RESUMO
A atual fase do capitalismo é marcada por uma crise que atinge profundamente a economia em uma perspectiva global. As soluções escolhidas para amenizar os seus efeitos envolvem a adoção, pelas políticas austeras, de enérgicas reduções no gasto público, especialmente no gasto relacionado com as políticas sociais, impactando a saúde e, consequentemente, o processo de avaliação em saúde. Imersa nessa fase de crise do capitalismo com predomínio do capital financeiro, a avaliação em saúde tende a ser permeada pela lógica utilitarista, refletindo a ideologia do produtivismo, ao ser pautada pelas leis de mercado, em que a saúde de uma população é medida por meio do consumo de serviços e produtos médico-hospitalares, o que não significa, necessariamente, melhoria das condições de saúde dessa população. Nesse cenário, vem se tornando essencial a construção de uma crítica ao processo produtivista. Para isso, dialoga-se com a literatura crítica, mediante uma interpretação marxista do processo atual, no sentido de repensar a política de avaliação em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Entende-se que a avaliação em saúde deve se constituir em uma prática social, não se limitando a cumprir regras e normas, mas ser uma ferramenta para a consolidação da democracia, afirmação de direitos e empoderamento dos cidadãos.
PALAVRAS-CHAVE Capitalismo; Política de saúde; Avaliação em saúde; Sistema Único de Saúde
ABSTRACT
The current phase of capitalism is marked by a crisis that deeply affects the economy in a global perspective. The solutions chosen to mitigate their effects involve the adoption, by austere policies, of strong reductions in public spending, especially in the spending related to social policies, impacting health and, consequently, the health evaluation process. Immersed in this phase of crisis of capitalism with a predominance of financial capital, health evaluation tends to be permeated by utilitarian logic, reflecting the ideology of productivism, being is ruled by market laws, where the health of a population is measured by means of the consumption of services and medical-hospital products, which does not necessarily mean an improvement in the health conditions of that population. In that scenario, the construction of a critique of the productivist process has become essential. In order to do so, we are in dialogue with the critical literature, through a Marxist interpretation of the current process, in order to rethink the health evaluation policy within the Unified Health System (SUS). We believe that health evaluation should be a social practice, not just complying with rules and standards, but being a tool for consolidating democracy, affirming rights and empowering citizens.
KEYWORDS: Capitalism; Health policy; Health evaluation; Unified Health System
Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS), desde antes do seu nascedouro, nunca vivenciou um período de bonança1. Forjado há 30 anos, em um momento histórico no qual as políticas do Estado Social2 perdiam espaço para o modelo neoliberal, o SUS vem vivenciando mais um processo de fragilização oriundo da dinâmica do movimento do capital, em grande parte, comandado por forças aliadas ao capital portador de juros (capital financeiro).
Filiado à tradição das políticas públicas antes mesmo de sua concepção3 e integrante de um sistema de proteção social, denominado na Constituição de 1988 por seguridade social, o SUS sofre os impactos desde a sua existência. Tem sido vítima permanente da tensão entre a garantia da universalidade e a contenção de gastos. Essa tensão fica evidente quando se verifica a forma como têm sido conduzidas as políticas de gestão e, especificamente, aquelas referidas ao processo de avaliação em saúde.
Nossa atenção, portanto, volta-se para o processo de avaliação em saúde adotado nos últimos cinco anos no SUS, no sentido de entendê-lo como consequência de um movimento do capitalismo contemporâneo e de sua crise estrutural. Para isso, faz-se necessário, inicialmente, compreender o poder assumido pelo capital financeiro e sua capacidade de intensa espoliação do trabalho, já que, para alguns analistas, a exemplo de Krugman, citado por Roberts4, parece que a financeirização do capital não tem ligação direta com o processo produtivo. No entanto, a dominância desse capital tem desencadeado uma crise que contamina o mundo do trabalho em uma perspectiva global.
Para amenizar os efeitos da crise, o capital, para reproduzir-se, depende cada vez mais de políticas austeras e reduções enérgicas no gasto público, especialmente naqueles setores relacionados com o investimento no ‘social’. Nesse cenário, o Estado passa a adotar medidas neoliberais, afastando-se da ideia de bem-estar social. Como admitimos que, nessas circunstâncias, o trabalhador será cada vez mais explorado em sua situação de expropriação5, o processo de avaliação em saúde no SUS tem sido um nicho fecundo dessa nova forma de ‘superintensificação’.
Assim, a ideologia produtivista assume a dianteira dos processos avaliativos nos diversos setores, e na saúde isso não seria diferente. O objetivo do processo avaliativo é redefinido e passa a ser ‘diminuição do tempo de rotação do ciclo repetitivo do processo de trabalho’ na medida em que persegue a produção de metas, aliando-se à lógica de mercado típica de sistema capitalista financeirizado.
Logo, o objetivo deste ensaio é realizar uma crítica à ideologia do produtivismo na avaliação no SUS demonstrando como essa forma de avaliar é, em última instância, uma consequência do capitalismo contemporâneo financeirizado. A opção pelo ensaio teórico como modalidade textual recaiu na possibilidade de transgredir melhor as fronteiras disciplinares, algo que o aporte metodológico rígido tende a impedir6. Para tanto, usaremos os argumentos de autores filiados à tradição marxista7-14 para localizar a crítica em questão.
Para conectar os argumentos dos autores supracitados ao processo de avaliação em saúde no SUS, usaremos de exemplos concretos das políticas de avaliação em saúde adotadas nos últimos anos e como essas políticas proporcionaram a invasão da ideologia produtivista na produção dos serviços de saúde. Para demonstrar essa tese, usaremos os argumentos de autores que têm se dedicado a catalogarem esses eventos15-18.
Para conduzir a argumentação, o artigo está estruturado em quatro partes. A primeira apresenta, de forma breve, as transformações recentes que caracterizam o capitalismo contemporâneo. A segunda parte comenta a atuação do Estado como expressão da lógica do capital comandado pelo capital financeiro, provocando atuações da política pública em consonância a esse quadro. A terceira parte discute o sentido mais geral da lógica contemporânea do capitalismo, na sua marca utilitarista, valorizando a ideologia do produtivismo na avaliação em saúde, particularmente no processo avaliativo que veio sendo adotado pelo SUS, com ênfase numa perspectiva crítica. Por fim, a quarta parte apresenta breves considerações finais, do que, na visão dos autores, pode ser um caminho para adensar este debate.
Transformações recentes do capitalismo contemporâneo
Parte-se da discussão sobre a constituição do capital financeiro e de suas consequências no estabelecimento da crise do capitalismo contemporâneo. É sabido que o processo de acumulação flexível e de financeirização se intensificaram a partir dos anos 1970. Esses processos provocaram importantes impactos no âmbito da saúde pública, na medida em que, para amenizar a crise, a opção comumente adotada relaciona-se com a redução dos direitos sociais para a classe trabalhadora.
A atual fase do capitalismo é marcada por uma crise estrutural que atinge profundamente a economia em uma perspectiva global. Ela tem início a partir da década de 1970, quando se começa a observar duas tendências: a) a queda tendencial da taxa de lucro das empresas nas economias capitalistas, ressaltando-se a norte-americana; b) a migração das empresas para o mercado financeiro em busca de recursos para viabilizar as suas atividades, visando aumentar a taxa de lucro1,7.
Na literatura marxista, a posição defendida principalmente por autores como Alex Callinicos9, Carchedi e Roberts12 e Andrew Kliman19 é aquela na qual a crise eclodiu a partir do declínio na taxa de lucro. Para essa corrente de pensamento, a taxa de lucro é a variável-chave para compreender o movimento da economia capitalista moderna.
Nesse cenário, Kliman19 analisou os movimentos da queda das taxas de lucros a partir da Segunda Guerra Mundial. Ao tomar como referência os Estados Unidos, demonstrou que a taxa de lucro vem caindo desde meados de 1949 até 2001, em torno de 41,3%. Ela não se moveu em uma linha reta: depois da guerra subiu, mas voltou a diminuir na chamada Idade de Ouro (1948 a 1965). A rentabilidade continuou a cair, também, de 1965 em diante.
Com a decorrente redução da taxa de lucro no capital produtivo, assiste-se à proliferação de instituições financeiras e à integração de uma grande quantidade de agentes econômicos nos mercados financeiros. Dos recursos que são emprestados, decorrem juros a partir de um mecanismo especulativo no qual o dinheiro transforma-se em dinheiro sem sair da esfera financeira e cujo estágio final é a constituição de um capital fictício representado, por exemplo, por dividendos e por juros da dívida7.
Assim, em um movimento cada vez mais agressivo, o capital tende a se reordenar na esfera financeira como contratendência à queda da taxa de lucro. Tem-se, a partir de então, a liderança do capital financeiro na dinâmica do capitalismo contemporâneo. Para Chesnais7, o capital portador de juros, ainda que improdutivo, não pode ser considerado parasitário, pois desempenha função útil e indispensável à circulação do capital.
Mesmo se apropriando da mais-valia sem produzi-la diretamente, desempenha o papel de adiantar capital-dinheiro para que o capital produtivo possa executar a produção e, portanto, realizar a mais-valia. Chesnais7 ainda argumenta que a posse do capital-dinheiro dá ao seu proprietário o direito ao lucro sob a forma de juros. Esses juros referem-se à dedução de lucro, que é originado na mais valia a ser alcançada pelo capital comercial ou industrial.
Entretanto, esse capital pode tornar-se parasitário e especulativo na forma assumida de capital fictício. O capital fictício, entende Chesnais20, é representado por massas de capital-dinheiro à procura de valorização, em posse de instituições, a exemplo de bancos, sociedades de seguros e fundos de pensão, cuja finalidade é valorizar seus haveres sem sair da esfera dos mercados de títulos e de ativos fictícios derivados de títulos. A valorização não passa diretamente pela produção, concentrando-se no âmbito financeiro.
No processo de mundialização financeira, esse capital especulativo e parasitário promove impactos nos sistemas econômicos dos países, na medida em que estes, abertos mundialmente, não encontram alternativas a não ser a de aderir à lógica financeira em um processo que culmina em sérios endividamentos e no qual os juros da dívida pública se apropriam de grande parte do orçamento.
Estamos nos referindo a um processo de acumulação financeira correspondendo, para Chesnais7, à centralização de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas em instituições especializadas, as quais buscam valorizá-los por meio da aplicação em ativos financeiros (divisas, obrigações e ações), mantendo-os fora da produção de bens e serviços. De acordo com esse autor, com o aumento do poder do capital financeiro ressurgem os mercados especializados, a citar, os mercados de títulos de empresas ou mercados de obrigações.
O predomínio do capital fictício é marcado, de um lado, por profundas e recorrentes crises e, de outro, por uma inédita polarização determinada por grandiosa riqueza material ao lado de profunda e crescente miséria em grande parte do mundo21. Há crises estruturais do capital estendidas em escala econômica global. Para entendermos a crise atual, partimos do sistema fordista e de seu declínio, a partir dos anos 1970, como resultado da queda tendencial na taxa de lucro das empresas.
De forma geral, deve-se entender o fordismo como um regime de acumulação, principalmente vigente entre meados das décadas de 1940 e 1970, sendo marcado por: uma organização do trabalho com mecanização do processo produtivo e forte divisão e especialização das funções, resultando em ganhos de produtividade; por aumentos salariais acompanhando a evolução dos preços e da própria produtividade; uma acumulação pautada principalmente na produção e no consumo assalariado de massa22.
Nessa forma de estruturação do trabalho, não havia uma distinção clara entre a gestão do processo de trabalho individual com a do processo de trabalho total, haja vista que, como um processo de forte especialização do trabalho, apenas o próprio trabalhador seria capaz de avaliá-lo de forma coerente. Nesse sentido, a avaliação não estava descolada do processo de trabalho individual. Assim, avaliar o seu trabalho era função precípua do próprio trabalhador a pena de, se a avaliação não fosse correta, comprometer o andamento da linha de produção.
Dessa forma, a avaliação se constituía uma forma de controle do trabalhador sobre sua própria atividade. Isso era totalmente coerente com a divisão parcelar e especializada do trabalho, em que cada indivíduo possuía a autonomia sobre seu microprocesso, contribuindo com o todo quando realizado em escala. Por isso, era possível ganhos na produção em função de um modo de avaliar que estava submetido ao crivo do especialista do microprocesso. No processo repetitivo, raramente a falha ocorria, e quando aparecia, a avaliação individual rapidamente a detectava.
Entretanto nem sempre foi assim. Com o declínio da lucratividade do setor produtivo, especialmente após a década de 1970, a necessidade de uma reestruturação produtiva passou a ser questionada. A lucratividade financeira passou a ter um papel central, e as empresas multinacionais, cada vez mais proeminentes, submetiam a lógica da produção à exploração do máximo de possibilidades de lucro, desvinculando a produção e o investimento de padrões regulatórios que viessem a promover o crescimento econômico ou manter as condições salariais e de consumo suficientes. A regulação fordista, portanto, entra em crise estrutural.
Agravada pelo choque do petróleo, a recessão de 1973 produziu um movimento de reestruturação econômica e de reajustamento social e político nas décadas de 1970 e 1980, os quais provocaram uma série de novas experiências no campo da organização industrial e da vida social e política.
Para Harvey14, essas experiências podem sinalizar os primeiros movimentos da passagem para um regime de acumulação totalmente novo, relacionado com um distinto sistema de regulamentação política e social. A política estatal passou a favorecer a facilitação da entrada de capitais financeiros. Assim, entende Mascaro13(122), o “planejamento de tipo fordista cede lugar a políticas neoliberais de redução da taxação dos fluxos especulativos”. Nesse contexto, os estados nacionais começaram a apresentar dificuldades em sustentar uma reprodução econômica de bem-estar social.
Nesse cenário, entende Callinicos9, países do Terceiro Mundo que haviam sido incentivados por bancos ocidentais a emprestar durante a década de 1970 foram confrontados com crescentes dívidas e pagamentos de juros, o que criou condições favoráveis para a exportação de políticas neoliberais. Assim, o Consenso de Washington, materializado em 1990, começou a se cristalizar.
Internamente, nos Estados Unidos, a virada para o neoliberalismo, em meio à recessão global de 1979-1982, ajudou a forçar uma contração e uma reorganização da indústria de transformação, em especial, envolvendo confrontos com grupos de trabalhadores organizados, que sofreram uma série de derrotas devastadoras. Na Grã-Bretanha, esse processo culminou com a greve dos mineiros de 1984-1985. Apesar da pressão sobre a produtividade e sobre os salários reais, a taxa de lucro não retornou aos níveis de 1950 e 19609.
Pelos argumentos apresentados por Carchedi e Roberts12, a causa da crise, em primeiro lugar, encontra-se no fracasso da produção capitalista para gerar lucro suficiente em relação ao capital investido. Então, o capital deve autodestruir-se para restaurar a lucratividade e começar tudo de novo, tal qual vimos durante o período correspondente às duas grandes guerras.
Isso significa, para os referidos autores, que uma massa suficiente de capitais mais fracos não rentáveis deve ir à falência, tecnologias antigas devem ser substituídas por outras novas, mais eficientes e o desemprego suficiente deve ser gerado. Seria necessário haver uma destruição maciça do capital acumulado durante os períodos de crescimento e de boom, uma destruição que envolveria o capital na forma de ativo fixo, mas, também, em sua forma financeira. Essa seria uma das alternativas para resolver a crise.
Em paralelo, a literatura7,9,12,19 aponta outras duas soluções. Uma é a exploração de novas frentes de produção, como observamos na abertura de linhas produtivas na China e em outros países do sudeste asiático. A outra saída relaciona-se com a intensificação da exploração da classe trabalhadora expressa, por exemplo, na redução de benefícios sociais e no uso de técnicas/ferramentas de gestão que promovam mais exploração do trabalhador (uma superexploração). Essa última tem sido a estratégia hegemonicamente utilizada, razão pela qual a crise se estende desde os anos 1970 e se mantém até os dias atuais.
A crise em si deve criar a condição de sua própria solução, ou seja, a destruição de capital. Somente quando suficientes quantidades de capitais forem destruídas, as unidades produtivas mais eficientes podem começar a produzir novamente em escala ampliada. Disso resulta que, se o impacto da crise for adiado, também se adia a sua recuperação. Nesse cenário, observamos que, apesar do aumento do número de empregos, a taxa de exploração também sobe muito.
No cômputo geral, a melhora de curto prazo na produção, no emprego, no PIB e na balança comercial esconde os salários reais mais baixos e maior taxa de exploração do trabalho elevando a espoliação a dimensões sobre-humanas. Apesar das aparências, as consequências da desvalorização competitiva são negativas tanto para o capital como para o trabalho; se não imediatamente, em longo prazo12. O neoliberalismo representou o quadro político e ideológico no qual tal reestruturação e reorganização do capital ocorreram9.
A crise segue desde então. Para Mendes1, as políticas neoliberais não dão conta de restaurar a lucratividade no setor produtivo. Essas políticas promoveram uma pequena recuperação da taxa de lucro após a década de 1980, mas também reduziram os salários dos trabalhadores, impondo condições de trabalho mais precárias, principalmente, a partir da redução de gastos públicos sociais. As alternativas construídas em longo prazo envolveram o aumento da taxa de exploração do trabalho e uma desvalorização maciça de capital.
A primeira alternativa não restaurou a taxa de lucro aos seus níveis de 1950-1960. Já a segunda, de desvalorização maciça de capital, foi bloqueada pela decisão de resgate aos bancos. Os salvamentos dos bancos envolveram, no entendimento de Callinicos9, uma variedade de medidas diferentes por parte do Estado, a exemplo das aplicações de capital para reconstruir o capital próprio, bem como a compra de bancos com problemas. Exploraremos mais esse argumento na seção a seguir.
O Estado na lógica do capital comandado pelo capital financeiro
Para uns, o Estado é apenas ideação moderna23, para outros, é derivado das contradições da sociabilidade capitalista24. Nas sociedades pré-capitalistas, o poder econômico e o poder político eram, quase sempre, indistintos. No modo de produção capitalista, por outro lado, observamos que o domínio econômico e o político, em muitas ocasiões, não coincidem em questões específicas13. Nesse processo, o Estado torna-se subserviente à classe que domina economicamente em certo período histórico.
Tomado a partir de sua forma política, o Estado possui relativa autonomia, na medida em que está inserido no emaranhado de relações capitalistas. Para Mascaro13, o Estado mostra-se como um instrumento necessário para a reprodução capitalista ao assegurar a troca de mercadorias e a própria exploração da força de trabalho assalariada. Ele passa a criar mecanismos que separam explorados e exploradores por meio da consolidação das instituições jurídicas.
A real exterioridade do Estado ante a economia é questionada por Poulantzas25(23). Para ele,
[...] esta separação é a forma precisa que encobre, sob o capitalismo, a presença constitutiva do político nas relações de produção e, dessa maneira, em sua produção.
Esse Estado, complementa Harvey26, estabelece a estrutura legal e institucional que serve como canal por meio do qual o capital portador de juros circule nas diferentes atividades, a exemplo da dívida do consumidor e no financiamento de moradias.
Esse mesmo Estado acaba por absorver parte do fluxo desse capital que rende juros na forma de dívida pública. Ainda, cabe acrescentar que as privatizações das empresas de serviço público e o acirramento dos processos de privatização dos sistemas de previdência e de saúde, especialmente nos países de capitalismo avançado, constituem a marca central das políticas governamentais de apoio aos mercados financeiros7.
Esse entrelaçamento do Estado com a economia não pode ser compreendido simplesmente como a dominação política desta em relação àquele. Ou seja, o Estado apresenta uma estrutura material própria que não pode ser reduzida à simples dominação política. Para Castel27, o Estado não é um árbitro neutro entre os interlocutores sociais. Tampouco é um instrumento exclusivo da dominação de uma classe.
Sobre esse aspecto, Poulantzas25 acrescenta que o Estado não é integralmente produzido pelas classes dominantes nem totalmente monopolizado por elas. A dominação política - a partir do poder da burguesia, pois estamos falando de Estado capitalista - está inscrita no que ele chama de ‘materialidade institucional do Estado’. Outra contribuição importante é a de Kliman19, referente ao objetivo das intervenções estatais. Para esse autor, essas intervenções não têm o objetivo de enriquecer os já ricos ou mesmo proteger a sua riqueza, mas têm o propósito de salvar o sistema capitalista.
Ao tratar da urgência de elaborar uma crítica ao Estado, Mészáros11 alerta para o fato de o Estado tornar-se a ‘expressão política do capital’. Este acaba por reproduzir um círculo vicioso historicamente insustentável. Dessa forma, são cada vez maiores os problemas do Estado no processo de aprofundamento da crise estrutural do capital. Isso porque o Estado não consegue oferecer a solução para os problemas que perturbam o cenário atual, vindo por realizar tentativas de medidas corretivas que parecem agravar os problemas, apesar das garantias em contrário.
Entretanto, para Mészáros11, a questão vai muito além das intervenções emergenciais periódicas. Envolve políticas liberais que afetam os direitos dos trabalhadores conquistados na era de ouro do capitalismo. O Estado torna-se um defensor da ordem estabelecida, independentemente dos perigos para o futuro da sobrevivência da humanidade; e isso representa, para o autor, um obstáculo do tamanho de uma ‘montanha’, que não deve ser menosprezado caso se queira transformar a ordem estabelecida. O Estado não se retira da economia nos tempos de vigência do neoliberalismo: ele atua de forma particular na economia.
É no quadro neoliberal que se encontram as políticas econômicas promotoras de desregulamentação e de abertura financeira, iniciadas por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, no início da década de 1980, e continuadas no agigantamento da acumulação financeira a partir dos anos 19907.
Nelas, a massa de riqueza à procura de valorização que não passa pelo circuito da produção encontra espaço. É justamente na Inglaterra e nos Estados Unidos que as políticas neoliberais começam a consolidar-se, promovidas por uma ideologia das classes rentistas em defesa dos espaços do mercado livre para o ganho fácil da finança especulativa1.
Não se vê, portanto, o neoliberalismo com uma simples ideologia de uma classe (burguesa) para aprimorar a opressão da classe trabalhadora, mas como uma orientação geral e como um programa de governo em favor do mercado, que se dirige a dar um suporte estatal mais adequado e eficiente para fazer seguir o sistema capitalista.
Dessa forma, conclui Mendes1, a autonomia do Estado é relativa, pois reflete a própria reprodução capitalista, ou seja, essa autonomia está fixada na dependência estrutural e existencial da reprodução capitalista. Em síntese, o Estado, por meio de sua violência, desempenha um importante papel na reprodução econômica do sistema capitalista.
Na atual crise do capitalismo contemporâneo sob a dominância do capital financeiro, o Estado passa a adotar rígidas políticas promotoras da redução dos direitos sociais, provocando consequências importantes na política de saúde. Nesse contexto, são estabelecidos desafios quanto à universalidade plena do SUS.
Esses desafios refletem-se na avaliação em saúde, a qual passa a ser realizada na lógica do capitalismo financeirizado. A política de avaliação em saúde vem sendo compreendida como positiva caso alcance determinadas metas e resultados em uma perspectiva caracterizada por um modelo capitalista de produção, a qual estabelece a política pública como sendo uma política de resultados com base nas leis de mercado.
A ideologia do produtivismo na avaliação em saúde
No contexto do capitalismo contemporâneo, sob a tutela do capital financeiro, toma forma o debate sobre a fragilidade das políticas públicas e sua relação, especialmente com a saúde. Inserida na lógica do capital financeiro, podemos enxergar a natureza contraditória da política pública: de um lado busca fazer saúde, mas, de outro, responde (com mais afinco) à lógica do capital em manter o processo de acumulação.
Estamos, portanto, vivendo um processo no qual a lógica da política e dos direitos está, cada vez mais, inserida em um processo racionalizador e mecanicista. Assim, torna-se necessário problematizar a contradição que existe entre, por um lado, as conquistas democráticas inclinadas a ampliar e incluir as pessoas e, por outro, a dinâmica de um modelo econômico historicamente produtor de grande desigualdade, condutor do aprofundamento da exclusão.
A lógica utilitarista, refletida na ideologia do produtivismo no processo de avaliação em saúde, está alinhada a esse processo de fortalecimento do capital financeiro em escala global. Essa lógica se verifica, conforme nos esclarece Martins et al.16(10), quando a atividade humana é medida de forma quantitativa e quando os dados resultantes dessa quantificação justificam certas políticas sobre “a vida e a morte, sobre o corpo e a saúde, sobre o pensamento e a ação, sobre a razão e a emoção”.
Assim, em um cenário com predomínio do capital financeiro globalizado, o processo de avaliação em saúde tende a ser permeado pela lógica utilitarista (ou seja, aquela que tem como ética a busca do fim em si mesmo), refletindo a ideologia do produtivismo. O capital financeiro acentua e intensifica a produção por metas, a rotinização, a fragmentação e, consequentemente, o produtivismo em uma lógica de mercado.
O capitalismo, na passagem do padrão de acumulação fordista para o padrão de acumulação flexível, passa a lançar mão de mecanismos de gestão com base no controle da qualidade, subordinando o saber operário ao capital (o saber sobre seu microprocesso de trabalho) para potencializá-lo como fator de produtividade e controle, cujo objetivo é a racionalização orçamentaria. Para isso, o processo de avaliação deve ser destituído do trabalhador individual e ser entregue a gestores especialistas em avaliar o processo produtivo, utilizando-se da avaliação como um processo de controle de gastos e, por conseguinte, de redução de custos28.
Isso teve seu início no primeiro momento da reestruturação produtiva, no modelo Just-in-time, tradicionalmente conhecido como um modelo de gestão para cortar custos e otimizar o processo produtivo ‘sem perder qualidade’. No fordismo, a qualidade era uma preocupação do trabalhador especializado que se preocupava no ‘desempenho’ adequado de sua atividade para que a ‘peça’ obtivesse a qualidade necessária para não travar a linha de produção. Todavia, se antes o desempenho era um atributo/dimensão da qualidade, agora a qualidade é um atributo/dimensão do desempenho.
No Just-in-time, graças à ‘flexibilidade’, a qualidade passou a ser objeto de verificação de membros que não executam a atividade. Portanto, a qualidade deixa de ser uma preocupação do trabalhador individual e é mensurada no processo final por uma equipe especialista em ‘controle de qualidade’29. Foi assim que o conceito de qualidade total se tornou uma forma de gerir a produção focada em resultado e melhoria de processos, minimizar erros e assegurar a qualidade do ‘produto final’.
É nesse esteio que a avaliação ganha uma proporção exterior ao processo de trabalho e útil ao controle do resultado final. Nos processos intangíveis, como no caso da saúde, educação (só para ficar nesses dois setores sociais), a avaliação passa a compatibilizar tudo sob o campo dos números, da quantidade a ser mensurada, ultrapassando os campos admissíveis para a sua atuação. Passa a ser informada pela lógica competitiva privilegiando o resultado e o desempenho. Isso vai contra o tempo e contra as condições necessárias ao pensamento distanciado que exigem a construção de um saber reflexivo e crítico sobre o mundo que nos cerca e ao trabalho paciente do cuidado e da atenção às pessoas15.
Portanto, ao transladar a ideia da avaliação no Just-in-time fabril ao exercício dos direitos sociais, há a construção de uma racionalização de que tudo é passível de avaliação pela mesma forma e que se trata de uma questão meramente técnica, subtendendo, com isso, seus modos de superexploração. Por isso, entende-se, especialmente na saúde, que a avaliação sobre a lógica do produtivismo transforma a ‘avaliação das atividades’ em ‘avaliação do trabalhador’ que as executam, tornando-se mais uma forma de exacerbar a desconfiança, hipocrisia e rivalidade exacerbada15 e, quando não, a ação persecutória.
Nesses moldes, avaliar a situação de saúde da população, na qual o usuário é visto como um consumidor de serviços, aproxima-se dos princípios do modelo neoliberal, no qual o utilitarismo apresenta-se como a filosofia moral e a exploração e o consumo ilimitados são a essência da condição humana16. A avaliação em saúde tende a seguir um modelo normativo, em que a realidade é considerada de forma objetiva e quantificável.
Pela visão utilitarista, a doença é entendida como algo que deve ser combatido de forma isolada, sem relacioná-la com o contexto cultural, social, ambiental ou psicológico no qual está inserida. A busca por novas tecnologias e terapêuticas de cura é constante, mas sem necessariamente haver a preocupação em resolver o que está ocasionando o adoecimento.
Por outro lado, se considerarmos um modelo com foco na integralidade, estaremos concebendo a saúde como consequência de fatos políticos, econômicos e ideológicos, ou seja, resultado de um produto social17. Assim, questiona-se em que medida é possível tornar a forma de avaliação em saúde no SUS um instrumento emancipatório. Emancipatório no sentido de se promover políticas públicas, com ampliação dos espaços participativos e auxiliar na democratização do Estado.
A lógica utilitarista é aplicada em determinados campos, especialmente no das organizações formais, por permitir acertos na tomada de decisão dentro de prazos fixos, recursos limitados e metas a atingir. O problema, segundo Martins et al.16, é quando se tenta generalizar o utilitarismo para todas as esferas da vida social. Essa generalização acaba por ameaçar o SUS visto que, nesse padrão consumista, o usuário é tratado como um consumidor de serviços18.
A expansão da lógica utilitarista com base na ideologia do produtivismo no campo da saúde pública apressa mudanças de padrões e de crenças culturais, com efeitos no capital médico e na lógica mercantil. No capital médico, temos como consequência a busca pelo monopólio das decisões sobre pesquisas científicas, produção de medicamentos e processos de diagnóstico e prescrição médica, sendo estabelecidos como núcleos de poder os laboratórios farmacêuticos, as firmas produtoras de equipamentos médico-hospitalares, as empresas de seguro privado e os grandes grupos hospitalares privados.
Em se tratando da lógica mercantil, esta, de forma especulativa, apropria-se dos recursos públicos destinados à saúde pública por meio de transferências ratificadas por projetos governamentais. Essa lógica médico-mercantil favorece que as práticas médicas sejam reduzidas a um jogo de interesses econômicos e utilitários entre ‘médicos-capitalistas’ e ‘doentes-consumidores’. Nesse contexto, a saúde finda por seguir as regras do mercado, consumindo cada vez mais tecnologias médicas, consultas, exames e medicamentos16.
Diante desse cenário, como garantir uma proteção social para toda a sociedade brasileira em um cenário com predomínio do capital financeiro? Como assegurar fontes de recursos suficientes e seguras para a saúde pública brasileira no âmbito de um Estado atado e constrangido pela dinâmica do movimento do capital? Como emancipar a avaliação em saúde no SUS de um processo de fragmentação baseado na lógica produtivista?
A saúde pública e, especificamente, a avaliação em saúde devem perpassar a intervenção e constituir-se em uma prática social, não se limitando a cumprir regras e normas, mas ser uma ferramenta para a consolidação da democracia, afirmação de direitos e empoderamento dos cidadãos. Nesse contexto, a avaliação em saúde deve ser entendida como um importante elemento de autorreflexão por parte daqueles que atuam na política, e não apenas ser vista como um processo de atribuir valor a uma determinada política, simplesmente para decidir sobre sua continuidade ou não30.
Deve ser percebida como uma democrática ferramenta no sentido de contribuir para o empoderamento dos cidadãos quanto à afirmação de seus direitos18. Para Martins et al.16(16), o caminho a ser trilhado é o de superar a visão de sociedade como uma “soma aritmética de interesses individuais”, que reforça o utilitarismo, mas compreendê-la como ‘redes de pertencimento e de solidariedade’ existentes fora da esfera de ação do Estado e do mercado e que foram intensivamente submetidas e fragmentadas pela lógica utilitarista e individualista. Dessa forma, entendem Gomes e Bezerra18(92), “o SUS, com seus princípios, se constitui como um espaço de resistência dentro do sistema, o que justifica os muitos ataques sofridos”.
Em tempos recentes, novos enfoques ou modelos de avaliação alternativos denominados ‘enfoques emergentes’31 encontram espaço e questionam os modelos tradicionais e positivistas. Esses enfoques, além de visarem à melhoria da gestão dos programas, também assumem o desafio de propor medidas no sentido de impulsionar processos relacionados com a democratização das instituições de saúde, atribuição de poder a determinados grupos ou indivíduos, permanente aprendizado, processos transparentes e fortalecimento da sociedade, em especial, daqueles grupos tradicionalmente excluídos32.
Nesse sentido, podemos compartilhar o pensamento de Mészáros10(41) no sentido de haver um esforço para se transformar a ordem estabelecida em outra, na qual sejam removidos “os perigos de autodestruição da humanidade”. Para esse autor,
[...] não pode haver progresso sem crescimento qualitativamente definido, empreendido para corrigir radicalmente as profundas desigualdades do sistema do capital.
Dessa forma, faz-se necessária a crítica diante da autoexpansão e do crescimento ilimitados do capital, causadores de sérias iniquidades, bem como o questionamento ao tipo de crescimento que queremos: se desejamos, de fato, um crescimento baseado na expansão do capital. Para Mészáros10, um sistema incapaz de fixar limites para a autoexpansão do capital em um mundo no qual os recursos são finitos é, evidentemente, insustentável em longo prazo.
Considerações finais
Vivemos tempos desafiadores para o SUS e, especificamente, para a avaliação em saúde. São desafiadores, pois provocam questionamentos em relação ao processo de avaliação em saúde. Desafios que são a expressão da fase atual do capitalismo, marcada pelo predomínio do capital financeiro que almeja obter lucro com base no capital fictício e parasitário, à medida que ocorre o declínio da lucratividade no setor produtivo.
Com a queda tendencial da taxa de lucro, as economias nos países, para viabilizar suas atividades por meio de suas empresas e alcançarem lucros, migram para o mercado financeiro. Do empréstimo de recursos, começam a decorrer juros em um movimento no qual o dinheiro se transforma em dinheiro sem sair da esfera financeira. Esse modo de lucrar, necessariamente, implica constantes crises, visto que não é possível sua sustentação, pois, sendo um capital parasitário, gera lucros sobre juros, e não sobre a produção.
Nesse processo, estabelecem-se crises estruturais econômicas e globais. Elas não levam ao colapso do sistema capitalista, pois existem alternativas para contorná-las. No entanto, a saída frequentemente utilizada impõe sérias pressões sobre a força de trabalho, resultando na perda de garantias e direitos sociais. Nesse processo, o Estado assume um importante papel.
Considerado um aliado de toda hora do capital, o Estado acaba por incorporar uma agenda em consonância com os anseios do capital financeiro em busca de valorização, injetando dinheiro quando há alguma ameaça de colapso ou, mais frequentemente, realizando desde grosseiras às mais sutis manobras no sentido de retirar garantias sociais historicamente conquistadas.
O Estado, portanto, acaba por se afastar de suas antigas funções relacionadas com a proteção social, ao priorizar a contenção de gasto público. Procura manter a lógica do valor e, por meio de sua violência, desempenha um importante papel no processo de reprodução econômica do sistema capitalista. Vemos a fragilidade do sistema de proteção social estatal e o fortalecimento de um estado com sua face neoliberal.
Esse fortalecimento de um Estado alinhado à lógica do capitalismo globalmente financeirizado implica importantes desafios para o SUS. Trata-se de um Sistema que tem por base os princípios da universalidade, equidade e integralidade dos serviços de saúde, mas que vem concorrendo com a lógica imposta pelo capital. É só observamos, por exemplo, a constante disputa dos recursos destinados para a saúde pública e as tentativas ventiladas sobre a dificuldade de manter o caráter universal do sistema e, para isso, da necessidade de garantir ‘cobertura’, em um sentido mais restrito.
Esse amplo cenário acaba por trazer impactos para a avaliação em saúde no âmbito do SUS. Isso porque a lógica marcada pelo capital financeiro leva em consideração resultados em termos quantitativos, ou seja, quantidade de serviços e produtos médico-hospitalares consumidos traduzidos, por exemplo, na quantidade de consultas realizadas independentemente da qualidade dessas consultas, na quantidade de medicamentos consumidos em uma lógica que desfavorece a proteção e a prevenção das doenças, bem como na quantidade de exames realizados em uma perspectiva que prioriza a média e a alta complexidade.
Conforme esclarecem Gomes e Bezerra17, a inserção da política social em saúde no contexto do capitalismo econômico mundial se dá por meio de um conjunto de bens, serviços, indústrias, equipamentos e tecnologias. Conjunto este entendido pelo sistema capitalista como mercadorias e, portanto, comercializáveis.
A medicina oficial assenta-se sobre a expansão do utilitarismo médico de forma direta, a exemplo da expansão das empresas privadas, e indireta, como na redefinição dos orçamentos hospitalares a partir de critérios utilitaristas baseados nos custos da doença, de forma a desconsiderar o que acontece do lado de fora do consultório médico ou nos corredores dos hospitais33.
É uma forma fragmentada de fazer avaliação. Essa lógica de avaliar a saúde é típica de um modelo liberal, no qual o utilitarismo torna-se o motor que movimenta o processo de avaliação. No modo de produção capitalista em geral, e na sua fase contemporânea de dominância financeira, em particular, distanciamo-nos de uma perspectiva humanista, na qual, como nos diz Martins33(21), a “vida teria prioridade sobre a ganância”.
Teoricamente, podemos pensar um ‘modelo ideal’, mas, na prática, há uma série de variáveis impostas à avaliação para esta se tornar, de fato, reconhecida como um elemento importante no processo de desenvolvimento e manutenção do SUS. Tais variáveis não devem ser desprezadas nem acometidas por interesses que refletem o modelo hegemônico atual, no qual impera o capitalismo financeirizado.
Em todo o caso, a avaliação em saúde pode servir a interesses hegemônicos e contra-hegemônicos, a depender da escolha feita. Podemos fazer a escolha - e a fizemos - por enfoques emergentes que procuram fazer a crítica ao processo de avaliação baseado no utilitarismo e no produtivismo. Emergentes no sentido de buscar democratizar as instituições de saúde, de atribuir poder a grupos ou indivíduos, de dar transparência aos processos e de fortalecer a sociedade. Há o reconhecimento de que o Estado está sob a proteção do grande capital financeiro, mas devem ser abertos espaços de discussão na perspectiva de construirmos um diálogo visando à construção de um processo avaliativo que esteja direcionado à uma política de saúde emancipada.
Há necessidade de fazer essa crítica, de externalizar o processo atual de avaliação em saúde no contexto da crise do capitalismo contemporâneo. Isso porque acreditamos que a avaliação no SUS deve, aos poucos, emancipar-se dessa lógica imposta pelo capitalismo financeirizado, no qual importa mais o consumo dos serviços do que propriamente a saúde das pessoas.
Estamos cientes da complexidade e da dificuldade de propor algo na contramão da lógica atual, ou seja, da lógica do capitalismo financeirizado sempre à procura da maximização dos lucros para enfrentar a crise atual que vem se arrastando por décadas. No entanto, é um horizonte que deve ser vislumbrado e, a partir dele, dar passos iniciais rumo ao que chamados de emancipação da avaliação, a partir de um processo mais abrangente e solidário.
Neste estudo, questionamos como a avaliação em saúde no SUS pode encontrar alternativas para se contrapor à lógica financeira que se estabelece no campo da saúde pública. Nesse processo, algumas questões se mantêm consistentes: que tipo de avaliação estamos realizando? Que elementos consideramos quando avaliamos a saúde de uma população? A institucionalização da avaliação é suficiente para promover uma construção mais democrática da política de saúde e da política do SUS? Que caminhos podem ser construídos no sentido de tornar a avaliação em saúde um processo menos fragmentado, dissociado da lógica produtivista que permeia a saúde pública nesses tempos de crise do capitalismo contemporâneo? Como garantir uma proteção social para toda a sociedade brasileira no âmbito de um Estado atado e constrangido pela dinâmica do movimento do capital?
Sabemos da dificuldade de produzir respostas, pois estamos falando em emancipar a avaliação em saúde no âmbito de uma sociedade capitalista. Entretanto, essas questões reforçam o reconhecimento de que ganha força a crítica ao processo atual de avaliação em saúde no SUS.
Há poucos espaços nos quais é possível estabelecer um diálogo sobre a emancipação da avaliação dentro da lógica do lucro. Quais serão as estratégias que deverão ser adotadas para emancipar a avaliação em saúde da ideologia do produtivismo presente na fase atual de crise do capitalismo contemporâneo? A resposta caberá àqueles que criticamente questionam os caminhos trilhados pela atual forma de avaliar a saúde pública brasileira.
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Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Nov 2018
Histórico
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Recebido
17 Abr 2018 -
Aceito
21 Ago 2018