Open-access A pesquisa em saúde no Brasil: desafios a enfrentar

RESUMO

O ensaio apresenta reflexões sobre o quanto a pesquisa e o desenvolvimento são capazes de promover um ciclo virtuoso nos sistemas universais de saúde, como o Sistema Único de Saúde (SUS), dotando-os de ciência para a tomada de decisão e de propostas inovadoras, quando consideradas as opiniões de seus usuários. A partir das demandas por 'pesquisa' expostas no relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde, apresenta o cenário atual da pesquisa no Brasil, com ênfase na insuficiência do financiamento e na lacuna entre a produção científica e as práticas em saúde. Conclui apresentando os desafios que devem ser transpostos pelos pesquisadores em saúde para inserir os brasileiros, suas realidades e capacidades na geração de mudança e inovação para o SUS, na redução de desigualdades sociais, a partir de debates sobre o futuro dos sistemas universais.

PALAVRAS-CHAVE Pesquisa e desenvolvimento; Participação social; Sistema Único de Saúde

ABSTRACT

The essay presents reflections on how much research and development are capable of promoting a virtuous cycle in universal health systems, such as the Brazilian Unified Health System (SUS), endowing them with science for decision making and innovative proposals, when considering the opinions of its users. Based on the demands for 'research' presented in the final report of the VIII National Health Conference, it presents the current scenario of research in Brazil, with emphasis on insufficient funding and the gap between scientific production and health practices. It concludes by presenting the challenges that health researchers must translate to include Brazilians, their realities and capacities in the promotion of change and innovation for the SUS in the reduction of social inequalities, departing from debates on the future of universal systems.

KEYWORDS Research and development; Social participation; Unified Health System

Introdução

O Brasil é um país de dimensões continentais, marcado por desigualdades sociais, econômicas e importantes disparidades regionais. Tem, por definição constitucional, um sistema de saúde público e universal descentralizado até o nível dos municípios, o que pode ser considerado característica peculiar e dificuldade adicional, uma vez que há falta de escala requerida para o funcionamento de alguns serviços públicos, notadamente os de saúde, em um país onde 70% de suas 5.570 municipalidades têm menos de 20 mil habitantes1.

Coexiste com o sistema público um sistema privado que cobre cerca de 25% da população, sobretudo aquela de melhor nível de renda e que se acha concentrada, majoritariamente, nas regiões Sul e Sudeste2. Portanto, a maioria da população não tem acesso aos cuidados de saúde, senão pelo setor público. Este, a despeito do subfinanciamento crônico jamais resolvido, independentemente dos governos que se sucederam ao longo do tempo, tem sido capaz de proporcionar melhorias objetivas nos indicadores de saúde da população, conforme atestam numerosas publicações nacionais e internacionais3-8.

Em tal ambiente, como é lógico deduzir, a pesquisa em saúde deve desdobrar-se em múltiplas abordagens, na tentativa de fornecer respostas e pistas de ação que permitam avançar no desenvolvimento. Os temas estudados no Brasil não diferem muito dos que temos visto em outros países9-13: os determinantes sociais da saúde, entre eles, a pobreza e as desigualdades; o acesso e a acessibilidade aos serviços de saúde; o modo pelo qual estão organizados os cuidados de saúde, especialmente os cuidados de saúde primários; as novas tecnologias e seu custo-efetividade; os custos e o financiamento do sistema de saúde; a busca da eficiência da gestão hospitalar; a problemática da força de trabalho em saúde, que engloba a formação profissional, a suficiência da mão de obra e sua repartição no território, entre outros.

A inegável importância da dimensão cultural da saúde14 associa-se a outros elementos que fazem com que a consideração do contexto histórico, político, econômico e social sejam fundamentais para quaisquer tentativas de compreender as necessidades em saúde, o 'porquê' das coisas, as fortalezas, as fragilidades e as oportunidades que surgem ou não durante o percurso da pesquisa e a atuação do pesquisador.

O presente ensaio apresenta reflexões sobre a importância de levar em conta as opiniões do paciente, suas necessidades de saúde e suas expectativas como cidadão ante o seu sistema de saúde. Aponta, ainda, a lacuna muitas vezes existente entre a produção científica e as práticas em saúde e, por fim, discorre sobre os desafios para a pesquisa atualmente.

A pesquisa e a VIII Conferência Nacional de Saúde

Compreender determinados elementos exige que se volte às suas origens. Nesse sentido, compreender a execução das pesquisas em saúde requer que seja revisitada a VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS), ocorrida em 1986 e que deu origem ao Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil.

Conforme se lê do relatório final da VIII CNS, os pleitos acerca da pesquisa científica indicavam: i) potencial estratégico; ii) competência do órgão federal; iii) discussão ampla sobre as linhas de pesquisa; iv) direcionamento em prol da resolutividade de problemas de saúde:

Permanecerão no âmbito da competência do novo órgão federal os serviços de referência nacional e os serviços e atividades considerados estratégicos para o desenvolvimento do sistema de saúde, tais como: órgãos de pesquisa, de produção de imunobiológicos, de medicamentos e de equipamentos. As linhas de pesquisa desenvolvidas nas áreas de saúde devem ser amplamente discutidas entre as instituições de pesquisa de serviços e universidades visando a um direcionamento mais produtivo e relevante na resolução dos problemas de saúde do país15.

Obviamente que a importância dada à pesquisa também requeria locus de atuação e investimentos compatíveis aos objetivos que se pretendiam alcançar. Tais elementos também foram alvo de preocupação da VIII CNS:

Neste sentido, é necessário ampliar o espaço de atuação e de investimento público nesses setores estratégicos, especialmente no referente à pesquisa, desenvolvimento e produção de vacinas e soros para uso humano, assim como aprofundar o conhecimento e utilização de formas alternativas de atenção à saúde15.

A estrutura estatal dedicada à pesquisa em saúde está compatível com a pretensão da VIII CNS. No nível federal, alcança minimamente três ministérios: i) Ministério da Saúde, por sua Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos; ii) Ministério da Educação, na área de ensino superior, pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes); e iii) Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Na gestão pública estadual, também estão envolvidas várias instituições, tais como: i) as próprias secretarias estaduais de saúde; ii) aquelas denominas de ciência e tecnologia ou que o valham; iii) as escolas de saúde pública e/ou de governo; e iv) as fundações de amparo à pesquisa, quadro estrutural que se repete em municípios de grande porte. Também estão inseridos os setores produtivos das áreas ligadas à saúde, tanto públicos, quanto privados; as universidades; os institutos; a comunidade científica; colaboradores nacionais e internacionais.

Entretanto, considerados os investimentos em pesquisa, as notícias não são alvissareiras. O gráfico 1, que trata de investimentos em pesquisa sob o aspecto geral, demonstra que a média de investimento público em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, entre os anos 2000 e 2016, foi de 0,55% do Produto Interno Bruto (PIB), ao tempo em que o menor percentual foi 0,48; e o maior, 0,70. Tomados valores totais, ou seja, investimentos públicos e privados, o investimento foi da ordem de 1,11% do PIB, sendo o menor percentual 0,96; e o maior, 1,34. Observe-se ainda que o investimento público foi, no decorrer dos anos, aquele que representou maior aporte financeiro no setor16.

Gráfico 1
Dispêndio nacional em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) por setor, 2000-2016

O pleito da VIII CNS por 'discussão ampla sobre as linhas de pesquisa' e 'direcionamento em prol da resolutividade de problemas de saúde' requer maior detalhamento na abordagem que se segue.

As ofertas dos sistemas de saúde e os interesses dos usuários

De modo geral, os serviços de saúde são estruturados pelo saber acadêmico e pelas diretrizes de gestão, o que, não raramente, comporta uma dose de arrogância ao pressupor que as pessoas que os utilizam não sejam capazes de contribuir para seu aperfeiçoamento por meio de críticas ou opiniões.

É dotado de lógica que, cidadãos que democraticamente construíram um sistema universal de saúde, dele participem em instâncias de monitoramento, avaliação e de decisão. Nesse sentido, o SUS possui governança que articula gestores entre si e com trabalhadores, usuários e prestadores; portanto, trata-se de modelo inovador que considera comissões intergestores e conselhos. Mais ainda, o SUS é produtor e consumidor em uma cadeia de desenvolvimento econômico.

Tais elementos fazem do sistema universal brasileiro um grandioso objeto de estudo, aprendizagem e formulação de soluções, seja para si ou para outrem. Aqui cabe bem a lição de Roy17(18):

O sistema de saúde capaz de aprender consigo mesmo é, portanto, perspectiva pela qual a pesquisa e os cuidados se encontram, em que aprendemos com o que fazemos, com os problemas que encontramos, com as soluções que desenvolvemos, a cada dia.

Para bem avaliar e decidir, não basta a satisfação pura e simples das necessidades de saúde, expressa exclusivamente em indicadores e evidências. Esse tipo de avaliação e de processo decisório já tem merecido críticas. É preciso levar ainda em conta, por um lado, a qualidade dos serviços percebida por quem os utiliza e, por outro, a satisfação das expectativas dos cidadãos com relação ao sistema e aos serviços de saúde16. A associação entre qualidade dos serviços e satisfação de expectativas leva em conta saberes científicos, contextuais, reais e a mensuração financeira pelo alcance de um resultado, e não somente por atos isolados17.

O pesquisador deve deixar-se seduzir pela opinião do usuário, em especial na condição de paciente, por suas necessidades de saúde e seus interesses enquanto sujeito dotado de direitos de cidadania18.

Um sistema de saúde deve ser compreendido como o resultado de uma construção coletiva, fruto de uma escolha da sociedade, que arca com os custos de seu funcionamento por meio do pagamento de impostos19. Assim, é mais que desejável e necessário que a participação dos cidadãos tenha lugar assegurado nas decisões maiores dos sistemas de saúde e na organização de seus serviços. O que se vê no mundo todo, infelizmente, é uma progressiva retração dos espaços de participação social, com raras exceções9,11.

Ainda assim, somente bancos de dados capazes de refletir a prestação de cuidados assistenciais devidamente associados aos contextos e expectativas declarados pelos usuários é que serão capazes de, por meio de pesquisas, identificar possibilidades inovadoras de melhorias, ensejar ciclos ininterruptos de aprendizagem e promover alteração positiva da atuação do Estado, mantendo vivos, pulsantes e socialmente assumidos os sistemas universais.

Para guardar compatibilidade com o que ocorre no âmbito da gestão e da operacionalidade do campo da saúde pública, também o mundo da pesquisa necessita estar atento para essa dimensão da centralidade sobre os cidadãos.

Em grande parte, os estudos visam à satisfação dos interesses governamentais ou institucionais. Os interesses do cidadão também são objeto de estudo, porém de modo muito menos enfático e sem ter sobre eles a busca para a solução de problemas. Cabe exemplificar a afirmativa anterior.

Em primeiro lugar, um estudo de Ocloo e Matthews20, em 2016, afirma que:

Os modelos atuais são muito estreitos e poucas organizações mencionam a autonomização ou abordam a igualdade e a diversidade em suas estratégias de implicação do cidadão. Esses aspectos da participação deveriam receber uma maior atenção, assim como a adoção de modelos e de quadros que permitam ao poder e à tomada de decisão ser compartilhados de forma mais equânime com os pacientes e com o público na concepção, planejamento e coprodução dos serviços de saúde20(626).

Outro estudo, realizado conjuntamente por brasileiros e italianos21, aborda as potencialidades e os desafios da participação cidadã em instâncias colegiadas dos sistemas de saúde dos dois países e conclui que há dificuldades, tanto na questão da representatividade dos corpos colegiais quanto na capacidade dos porta-vozes dos cidadãos em exercer sua influência nos processos de decisão dos dirigentes. Os autores concluem com a seguinte indagação:

Em outras palavras, estamos diante de sistemas sanitários auto-referenciais e ainda incapazes de se confrontarem com seus ambientes sociais, ou diante de uma sociedade civil ainda débil e desorganizada, que, até agora, não tem conseguido expressar formas adequadas de protagonismo social e de participação, para aproveitar as pequenas aberturas proporcionadas pelos sistemas de saúde? Talvez ambas as hipóteses estejam certas. Como explicar, de outra forma, a insensibilidade da gerência em relação a algumas propostas de melhoria da qualidade da atenção que não comportam grandes investimentos financeiros ou reorganizações radicais do sistema de saúde?21(2419).

No campo da segurança do paciente, as coisas não são diferentes. Um estudo finlandês de 201622 assevera que:

A participação dos pacientes em sua segurança é ainda insuficiente na prática clínica, e uma ação sistemática é necessária para criar uma cultura de segurança, na qual os pacientes sejam considerados como parceiros em pé de igualdade na promoção de cuidados seguros e de alta qualidade22(461).

Compete ainda mencionar um estudo brasileiro sobre acesso, prática educativa e autonomização dos pacientes portadores de doenças crônicas23, que conclui:

Os usuários apontam a existência de algumas barreiras geográficas no acesso à saúde gerando fadiga e falta de estímulo, e ocasionando baixa continuidade do tratamento. Observou-se que a adesão e a prática do cuidado estão intimamente ligadas ao atendimento diferenciado, baseado na confiança e no respeito aos anseios dos usuários. Estes consideram a orientação e a educação em saúde como elementos principais para incentivar a prática do cuidado de si mesmos. Torna-se necessário reestruturar a conduta dos profissionais inseridos na Estratégia de Saúde da Família, uma vez que esta tem como função a promoção da saúde, em uma lógica intersetorial e interdisciplinar23(2923).

Seria correto afirmar que o acúmulo de evidências já produzidas é suficiente para alavancar maior grau de desenvolvimento no nível da saúde das populações. É bem verdade que alguns países têm conseguido mais progressos que outros, mas, de modo geral, no campo da ciência, há muitos conhecimentos e ensinamentos mal administrados; no campo das evidências, os dados ainda são pouco utilizados; no domínio dos cuidados, as experiências são mal captadas ou utilizadas, sobretudo quando isso se refere ao usuário. Assim, urge que se preencha a lacuna existente entre o conhecimento e a ação24.

A lacuna entre o 'saber' e o 'fazer'

Faz-se necessário compreender as formas pelas quais seja possível integrar as evidências científicas na prática cotidiana, tornando-as aplicáveis, resolutivas e mais atraentes. Passam por esse cenário a compreensão e a resposta aos distintos interesses de todas as partes envolvidas.

A pesquisa acadêmica, por vezes voltada unicamente à satisfação dos interesses pessoais do pesquisador, não encontra ressonância entre os profissionais de saúde e entre os usuários porque, em grande medida, não dialoga com seus interesses e necessidades. Além do mais, é importante atentar para o fato de que as relações entre saúde e cultura são de tal importância que, muitas vezes, evidências válidas para uma determinada população não podem ser automaticamente aplicadas a outras.

Os sistemas precisam aprender consigo mesmos. A aprendizagem está alicerçada tanto na busca de solução para um problema denotado pelas práticas quanto pela performance do sistema de saúde25. Entretanto, a mobilização de conhecimentos para a busca de soluções deve passar pelos usuários, detentores do contexto real.

Roy leciona que após a identificação da problemática, suas causas e a solução inovadora, o desafio está em sair de 'um projeto-piloto bem-sucedido' para 'o nível do sistema':

O terceiro passo é passar desse conhecimento para o problema, suas causas e as soluções inovadoras para aumentar a performance geral do sistema. Trata-se, aqui, de um dos principais desafios contemporâneos dos sistemas públicos de saúde: passar de um projeto-piloto bem-sucedido para um escalonamento bem-sucedido no nível do sistema17(28).

Essa é a lacuna que precisa ser ultrapassada. Entretanto, esse desafio exige que haja aporte teórico, projetos e financiamento compatíveis, e não haverá soluções inovadoras se executadas as mesmas ações. O campo da pesquisa deve estar apto à promoção de mudanças, à mobilização de novos conhecimentos, à proposição de soluções e consequente alteração positiva das necessidades.

As tendências da pesquisa em saúde

É indispensável a melhoria na 'encomenda' dos estudos científicos, procurando também buscar, sempre, a implicação de profissionais e usuários, ouvindo quais são seus interesses e necessidades. Isso só será possível quando se partir do princípio de que gestores, profissionais de saúde e cidadãos precisam interagir sinergicamente. É preciso construir espaços de diálogo e de comunicação para que a pesquisa possa buscar as respostas que satisfaçam às perguntas de todos, levando-se em conta a diversidade cultural e as particularidades envolvidas.

A pesquisa também necessita estreitar seus vínculos com as novidades que procuram colocar as dimensões anteriormente mencionadas em evidência; precisa contribuir para os sistemas de saúde que buscam aprender com suas próprias experiências e com aquelas de outros sistemas, tanto nos seus erros quanto em seus acertos; necessita interessar-se em descobrir os melhores meios de ouvir as pessoas e delas extrair ensinamentos e novos rumos a seguir, bem como contribuir para o fortalecimento dos espaços de discussão e de decisão da sociedade com respeito a seu sistema de saúde. Deve, ainda, voltar-se para o estudo sobre os novos papéis desempenhados pelas profissões de saúde, para o uso de novas tecnologias que contribuam para a maior autonomia do paciente e para sua maior participação nos rumos, estratégias e organização dos sistemas e serviços de saúde.

Importa um texto publicado pela revista do Observatório Europeu de Sistemas e Políticas de Saúde26:

O Ministério da Saúde do País de Gales introduziu a política prudente de saúde, a fim de transformar a prestação de serviços através da autonomização das pessoas graças a um melhor conhecimento da saúde e ao envolvimento dos pacientes no processo de tomada de decisão clínica, na autogestão e no planejamento dos cuidados. Os cuidados de saúde prudentes buscam minimizar as intervenções e a maximizar sua eficácia. A política coloca as pessoas no centro da tomada de decisão, trabalhando em parceria com os pacientes, a fim de coproduzir um plano de ação com responsabilidades compartilhadas. Uma atenção particular foi dada às implicações para o pessoal de saúde, relacionadas ao primeiro fundamento de 'falar da centralidade sobre as pessoas'26(30).

Por fim, deve estudar os reais benefícios das relações público-privadas na área da saúde, não apenas em termos de ganhos do ponto de vista gerencial, mas em termos de benefícios objetivos em matéria de qualidade assistencial e de satisfação dos usuários.

Expectativas e cenário brasileiro para a pesquisa científica

Em que pese o fato de a pesquisa e o desenvolvimento constituírem-se em um setor estratégico e de as demandas serem evidentes, o Brasil aparece apenas em 13º lugar na publicação de artigos científicos, à frente dos países da América Latina, e com impacto da citação ainda baixo, mas em crescimento, tudo conforme os dados do 'Research in Brazil'27.

O já mencionado relatório indica que a curva de publicações brasileiras é ascendente, capitaneada pelas seguintes instituições: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o que reitera as já mencionadas desigualdades regionais27.

As principais áreas de publicação são: medicina; ciências agrícolas e biológicas; bioquímica, genética e biologia molecular; física e astronomia; química, o que reflete os interesses industriais no País ou ainda, por terem os brasileiros trabalhado com mais parceiros internacionais, o que se constituir em reflexo do interesse global do capital.

Cumpre mencionar que, no período de 2010 a 2017, a pesquisa nacional obteve relativo incremento orçamentário e executou programa de visibilidade denominado 'Ciência sem Fronteiras', o que possibilitou que mais de 90 mil estudantes (graduação e pós) fossem a relevantes universidades estrangeiras. Atualmente, enquanto a Coreia do Sul e Israel investem mais de 4% do seu PIB em pesquisa, a Europa aplica cerca de 3%; os Estados Unidos aplicam 2%; e o Brasil, apenas 1% em cálculo arredondado27.

Na tentativa de dar cabo ou minimizar dificuldades de ordem logística, bem como alterar insumos, estruturas, equipamentos, relações público-privadas, importações, entre outras tantas, ocorreu a alteração legislativa da chamada Lei de Inovação (Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004) pela Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016 e também pela Emenda Constitucional nº 85/2015, sobre as quais vigoram críticas de relativização da proteção do mercado interno.

A vigência da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, conhecida como 'Emenda do Teto de Gastos', paralisa durante duas décadas o incremento dos gastos públicos e tem ocasionado crescentes contingenciamentos, quiçá cortes, nos valores financeiros a serem despendidos pela União, tanto para o setor saúde quanto para os demais.

Os anos 2018, desde agosto, e 2019, desde março, foram marcados pelos avisos da Capes acerca da insuficiência orçamentária e financeira para arcar com as despesas das bolsas dos pesquisadores brasileiros durante os respectivos exercícios fiscais. Tais bolsas têm historicamente valores pouco atraentes, e atualmente a situação é ainda mais alarmante: graduação (R$ 830 mensais), mestrado (R$ 1,5 mil mensais) e doutorado (R$ 2,2 mil mensais), sobre as quais não estão presentes direitos trabalhistas28,29.

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)28 e a Academia Brasileira de Ciências (ABC)30 têm-se posicionado sobre o risco de brain drain (fuga de cérebros). Em 'dia' seguinte ao estímulo para que jovens aderissem à pesquisa científica, houve grande desaceleração, especialmente financeira, colocando em risco o futuro do desenvolvimento nacional:

Temos observado novamente um movimento forte de fuga de cérebros. Tanto pessoas que estão no exterior e não veem condições para voltar, quanto pesquisadores que estão aqui e vão para fora a fim de dar continuidade a suas pesquisas. É isso que precisamos evitar! (Roseli de Deus - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC)28.

No Brasil, as autoridades econômicas estão preocupadas principalmente com a contabilidade, sem proporem uma agenda nacional de desenvolvimento. Não adianta só fazer cortes, é preciso ter uma ideia clara de aonde se quer chegar. [...] É importante começar a recompor o orçamento para a área. Isso é urgente, até para dar uma sinalização otimista para manter os jovens pesquisadores no Brasil (Luiz Davidovich - da Academia Brasileira de Ciências - ABC)30.

A análise geral indica que, muitas vezes, soluções para as crises econômicas requerem investimento no setor, e não redução, menos ainda significativa e de forma abrupta. Reiteram que a 'exploração do petróleo do pré-sal', 'o aumento da produtividade da soja' e a 'rápida resposta à epidemia de zika' são o retorno à sociedade dos investimentos de longo prazo em pesquisa e inovação.

Vislumbram-se perigo e risco de solução de continuidade na produção científica brasileira, majoritariamente produzida na pós-graduação, que ocasionará impactos na economia, na saúde, na agricultura e em todos os setores dependentes da inovação.

Ao considerar que a desigualdade social brasileira já colabora para que poucos tenham acesso às universidades, diz-se consequentemente que poucos têm acesso à pesquisa e à produção científica, na medida em que universidades e setores ligados à pesquisa são fortemente elitizados, o que é marcado como diferencial desfavorável ao Brasil quando comparado a outros continentes.

Considerações finais

Algumas preocupações vêm à tona. As primeiras concentram-se no campo da pesquisa e desenvolvimento. O cenário atual denota que o futuro é incerto para os pesquisadores já inseridos no segmento acadêmico e de produção do conhecimento. Incerto também está para aqueles que, já na graduação, não possuirão apoio estatal para que se dediquem ao desenvolvimento acadêmico científico e que, por necessitarem trabalhar, podem, em alguma medida, afetar a qualidade da pesquisa, minimamente em seu tempo de produção.

Outro ponto de reflexão é que a sociedade brasileira somente recentemente tem-se mobilizado com o objetivo de impedir reduções transitórias ou retração definitiva no campo da pesquisa. Contudo, não há mobilização suficiente para promover incremento financeiro na pesquisa e desenvolvimento, seja no âmbito público e/ou privado, o que dá ao cenário um tom de desesperança, mantendo os investimentos, décadas a fio, em percentual próximo a 1% do PIB.

Outro grupo de preocupações, que só serão dizimadas após as primeiras, diz respeito às pesquisas destinadas aos sistemas universais de saúde, em especial, ao SUS. Para construir um ciclo virtuoso entre o saber, o fazer e o aprender, é necessário que os resultados sejam medidos em suas várias dimensões, não se restringindo a dados gerais e de financiamento, mas mensurando-se, sobretudo, os impactos produzidos sobre ações ou serviços de saúde e seus benefícios finais aos usuários. Ao fim e ao cabo, é preciso entender os anseios dos brasileiros, seus contextos, suas dificuldades e, principalmente, suas capacidades na geração de insights e estratégias de mudança e inovação. Mais que isso, é preciso que a pesquisa atue em prol da qualificação da gestão, mas de forma a responsabilizar todos os envolvidos em um sistema universal de saúde capaz de remodelar estruturas sociais em prol da redução de desigualdades.

Não é tarefa simples, menos ainda tarefa fácil. Todavia, é preciso persistir e ir além. De forma concomitante, são necessárias as lutas pelo vital incremento financeiro no setor saúde e na pesquisa e, também, a garantia de existência de mecanismos objetivos para que os cidadãos possam ter satisfeitas suas necessidades e expectativas com respeito à saúde, incluindo-se as atividades de pesquisa a ela vinculadas. Sobre esta, o diferencial pode estar no poder transformador da qualificação da demanda, de modo a aproximá-la das necessidades dos usuários do SUS, fazendo com que os parcos reais consigam fazer o sistema universal brasileiro desenvolver-se nas mais promissoras direções.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2019
  • Aceito
    16 Out 2019
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