Open-access Interfaces entre a saúde coletiva e a ecologia política: vulnerabilização, território e metabolismo social

Interfaces between collective health and the political ecology: vulnerability, territory and social metabolism

RESUMO

Este artigo busca elucidar interfaces entre os campos da saúde coletiva e da ecologia política, evidenciando a discussão sobre a vulnerabilização, o território e o metabolismo social, mediante análise crítica da literatura. A ecologia política tem desenvolvido conceitos e metodologias que buscam captar a relação entre economia e conflitos socioecológicos e uma nova racionalidade ambiental. Assim, seu diálogo com a saúde coletiva e o eixo da saúde ambiental permite o aprofundamento teórico sobre os modelos de desenvolvimento econômico e os conflitos socioambientais, além da reflexão sobre estratégias para a descolonização do conhecimento, a reinvenção de territórios e a reapropriação da natureza.

PALAVRAS-CHAVE Vulnerabilidade a desastres; Saúde ambiental; Desenvolvimento econômico

ABSTRACT

This article aims to elucidate the interfaces between the field of collective health and policy ecology, evidencing the discussion about the vulnerability, the territory and the social metabolism, through critical analysis of the literature. The political ecology has developed concepts and methodologies that seek to capture the relation between the economy and the socio-ecological conflicts and a new environmental rationality. Thus, its dialogue with the collective health and the environmental health axis enables a theoretical deepening about the models of economic development and socio-environmental conflicts, in addition to reflection about the strategies for decolonization of knowledge, reinventing territories and repossession of nature.

KEYWORDS Disaster vulnerability; Environmental health; Economic development

Introdução

Na observância de diferentes estudos, apreende-se que o padrão de desenvolvimento predominante na América Latina continua a transformar ecossistemas de forma irreversível, expandindo suas fronteiras, colonizando novos territórios e gerando projetos agrícolas, industriais, de extração e de energia que são lucrativos em curto prazo, mas que, todavia, aprofundam a exploração da natureza.

Como diz Breilh (2004, P. 49):

las aterradoras secuelas ecológicas y sanitarias registradas por la investigación social reciente, nos hacen recordar la metáfora literaria de José Saramago, en lo Ensayo sobre la Ceguera, que describe un mundo afectado por una epidemia de ceguera colectiva, que se propaga borrando la capacidad de ver, y que torna inútiles toda la riqueza material y bienes de la cultura generados por la humanidad.

Nesse sentido, para se compreender a relação entre desenvolvimento econômico, a degradação socioambiental e o papel da saúde coletiva, assim como os principais desafios do campo da saúde coletiva face à crise socioambiental contemporânea que intensifica os conflitos socioecológicos, é necessária a compreensão de suas interfaces com outros campos de saberes transdisciplinares, como o campo da ecologia política.

Assim, pretende-se sistematizar em que medida a temática saúde e ambiente tensiona as bases da saúde coletiva contemporânea e apontar questões para a reflexão dos seus fundamentos teóricos e suas práticas, articulando os conceitos da vulnerabilização, território e metabolismo social, mediante uma revisão crítica da literatura dos campos teóricos evidenciados. Será realizada uma breve sistematização sobre a saúde coletiva e a questão ambiental; as contribuições teóricas da ecologia política; o diálogo entre a saúde, o território e a vulnerabilização nos contextos de conflitos socioambientais e resiliência; e, um esforço de síntese sobre a análise em saúde e o metabolismo social.

Breves notas sobre o campo da saúde coletiva e a questão ambiental

No âmbito da delimitação a priori do campo da saúde coletiva, Cecília Donnângelo (1982, P. 5) iria propor que:

Essa multiplicidade de objetos e de áreas de saber correspondentes - da ciência natural à ciência social - não é indiferente à permeabilidade aparentemente mais imediata desse campo às inflexões econômicas e político-ideológicas. O compromisso, ainda quando genérico e impreciso, com a noção de coletivo, implica a possibilidade de compromissos com manifestações particulares, histórico-concretas desse mesmo coletivo.

A eminente autora sintetiza que as práticas de saúde se dão sobre e no coletivo ao mesmo tempo que passam a se configurar como práticas coletivas de saúde, nas quais o coletivo é dinâmico, produto das relações sociais.

Na mesma direção, para Breilh (2004), entender o campo de saberes e práticas da saúde coletiva é apreendê-lo como um campo no qual a saúde e suas determinações histórico-sociais, estruturais e políticas são o núcleo central de seu interesse, no sentido em que comporta e fundamenta conceitos como o de coletivo, social, público, ecológico e institucional.

Diversos estudos históricos sintetizam o campo de saberes e práticas da saúde coletiva desde meados de 1970. O interesse deste artigo é, todavia, apreender nessa construção a relação entre saúde e ambiente. Existe um eixo em evolução, com origens tanto no movimento ambientalista quanto na medicina social, que marca o surgimento da saúde coletiva no País. Uma das ênfases sobre esse novo paradigma encontra-se na ampliação do olhar sobre a relação saúde-ambiente a partir dos processos sociais e econômicos do Desenvolvimento.

Apesar de esses movimentos terem se iniciado nos anos 1970, somente a partir dos anos 1990 iniciou-se uma produção acadêmica mais sistemática sobre a relação saúde e ambiente na perspectiva da saúde coletiva (PORTO, 2007).

A questão ambiental e suas relações com a saúde humana estão sistematicamente na agenda internacional, tanto no que se refere às políticas públicas quanto aos movimentos sociais e à produção científica. Segundo Tambellini (2012), o ambiente socialmente configurado é a força motriz das condições de vida e saúde/doença das populações.

As questões do conhecimento e da práxis que se referem ao par saúde-ambiente podem ser vistas e examinadas na ótica das relações de Produção-Ambiente-Saúde (PAS) como uma região determinada do campo de prática da saúde coletiva, que teria como finalidades: produzir conhecimentos (face da ciência), propor políticas (face do poder) e planejar e executar intervenções (face da técnica), tendo como objeto o processo saúde-doença nas coletividades humanas, ou seja, a ‘práxis ecossanitária’ (TAMBELLINI, 2012).

Desse modo, ao estabelecer-se como síntese ao campo saúde-ambiente, a saúde ambiental possui seu objeto no processo de saúde e doenças das coletividades relacionadas ao ambiente. Alguns elementos se tornam imprescindíveis para que se possa entender a saúde e a doença como manifestações da dualidade vida e morte, inscrita no curso da vida humana no ambiente como sistema socioecólogico integrado.

Um sistema complexo que se denomina modelo eco-sócio-sanitário se adequa às relações entre as espécies vivas presentes num ecossistema. Nesse modelo, a cada nível do fluxo de energia/cadeia alimentar (nicho), constróem-se possibilidades de riscos e exposições potencialmente danosas à saúde humana devido às intervenções tecnológicas. Tais riscos tecnológicos, oriundos dos processos que operacionalizam os interesses econômicos, sociais e políticos, inerentes à lógica da acumulação de riquezas, ampliam a compreensão das consequências à saúde humana na relação entre a saúde e o meio ambiente, tornando imperativa a incorporação de categorias da produção na compreensão holística de tal modelo (TAMBELLINI, 2012).

De acordo com Periago et al. (2007), estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que cerca de um quarto da responsabilidade total global pelas doenças pode ser atribuído ao meio ambiente em modificação, embora na América Latina e no Caribe a fração seja de aproximadamente um quinto. No início do século XXI, os números relacionados ao fornecimento de água potável e cobertura sanitária na América Latina e no Caribe eram 89% e 75%, respectivamente. Estima-se que o ar respirado por cerca de 100 milhões de pessoas, especialmente em áreas urbanas, não atinja os padrões mínimos de qualidade e segurança. Ademais, muitos trabalhadores e populações de baixa renda são envenenados pela exposição a produtos químicos perigosos, devido à inexistência de medidas eficazes de proteção e controle.

A importância da questão ambiental na saúde coletiva vem, portanto, na interface: da determinação social da saúde, da justiça ambiental, da saúde ambiental. Tambellini (2012) sintetiza alguns dos grandes desafios estruturais da saúde ambiental, a saber, desenvolvimento, sustentabilidade, processos de produção e consumo, a questão da democracia e das políticas públicas. Tais conceitos revelam a abrangência, a novidade e o forte caráter interdisciplinar da saúde ambiental. Eles resgatam e articulam temáticas importantes para o campo da saúde coletiva, ao mesmo tempo que apontam para a necessidade de refletirmos sobre os determinantes socioambientais da saúde na atualidade, de forma a avançarmos na construção de diretrizes e ações de vigilância em saúde.

Desse modo, ao atuar sobre a natureza para a produção da sua existência, o gênero humano não só cria novas condições de existência como, também, novos meios de produzir novas condições de existência. Assim, cria novas necessidades e torna mais complexas essas condições (ALBUQUERQUE; SILVA, 2014).

Ecologia política: saberes e práticas sob o olhar do metabolismo social

O atual modelo de desenvolvimento hegemônico dos países destina as maiores cargas de danos ambientais às populações socialmente mais vulneráveis, pobres e discriminadas da sociedade, conforme descrito em diferentes estudos, como iremos apreender, o que reflete a enorme concentração de poder na apropriação do território e dos recursos naturais. Esse processo faz emergir a base dos conflitos socioambientais.

No esforço da compreensão dessa realidade, o campo da ecologia política emerge como resposta ao esquecimento do diálogo entre a natureza e a economia política. De acordo com Leff (2015, P. 30):

In Political Ecology is the study of power relations and political conflict over ecological distribution and the social struggles for the appropriation of nature; it is the field of controversies on the ways of understanding the relations between humanity and nature, the history of exploitation of nature and the submission of cultures, of their subsumption to capitalism and to the rationality of the global world-system; of power strategies within the geopolitics of sustainable development and for the construction of an environmental rationality.

Para o autor, a ecologia política na América Latina surge enraizada nas condições ecológicas e culturais dos seus povos a partir de suas estratégias de emancipação para a descolonização do conhecimento, a reinvenção de territórios e a reapropriação da natureza, de modo que sua construção como conhecimento visa a recuperar:

Las voces y los saberes silenciados durante demasiado tiempo por los dispositivos del poder político y científico, lo proceso de inserción de la ecología política en las tradiciones del pensamiento latinoamericano no podía dejar de lado la relación fundante con la historia ambiental de nuestra región desde las independencias, a través de todos sus pensadores, como José Carlos Mariátegui. (ALIMONDA, 2015, P. 162).

Segundo Leff (2015), como uma nova disciplina de investigação teórica e ação política, a ecologia política ressignifica a ‘episteme’ ecológica associada à interrupção da crise ambiental mundial. Ao citar um de seus precursores, o Enzensberger, pontua que ele concebia o novo campo de saberes como prática de desmascarar a ideologia - os interesses de classe e apropriação capitalista das preocupações ecológicas - por trás dos emergentes discursos ecológicos em questões como os limites do crescimento, o crescimento populacional e a ecologia humana.

Ecologia política é, portanto, um campo de práticas e saberes teóricos e políticos cujo enfoque são os conflitos ecológicos distributivos. Ela se fortalece, principalmente, a partir dos anos 1980, pela crescente articulação entre movimentos ambientalistas e sociais. A ecologia política amplia a crítica dos fundamentos filosóficos da economia neoclássica ao avançar sobre a economia política de tradição marxista, incorporando questões ecológicas no entendimento das dinâmicas econômicas e de poder que caracterizam as sociedades modernas (PORTO, 2007).

Nesse sentido, para entender os conflitos socioambientais enquanto conflitos distributivos, produtos das desigualdades e contradições decorrentes dos processos econômicos e sociais de desenvolvimento que formam ‘centros’ e ‘periferias’ mundiais e regionais, o economista Martinez-Alier (2011) propõe a articulação da ecologia política com a economia ecológica, tendo por base a análise do metabolismo social do Capital.

As contribuições da ecologia política e da economia ecológica nos ajudam a compreender problemas sociais, de saúde e meio ambiente em sua relação com os processos e modelos de desenvolvimento econômico de um território, país ou região.

Os padrões de produção e consumo das sociedades capitalistas contemporâneas geram intensos fluxos de materiais e energia incompatíveis com o metabolismo ecológico e social do planeta, sendo, portanto, insustentáveis. A consequência é a aceleração de entropias globais, ou seja, processos de desorganização dos ecossistemas e da própria vida, acentuados pela emergência dos chamados riscos ecológicos globais nas últimas décadas, como as mudanças climáticas globais (PORTO; MILANEZ, 2009).

No estudo de Foladori (2001), é sintetizado que o metabolismo social pode ser apreendido como uma teoria sobre a relação entre a natureza externa e a sociedade humana. Para o autor, Marx denomina metabolismo social o processo por meio do qual a sociedade humana transforma a natureza externa e, ao fazê-lo, transforma sua natureza interna.

A ação de transformar a natureza externa constitui o processo de trabalho, e seu efeito sobre a natureza interna se manifesta na forma como se estabelecem as relações sociais de produção. (FOLADORI, 2001, P. 107).

Desse modo, o que se deve explicar é o processo histórico por meio do qual se separa - aliena-se - a existência humana dos condicionantes naturais necessários para reproduzir-se.

O que Marx irá explicar por meio de seu método são as formas como se vai modificando e rompendo esse metabolismo com a natureza. E o que tem de ser explicado, portanto, é a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana e a existência ativa, uma separação somente completada, plenamente, na relação entre o trabalho - assalariado e o capital (FOLADORI, 2001).

Exemplifica-se isso com a organização capitalista, ao separar de forma absoluta o trabalhador de seus meios de vida. O trabalhador assalariado cumpre com todos os requisitos de ruptura do metabolismo com a natureza: está separado da terra como condição natural de produção; está separado dos instrumentos como intermediários de seu corpo com relação à natureza externa; está separado de um ‘fundo de consumo’ prévio ao trabalho - depende de vender sua força de trabalho para comer; e está separado do próprio processo de produção como atividade transformadora. Ou seja, é uma contradição gerada pela apropriação privada da natureza.

No processo do metabolismo social ocorre, pois, uma transformação da natureza externa com relação à célula social, ao mesmo tempo que há uma transformação em seu interior. O processo de transformação da natureza externa implica sua conversão em riqueza material, ou seja, em natureza apta para ser consumida, desfrutada, apropriada pela sociedade humana. Por sua vez, o processo de transformação de seu próprio ser social interior implica, além de formas determinadas de divisão social do trabalho, de relações de produção e outras formas de organização e consciência, a conversão daquela riqueza material em riqueza social, isto é, riqueza segundo os critérios históricos de cada sociedade em questão (FOLADORI, 2001).

A natureza é valorizada em função da história particular que a sociedade tem com o seu ambiente. Marx (2003) retoma essa perspectiva e se refere à separação capitalista entre o campo e a cidade como a ruptura radical do metabolismo com a natureza, o que hoje em dia se pode chamar de causas da insustentabilidade. Insustentabilidade urbana por inchaço; poluição do ar, da água, visual; crescimento desordenado; congestionamento do tráfego; insustentabilidade rural pela erosão, salinização, degradação da cobertura vegetal, compactação do solo ou acúmulo de substâncias tóxicas.

Para Foladori (2001, P. 110), o interesse de Marx em desvelar as formas de ruptura do metabolismo com a natureza, e as peculiares modalidades que adquire essa ruptura com o sistema capitalista, tem como objetivo: “conquistar uma nova sociedade que restabeleça os laços com a natureza externa”.

Assim, recorre-se ao conceito de metabolismo social para analisar, entre outras questões, o papel do comércio internacional injusto na formação de cadeias produtivas cujos padrões se caracterizam por mecanismos de externalização negativa de custos sociais, ambientais e de saúde, ao mesmo tempo que geram inúmeros conflitos decorrentes dos riscos e das disputas no uso dos territórios onde tais investimentos se realizam.

Outra contribuição fundamental da ecologia política e da economia ecológica tem sido a produção de indicadores e índices de sustentabilidade a partir do desenvolvimento e da operacionalização em torno do conceito de ‘metabolismo social’, ao descrever a economia como uma relação entre os fluxos dos sistemas de produção (energias e materiais) e os fluxos comerciais (produtos e serviços). Uma forma de operacionalizar o perfil metabólico, advindo do campo da economia ecológica, é usando-se a apropriação humana da produção primária líquida - human appropriation of net primary production - (HANPP), desenvolvida para ser um índice de perda de biodiversidade - quanto mais alta for, menor será a biomassa disponível para as espécies ‘selvagens’, afetando a saúde dos ecossistemas (PORTO; MARTINEZ-ALIER, 2007).

Os conflitos de distribuição ecológica estão ligados ao acesso a recursos e serviços naturais e aos danos causados pela poluição. Assim, existe uma forte vinculação entre as discussões da economia ecológica e do metabolismo social, apresentadas anteriormente, e os conflitos distributivos analisados pela ecologia política. Tendo por referência o modelo sócio-metabólico desenvolvido pela economia ecológica, pode-se classificar os conflitos de distribuição ecológica de acordo com os momentos nos quais ocorrem nas cadeias de comércio de mercadorias (commodities chains). Eles podem se realizar no momento da extração do material ou da produção da energia utilizada, na fase de produção ou no transporte ou, por fim, no descarte dos rejeitos (PORTO; MARTINEZ-ALIER, 2007).

É preciso, portanto, a construção de uma agenda que tensione a ‘crise’ socioambiental, dado o agravamento tanto das incertezas quanto das consequências socioambientais e sanitárias decorrentes do atual modelo de desenvolvimento global e local.

Saúde e território: vulnerabilização socioambiental e resiliência

Como visto, os conflitos socioambientais podem ocorrer no momento de extração dos recursos naturais, da geração de energia utilizada ou na produção de mercadorias, estando presentes em praticamente todo o planeta, porém, tendem a se intensificar nos países exportadores de commodities, como no Brasil (PORTO; MILANEZ, 2009). Os conflitos podem, ainda, estar associados a diversas atividades e setores, como a ocupação de terras para o agronegócio; a poluição causada por fábricas, veículos e depósitos de resíduos; extração e refino de petróleo ou de gás; etc.

Desse modo, a apropriação dos recursos naturais e espaços públicos para fins econômicos, os quais geram exclusão e expropriação, produz reações por parte de movimentos sociais, grupos e populações que se sentem atingidos em seus direitos fundamentais, envolvendo questões como saúde, trabalho, cultura, preservação ambiental e uso de espaços, bens e serviços públicos.

Nessa perspectiva, o tema da saúde humana e da saúde ambiental se intensifica no contexto da recorrente vulnerabilização de populações e territórios afetados, e a gravidade dos impactos à saúde pública se apresenta como importante bandeira de luta para as populações atingidas e os movimentos sociais.

Em ‘o retorno do território’, Milton Santos (2005) reflete sobre a dialética do território, produzido e usado, compreendido enquanto categoria de análise, abrigo de todos e também espaço de interesses de empresas. Já o território produzido a partir do espaço se daria por meio: da divisão social e territorial do trabalho (classes sociais e a determinação social da saúde), da divisão social e territorial do poder (entender os privilégios e os direitos) e da divisão social e territorial do consumo (comportamento das classes econômicas).

Quanto à construção do conceito de vulnerabilização, Porto (2011) sistematiza que, assim como em outros campos, principalmente a partir dos anos 1990, o termo vulnerabilidade fora utilizado na saúde pública não apenas restrito à dimensão biológica, mas como estratégia conceitual e metodológica para analisar diversos processos de saúde-doença. Buscou-se incorporar, no aprofundamento teórico, elementos sociais, econômicos e culturais na análise de certos problemas complexos de saúde, como a Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), a saúde mental, o uso de drogas, as doenças cardiovasculares, as causas externas/violência e temas de saúde ambiental.

Estudos contemporâneos demonstram a relação do conceito da vulnerabilidade com os determinantes sociais de saúde e seu caráter biossocial, numa dimensão ontológica constitutiva e constituinte da vida humana (MALAGÓN-OVIEDO; CZERESNIA, 2015).

De acordo com Turner e Billie (2003), a vulnerabilidade seria uma expressão de três componentes articulados, a saber, a exposição, a sensibilidade e a resiliência, com interações de aspectos biofísicos e sociais. Os autores reconhecem a dimensão central da vulnerabilidade decorrente das iniquidades sociais agravadas por processos econômicos e políticas públicas que desprezam o cuidado para com as populações mais impactadas.

Concorda-se com Porto (2011) ao colocar que a moderna visão da saúde coletiva sobre temas complexos vem rompendo com o modelo biomédico restrito, quando considera vulneráveis não apenas as pessoas com predisposições orgânicas, pertencentes a certos extratos socioeconômicos ou faixas etárias, mas o contexto e os processos de vulnerabilização frente aos recursos e modos de vida que viabilizam ou restringem ciclos de vida harmônicos de sujeitos e comunidades. No caso específico da saúde ambiental, o autor traz à tona questões éticas fundamentais para a sustentabilidade e a democracia ao questionar quais são os riscos evitáveis que se propagam no processo de desenvolvimento de certo território e quais os grupos que se encontram mais expostos e vulneráveis.

Assim, entender a condição de vulnerabilizadas, mais que a de vulneráveis, das populações e comunidades é necessário para que se possa tanto resgatar a historicidade dos processos que afetam grupos sociais e lugares como, também, para atribuir aos grupos sociais a condição de sujeitos portadores de direitos que foram ou se encontram destituídos (ACSELRAD, 2010). O autor considera que a condição de vulnerabilidade é socialmente construída e uma questão de direitos humanos, e que se deve captar a ‘dimensão societal da vulnerabilização’. Nesse sentido, a condição de vulnerabilidade é apreendida como uma relação, e a vulnerabilização, um processo.

A vulnerabilidade socioambiental resulta, pois, de estruturas socioeconômicas que produzem, simultaneamente, condições de vida precárias e ambientes deteriorados, expressando-se também como menor capacidade de redução de riscos e baixa resiliência. Para Freitas et al. (2012), a superação desse processo envolve a atuação na dinâmica do desenvolvimento econômico e social, bem como da proteção social e ambiental.

Normalmente, os problemas ambientais e as populações vulnerabilizadas encontram-se submersos num conjunto de relações de poder, envolvendo interesses políticos e econômicos que expressam disputas entre diferentes sentidos e valores relacionados. Por exemplo, diferentes significados da natureza; o acesso, o uso e a distribuição dos recursos naturais; os investimentos e as formas de distribuição entre os benefícios e os danos desses investimentos; enfim, o próprio modelo e o sentido de desenvolvimento humano e social. Não reconhecer a existência de tais conflitos que emergem nos territórios, seja no caso dos desastres ou dos problemas de saúde coletiva, pode fazer com que as análises de vulnerabilidade desconsiderem a dimensão dialética da história e os seus processos de vulnerabilização, reflete Porto (2011).

No caso dos conflitos socioambientais relacionados ao descarte de rejeitos e à poluição, esses referem-se às ‘saídas’ ou descartes do metabolismo social, com efeitos em níveis mais locais, regionais ou mesmo globais. Um dos primeiros conflitos desse tipo foi denominado, nos Estados Unidos, de toxic struggles (lutas tóxicas), referindo-se à luta contra os riscos causados pela exposição a metais pesados, dioxinas e outros poluentes perigosos emitidos, principalmente, por indústrias químicas e petroquímicas. Outro tipo de conflito difundido em todo o mundo está relacionado aos aterros sanitários, à incineração de lixo e à exportação de lixo - comum, elétrico-eletrônico (e-waste) ou tóxico - para os países pobres (PORTO; MARTINEZ-ALIER, 2007).

As economias locais são, assim, violentamente desorganizadas para que seus territórios se integrem à economia capitalista globalizada, sendo palco de expropriação de recursos naturais e receptores de materiais que não são absorvidos nos ciclos produtivos hegemônicos. A exemplo das barragens de usinas hidrelétricas e de rejeitos de mineração, que deflagraram no Brasil a emergência de movimentos atingidos por barragens, além do recente crime ambiental, que degradou por completo o Rio Doce, em Minas Gerais, pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração. Essas dinâmicas territoriais homogeneizadoras formam um território que impõe, sob uma lógica mercantil, racionalidades que desconsideram as especificidades do território nativo (PORTO et al., 2014).

Nesse sentido, para a redução de riscos de desastres, apontam Freitas et al. (2012), um conjunto de políticas deve ser combinado a fim de que se previna a ocorrência e se limitem (mitigação e preparação) as consequências (perdas e danos) oriundas dos desastres; e estratégias para a construção da resiliência, que tornem as sociedades e as comunidades aptas a desenvolver habilidades de responder adequadamente aos eventos, monitorá-los, antecipá-los e aprender com os mesmos, fortalecendo sua capacidade de adaptação após os desastres, mantendo um nível aceitável de funcionamento e estrutura para restabelecer-se, recuperar-se e reconstituir-se, não só retornando à normalidade de sua vida ‘cotidiana’, mas, em condições ainda mais sustentáveis e seguras do que as anteriormente existentes.

A questão de desenvolver habilidades e fortalecer as capacidades para tornar-se resiliente envolve mudanças de padrões, desde os cognitivos até as políticas e ações que resultam nos macrodeterminantes sociais, econômicos e ambientais, envolvendo não só aspectos básicos do viver (acesso a trabalho, renda, alimentação, educação, saúde, habitação, saneamento ambiental, entre outros) como, também, de onde se vive e trabalha (uso e ocupação do solo, de gestão ambiental e apropriação dos recursos naturais etc.), articulados e integrados com políticas sistêmicas orientadas para a sustentabilidade ecológica e a justiça social como pilares do desenvolvimento sustentável (FREITAS et al., 2012).

Observa-se que se vive em uma divisão social de práticas espaciais, onde há práticas espaciais dominantes, como as das grandes indústrias e do agronegócio em grande escala, que impõem seus usos privados aos espaços comuns do ar e dos recursos hídricos, neles lançando os produtos não vendáveis da produção de mercadorias, impactando - e comprometendo - o exercício de outras práticas espaciais não dominantes, como as práticas da agroecologia, do extrativismo artesanal e tradicional etc.

Deve-se, assim, concordando com Acelsrad (2013), tornar visíveis nos estudos, sobretudo nos do campo da saúde coletiva, o território e as dinâmicas espaciais do tecido social vivo, a ruptura do metabolismo social com a natureza e os processos socioecológicos conflituais que instabilizam grupos e lugares, pondo em questão, pela dinâmica conflitiva em seu conjunto, o próprio modelo de desenvolvimento e o modo socioespacial pelo qual são distribuídos e apropriados os recursos do território.

Como observado, as discussões teóricas e as experiências empíricas apontam para a existência de eixos de desenvolvimento econômico na América Latina, em especial, ambientalmente insustentáveis e socialmente injustos, que intensificam os conflitos socioambientais.

Saúde coletiva e metabolismo social: notas de síntese

A partir do que foi esboçado, percebe-se que a saúde coletiva possui um papel fundamental no fomento de debates sobre a natureza desigual e injusta dos modelos de desenvolvimento contemporâneos e de reflexão sobre o redirecionamento de empreendimentos globais, a reapropriação da natureza pelos povos tradicionais, a reinvenção de territórios e a descolonização dos saberes populares. Alguns desafios podem ser assumidos pela saúde coletiva ao enfrentar a discussão sobre saúde, o ambiente e a sustentabilidade do desenvolvimento a partir das contribuições da ecologia política.

Um primeiro desafio envolve a integração de indicadores de saúde ambiental com outros de natureza socioambiental, produzidos pelas atuais metodologias que contabilizam os fluxos de materiais e energia com os fluxos econômicos. Essa tarefa permitirá uma visão, ao mesmo tempo, mais precisa e abrangente sobre as atuais e as futuras consequências das opções de desenvolvimento econômico para diferentes territórios e populações.

Além disso, um debate necessário para a saúde coletiva refere-se à discussão local-global na configuração de cenários alternativos de desenvolvimento nos territórios. Quase sempre existe uma forte conexão entre conflitos locais ou regionais e o ambientalismo global, bem como focos de resistência, a exemplo dos conflitos mapeados pela rede brasileira de justiça ambiental (PORTO et al., 2014).

Para Porto e Martinez-Alier (2007), a interação da saúde coletiva com a ecologia política na análise dos fluxos e conflitos de distribuição ecológica poderá contribuir para a construção de uma sociedade justa e democrática, aberta ao pluralismo de valores cujos processos de desenvolvimento sejam simultaneamente sustentáveis dos pontos de vista ambiental, social, cultural e político.

Os processos produtivos no capitalismo vêm gerando uma série de externalidades negativas, ou seja, custos ambientais, sociais e de saúde decorrentes dos inúmeros impactos de diferentes cadeias produtivas, como do agronegócio, das petroquímicas, da mineração. A vulnerabilidade socioambiental cria condições para desastres, ao mesmo tempo que limita as estratégias para prevenção e mitigação, dificultando a superação do padrão do metabolismo social capitalista gerado pelas cadeias produtivas. A redução de riscos de desastres e a construção da resiliência incluem, por outro lado, mudanças nos padrões de desenvolvimento social, econômico e ambiental orientados para a sustentabilidade ecológica e a justiça social como pilares do desenvolvimento sustentável.

Concorda-se com o que sintetiza Tambellini (2012) sobre as tarefas urgentes do campo da saúde coletiva, quais sejam: repensar os conceitos e as definições da saúde e da doença, tendo em vista as determinações ambientais e da produção econômica; reelaborar criticamente os pressupostos teóricos que pretendem explicar os processos, elementos, relações e mecanismos, bem como os fatos, eventos e acontecimentos que compõem a questão da saúde; criar e adaptar metodologias e técnicas adequadas para abordar, analisar e intervir no campo das relações entre produção, ambiente e saúde; avaliar o uso e a aplicação dos conhecimentos e saberes produzidos e/ou apropriados pelas coletividades organizadas nas escalas institucionais (multissetoriais) e no campo das políticas públicas; elaborar propostas de mecanismos de controle e prevenção de doenças e agravos relacionados com a produção e o ambiente, bem como contribuir para a promoção da saúde e da segurança socioambiental das comunidades.

Enfim, trata-se, além de confrontar a injustiça social contemporânea, sob a face ecológica, de construir uma ecologia liberta das deteriorações daqueles que a monopolizam, trabalhando-se para vincular os processos locais e tradicionais específicos ao movimento histórico da sociedade global.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    Jul 2016
  • Aceito
    Nov 2016
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