1), fonoaudióloga (1), farmacêutica (1), educador físico (1) - e 9 profissionais das EqSF, 1 de cada equipe apoiada, indicados pela gestão - médico (3), enfermeiro (4), técnico de enfermagem (1), cirurgião-dentista (1). As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e registradas em planilha eletrônica. Tiveram média de duração de 40 min para profissionais das EqSF, 60 min para profissionais do Nasf e 90 min para gestores.

Foi realizada a análise de conteúdo (BARDIN, 2011), que considerou o exame de qualidade e pertinência das respostas em relação à pergunta, a convergência das respostas entre os entrevistados, o mapeamento e as observações, a extração de trechos das respostas e a síntese das observações. As informações dos documentos, registros, entrevistas e diário de campo foram decompostas e agregadas de acordo com os seguintes eixos temáticos: constituição e institucionalização do Nasf; planejamento e articulação; apoio às equipes de referência; e resultados da atuação. Procedeu-se à triangulação das entrevistas com as observações de campo e os documentos analisados, a fim de contribuir com a validade interna do estudo (MINAYO, 2010).

As secretarias municipais de saúde autorizaram formalmente a realização da pesquisa. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Secretaria Estadual de Saúde, com parecer nº 674.338, de 05/06/2014, de acordo com a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e discussão

Os resultados e a discussão estão estruturados em três blocos: caracterização dos casos; estratégias de atuação; e desafios. Ressalta-se que o referencial do apoio matricial perpassa todos os eixos, pois se constitui em aspecto transversal na atuação das equipes do Nasf.

Caracterização dos casos

O quadro 1 sintetiza as principais características identificadas nos casos configurados como de modalidades 1 e 2. O município do Caso 1 (C1) possui uma UBS com horário estendido e tem referência em municípios próximos para urgências, emergências e internações hospitalares. O município do Caso 2 (C2) conta com Hospital de Pequeno Porte e pronto atendimento 24h.

Quadro 1
Principais características dos casos estudados, 2015

Nos dois casos, estão disponíveis elementos organizacionais essenciais, tais como: definição de áreas de abrangência, carro oficial para mobilidade entre as UBS e nos territórios, espaço físico exclusivo para a equipe do Nasf, cronograma atualizado de uso dos espaços físicos nas UBS e nos territórios, internet, rede de serviços de saúde informatizada, prontuário eletrônico, registro das ações em prontuários comuns, disponibilidade de uso de e-mail e telefone, e acesso à atenção secundária. São disponibilizados materiais de apoio e equipamentos para grupos, bem como para atividades coletivas, educativas e terapêuticas. Os profissionais do Nasf são liberados para especialização, capacitações, eventos e cursos em temas pertinentes, com auxílio de custo e sem necessidade de compensação de horas.

Para identificar as estratégias de atuação, foram criados quatro eixos temáticos: constituição e institucionalização do Nasf; planejamento e articulação; apoio às equipes de referência; e resultados da atuação, apresentados a seguir.

A) CONSTITUIÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DO NASF

Administrativamente, a constituição da equipe multiprofissional do Nasf deve ser definida pelos gestores municipais, a partir das demandas identificadas em conjunto com as EqSF, e varia de acordo com as necessidades do território (BRASIL, 2012, 2014). O aporte de recurso aos municípios foi o fator indutor para a criação do Nasf identificado nos casos dos municípios aqui relatados.

No C1, os profissionais foram contratados para atuar no Nasf, e no C2, foram cadastrados profissionais que já atuavam na rede. Como a experiência da maioria dos profissionais era em atendimentos individuais, foram necessárias mudanças no processo de trabalho, pois o Nasf opera em equipe. A simples presença do profissional de apoio não é suficiente para o desenvolvimento de práticas compartilhadas. É necessária uma revisão das práticas em direção ao compartilhamento e à construção de novas formas de produção do cuidado, que privilegiem o conhecimento e a atuação interdisciplinar, o que pressupõe a existência de um objetivo comum e a disponibilidade para o diálogo e o trabalho compartilhado (SILVA et al., 2012).

A estratégia de gestão do trabalho utilizada nos dois casos foi instituir momentos de encontro, reflexão, discussão, definição de prioridades e da forma de atuação. Esses encontros prévios, no início dos trabalhos, foram fundamentais para a criação da identidade de equipe:

[...] cada profissional tinha uma forma de conduzir seu trabalho. Foi fundamental a gente ter um tempo para se conhecer, criar vínculo, entender o que era Nasf e nossa atuação a partir dali, como grupo que se apoia para poder apoiar. (E4).

Para uma equipe multiprofissional atuar de forma interdisciplinar, é preciso o reconhecimento do outro, um encontro dialogado, cooperação, valorização do conhecimento técnico, relações mais horizontais e menos desgastantes, e trabalho coeso em torno de um objeto comum. A identificação com o trabalho e o sentido de pertencimento ao grupo podem gerar maior mobilização de suas habilidades técnicas e capacidade de interação (SILVA; MOREIRA, 2015).

A integração entre profissionais requer tempo e investimento, pois se refere ao campo dos valores e do diálogo entre as competências e a capacidade de entender a autonomia como relação entre os saberes profissionais, na escolha da melhor prática, dos limites de sua ação frente à necessidade do usuário e no campo comum de atuação (SILVA; MOREIRA, 2015).

No Nasf, momentos de convivência juntos, em tempo e espaço, são ainda mais importantes, tendo em vista que o local de atuação dos profissionais é o território das EqSF. Em ambos os casos, atenta a esses aspectos e necessidades, a opção da gestão foi destinar um espaço físico exclusivo para a equipe do Nasf:

Nossa sala é nosso porto seguro. Aqui nos encontramos, nos apoiamos, trocamos ideias, experiências, demandas e discutimos casos. Aqui, nos sentimos uma equipe, podemos pedir auxílio e aprender com o outro. (E5).

A instituição de uma coordenação para o Nasf conferiu maior autonomia e fortaleceu o sentido de equipe do grupo de profissionais. Outro aspecto fundamental para o início dos trabalhos foi a decisão de limitar os atendimentos individuais, destinando a maior parte do tempo para apoio pedagógico.

Nos dois casos, a incorporação do Nasf foi indutora de mudanças na organização do processo de trabalho da APS. No C1, a implantação do Nasf ocorreu no momento em que a APS estava se reorganizando, com apoio e condução da gestão. Como exemplo, os profissionais do Nasf, percebendo que as enfermeiras das EqSF eram responsáveis pela condução e organização dos processos de trabalho, criaram encontros mensais para trocas de experiências e vinculação.

As enfermeiras desenvolviam seu trabalho isoladas. Percebemos várias coisas legais que elas faziam, mas ninguém sabia. Iniciamos um encontro mensal, com pauta livre, incentivando a troca. Isso facilitou refletir várias ações que davam certo e ajudou a uniformizar a atuação da ESF. (E3).

No C2, a indução de mudanças ocorreu no momento da troca de gestão, em 2013, quando o modelo de atuação para a APS foi redesenhado. Até então, a assistência à saúde prestada à população era centrada na consulta médica e em prescrições. A nova gestão construiu, com os trabalhadores, uma visão para o município: 'qualidade de vida a partir de uma tríade: alimentação saudável, atividade física e bem-estar psicológico'. Todas as ações tiveram esse embasamento e direção. Uma estratégia para suscitar o sentido de responsabilidade, pertencimento e colaboração foi nomear dois profissionais da rede como coordenadores de cada atividade, com temas e ações sistemáticas. A resistência de alguns profissionais foi uma dificuldade que precisou ser superada:

De início, houve muitas dificuldades: a mudança na forma de trabalhar, entender o que era o Nasf, por onde começar, criar os programas, o convencimento dos profissionais, trabalhar e neutralizar a resistência dos médicos (houve demissões). Fazer com que todos visualizassem onde queríamos chegar. (E13)

A decisão política de que o Nasf seria a estratégia para reorganizar o processo de trabalho na Atenção Básica (AB) é destaque no C2:

O prefeito quer que a população entenda o que é o Nasf. Nas atividades coletivas, estão presentes prefeito, vice-prefeito, primeira-dama, contemplando a parte política. A população passou a participar mais. (E13).

Na organização ou reorganização do modo de operar o cuidado em saúde, devem estar envolvidos aqueles que produzem as necessidades de saúde, os que dominam certos saberes e práticas e operam sobre estas necessidades, mediados por aqueles que ocupam espaços institucionais de governo legitimados para conduzir o processo.

A presença do Nasf nos Planos Municipais de Saúde (PMS) e nas pautas dos Conselhos de Saúde (CS) contribui para sua institucionalização e sustentabilidade, e foi identificada em ambos os casos. No C1, o Nasf tem espaço de destaque no PMS vigente, ocupando 6 das 30 páginas do corpo do plano. Os protocolos elaborados pelo Nasf foram aprovados no CS:

Os protocolos trazem a forma como o Nasf está estruturado, dá a direção. Se amanhã chegar um novo profissional, terá que seguir a orientação. (E6).

B) PLANEJAMENTO E ARTICULAÇÃO

Os espaços coletivos possibilitam encontros e constroem oportunidades para a análise e a tomada de decisão coletiva sobre temas relevantes. A realização de planejamento conjunto é importante espaço coletivo e de cogestão, com a função de também organizar o trabalho compartilhado e criar condições para a colaboração na ESF.

Os temas da cogestão e da democracia organizacional são defendidos por Cunha e Campos (2011) como fundamentais para a proposta de equipe de referência e apoio matricial. A cogestão implica o exercício compartilhado do governo, de um serviço ou programa, com coparticipação em todas as etapas. A democracia organizacional depende da instituição de sistemas de cogestão e da construção de espaços coletivos, objetivando compartilhar a gestão com as equipes de trabalho.

Nos dois casos, foi identificada a realização de planejamento anual para a APS pactuado em conjunto, entre Nasf, EqSF e gestão, com reavaliação periódica. Esse planejamento norteava todas as ações e refletia um movimento em busca da democracia organizacional.

No C1, o planejamento incluía todas as atividades do Nasf. As ações coletivas e de grupo foram pactuadas para o município a partir de um diagnóstico inicial da situação de saúde e cada EqSF fez adesão de acordo com suas necessidades. Era organizado um cronograma anual para atendimentos individuais e agenda de reuniões com a EqSF. A programação continha registro detalhado das ações: objetivos, público-alvo, periodicidade, responsáveis, atividades, recursos necessários e profissionais participantes. As avaliações ocorriam durante as reuniões do Nasf com a EqSF ou em encontros para essa finalidade, com inclusão de ações ou adaptações necessárias.

O Nasf faz o elo entre todas as equipes, melhorou o planejamento, dando uma linha geral. Há um consenso entre as equipes, hoje: como atuar, como colaborar, como trabalhar juntos. E isso, o Nasf consolidou [...]. (E2).

No C2, as ações também eram planejadas anualmente, contendo todas as atividades previstas, inclusive as intersetoriais. Foram identificadas 26 atividades, com registro de objetivos, público-alvo, indicação de coordenadores e de participantes. Há um programa norteador, denominado Meses Coloridos, no qual todo mês um tema diferente associado a uma cor é trabalhado nos espaços de atuação e no acolhimento dos usuários na UBS, que recebe decoração e customização adequada a cada tema e cor.

Uma estratégia adotada pela gestão do C2 é destinar parte do incentivo financeiro federal e estadual, e todo o recurso do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ) para custear material de apoio às atividades educativas, preventivas e para a aquisição de equipamentos e materiais necessários aos atendimentos específicos. "Esse é o diferencial aqui, o recurso fica na saúde e temos autonomia para definir seu uso. Prevenção não é caro e funciona" (E17).

Nos dois casos, o planejamento é assumido como um processo contínuo e dinâmico:

Estamos sempre planejando: no planejamento anual, que tem reavaliação semestral; nas reuniões semanais de equipe, do Nasf; e nos encontros informais. (E15).

No C2, foram elaborados protocolos de atuação e fluxo nas áreas de fisioterapia e saúde mental. Isto também está acontecendo na nutrição. Os protocolos organizam, direcionam e comprometem os diferentes atores para o cuidado e dão visibilidade ao processo articulado entre Nasf, EqSF e serviços especializados.

O monitoramento faz parte do processo de trabalho das equipes. Especialmente no C1, o PMAQ assumiu importante papel de mobilizador na definição de indicadores, informações e condutas. No C2, o sistema de informação estava organizado de forma a gerar indicadores de monitoramento da produtividade e de encaminhamentos do Nasf. Nos dois casos, o acompanhamento dos grupos e das atividades coletivas era registrado, e sua evolução era discutida com a EqSF. Ambos estavam em processo de migração para o software e-SUS, que passará a incorporar o registro das ações do Nasf. Ter uma linha de condução, dada pelo planejamento e monitoramento das ações, foi identificado como essencial para o trabalho.

O sucesso na adoção de tecnologias relacionais está ligado à disposição dos profissionais, à flexibilização de interesses compartilhados, à postura de acolher as solicitações da equipe de referência, bem como à condução do processo de interação, de modo a evitar conflitos (MATUDA et al., 2015).

A reunião de EqSF é um espaço sistemático recomendado pelas diretrizes para a interação entre a própria EqSF e o Nasf (BRASIL, 2014). Sua operacionalização foi observada de forma distinta nos dois casos.

No C1, os profissionais do Nasf participaram mensalmente das reuniões de EqSF, até o início de 2015. Com a mudança de gestão, essa participação foi condicionada a convite, sob a alegação de excesso de reuniões. Essa decisão foi corroborada por alguns médicos, que acham inoportuno discutir casos, nas reuniões de equipe, na presença das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS). Observou-se uma importante redução da participação do Nasf nas reuniões.

Está fazendo falta participar das reuniões de equipe. Na avaliação do final de ano, vamos defender novamente nossa posição de participar das reuniões. (E3).

Faz falta a discussão e o planejamento em conjunto com Nasf, que acontecia nas reuniões de equipe. (E7).

No C2, não há reunião de equipe em separado. Tanto a EqSF quanto o Nasf participam da reunião geral da UBS, que ocorre semanalmente. Quando identificada alguma necessidade específica, são promovidos encontros com o Nasf ou parte dele.

Merhy (2015) chama a atenção para o uso de espaços informais como possibilidade de encontro e processo de educação permanente, podendo ocorrer como roda de conversa no café, no corredor, em qualquer espaço criado pelo grupo. Estas conversas não pedem licença para o organograma oficial ou para a hierarquia da organização, e ocorrem no cotidiano.

Nos dois casos, essa prática foi identificada e ocupa lugar central no apoio do Nasf às EqSF, na discussão de casos, temas, como um processo de educação permanente, de troca de informação, de conhecimentos e até mesmo de decisões.

Conversamos o tempo todo, acabamos discutindo casos, assuntos do trabalho; às vezes, decidindo o que fazer, como encaminhar um caso, em conversas na cozinha, nos corredores, no carro. (E12).

A articulação com outros serviços e setores é uma estratégia amplamente adotada nos casos para responder à complexidade de demanda dos usuários e da comunidade, bem como para estabelecer uma rede de apoio mútuo. A comunicação é facilitada pelas gestões, o que demonstra o processo de consolidação de uma cultura da presença da ESF nas atividades municipais, muitas vezes, a partir do Nasf. Esta articulação amplia o campo de atuação da ESF, traz maior apropriação do território e facilita o itinerário do usuário pelos serviços. Identificar necessidades de outros setores ou serviços facilitou a articulação e trouxe utilidade para as ações. Além da assistência social e da educação, que mais tradicionalmente se articulam, tudo isso foi verificado com esportes, turismo e lazer, obras, agricultura, cultura. Com outros serviços de saúde também foi verificada boa comunicação. O uso de espaços e ações já existentes potencializa recursos e facilita proporcionar ao usuário uma atenção mais integral.

Fizemos um mapeamento das atividades que já existem na cidade e nos articulamos para atuar em conjunto, ampliando nosso campo de atuação. (E20).

Mecanismos ágeis de comunicação facilitam a integração entre as equipes, bem como apoiam a situações urgentes e imprevistas. Observou-se facilidade para a marcação de reunião específica, conversas informais, contatos por e-mail ou telefone e uso do prontuário eletrônico, que tem acesso e registro de todos os profissionais de nível médio e superior.

É muito boa a comunicação com o Nasf. A gente chama e já respondem por telefone ou, no máximo, em 24h, por e-mail, se estão em atendimento em outra unidade. (E12).

A articulação entre os profissionais e destes com a gestão é vista como um processo consolidado. Relatos apontam que os entrevistados perceberam a inviabilidade do trabalho da AB sem essa articulação e integração com o Nasf.

Não há mais como trabalhar sem esta articulação. (E14).

Nasf vem para auxílio, melhora a atuação em todas as atividades por melhorar a visão da equipe. Teríamos mais dificuldades para resolver determinadas situações. (E12).

C) APOIO ÀS EQUIPES DE REFERÊNCIA

No escopo de atuação do Nasf estão as ações realizadas de forma compartilhada com a EqSF ou na presença do usuário. O apoio assistencial se materializa nos atendimentos individuais clínicos e coletivos e na visita domiciliar. O apoio técnico pedagógico pode se dar em discussões de casos, reuniões de matriciamento, projetos terapêuticos, atendimentos compartilhados, atividades coletivas e educativas, qualificações de encaminhamentos, articulações intersetoriais e com a rede de atenção à saúde. Todas estas ações devem estar pautadas na interdisciplinaridade e na corresponsabilização.

No apoio assistencial, um dispositivo importante de integração e corresponsabilização é a regulação, pela EqSF, dos encaminhamentos para o Nasf (BRASIL, 2014). No C1, a regulação para o Nasf é feita pela EqSF, e no C2, pode ocorrer por solicitação da EqSF ou no acolhimento na UBS, com escolha do profissional pelo usuário.

A visita domiciliar conjunta ou individual está na rotina dos casos. É reconhecida e aceita pela população, com destaque para a fisioterapia, a fonoaudiologia e a farmácia. "Eles [usuários] dão mais importância para o que a gente orienta, valorizam a ida até lá, a atenção recebida, para além da equipe de SF" (E5).

A cooperação interprofissional, inerente à atuação do Nasf, pode ser definida como o conjunto de relações e interações que acontecem entre profissionais que trabalham juntos, no âmbito de equipes de saúde. É um processo complexo, de múltiplos determinantes, voluntário e dinâmico, que implica constante negociação (D'AMOUR ET AL., 2005). O atendimento compartilhado não é um atributo comum da formação profissional e seu aprendizado tem sido conduzido no cotidiano, demandando tempo e disposição dos profissionais.

Campos e Domitti (2007) alertam que, de alguma forma, compartilhar práticas pode expor fragilidades individuais, tanto técnicas quanto relacionais, o que pode ser um entrave para a adesão a este tipo de trabalho. Nos dois casos, o atendimento compartilhado presencial acontece de forma esporádica, com a resistência de alguns médicos. A interconsulta e a terapia concomitante são mais frequentes e valorizadas pelos profissionais. "Tem equipe que não consegue pensar em dois ou três profissionais dentro do consultório com o paciente. Não consegue administrar isso" (E4).

A discussão de casos e a elaboração de projetos terapêuticos são finalidades da atuação compartilhada. Os profissionais entrevistados referiram que o Nasf ampliou a prática de discussão de casos, incorporando-a à rotina. Oliveira e Campos (2015) referem que o usuário deve poder participar da elaboração do seu projeto terapêutico, sendo, para isto, necessária a existência de relações dialógicas e comunicativas entre os atores.

Estudos têm identificado dificuldades na elaboração do Projeto Terapêutico Singular (PTS) (HORI; NASCIMENTO, 2014; LANCMAN ET AL., 2013), o que foi corroborado nos casos estudados. Os profissionais referem dificuldades de compreensão e operacionalização das diretrizes ministeriais neste item. No C1, para facilitar a apropriação, um formulário foi criado para o registro de todas as etapas do PTS. Com a diminuição da participação do Nasf nas reuniões de EqSF, essa prática tem diminuído progressivamente, configurando a necessidade de ser incorporada como rotina na ESF. Atualmente, acontece em espaços informais de conversas. O C2 elabora PTS em espaços informais, e geralmente envolve um profissional da EqSF e um ou dois do Nasf. Não está na rotina reunir toda a EqSF para este fim, como preconizado pelo MS.

A oferta de grupos terapêuticos e educativos foi a ação pedagógica de maior crescimento após a incorporação do Nasf. Foram identificados 11 grupos em funcionamento no C1 e 15 grupos no C2. As categorias fisioterapia e psicologia se destacam nos grupos terapêuticos. Os problemas ortopédicos e de coluna, em sua maioria, são resolvidos pela fisioterapia em grupo. A psicologia concentra sua abordagem em pacientes que necessitam de espaços de escuta e conversa, abordando temas como: perda por óbito, separação de casais, desemprego, uso de álcool e outras drogas na família, e violência familiar. Os marcadores de condições crônicas e suas comorbidades são trabalhados em conjunto pelos educadores físicos e nutricionistas, com abordagem de mudança de estilo de vida.

Espera-se que o Nasf colabore na continuidade do cuidado do usuário e nas funções de coordenação e integração dos serviços. Merhy et al. (2014) consideram a constituição de redes vivas de cuidado, que podem emergir em qualquer ponto sem ter que obedecer a um ordenamento lógico das redes de atenção. A rede formal pode ser disparadora, mas será atravessada por outras redes informais. Existem, também, as redes intersetoriais, que estão vivas no território. Além disso, os usuários produzem movimentos, elaboram saberes, constroem e partilham cuidados, o tempo todo. Franco e Merhy (2007) também discutem a constituição de uma rede que opera com base no trabalho vivo em ato e nas múltiplas conexões possíveis, tratando cada caso como um novo cuidado a ser produzido, de forma singular.

Foi possível identificar, nos casos, a constituição de redes singulares de cuidado à saúde. Elas se dão a partir do protagonismo dos trabalhadores da saúde e são construídas nos cuidados pensados para cada usuário ou grupo de usuários. Verificou-se uma série de composições, que estão na dependência da necessidade do usuário e da apropriação dos serviços existentes pelos profissionais. Funcionam por conexão e fluxos entre profissionais, equipes e serviços, embasados ou não em protocolos.

Procuramos, hoje, olhar o que traz a pessoa ao serviço, que outros recursos já usa e acredita. E pensar o melhor cuidado para ela, pois hoje temos muito mais a ofertar, para além das consultas. (E20).

Essas redes geralmente não têm visibilidade nem o reconhecimento dos gestores, mas operam com forte intensidade no dia a dia dos serviços de saúde (FRANCO; MERHY, 2007).

Os modelos de atenção à saúde, nos dois casos, incorporaram aspectos de vários modelos, como ações em favor da melhoria da qualidade de vida dos usuários e o atendimento a todos, com maior atenção aos que estão em maior risco ou em sofrimento. A vigilância das situações de saúde nos territórios e a preocupação com o processo de trabalho contribuem para atender à complexa demanda da AB.

D) RESULTADOS DA ATUAÇÃO

Na percepção dos profissionais entrevistados, vários agravos tiveram redução de encaminhamento e estão sendo tratados e acompanhados na AB. Apontaram diminuição dos encaminhamentos para psiquiatria, neurologia, neuropediatria, endocrinologia e ortopedia. Também relataram redução de demandas para aparelhos auditivos, testes da orelhinha, exames de ressonância. As internações são percebidas como em declínio, na média geral e nas causas sensíveis à APS. O uso de medicamentos para hipertensão, diabetes, controle de colesterol, além dos ansiolíticos e antidepressivos também foi reduzido, na percepção dos profissionais entrevistados.

Os profissionais relatam que as atividades de grupo ampliam o cardápio de ofertas da UBS, possibilitam atenção a maior número de usuários em condições semelhantes, previnem comorbidades, melhoram a qualidade de vida, diminuem o uso de medicamentos, evitam encaminhamentos e diminuem a presença dos usuários na UBS.

A avaliação das listas de espera para apoio do Nasf reduziu em 50% a demanda. Vários casos que precisam de especialistas continuam na fila de espera, mas algumas áreas, como a fisioterapia, a psicologia, a nutrição e a fonoaudiologia, contam com o acompanhamento do usuário pelo Nasf enquanto aguardam a consulta especializada, minimizando o agravamento da situação, ofertando cuidado e mantendo a vinculação com o usuário. "Os profissionais Nasf agregam valor à equipe; os usuários valorizam mais do que só a atenção pela equipe" (E6).

Na percepção dos entrevistados, a assistência realizada pelo Nasf ampliou a resolubilidade da APS. "O atendimento individual resolve questões que a equipe não daria conta e evita encaminhamentos" (E15).

Outro reflexo importante da atuação do Nasf foi a reorganização do processo de trabalho, possibilitada pela disponibilidade e pelo engajamento dos gestores e profissionais da saúde, que estavam voltados à prestação de um cuidado integral e de qualidade, conforme sintetiza o relato a seguir:

Com a vinda do Nasf, mudou a percepção do que a gente quer e onde quer chegar. Até então, cada um trabalhava na sua função sem objetivo comum... Hoje, a equipe está focada no entendimento da saúde como um todo e em onde se quer chegar com aquele usuário, incorporando o contexto de vida das pessoas. Antes, vários profissionais atendiam o mesmo paciente e nunca houve troca sobre ele. (E13).

A satisfação do profissional de saúde com o trabalho foi identificada em vários relatos. A existência de boas condições de trabalho, participação no planejamento e nas decisões, e o reconhecimento da gestão e dos usuários facilitam a fixação dos profissionais e suscitam disposição para o crescimento profissional.

Fazer um bom trabalho e resolver problemas 'tá fazendo diferença na vida dos usuários e nosso lado profissional. O retorno das ACS e dos usuários faz diferença. (E21).

Desafios

A trajetória de integração dos profissionais do Nasf na ESF, nos casos estudados, foi considerada exitosa, mas permanecem desafios que merecem destaque. As diretrizes para o trabalho do Nasf são identificadas como abrangentes e pouco claras, o que dificulta sua apropriação, por parte dos profissionais e gestores. Outros estudos (HORI; NASCIMENTO, 2014; LANCMAN; BARROS, 2011) também levantaram essa dificuldade, que pode atrapalhar a inserção da lógica da colaboração interprofissional na ESF.

A forma de atuação das equipes do Nasf e da EqSF é definida com diferentes prioridades e tempos previstos para as atividades, apontando a necessidade de ajustes na atuação e nas diretrizes nacionais para a ESF, aspecto também evidenciado em outros estudos (MATUDA et al., 2015; HORI; NASCIMENTO, 2014; LANCMAN ET AL., 2013).

A discussão de casos foi assimilada e está inserida na rotina, na maioria das vezes por meio de conversas entre profissionais. Como demonstrado em estudos (HORI; NASCIMENTO, 2014; LANCMAN ET AL., 2013), persistem dificuldades na elaboração do PTS de acordo com a forma recomendada pelas diretrizes.

A resistência de alguns profissionais para uma atuação colaborativa prejudica o apoio matricial, evidenciando a necessidade de mudanças na formação profissional, de modo a estimular o trabalho em equipe. Esse aspecto pode estar relacionado às diferentes culturas das profissões. As estratégias voltadas à democratização dos processos de cogestão podem gerar conflitos relacionados a disputas de poder e diferentes conceituações de saúde-doença, valores e contextos de aprendizagem.

A demora nas portarias de credenciamento do Nasf e no repasse dos recursos, por parte do MS, dificulta a gestão do processo. Os gestores apontam como desafio à APS a insuficiência no financiamento e a dificuldade de garantir acesso oportuno às consultas e aos exames especializados, principalmente em municípios de pequeno porte. Os casos estudados, além de especialistas na rede, utilizam consórcios regionais e contratam institutos prestadores de serviço aos municípios.

O nosso ponto fraco era a necessidade de especialidades. Já reduzimos a fila - que era de 4 mil pessoas - pela metade. Gastamos muito para garantir consultas e exames especializados, pois a PPI [Programação Pactuada e Integrada] do estado não atende à demanda. (E1).

Mudanças na gestão podem comprometer a manutenção de processos essenciais ao trabalho, demandando estratégias de minimização de conflitos. A falta de um regulador geral para todas as especialidades e exames no município e a existência de matriciadores especialistas foram apontadas como necessidades para qualificar a atenção na APS.

Conclusões

Este estudo considera a percepção dos entrevistados gestores e profissionais do Nasf e das EqSF. Para contribuir com a validade interna, foram utilizadas múltiplas fontes de evidência e a triangulação na análise de dados. Na análise das informações, houve poucas divergências, com diferenças de opiniões pessoais. A dinâmica da leitura, indo das informações para as categorias e vice-versa, também possibilitou melhor compreensão da intervenção. Foi possível identificar um conjunto de estratégias que contribuíram para uma atuação compartilhada entre o Nasf e a EqSF, bem como alguns desafios que persistem à sua integração com a APS.

O Nasf, nos casos estudados, foi participante ativo na reorganização dos processos de trabalho na ESF. Esse processo decorreu da mudança no modo de trabalho dos profissionais, caracterizado principalmente pela qualificação do trabalho em redes, tanto entre serviços quanto na microrrede entre os trabalhadores da EqSF; pela interação entre saberes e práticas, aumentando a multiprofissionalidade; e pela maior centralidade das tecnologias relacionais. O apoio no cuidado longitudinal do usuário conduzido pelo Nasf, assim como na integração e na coordenação entre serviços de saúde, e na articulação intersetorial fortalece a ESF. E, ainda, potencializa a criação de redes singulares de cuidado em saúde, pensadas para cada usuário ou coletivo e operacionalizadas a partir dos projetos terapêuticos integrados, viabilizados pela colaboração interprofissional.

A incorporação de diferentes categorias profissionais, por meio do Nasf, atuando de forma descentralizada junto às EqSF, aumentou a abrangência e a oferta de ações e facilitou o enfrentamento da complexa demanda da APS. O estudo identificou um processo de reestruturação fecunda no modo de produzir o cuidado.

Na articulação entre o Nasf e a EqSF, devem ocorrer tanto ações clínicas, de cuidado especializado aos usuários, por parte dos profissionais do Nasf, a partir do encaminhamento e da coordenação dos profissionais generalistas da EqSF, quanto ações de suporte técnico pedagógico, quando demandados pela EqSF.

Contribuem para a institucionalização e a sustentabilidade do Nasf ações voltadas à sua formalização nos espaços institucionais e de deliberação de políticas públicas, bem como ações de gestão do processo de trabalho voltadas à democratização das relações interpessoais e à definição conjunta de objetivos e estratégias de atuação.

A criação de espaços coletivos e de cogestão, e processos ágeis de comunicação viabilizam o apoio matricial e a integração entre o Nasf e a EqSF. O planejamento conjunto, com acompanhamento e avaliação, é estruturante na organização dos processos de trabalho. Estratégias de gestão do trabalho, como espaços de discussão de casos, elaboração de projetos terapêuticos integrados, sempre que necessário, e a facilitação dos processos de educação permanente possibilitam a interdisciplinaridade, o comprometimento e a corresponsabilização nos casos estudados.

Os gestores ocupam papel fundamental na definição de estratégias de organização e condução de processos de democratização institucional, bem como na conformação do modelo de atenção à saúde. Para isto, além de competência, informação e comprometimento com a qualidade em saúde, precisam do apoio da instituição e dos governantes, com autonomia financeira e de decisão.

Persistem desafios para a integração do Nasf na APS, tais como: diretrizes abrangentes e tecnologias de trabalho com os quais os profissionais e gestores não estão aproximados; necessidade de incorporar o PTS e o atendimento compartilhado na rotina das EqSF, quando necessário; necessidade de ajustes no processo de trabalho das equipes do Nasf e da EqSF, para atuação compartilhada; alinhamento da formação profissional com as propostas de reorganização da APS para o Brasil; e incorporação no cotidiano dos serviços de processos de questionamento, discussão e reflexão sobre a prática, considerando a subjetividade e o protagonismo dos atores envolvidos.

A proposta do Nasf tem a potencialidade de tensionar o processo de trabalho na APS, assumindo as tecnologias relacionais como orientadoras do processo de trabalho, tendo as tecnologias duras como subsidiárias. Para esta mudança nos processos de trabalho, além da adequação da formação e da incorporação de conhecimento, é necessária uma mudança na atitude dos profissionais, e, para isto, as estratégias pedagógicas orientadas pela educação permanente contribuem fundamentalmente. Paralelamente ao processo de reestruturação produtiva verificado, há um processo de subjetivação, de mudança na subjetividade dos trabalhadores implicados com a EqSF e o Nasf, bem como a aprendizagem de novos modos de trabalhar o cuidado. Este conjunto é o que leva, finalmente, às mudanças pretendidas.

Estudos em diferentes contextos e configurações do Nasf são essenciais para identificar formas de integração da equipe de apoio na APS e os resultados desta integração.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    Ago 2016
  • Aceito
    Fev 2017
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