RESUMO
Objetiva-se discutir as barreiras e os incentivos identificados pelas profissionais do sexo para a realização do teste HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) relacionados com a organização das ações e serviços no Sistema Único de Saúde. Pesquisa qualitativa realizada por entrevista semiestruturada na cidade de Fortaleza de 2012 a 2014. Das mulheres que fizeram o teste na atenção primária (30%), a maior parte (64%) teve acesso a ele pela assistência pré-natal. Sobre a sua realização, 17% nunca tinham feito, 69% já tinham feito alguma vez na vida e 14% realizavam-no constantemente. Foram identificadas como barreiras a falta de vagas por demanda espontânea, preconceito e falta de sigilo.
PALAVRAS-CHAVE HIV; Vulnerabilidade em saúde; Prostituição; Acesso aos serviços de saúde; Pesquisa qualitativa
ABSTRACT
The objective of this paper is to discuss perceived barriers and incentives for female sex workers for HIV testing in services provided by the Unified Health System (SUS). Qualitative research was conducted through semistructured interviews in the city of Fortaleza from 2012 to 2014. Of the women who tested in primary care (30%), the majority (64%) were tested during prenatal care. Concerning testing, 17% had never tested, 69% had tested at least once in their lifetime and 14% tested regularly. Identified as barriers were the lack of on-demand testing, prejudice, and lack of confidentiality.
KEYWORDS HIV; Health vulnerability; Prostitution; Health services accessibility; Qualitative research
Introdução
Segundo o Unaids (Joint United Nations Programme on HIV/Aids), no ano de 2015, existiam em todo o mundo cerca de 35 milhões de pessoas vivendo com HIV/Aids (Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida); entre as quais, 15,8 milhões de pessoas tinham acesso à terapia antirretroviral, em comparação com 7,5 milhões de pessoas em 2010 e 2,2 milhões de pessoas em 2005 (UNAIDS, 2015).
Diante dessa série histórica, as metas de tratamento 90-90-90 propostas pelo Unaids dizem que até 2020 90% das pessoas vivendo com HIV estejam diagnosticadas; 90% dessas pessoas estejam em tratamento e que 90% delas tenham a carga viral indetectável. Para atingir esse patamar, as mesmas análises apontam para a necessidade de direcionar o foco do trabalho de prevenção, diagnóstico e tratamento aos contextos de maior vulnerabilidade para a infecção, entre eles, as mulheres Profissionais do Sexo (PS) (UNAIDS, 2015).
Em 2014, no Brasil, havia 734 mil pessoas vivendo com HIV, a prevalência de HIV estimada ficou entre 0,4% e 0,7% da população, ocorreram 44 mil novas infecções pelo HIV, assim como o número de mortes relacionadas com a Aids no Brasil foi de 16 mil no mesmo ano (UNAIDS BRASIL, 2015).
Algumas populações são mais afetadas que outras. Ao passo que se estima que entre 0,4% e 0,7% da população geral esteja vivendo com HIV; entre mulheres PS, por exemplo, essa estimativa sobe para 4,9% (UNAIDS BRASIL, 2015).
O Brasil, em 2013, adotou novas estratégias para frear a epidemia de Aids, oferecendo tratamento a todas as pessoas vivendo com HIV, independentemente de seu estado imunológico (contagem de CD4); simplificando e descentralizando o tratamento antirretroviral; aumentando a cobertura de testagem de HIV em populações-chave, entre as quais, mulheres PS (WHO, 2014). Todavia, o aumento da oferta da testagem de HIV mostra-se insuficiente ante a complexidade do processo (SILVA ET AL., 2013).
Ao entrar na quarta década de existência, a Aids mostra-se como uma doença repleta de significados que ultrapassa o limite biomédico, acionando identificações diversas que imprimem uma conotação social, cultural, religiosa e identitária à transmissão de um vírus. Essa constatação ocasiona ainda grandes desafios: promover o acesso universal à prevenção e à assistência de forma qualificada e centrada em populações mais vulneráveis, desenvolvimento e aperfeiçoamento de medicamentos e a busca de uma possível vacina, além de um trabalho constante em torno do enfrentamento dos estigmas (DANTAS, 2015).
A partir desse contexto, a busca pelo diagnóstico precoce do HIV, principalmente entre populações mais vulneráveis, representa atualmente um dos elementos mais importantes para o planejamento e execução da política de Aids (BRASIL, 2010; WHO, 2014). O momento da descoberta da sorologia positiva está associado a um impacto na prevenção, no tratamento e nas despesas de saúde. A realização do teste logo no início da infecção propicia a identificação rápida dos que estão infectados resultando em uma taxa de sobrevivência mais alta, diminuição do período de hospitalização e melhor cumprimento dos tratamentos.
No entanto, no Brasil, o diagnóstico do HIV ainda ocorre de forma tardia, com 43% da população brasileira chegando ao serviço já com condições clínicas relacionadas com a Aids (GRANGEIRO ET AL., 2011; DOURADO ET AL., 2013).
A epidemia de Aids é diversa e se constitui a partir de um conjunto de tendências. Entre elas, a feminização e a concentração em determinadas populações, como a de PS. Resguardadas as diversidades regionais, a prevalência nacional do HIV entre as mulheres PS é de 4,8%, enquanto entre mulheres em geral, o percentual cai para 0,4% (SZWARCWALD ET AL., 2011).
Desse modo, a inclusão das mulheres PS no sistema de saúde tem-se configurado como um desafio. Segundo dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004; PASCOM ET AL., 2010), no Nordeste brasileiro, a precariedade de acesso ao serviço de saúde pelas mulheres PS é maior do que em outras regiões do País.
A priorização do diagnóstico precoce nas unidades básicas de saúde, de forma sistemática, ocorre, mesmo que de forma precária (LIMA et al., 2008), centrado no período gestacional (ARAÚJO, 2014). Paradoxalmente, já existem recomendações nacionais e internacionais (BRASIL, 2006; UNAIDS, 2009; WHO, 2014) que preconizam a inclusão das PS nestes territórios locais de saúde (atenção primária, por exemplo) como modo especial de contenção da infecção pelo HIV na população em geral.
Nessa mesma direção, de acordo com as recomendações do Ministério da Saúde, o teste HIV deve estar disponível o mais próximo possível das pessoas, expandido para além dos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). Está determinado também que as unidades básicas de saúde devem ofertar o teste HIV para além do pré-natal e realizar ações descentralizadas em espaços sociais que aglutinem populações mais vulneráveis, incluindo zonas de prostituição (BRASIL, 2006; BRASIL, 2010; WHO, 2014).
Mais especificamente, os documentos oficiais sugerem implantação do cuidado integral às PS, que inclui o reconhecimento e mapeamento dos espaços de sociabilidade sexual no território, distribuição ampla de preservativos, consultas ginecológicas regulares, testagem sistemática para HIV, sífilis e hepatites, e tratamento imediato de alguma doença sexualmente transmissível (UNAIDS, 2009; BRASIL, 2004; UNAIDS BRASIL, 2015).
Na prática, contudo, essa questão ocorre em outra direção. A invisibilidade social e programática da prostituição, aliada ao preconceito associado à ideia de grupos de risco e da própria infecção pelo HIV a partir desses contextos, desencadeia um processo de exclusão relativa de populações mais vulneráveis nas unidades básicas (PEDROSA; CASTRO, 2009).
Diante desse cenário, este artigo pretende discutir quais as barreiras e os incentivos identificados pelas PS em Fortaleza para a realização do teste HIV relacionados com o modo de organização das ações e serviços de saúde nos diversos pontos de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS).
Métodos
Trata-se de uma pesquisa qualitativa financiada por três agências de fomento à pesquisa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Saúde Brasileiro e Agence Nationale de Recherches sur Le sida et Les hepatites Virales (ANRS/França) (Edital MCT/CNPq nº 14/2009 - Universal) por meio da metodologia Rapid Anthropological Assessment (RAA) - Avaliação Antropológica Rápida, método proposto por Herman e Bentley (1993).
Dentre as principais características da RAA, destacam-se: utilização de técnicas mistas, incluindo, por exemplo, entrevistas semiestruturadas e abertas com membros da comunidade afetada, além de observação de campo e entrevista com pessoas envolvidas com o entorno da população em foco; analisando a diferença entre uma meta do sistema de saúde local e a realidade da comunidade investigada (CHOPRA ET AL., 2006).
A RAA é uma metodologia qualitativa focada em uma área adstrita, sendo realizada em um período curto de até três meses. Para este estudo, entrevistas e observação participante foram aplicadas, focadas em uma temática específica em saúde. O envolvimento de trabalhadores do próprio território estudado, com vínculo e conhecimento sobre o referido espaço, é a característica mais relevante dessa metodologia (KENALL ET AL., 2005; STIMSON ET AL., 2006).
O estudo foi iniciado a partir de um processo de formação realizada com um grupo de entrevistadores constituído por educadores sociais da Secretaria de Direitos Humanos da cidade de Fortaleza que trabalhavam nas próprias zonas de prostituição com as PS. O trabalho desses educadores era informar e contribuir para a inclusão das PS em políticas públicas sociais existentes no município. Eles foram convidados a integrar a pesquisa, realizando entrevistas e discutindo os casos semanalmente com os pesquisadores, considerando o conhecimento aprofundado desses sujeitos sobre o território e o cotidiano das PS, além da capacidade de aproximação e interação com essas mulheres.
A pesquisa foi realizada na cidade de Fortaleza, Ceará, no período de 2012 a 2014, em quatro territórios distintos: 1) Centro de Fortaleza (Praça do Passeio Público e Praça José de Alencar), praças históricas na configuração da prostituição no centro da cidade, região prioritariamente comercial onde as atividades de sexo comercial ocorrem principalmente durante o dia. 2) Zona portuária no bairro Mucuripe, região onde a prostituição ocorre durante o dia e a noite com os trabalhadores do porto vindos de diversos lugares do Brasil e do mundo. 3) Entorno da Av. Osório de Paiva - rota de caminhoneiros para uma das rodovias estaduais (CE-095) que perpassa os bairros de Parangaba, Vila Pery, Siqueira e Canindezinho - bairros da periferia da cidade que concentram diversas vulnerabilidades associadas à pobreza, tráfico de drogas e violência. 4) Zona litorânea da periferia do bairro Barra do Ceará, região da periferia que concentra diversas desigualdades, tráfico e violência.
As informações foram coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas individual e concomitantemente às visitas de reconhecimento do território e observações no campo a partir das técnicas da etnografia. Essas observações se constituíram em permanência nos locais de prostituição - tais como nas ruas, nos bares e boates, praças e postos de gasolina durante o período de três meses -, em que se conversou com as mulheres quando estavam à espera dos clientes, observando suas práticas e relações estabelecidas em cada território. Por meio das técnicas da etnografia, foi construído um diário de campo com essas observações e reflexões o qual integra as análises aqui apresentadas.
Todas as entrevistas foram gravadas, codificadas, categorizadas, analisadas e sistematizadas por meio da análise compreensiva. O critério para finalizar a fase de coleta das informações foi o de saturação teórica da amostra. Esse processo ocorre quando se começa a identificar as regularidades nas falas dos entrevistados considerando os aspectos discursivos em torno da percepção da realidade. Não há exposição de identificações das entrevistadas de modo que foram utilizados para a escrita deste artigo nomes fictícios.
A população participante da pesquisa foi de 37 mulheres com idade entre 18 e 50 anos de idade. Os critérios de inclusão para serem entrevistadas foram: ter mais de 18 anos, estar exercendo o sexo comercial nas áreas descritas como local de estudo, definidas pela Secretaria de Direitos Humanos do município de Fortaleza como áreas de maior vulnerabilidade social.
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (Comepe) da Universidade Federal do Ceará, de acordo com a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisas que envolvem seres humanos, sendo aprovado sob o protocolo nº 263/09. Padrões éticos exigidos foram seguidos, assim como todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados e discussão
Das 37 mulheres entrevistadas, 61% tinham ensino fundamental I completo. Sobre a realização do teste, 17% nunca o tinham feito, 69% já o tinham feito alguma vez na vida e 14% realizavam-no periodicamente. Com relação aos principais motivos para a realização do teste, destacam-se: 33% o pré-natal, 33% por terem vivenciado alguma situação considerada por elas como de risco (buscas pontuais pelo diagnóstico de HIV) e 11% por cuidado de rotina com a saúde (realização contínua). Quanto ao local de realização do teste, 30% fizeram no 'posto de saúde' (unidade de atenção primária a saúde), entre estas, 64% foi no âmbito da assistência pré-natal. Em relação aos demais locais, ressalta-se que 47% foram realizados em serviços especializados para tratamento de Doenças Sexualmente transmissíveis - DST/HIV/Aids.
Esses dados foram analisados abaixo construindo contextos de maior ou menor proteção, já que um conjunto de fatores é que influencia na constituição das vulnerabilidades (AYRES ET AL., 2008).
Invisibilidade da prostituição na atenção primária: incentivos e barreiras ao teste HIV
A Atenção Primária à Saúde (APS) tem sido considerada imprescindível para a efetividade dos sistemas de saúde e para a garantia de melhorias nas condições de saúde da população brasileira. Pesquisas apontam que o serviço, se funcionando efetivamente, contribui para a redução das taxas de doença e internação e de mortalidade prematura por doenças evitáveis além de menores custos e maior equidade na oferta de serviços (WHO, 2004). Esse parâmetro de efetividade na atenção primária com relação à prostituição ainda é um grande desafio pela invisibilidade dessa ocupação nos diversos territórios de atuação dos serviços básicos de saúde (VILLELA, 2015).
No presente estudo, entre mulheres que fizeram o teste na atenção primária (30%), a maior parte (64%) teve acesso ao teste anti-HIV pela assistência pré-natal. Foi relatada maior dificuldade de conseguir atendimento no 'posto de saúde' (unidade de atenção primária) mais próximo da sua residência ou na zona de prostituição; sendo identificadas como barreiras para fazer o teste tanto a falta de vagas por demanda espontânea que não fosse por ocasião do pré-natal, como também o preconceito e a falta de sigilo:
Eu já fiz o teste de Aids várias vezes, mas no posto perto da minha casa eu só fiz quando tava grávida... porque é muito difícil conseguir uma ficha (atendimento). Quando eu estava gestante aí era mais fácil. Se eu for lá dizer que eu quero fazer o teste porque eu faço programa nem sei o que vão dizer... nem prevenção eu faço lá, eu faço na Bemfam [clínica especializada], prefiro um lugar longe de casa também, quero ninguém dando conta dessa minha vida aqui não [prostituição], ainda mais se der alguma coisa [HIV+]... os postos deveriam ser mais sensíveis a essas questões, pra mim as garotas de programa se cuidam mais do que as dona de casa, mas os médicos não pensam assim né... (Dejane, 25 anos).
Percebe-se nessa fala que o teste associado ao pré-natal é recorrente, o que demonstra a importância desse serviço. Contudo, também remonta à discussão sobre a falta de preparo das equipes de saúde da atenção primária para a sistematização do teste anti-HIV na rotina das mulheres que não estão grávidas, principalmente das PS.
Sobre essa invisibilidade, pode-se pensar que a prostituição feminina, como um fenômeno social urbano, inscreve-se em uma economia específica do desejo, característica de uma sociedade na qual predominam as relações de troca e todo um sistema de codificações morais. Nesse contexto, embora o consumo do serviço que as PS oferecem seja útil, os valores morais privilegiam a união sexual monogâmica, a família nuclear, a virgindade, a fidelidade feminina e o papel reprodutivo da mulher, destinando, por conseguinte, um lugar específico, saturado de conotações moralistas e significados pejorativos para a mulher que comercialize sexo a partir do seu próprio corpo (VILLELA, 2015).
As relações sociais construídas a partir desse referencial atravessam também as unidades de saúde, gerando invisibilidade programática, e a mulher só passa a ser vista como prioridade de atendimento quando ocupa lugares de maior aceitação social, como, no caso, quando estão gestantes (ARAUJO, 2014). A estigmatização do trabalho sexual interpela várias interações sociais, comerciais e afetivas e constitui-se em importante obstáculo ao 'empoderamento' dessas mulheres. Esse é um aspecto que requer uma centralidade ainda não incorporada pelas políticas públicas em DST/Aids e constitui uma fragilidade a ser superada (NEMES, 2004).
No momento do pré-natal, ocorre um apelo em torno da possibilidade da transmissão vertical do HIV que impulsiona a decisão de se submeter ao teste, sendo que esta é uma demanda do serviço, e não uma necessidade posta pela própria mulher com referência a possíveis riscos cotidianos, como o trabalho com sexo (LIMA ET AL., 2008). Sendo assim, um percentual considerável de mulheres acessou o teste via pré-natal, como se esse fosse um procedimento próprio desse período e de proteção para a criança, não se revertendo em regularidade da testagem após o período gestacional:
Fiz o teste só quando eu tava grávida da minha menina. Achei muito importante, a assistente social falou que era bom fazer o teste para ver a saúde do bebê, pra saber se tinha alguma coisa com ele. (Eva, 32 anos).
Eu não sei nada disso não [HIV, teste], mas já fiz sim, uma vez, quando tava grávida, o médico pediu porque se tivesse HIV podia transmitir para a minha filha, deu negativo, se não fosse, ia prejudicar a saúde dela. (Dária, 20 anos).
Segundo as mulheres entrevistadas, muitos profissionais da saúde, no momento da assistência pré-natal, nem chegam a indagar sobre a vida sexual delas. Percebe-se que a oferta do teste nesse momento é compreendida pelas PS apenas como rotina de cuidados na gestação. A dificuldade de falar desta tríade, sexo, prazer e prevenção, como parte da vida cotidiana das mulheres com vida sexual ativa (sendo PS ou não) constitui uma vulnerabilidade ao HIV relacionadas com a invisibilidade da sexualidade feminina (VILLELA, 2015).
Sob outro ponto de vista, cerca de 47% das entrevistadas, quando se sentiram sob risco, fizeram o teste em serviços de média e alta complexidade no SUS (hospitais ou serviços especializados) referenciando maior preparo e acolhimento para suas demandas do que na APS:
Eu faço prevenção [ginecológica] de 6 em 6 meses, aí eu faço o teste também, lá no serviço do centro [serviço de referência especializado em DST] porque lá eu já to acostumada, eles são especializados. Devido ao nosso fluxo [trabalho sexual], as garotas de programa são mais susceptíveis, nós precisamos de atendimento sempre, no posto perto da minha casa não tem assim não, só quando a mulher está grávida. (Haída, 32 anos).
Conforme apontam Grangeiro et al., (2009), essa referência ainda segue o começo da epidemia em que a testagem para o HIV foi iniciada nos hemocentros e nos CTA, e o tratamento nos Serviços Ambulatoriais Especializados (SAE). No estado do Ceará, muitas pessoas ainda buscam os serviços especializados em HIV/Aids para também fazer o teste de diagnóstico; o que aponta para a necessidade de repensar o acesso aos serviços da atenção básica em relação à busca pelo diagnóstico de HIV.
A testagem para o HIV na atenção primária passou a ser implementada, em 2003, com a Estratégia Saúde da Família (ESF), como protocolo da assistência pré-natal, dos portadores de tuberculose, de outras doenças sexualmente transmissíveis e de populações mais vulneráveis, como as PS, por exemplo (BRASIL, 2006; BRASIL, 2007; CARNEIRO; COELHO, 2010; WHO, 2015).
Portanto, o fato das PS identificarem principalmente os serviços especializados como locais propícios à realização do teste quando se sentem sob risco segue na direção contrária da política oficial, em que o Ministério da Saúde demanda a ampliação do acesso universal na rede de APS. Além disso, é necessário o investimento em educação permanente para os profissionais, o conhecimento apropriado sobre questões técnicas relacionadas com a infecção pelo HIV, boas condições de trabalho e infraestrutura satisfatória para o adequado atendimento a esses usuários (MAIA ET AL., 2015).
Desse modo, sabe-se que inicialmente as políticas públicas em DST/HIV/Aids estiveram nos serviços especializados e com foco na concepção de 'grupos de risco'. Posteriormente, modificou-se o conceito de vulnerabilidades e expandiu-se para serviços básicos, mas, na prática, ainda ocorre com restrições ao acesso universal devido ao foco restrito na atenção materno-infantil (LIMA ET AL., 2008; ARAUJO, 2014).
Essa diferença de identificação com o local de realização do teste impacta na realização sistemática, como rotina.
Quando eu acho que teve algum perigo [camisinha estoura por exemplo], eu procuro o São José [hospital de referência] para fazer o teste porque lá eu sei que vou ser atendida, vou conseguir fazer o teste e pronto. Mas no posto? Nem em pensamento, lá acho que é só pra gestante e olhe lá se todas acabam fazendo... (Amanda, 45).
A proximidade com o território vivido, os princípios de vínculo e longitudinalidade dos cuidados específicos da ESF é que poderiam qualificar melhor a sistematização e regularidade na realização do teste anti-HIV (CUNHA; COELHO, 2011).
No entanto, o que tem ocorrido, segundo as mulheres envolvidas neste estudo, é que não tem sido construída essa proximidade territorial da unidade de atenção primária com o local de trabalho (casa de prostituição) e nem com o ambiente onde elas moram (seu bairro, sua casa). O que se tem avaliado é que o modo de organização da atenção primária tem-se constituído como barreira ao teste.
Falta de sigilo e despreparo dos profissionais ante as questões relacionadas com o sexo e com a sexualidade foram levantados como pontos que afastam as pessoas da decisão de fazer o teste anti-HIV na unidade mais próxima quando efetivamente se sentem sob risco, ou seja, para além do período gestacional.
Essa sensação de quebra de sigilo muitas vezes dificulta o acesso nas unidades mais próximas de casa. As mulheres do estudo, em geral, afirmaram que seria mais fácil realizar o teste de modo mais frequente se o preconceito e a discriminação não estivessem tão presentes na relação com os serviços.
Muita gente tem medo de procurar o serviço e dizer que faz programa e não conseguir atendimento, ou mesmo já ter é uma notícia ruim [fazendo referência à possibilidade de quando procurar o serviço, receber a notícia de um teste positivo para HIV]. (Haída, 32 anos);
Deus me livre alguém saber que eu faço programa aqui, ou mesmo que eu chegue a ter o vírus, seria a morte pra mim, perderia meu trabalho, minha vida... no posto perto daqui eu ainda não senti confiança não, sei lá, eu nunca disse nada não. (Jane, 24 anos).
As práticas sexuais são poucos discutidas em sua essência no âmbito da clínica em saúde, onde o discurso preventivo em sua maioria é unidirecional e pouco centrado nos contextos diversos em que as pessoas possam estar inseridas (DANTAS, 2015). A normatização prescritiva do pressuposto 'modo correto' de exercer o ato sexual torna a relação médico-paciente dissonante em grande parte das vezes na discussão sobre prevenção efetiva (SILVA, 2012).
Uma das entrevistadas da pesquisa segue seu raciocínio nessa direção, apontando modos de gerenciar o risco e de ampliar essa discussão com outras mulheres, ao mesmo tempo que identifica fragilidades no atendimento em saúde:
Eles [os médicos] poderia ter muitas maneiras de fazer, quando a pessoa tá lá, eles poderiam conversar com todo mundo, tem médico que conversa, tem médico que não conversa, tem muitas maneiras de ajudar, eles deveriam se comunicar com as pessoas, falando sempre, falando muito sobre isso, uma hora entra na cabeça delas [PS], aí as pessoas vão sabendo cada vez mais as coisas... as pessoas também tem medo de falar e o médico dizer qualquer coisa [sobre a prostituição], dá vergonha. (Marilena, 35 anos).
O acesso regular das PS ao serviço de saúde fica então comprometido diante da invisibilidade ou mesmo da não aceitação da prostituição como meio de vida e trabalho. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de investir na desconstrução do modo de identificar as zonas de prostituição nos diversos territórios como algo moralmente questionável e de fortalecer a ideia de que cada prostíbulo deve ser cadastrado e acompanhado por seu respectivo agente de saúde atrelado ao mapeamento do atendimento longitudinal da unidade básica de saúde.
Nesse sentido, entende-se que é necessário discutir a priorização do atendimento regular a esses grupos na atenção primária, principalmente por serem consideradas mais vulneráveis ao HIV, como é o caso das PS; buscando, dessa forma, um efetivo controle das doenças sexualmente transmissíveis, desde o diagnóstico precoce até o tratamento contínuo em tempo imediato, reduzindo a cadeia de transmissão do HIV e ampliando o cuidado em saúde.
As mulheres sabem o que precisam: apontamentos para a qualidade da atenção à saúde na prostituição
No decorrer da pesquisa, as mulheres apontaram modos de reorganização da atenção à saúde, descrevendo como as ações e os serviços poderiam ser mais acessíveis e de forma inclusiva com relação ao exercício da prostituição.
No caso da política de DST/HIV/Aids, o que seria mais producente e oportuno é que o teste, como uma prioridade, estivesse disponível mais próximo para as populações mais vulneráveis, portanto, na atenção primária, de forma fácil e acolhedora, sendo amplamente divulgado e estimulado em territórios diversos (BRASIL, 2006; WHO, 2014).
Não somente o Ministério da Saúde faz essa recomendação acima como também algumas mulheres do estudo representadas aqui:
Eu acho que o posto de saúde tinha era que estimular que a gente fizesse [o teste]. Tem mulher aqui [na zona de prostituição] que tem e não sabe, e ainda tem medo de fazer esse teste, de não ser bem recebida... eu acho que o médico devia estimular, deveriam dar muita orientação pra gente, hoje em dia as pessoas não estão nem vendo, precisava ter mesmo um trabalho do posto com campanhas constantes, abordagem da gente na rua mesmo, na zona. (Rita, 27 anos).
Como aponta a entrevistada, percebe-se que, para além das recomendações oficiais, é necessário compreender como as normas programáticas são vivenciadas no cotidiano da organização dos serviços e de que modo as PS compreendem que o sistema de saúde poderia efetivamente incorporá-las na direção do cuidado integral.
A descentralização efetiva do atendimento para serviços básicos (em consonância com a categoria anterior) apareceu na pesquisa como um incentivo, uma das estratégias de ampliação do diagnóstico precoce do HIV, concretizada na ideia de que vários pontos da rede de atenção deveriam ofertar o teste:
Eu acho que era para ter teste de HIV em todos os postos, não um hospital aqui e outro acolá [lugar distante], porque é muito difícil as pessoas não se interessarem, o certo era todo hospital, todo posto ter... (Evilane, 38 anos).
Essa oferta, todavia, além de ser constante, deveria ser qualificada, com melhores condições de atendimento para as unidades de atenção primária. Os 'postos de saúde', segundo colocaram algumas mulheres, precisavam desburocratizar e facilitar o acesso, garantindo o sigilo e a rapidez, resultando em maior resolutividade e confiabilidade para aumentar a procura pelo serviço:
No meu ponto de vista acho que nós deveríamos ir atrás de fazer esse teste sabe, e também na consulta o médico perguntar sim se a gente quer fazer para incentivar, agora que os nossos postos têm que melhorar muita coisa têm, porque ave Maria, tem muito posto de saúde aí precário demais, faltando aparelhos, as coisas, uma luta pra conseguir uma consulta, devia chegar e pronto, fazer o teste. (Ana Karine, 26 anos).
Para melhorar o posto para a gente fazer o teste lá é preciso tanta coisa, assim é difícil mulher, a gente ir num posto e madrugada, pegar uma ficha, nem sabendo se vai conseguir, tem que dar um jeito nisso, porque tá uma bagunça, a gente precisava era chegar e ser atendido logo, é só um teste mulher, pra gente fazer sempre, sempre, como você está dizendo aí [indagações de perguntas anteriores], só mesmo sendo mais fácil. (Jaqueline, 32 anos).
A questão da demora na entrega dos exames foi reforçada como barreira na busca pelo teste HIV no serviço público. Uma das mulheres afirma que, mesmo procurando a unidade para fazer prevenção ginecológica, não tem motivação de realizar o teste pela descrença no retorno hábil e ressalta a busca pelo serviço particular para obter maior eficiência:
Eu faço minha prevenção no posto [unidade de Atenção Primária à Saúde], mas o teste que me pediram na gravidez eu preferi fazer particular, porque no posto demora demais, é capaz de eu ter tido a menina e não chegar, no particular é mais ligeiro, adianta. (Daniela, 23 anos).
Outra questão levantada é que não basta saber o local onde fazer o teste. Como o cruzamento entre Aids e prostituição está imbricado em zonas de estigma e discriminação, a falta da criação de vínculos e de acolhimento em alguns desses locais conhecidos são fatores que interferem na mobilização pessoal em fazer o teste. A implantação do acolhimento foi ressaltada como importante ferramenta de incentivo, por propiciar aproximação e inclusão. Uma das mulheres fez referência a essa questão, demonstrando que detém a informação de onde buscar a realização do teste, mas lhe falta motivação pela representação de como o serviço é pouco acolhedor nesse sentido:
Eu conheço onde eu posso fazer esse teste aí [HIV], só que é difícil eu ir no posto [unidade de atenção primária a saúde próxima de sua casa], eu preciso é ter vontade, eu sei que eu preciso fazer mesmo, toda pessoa precisa...eu preciso tirar um tempo e ir fazer, eu tenho uma preguiça também, porque não é tão fácil não, ir sozinha também é ruim, ter que falar dessas coisas pra enfermeira, que às vezes a gente nem tem tempo de falar, uma consulta difícil de conseguir, e o tempo é curto, tem coisa que a gente tem que ter confiança pra falar né...eu acho importante a gente, que vive 'nessa vida' fazendo programa, fazer [o teste]... (Marieta,42 anos).
Desse modo, entende-se que quando os profissionais da saúde constroem vínculos com as pessoas e com os estabelecimentos nas zonas de prostituição, com organogramas que facilitem o acesso, promovendo o encaminhamento para serviços gerais e de referência, as taxas de uso do preservativo, a realização do teste e o número de consultas ginecológicas aumentam (BRASIL, 2004, WHO, 2014). No entanto, estudo realizado em Porto Alegre ressalta a dificuldade de continuidade do cuidado pela alta rotatividade dos profissionais na atenção primária, fator não analisado neste estudo (ROCHA ET AL., 2016).
A partir dos relatos acima, percebe-se que uma das atitudes centrais de preparação das equipes da APS para a concretização do enfrentamento da epidemia de Aids e outras DST nos seus territórios seria a instituição de um planejamento estratégico com envolvimento direto das mulheres em cada contexto vivido.
Para que se estabeleça um programa de cuidado integral e sistemático com as PS, faz-se necessário investir de forma ascendente no que as próprias mulheres compreendem sobre modos mais adequados de intervenção, conectados com as potencialidades e vulnerabilidades locais (WHO, 2014).
Conclusões
De acordo com o cenário explicitado neste trabalho, destacam-se alguns pontos: avançar com o diagnóstico precoce ao HIV é uma necessidade mediante as conquistas estabelecidas com relação ao uso de antirretrovirais em estágios iniciais da infecção; mesmo que o percentual de pessoas testadas tenha aumentado ao longo dos anos, principalmente com relação às mulheres, a percepção sobre a importância de um diagnóstico precoce ainda é muito baixa, e o teste ocorre centrado na assistência pré-natal.
Em geral, quase todas as mulheres entrevistadas relataram questões importantes que demonstram suas motivações para fazer o teste; portanto, foi constatado que há a intenção de fazer. A vontade positiva e espontânea para fazê-lo esteve presente em muitos discursos. A principal barreira, nesse sentido, foi o modo de organização dos serviços.
Diferentes locais foram citados para a realização do teste HIV em Fortaleza, e o acolhimento bem feito na unidade de saúde foi o grande incentivo relatado em geral para que o teste fosse consentido. Entretanto, o simples fato de saber onde fazer o teste não foi suficiente para desencadear a necessidade sistemática. Dependendo do local referido e do que ele representa, bem como seus modos de acessibilidade, houve maior ou menor estímulo a testagem contínua, incorporada como cuidado inerente à ocupação com sexo e ao modo de vida.
O preconceito e a falta de sigilo na atenção primária (proximidade com o local de moradia e trabalho, demonstrando contradição em relação ao processo de descentralização da política de DST/Aids, com foco nos territórios mais próximos e para populações mais vulneráveis) são consideradas as principais barreiras.
Este estudo aponta a necessidade de investir na pesquisa com foco para que os serviços de atenção primária incorporem a política de cuidado integral às doenças sexualmente transmissíveis a partir das potencialidades e vulnerabilidades de cada território. A integração das populações mais vulneráveis ao HIV, como as mulheres PS, nos serviços de saúde depende do modo de organização do sistema de saúde considerando suas demandas e necessidades, de forma estratégica e coletiva com as próprias mulheres. Essa ação terá impactos significativos para a efetiva realização sistemática do teste HIV nas PS em cada localidade.
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ColaboradoresRenata Mota Rodrigues Bitu Sousa contribuiu substancialmente para a concepção e o planejamento ou para a análise e a interpretação dos dados; contribuiu significativamente na elaboração do rascunho ou revisão crítica do conteúdo e participou da aprovação da versão final do manuscrito. Myrna Maria Arcanjo Frota contribuiu significativamente na elaboração do rascunho ou revisão crítica do conteúdo e participou da aprovação da versão final do manuscrito. Camila Castro contribuiu substancialmente para a concepção e o planejamento ou para a análise e a interpretação dos dados; contribuiu significativamente na elaboração do rascunho ou revisão crítica do conteúdo e participou da aprovação da versão final do manuscrito. Bernard Carl Kendall contribuiu substancialmente para a concepção e o planejamento ou para a análise e a interpretação dos dados; contribuiu significativamente na elaboração do rascunho ou revisão crítica do conteúdo e participou da aprovação da versão final do manuscrito. Ligia Regina Franco Sansigolo Kerr contribuiu substancialmente para a concepção e o planejamento ou para a análise e a interpretação dos dados; contribuiu significativamente na elaboração do rascunho ou revisão crítica do conteúdo e participou da aprovação da versão final do manuscrito.
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Suporte financeiro: financiado por três agências de fomento à pesquisa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Saúde Brasileiro e Agence Nationale de Recherches sur Le sida et Les hepatites Virales (ANRS/França)
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2017
Histórico
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Recebido
Ago 2016 -
Aceito
Mar 2017