RESUMO
O estudou objetivou investigar os percursos terapêuticos de trabalhadores em situação de afastamento do trabalho por Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/Dort) atendidos em um serviço de saúde. Ocorreu análise de prontuários clínicos e seleção de sujeitos para entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas para análise de conteúdo temática. Participaram das entrevistas dez trabalhadores, de ambos os gêneros e diferentes profissões. Os sujeitos passaram por condutas clínicas embasadas no modelo biomédico, pelo desamparo da empresa e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), gerando sofrimento. Concluiu-se que ainda há necessidade de melhorias nas ações intersetoriais e interdisciplinares em casos de doenças crônicas e no modelo integral de saúde.
PALAVRAS-CHAVE Transtornos traumáticos cumulativos; Saúde do trabalhador; Licença médica; Reabilitação
ABSTRACT
The aim of this study was to investigate the therapeutic pathways of workers in work leave situation due to Repetitive Strain Injuries/Work-Related Musculoskeletal Disorders (RSI/WRMSD) assisted at a health service. Analysis of clinical records occurred and selection of subjects for recorded semi-structured interviews, which were recorded for thematic content analysis. Ten workers participated in the interviews, of both genders and different professions. The subjects underwent clinical conducts based on the biomedical model, due to the helplessness of the company and the National Social Security Institute (INSS), causing suffering. It was concluded that there is still a need for improvements in intersectoral and interdisciplinary actions in cases of chronic diseases and in the integral health model.
KEYWORDS Cumulative trauma disorders; Occupational health; Sick leave; Rehabilitation
Introdução
Uma crise contemporânea se manifesta em todos os países do mundo nos sistemas de atenção à saúde, com o aumento de condições crônicas de saúde1. Para Mendes1, o contexto brasileiro vive uma acelerada transição nos campos político, social, econômico, demográfico e epidemiológico, tais como o crescimento de enfermidades de origens não infecciosas/transmissíveis e de etiologia incerta, resultantes, entre outros fatores, da reestruturação produtiva e do acelerado envelhecimento da população. Sobre a reestruturação produtiva, o enfraquecimento da coletividade entre os trabalhadores nas novas relações trabalhistas - como, por exemplo, a terceirização, somada a condições de trabalho ruins - repercute negativamente na saúde dos trabalhadores. Além, disso, há, ainda, o cenário de ascensão do ideário neoliberal, onde o mercado aparece como regulador da sociedade2.
Essas mudanças e os novos modos de organização do trabalho têm repercutido negativamente na saúde dos trabalhadores, ocasionando diversas formas de adoecimento. De caráter crônico, as Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/Dort), frequentemente, implicam sucessivos afastamentos do trabalho por curtos e/ou longos períodos, bem como limitações em atividades cotidianas3. As LER/Dort se caracterizam por lesões de músculos, tendões, fáscias, nervos, entre outros, com sintomas de dor, parestesia, sensação de peso etc. É de aparecimento insidioso, e sua etiologia é multifatorial e complexa, envolvendo aspectos biomecânicos, cognitivos, sensoriais, afetivos e psicossociais e fatores relacionados às condições e à organização do trabalho4. As doenças osteomusculares e do tecido conjuntivo foram a segunda maior causa de concessão de auxílio-doença por acidente de trabalho na previdência social5. Esses distúrbios osteomusculares se constituem um problema de saúde pública no mundo pela redução da qualidade de vida e da capacidade para o trabalho3.
As LER/Dort evoluem, muitas vezes, para casos crônicos6. E o sistema de saúde brasileiro encontra-se focado na doença aguda, e não nas doenças crônicas, sendo assim, as condições crônicas não podem ser respondidas com eficiência, efetividade e qualidade. Os sistemas fragmentados de atenção à saúde são aqueles reativos e com respostas episódicas, que se organizam através de um conjunto de pontos de atenção à saúde isolados e com pouca comunicação. Como consequência, são incapazes de prestar uma atenção contínua à população1.
Com relação à abordagem de tratamento dos casos de LER/Dort, ela está fortemente influenciada pelo modelo biomédico7. O modelo biomédico resulta em práticas assistenciais de saúde fragmentadas, pois dicotomiza a doença em aspectos objetivos e subjetivos, focando nos aspectos objetivos, ou seja, em lesões observáveis, sintomas mensuráveis e causas classificáveis, tendo como centro de atenção a doença, e não o indivíduo8. O modelo biomédico estimula os médicos a aderir a um comportamento cartesiano na separação entre o observador e o observado, muitas vezes, pela impossibilidade de oferecer respostas conclusivas ou satisfatórias para muitos problemas, sobretudo para componentes psicológicos ou subjetivos que os acompanham, em grau maior ou menor que as doenças9. Ainda para este autor, em favor da reorientação do modelo econômico fundado no neoliberalismo, o modelo médico-assistencial, servindo ao modelo biomédico, tende a buscar os interesses do mercado.
Com a Constituição Brasileira e a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), o modelo de atenção à saúde foi reorganizado a partir de um conceito integral de saúde, ou seja, levando-se em consideração os aspectos biopsicossociais dos processos saúde-doença. Em contrapartida, o que se vê ainda na prática são ofertas terapêuticas orientadas pelo modelo biomédico10. Mesmo que muitos profissionais médicos cheguem a admitir a presença de componentes de ordem subjetiva ou afetiva, que exercem influência em casos de doenças, eles não se sentem à vontade, via de regra, para lidar com os mesmos9.
Sendo assim, a visão estritamente fisiopatológica nos casos de LER/Dort não é resolutiva e acarreta períodos extensos de tratamento, sobrecarregando os serviços públicos de saúde e repercutindo negativamente nos âmbitos emocional e socioeconômico dos trabalhadores11. Além disso, esse modelo de atenção focado na doença, em geral, individualiza o adoecimento, o que, na verdade, trata-se de um problema estrutural e coletivo. Para que se possa refletir sobre o tema, cabe destacar alguns fatos históricos. Os cuidados de saúde voltados ao trabalhador eram, até meados da década de 1980, de responsabilidade exclusiva do empregador e sob o modelo da medicina do trabalho e da saúde ocupacional, cujo enfoque privilegia a visão individual do adoecimento, e o diagnóstico e o tratamento, sob o ponto de vista positivista12. Os limites epistemológicos desse modelo impossibilitam considerar os aspectos relacionados à organização/divisão do trabalho nos processos de adoecimento, tais como: o ritmo, o trabalho em turnos, modos de divisão do trabalho, entre outros13.
A partir do contexto da redemocratização social, da reorganização da saúde e da influência da Reforma Sanitária na Itália, nos anos 1970, uma nova visão sanitária passou a formular concepções sobre as relações de trabalho, saúde e doença, considerando, também, a determinação social nesse processo12. Mas foi em 1988 que o Estado, através do SUS, passou a ter competência legal sobre o processo saúde-doença relacionado ao trabalho, com a Constituição Federal, no artigo 200 - Ações relacionadas à saúde dos trabalhadores -, endossado pela regulamentação do SUS, com a Lei nº 8.080, de 199014. Esses autores explicam que, posteriormente, a Rede Nacional de Atenção Integral em Saúde do Trabalhador (Renast), criada em 2002, e a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), de 2012, foram estratégias criadas para garantir a integralidade na atenção à saúde do trabalhador na Rede de Atenção à Saúde (RAS), com a Atenção Primária à Saúde sendo a ordenadora das ações. Embora haja avanços e estratégias, ainda há uma dificuldade de os profissionais de saúde considerarem o trabalho como parte do processo saúde e doença dos sujeitos, e, diante dessa problemática, o processo de cuidado e reabilitação dos trabalhadores acometidos por LER/Dort se torna um desafio.
Ainda existe, em geral, uma dificuldade em estabelecer o nexo causal entre a doença e o trabalho no caso das LER/Dort, e, com isso, o registro oficial da doença nem sempre é obtido15. Quando um acidente ou uma doença é reconhecido como decorrente do trabalho, a empresa deve emitir o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT) ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Quando isso não ocorre, o próprio acidentado, seus dependentes, o sindicato, o médico que o assistiu ou qualquer autoridade pública poderão realizá-lo a qualquer tempo. Esse documento visa a garantir o acesso ao benefício auxílio-doença acidentário, o qual garante ao trabalhador 12 meses de estabilidade na empresa quando retornar ao trabalho, entre outros16. Além disso, seu registro é fonte importante de informações epidemiológicas. Vale ressaltar que os CATs se referem apenas aos trabalhadores cobertos pelo Seguro Acidente de Trabalho (SAT), sendo, portanto, excluídos dessa fonte de dados os trabalhadores autônomos, domésticos, funcionários públicos estatutários, subempregados, muitos trabalhadores rurais, entre outros. A subnotificação dos dados impede que os números estatísticos relacionados aos acidentes de trabalho correspondam à realidade15.
Uma vez em situação de afastamento do trabalho por motivo de doença, os trabalhadores vivenciam um processo de rupturas importantes nos modos de viver e de trabalhar17. Portanto, o processo de afastamento do trabalho desestrutura a identidade do indivíduo, uma vez que impede o reconhecimento de seu papel social e por atribuir a ele um papel de doente. E cabe ressaltar o quanto o capitalismo contemporâneo valoriza o trabalhador produtivo, gerando, muitas vezes, processos socialmente excludentes em casos de adoecimento relacionado ao trabalho.
O objetivo deste estudo foi o de investigar os percursos terapêuticos de trabalhadores em situação de afastamento do trabalho e acometidos por LER/Dort atendidos em um serviço de saúde.
Métodos
O estudo é exploratório, descritivo, retrospectivo e com ênfase em resultados qualitativos. O estudo teve duas etapas e foi realizado no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST) da região Leste (CRST-Leste), no município de São Paulo. O município de São Paulo possui 06 Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST), sendo um em cada macrorregião de saúde do município: região Oeste, Sudeste, Sul, Norte, Centro e Leste, respectivamente, tendo sido implantados no período entre os anos de 1989 e 1992.
Na primeira etapa deste estudo, foi obtida uma listagem e análise documental de prontuários abertos no período de 01 de janeiro de 2014 a 30 de junho de 2015 de trabalhadores atendidos nesse serviço, e para a seleção de sujeitos para a segunda etapa do estudo. Os critérios de seleção foram: registros de queixas de sintomas osteomusculares e relacionados ao trabalho, com diagnóstico clínico estabelecido para o grupo 'transtornos dos tecidos moles', da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), e que haviam vivenciado a situação de afastamento do trabalho pelo INSS por motivo da doença.
Na segunda etapa, os trabalhadores foram contatados por telefone, e ocorreram o convite para a participação voluntária no estudo e os agendamentos. Foi elaborado previamente um roteiro com questões semiestruturadas para a realização de entrevistas individuais. Foram investigados nas entrevistas: origem dos encaminhamentos à unidade, sintomas clínicos da doença durante o trabalho, procura dos atendimentos e serviços de saúde, encaminhamentos, exames realizados, entre outros. A escolha de entrevistas individuais se deu pela importância da escuta e pela possibilidade de analisar as experiências individuais vivenciadas pelos trabalhadores. As entrevistas ocorreram em sala apropriada na unidade no CRST-Leste e foram gravadas e transcritas na íntegra, para análise de conteúdo temática17. Segundo a autora, é uma prática de pesquisa qualitativa metodologicamente orientada, a qual pressupõe algumas etapas: pré-análise; exploração do material ou codificação; tratamento dos resultados; inferência; e interpretação. Primeiramente, ocorreu uma leitura flutuante e exaustiva dos depoimentos, e, posteriormente, a análise dos dados e a definição das categorias temáticas.
Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). E a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob nº 1.666.746.
Resultados e discussão
Da primeira etapa, foram abertos, no período considerado, um total de 642 prontuários, e selecionados apenas 66, que atenderam aos critérios de seleção do estudo. Dos prontuários analisados, 66,4% (429) eram de sujeitos que exerciam a função de agentes de zoonoses da Zona Leste do município de São Paulo e que foram atendidos na Unidade nesse período através do Programa de Saúde do Trabalhador e de Controle de Zoonoses e Animais Sinatrópicos (PST CZAS), da Secretaria Municipal de Saúde, de São Paulo. Sugere-se que esses dados sejam analisados em futuras pesquisas.
Com relação às formas de encaminhamento ao serviço, dos prontuários selecionados, identificou-se o seguinte: vieram de sindicatos (31,8%), serviços de saúde (19,7%), demanda espontânea (13,6%), indicação de munícipe (13,6%), entre outras. O baixo número de encaminhamentos de serviços de saúde públicos pode indicar a pouca articulação, tão necessária, com a Rede de Atenção em Saúde. Dos prontuários analisados, a maioria dos sujeitos era do gênero feminino (60,3%). O fato de as mulheres serem mais acometidas por LER/Dort foi corroborado em outros estudos6,19. Não há um consenso sobre os motivos, mas há explicações relacionadas à divisão sexual do trabalho por relações de gênero e, também, devido à dupla jornada de trabalho (15). Ainda, segundo Houvet e Obert6, as mulheres procuram mais os serviços de saúde. A média de idade dos sujeitos foi de 46,0 anos (DP=10,6), com escolaridade baixa (44,0%), sendo considerado nível baixo até o ensino médio incompleto. Com relação à baixa escolaridade, esta pode ser associada à exposição às condições insatisfatórias de trabalho, decorrentes das oportunidades de trabalho3.
Da segunda etapa das entrevistas, participaram dez (10) sujeitos, sendo quatro (4) do gênero masculino e seis (6) do gênero feminino, com idades entre 35 e 58 anos. A maioria dos trabalhadores estava, no momento das entrevistas, em situação de desemprego (6), dois (2) estavam ativos e dois (2) em situação de afastamento do trabalho pelo INSS. O tempo de afastamento do trabalho pelo INSS variou de 1 mês a 9 anos, onde alguns sujeitos estavam, por um longo período, em situação de afastamento do trabalho (3). As profissões foram variadas. Entre elas: ajudante de motorista (1), encarregada de sessão de costura (1), operador de máquinas (1), balconista (1), operador de escavadeira (1), costureira (1), faxineira (1), bancária (1), auxiliar de serviços gerais (1) e auxiliar de cozinha (1).
Para preservar a identificação dos sujeitos, foram utilizados nomes fictícios. A partir da análise das entrevistas, surgiram quatro categorias temáticas: o agravamento da doença e a procura por assistência; a luta pela comprovação da doença; os tratamentos e o modelo biomédico; e INSS e sofrimento.
O agravamento da doença e a procura por assistência
Os primeiros sintomas que os trabalhadores relataram foram dores osteomusculares, que consideravam leves, inicialmente, e que ocorriam, em geral, durante a realização das tarefas de trabalho ou no final da jornada de trabalho.
[...] começa a dar aquelas fisgadas, e, aí, no caso, você está sentindo dor, mas você acha que é uma dor passageira. (Jailson, operador de retroescavadeira).
A dor, enquanto não impunha alguma limitação nas atividades de trabalho, era aparentemente 'naturalizada'. A dor é um sintoma que não é possível mensurar objetivamente e, frequentemente, refere-se, também, a um sofrimento relacionado ao trabalho. Sendo assim, gestos acelerados podem ser estratégias de defesa, e alguns trabalhadores aumentam as cargas produtivas, na tentativa de satisfazer as necessidades do contexto de produção, em busca de reconhecimento pelo trabalho20.
E quando a dor começou a repercutir nas atividades da vida diária, incluindo as laborais, os sujeitos passaram a praticar a automedicação.
[...] Ah, isso que é bom pra dor? Dorflex, Paracetamol, Voltaren, então é isso... até não dar mais... até o dia que eu cheguei e não conseguia pentear o cabelo! (Eliane, diarista).
A automedicação para alívio de sintomas dolorosos e para o atendimento das demandas de trabalho é citada em outros estudos10,20,21. E os medicamentos mais utilizados pelos entrevistados foram os anti-inflamatórios e relaxantes musculares, que são geralmente os medicamentos de fácil obtenção em farmácias.
Também há por parte dos trabalhadores o medo de se mostrarem doentes e do desemprego, fazendo com que permaneçam nessa condição e, com isso, retardando a procura pelo atendimento em saúde.
[...] o chefe fica olhando como se você tivesse fazendo corpo mole, então você ficava ali trabalhando [...] quando era época de corte, você sabia que podia ser mandado embora. (Vagner, operador de máquinas).
O medo do desemprego pode levar o trabalhador a se desligar tanto dos sofrimentos físico e psíquico quanto dos seus pares, conduzindo ao individualismo e à submissão aos riscos do trabalho2. O silêncio coletivo com relação à doença e ao sofrimento no trabalho é uma estratégia de defesa que protege o trabalhador da angústia pelo medo das consequências da doença13. Com isso e diante das exigências neoliberais e capitalistas para manutenção do emprego, os casos foram se agravando, sem a devida atenção à saúde dos trabalhadores. Em um cenário de maior competitividade, as empresas, visando à redução de custos da produção, à melhoria da qualidade de produtos, serviços e da produtividade, investiram em mudanças de ordem tecnológica e organizacional, que repercutiram negativamente nas relações e condições de trabalho2.
Os sinais de incapacidade para continuar a dar conta das exigências de trabalho começaram a se desvelar, surgindo dificuldades especialmente em se manter o ritmo de trabalho e a qualidade, gerando medo, insegurança e angústia.
[...] já não tava conseguindo firmar o tecido, né?, para manter a costura, aí eu falei para o patrão: 'amanhã não venho, porque vou ao médico. Minha mão está doendo muito!'. (Adelaide, costureira).
Ocorrem, então, os primeiros indícios de uma identidade de doente, marcada pelas incertezas quanto ao desempenho laboral no trabalho e pelo sofrimento gerado7. E diante da condição e da situação dos sujeitos com o agravamento dos sintomas e da cronificação da doença, os serviços de pronto atendimento foram os principais procurados.
[...] ia no pronto-socorro, porque pronto-socorro você pode ir de noite [...] eu fui à noite no pronto-socorro. Eu saia do trabalho e ia para o pronto-socorro de tanta dor! (Paula, bancária).
O serviço de saúde emergencial apareceu como um importante recurso utilizado pelos sujeitos, porém, com limitações significantes quando se pensa em necessidades de um cuidado integral à saúde, pois o atendimento visava apenas a sanar a queixa principal do paciente, a dor. A procura por um serviço de pronto atendimento ocorreu por vários aspectos, segundo os sujeitos: para alguns, por ser uma possibilidade do atendimento em período/turno extralaboral; para outros, pelo atendimento junto ao médico da queixa principal, a dor (a agudização da dor já crônica), ocorrer de modo 'rápido'.
Nos atendimentos, não houve nenhuma recomendação para um afastamento mais prolongado das atividades de trabalho nem sobre restrições das atividades laborais relacionadas aos esforços físicos de risco.
[...] No momento da dor, ele aplicava a injeção e mandava para casa, e dava o atestado do dia e pronto! (Sabrina, encarregada da sessão de costura).
Nesse momento, algumas restrições físicas poderiam ser, talvez, indicadas em alguns casos, porém, os atendimentos foram considerados rápidos, sem maiores investigações clínicas e com enfoque na questão fisiopatológica da doença. Os medicamentos servem às empresas como uma forma de controle da força de trabalho, agenciada pelo modelo biomédico, possibilitando estender a vida laboral nas condições de trabalho oferecidas10. Porém, há necessidade de se ter uma atenção à saúde dos profissionais de saúde, que se sentem, muitas vezes, impotentes com relação ao que compreendem que seja o ideal de assistência, e pelo fato de estarem sujeitos aos dispositivos biopolíticos da medicalização22.
Nas empresas onde havia ambulatórios médicos, alguns trabalhadores tinham acesso à medicalização.
[...] eu ia mais para tomar remédio para dor muscular. O médico não passa exame. Falava para eles da dor aqui... então, eles não passaram exames. (Vagner, operador de máquinas).
Minimizando os efeitos deletérios das condições de trabalho e da execução das atividades com dores, os atendimentos também ocorreram com o intuito de medicalizar as dores, sem aprofundamentos acerca de possíveis causas relacionadas ao trabalho. As empresas têm o controle privado da saúde e da segurança dos trabalhadores, a partir dos serviços especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT). Com a participação mínima do Estado nesse controle, as equipes dos SESMT estão subordinadas à vontade e ao mando do empregador para exercerem suas funções, com base na perspectiva neoliberal10. "Medicalizar a dor pode ser compreendida ainda como uma forma de desqualificar o sofrimento a favor da produção"13158. Além disso, a demanda por medicamentos direciona o fluxo assistencial apenas para o profissional médico, desvalorizando ações multidisciplinares10.
A luta pela comprovação da doença
Com a frequência de atendimentos em assistência emergencial e a cronicidade dos sintomas e da doença, houve a necessidade de maiores investigações com exames clínicos. A realização desses exames foi o processo inicial para a legitimação da doença.
[...] O médico [ortopedista] mandou fazer a ressonância, aí que ele viu que meu problema era sério, que eu não podia voltar ao trabalho. Foi quando ele me afastou. (Esmeralda, auxiliar de cozinha).
Todos os trabalhadores tiveram exames clínicos cujos resultados comprovaram suas doenças e, portanto, 'justificaram' suas queixas dolorosas, legitimando-as. A incansável busca da credibilidade relacionada às queixas foi evidente entre os participantes, haja vista a importância de uma concessão de benefícios previdenciários. A sensação de desconfiança dos profissionais de saúde gera tensionamentos entre os atores envolvidos, inviabilizando estratégias terapêuticas fundamentais para o cuidado, o acolhimento, o vínculo e a corresponsabilização pelo tratamento22. Portanto, a partir da constatação e da comprovação da doença e de sua gravidade, por um médico ortopedista, ocorreu o afastamento do trabalho pelo INSS.
Quem possuía assistência exclusivamente pelo SUS teve dificuldade ao acesso rápido a um especialista, devido à demora para conseguir um agendamento de consulta.
[...] eu fiquei numa fila esperando ortopedista 1 ano e 6 meses. Tem como você fazer tratamento assim se você espera tudo isso? [...] aí, eu fui no particular, que eu paguei, foi quando eu fiz esses exames. (Eliane, diarista).
Essa informação corrobora o estudo de Dal Magro, Coutinho e Moré22, que relataram que entre a espera pelo agendamento de consultas médicas e a realização dos exames, os trabalhadores seguem utilizando fármacos e permanecem expostos aos riscos laborais, o que agrava ainda mais a doença. Ainda, a demora para os agendamentos gerava sofrimento, tendo em vista a importância da assistência à saúde para a garantia de seus direitos. Sendo assim, a partir dos exames e da comprovação da doença, os sujeitos se afastaram do trabalho pelo INSS.
Alguns trabalhadores, mediante a negação do registro do CAT pela empresa, procuraram, então, o atendimento no CRST-Leste, local deste estudo.
[...] ele [colega do sindicato] falou para mim: 'Paula, vê se você não consegue abrir a CAT'. Ele me deu o endereço daqui [...] porque os bancos, eles não dão sequência, eles não assumem que você sofreu isso como acidente de trabalho! (Paula, bancária).
Além da comprovação do diagnóstico clínico, houve a necessidade do reconhecimento da relação entre a doença e o trabalho, e, para isso, o CAT deveria ter sido emitido pela empresa. O fato das LER/Dort surgirem de modo insidioso e apresentarem uma etiologia multifatorial pode contribuir, em geral, para o não registro desse comunicado (CAT). Além disso, as empresas não desejam admitir, em geral, a relação do nexo causal do trabalho com a doença, deixando a cargo do trabalhador essa tarefa de buscar alguma comprovação. A negação do CAT é uma realidade no País, o que se pode inferir pela queda do seu registro a partir de 200723. Provavelmente, tal fato ocorre para evitar o ônus com o Fator Acidentário de Prevenção (FAP), em que as empresas tendem a subnotificar os acidentes de trabalho, sobretudo as doenças ocupacionais. Além disso, com a emissão do CAT, são garantidos ao trabalhador afastado do trabalho 12 meses de estabilidade na empresa após o retorno ao trabalho. O FAP é o cálculo de um seguro pago pela empresa para custear aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho. As empresas que registrarem maior número de acidentes ou doenças ocupacionais pagam mais, por outro lado, bonificam-se as empresas que registram acidentalidade menor16. Ao negar a emissão dos CATs, estão negando as influências dos modos de organização do trabalho nos adoecimentos.
Os tratamentos e o modelo biomédico
Em geral, o tratamento inicial para LER/Dort esteve relacionado ao atendimento médico e ao encaminhamento para a Fisioterapia.
[...] eu esperava, aproximadamente, 1 hora para ser atendido e ficava cerca de 2 minutos no consultório. Então, ele [médico ortopedista do convênio] só me passava fisioterapia, que já estava lá no computador. (Francisco, balconista).
De acordo com os depoimentos, independentemente do tipo de serviço, seja particular, público ou convênio, e da especialidade médica, as condutas foram semelhantes no que se refere ao tempo de atendimento (breve) e às prescrições de medicamentos, análises dos exames e novas solicitações (se necessário), além do encaminhamento para a fisioterapia e/ou cirurgia, conforme os estágios da doença e as especificidades dos casos. Os aspectos psicossociais envolvidos e frequentemente encontrados na situação de afastamento do trabalho e no processo de reabilitação de casos crônicos não foram abordados nem geraram encaminhamentos para outros profissionais capacitados para atender a essas demandas.
Ainda, alguns trabalhadores descreveram um fluxo de reabilitação física sem possibilidades de continuidade, por dificuldades em agendamentos, principalmente para aqueles que tinham acesso à saúde exclusivamente pelo SUS.
[...] fiquei 1 ano e 2 meses esperando a vaga da fisioterapia, aí chega lá faz 4 semanas de fisioterapia, duas vezes por semana, e acabou, e você vai embora, não tem o que fazer! (Eliane, Diarista).
O fluxo de atendimento foi pautado em um modelo de atendimento por indicação médica, focado na remissão dos sintomas dolorosos da doença. Quando não existe uma linha de cuidado, o usuário faz o seu próprio caminhar pelas redes de serviços, sendo essa prática altamente perversa, podendo levar a erros e induzir ao consumo de procedimentos centrados em exames e medicamentos, produzindo custos elevados24. Além disso, é uma barreira para o retorno ao trabalho25. E a fragmentação das ações em saúde é um reflexo da especialização do conhecimento9. A assistência à saúde, dessa forma, encoberta a produção do adoecimento relacionado ao trabalho, tirando a oportunidade dos trabalhadores de revelarem a precarização social produzida pelo capital.
INSS e sofrimento
Nos depoimentos, os sujeitos referiram sobre os modos de atendimento dos médicos peritos.
[...] Ele nem me deu, jogou! Ele olhou e disse: 'o que é isso aqui?'. E jogou [exames]! E disse: 'espera o resultado lá fora'. (Yara, auxiliar de limpeza).
Houve queixas de situações onde ocorreram relações conflituosas e de 'descaso' com o segurado, corroborando outros estudos7,21. No exame pericial, o procedimento foi o de consultar os laudos, relatórios e exames médicos, de forma aparentemente superficial, e desencadeava sentimentos de revolta e indignação, além do medo do resultado final do atendimento (da questão de estar apto ou não ao trabalho).
Ainda, o estabelecimento do nexo causal, por meio do reconhecimento do CAT no INSS, também foi motivo gerador de angústia e sofrimento.
[...] aí, não fui reconhecido porque o INSS, a médica, nem os papéis nem o exame ela olhou. Já passou por cima, não olhou nada. (Vagner, operador de máquina).
Quando há o reconhecimento pelo INSS, nesse caso, das LER/DORT, da doença ocupacional, o trabalhador recebe o auxílio-doença acidentário (B91) e tem o direito a um ano de estabilidade na empresa, o que não ocorre quando recebe o auxílio-doença previdenciário16. Dos entrevistados, apenas a metade (n=5) recebeu o auxílio-doença acidentário.
Houve também uma indignação com relação às suas limitações físicas para o trabalho, e os trabalhadores se sentiram humilhados e injustiçados.
[...] ah, você se sente humilhado, né? É horrível! 'Isso é só uma lesão parcial, e você pode trabalhar' [perito]. É meu braço que tá doendo... quem sente a dor sou eu! (Marcos, ajudante de caminhão).
Havia uma desconfiança aparente dos peritos com relação à real situação de comprometimento físico para o trabalho, remetendo novamente à visão reducionista do modelo biomédico, sem considerar as questões psicossociais envolvidas. A avaliação da incapacidade laboral focada no modelo biomédico pode reforçar e influenciar a necessidade de ações fragmentadas e reducionistas no processo de reabilitação11,25. Ainda, mesmo com os sujeitos portando exames e laudos de médicos comprovando a doença, esses documentos não foram considerados, demonstrando os impasses entre os laudos obtidos dos setores da saúde e os da previdência social. Sendo assim, os trabalhadores afastados são constantemente questionados nas perícias, gerando sentimento de impotência, constrangimento e humilhação.
Conclusões
Os percursos terapêuticos, na maioria dos casos, iniciaram-se com a automedicação, que foi uma estratégia de 'calar' a dor e o sofrimento, por medo do desemprego e de perder o status social de trabalhador ativo, entre outros. A procura por uma assistência médica ocorreu somente quando o quadro clínico já estava mais agravado, evidenciando a busca preferencial de um serviço emergencial para amenizar o sintoma limitante para o trabalho: a dor. O sintoma, na maioria dos casos, era tratado com a prescrição de analgésicos e anti-inflamatórios, caracterizando o modelo médico-assistencial direcionado à problemática da prescrição de medicamentos e atendendo ao modelo biomédico, em situações onde já havia quadros de agudização de casos já crônicos, levando, ainda, a uma busca talvez tardia por exames laboratoriais. Caracterizando, inclusive, um percurso individual, para um problema de saúde produzido coletivamente.
Também houve dificuldades na comprovação da doença e na busca, pelo próprio trabalhador, de informações sobre a abertura do CAT. E entre os trabalhadores que possuíam convênios médicos e os que utilizavam exclusivamente o SUS, houve diferenças especialmente no que se refere ao tempo de espera para consultas com especialistas e para a realização de exames. Nas condutas clínicas e de reabilitação, houve a abordagem embasada no modelo biomédico, não atendendo às demandas psicossociais envolvidas nos processos de doenças crônicas. Ocorreram situações de humilhação durante as perícias no INSS e desamparo pelas empresas, gerando sofrimento. Além disso, a avaliação no INSS da incapacidade para o trabalho também necessita de revisões.
Há necessidade de ações integradas junto à saúde, à previdência social e às empresas, para que possam ocorrer melhorias nos processos de reabilitação dos trabalhadores em situação de afastamento do trabalho por LER/Dort. Também é importante dar atenção às políticas públicas, para que sejam mais incisivas na responsabilização das empresas pela produção do adoecimento no trabalho. Porém, agir nas relações entre capital e trabalho pressupõe agir em conflito com as relações de poder políticas e empresariais, sendo que estas últimas visam prioritariamente ao lucro, muitas vezes à custa de exploração da mão de obra de trabalhadores. Além disso, há pouca intervenção do Estado no mercado, como pressupõe o neoliberalismo. Essas são questões que, entre outras, vêm impondo grandes desafios para o campo da saúde do trabalhador.
Este estudo teve limitações no que se refere à baixa amostra, por referir-se a uma população regional, não podendo, portanto, fazer generalizações dos casos. Porém, pretendeu-se ressaltar e refletir sobre as dificuldades encontradas pelos sujeitos acometidos por LER/Dort. Espera-se que futuros estudos possam aprofundar os debates e, especialmente, promover melhorias no cuidado integral à saúde dos trabalhadores acometidos por LER/Dort.
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Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2018
Histórico
-
Recebido
27 Set 2017 -
Aceito
03 Fev 2018