Open-access Processo Circular: avaliação no cotidiano da gerência de Unidades Básicas de Saúde

RESUMO

O Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado é oferecido no contexto de qualificação da gestão da atenção básica, por meio de parceria entre o Ministério da Saúde e a Universidade Federal Fluminense. Seu propósito é apresentar ferramentas com valor de uso para o cotidiano dos gerentes. Nesse contexto, uma das ofertas para trabalhar as relações cotidianas é o Processo Circular. Este artigo teve como objetivo avaliar a aceitação e a aplicação dessa ferramenta por gerentes de Unidades Básicas de Saúde. Pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, com análise a partir do banco de dados secundários, que continha 376 formulários preenchidos pelos egressos do curso. Foram objeto de análise as respostas relativas à questão aberta não obrigatória (n=321), que solicitava ao aluno que identificasse um efeito positivo que poderia ser atribuído ao Curso. Foi realizada busca textual das palavras ‘circular’ e/ou ‘conflito’, sendo identificadas 62 respostas contendo pelo menos uma dessas palavras, constituindo-se no corpus final de análise. A análise permitiu reconhecer que a ferramenta Processo Circular potencializa a formação de um perfil de gerente mediador e facilita o processo de trabalho, apoiando as ações dos gerentes de Unidades Básicas de Saúde.

PALAVRAS-CHAVE Gestão em saúde; Atenção Primária à Saúde; Conflito

ABSTRACT

The Improvement Course in Management of Basic Health Units, Clinical and Care Management is offered in the context of qualifying primary care management, through partnership between the Ministry of Health and the Fluminense Federal University. Its purpose is to present tools with use value to the daily life of managers. In this context, one of the proposals to work on daily relationships is the Circular Process. This article aimed to evaluate the acceptance and application of this tool by managers of Basic Health Units. It is a qualitative, exploratory, and descriptive research, with analysis of secondary database, which contained 376 forms completed by graduates of the course. The object of analysis was the answers to the non-compulsory open question (n=321), which asked the student to identify a positive effect that could be attributed to the Course. A textual search for the words ‘circular’ and/or ‘conflict’ was carried out, and 62 answers containing at least one of these words were identified, constituting the final corpus of the analysis. The analysis allowed us to recognize that the Circular Process tool enhances the formation of a mediating manager profile and facilitates the work process, supporting the actions of managers of Basic Health Units.

KEYWORDS Health management; Primary Health Care; Conflict

Introdução

O Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado, coordenado pela Universidade Federal Fluminense a partir de demanda inicial do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, tem apresentado e problematizado ferramentas capazes de viabilizar novos arranjos no enfrentamento dos desafios micropolíticos do cotidiano de Unidades Básicas de Saúde (UBS).

A gestão de serviços de saúde permanece um desafio para a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Apesar da ampliação das ações e dos serviços ofertados, persiste a necessidade de construir uma rede contínua de cuidados integrais, de forma a integrar os diferentes pontos de atenção, otimizar a aplicação dos recursos do SUS e consolidar sua legitimidade com os usuários1.

Na realidade, diversos são os problemas para o cuidado em saúde, e estes não são exclusivos do sistema de saúde brasileiro. Um desses problemas é a fragmentação dos serviços que dificulta a produção do cuidado integral aos usuários2. Muitas iniciativas e modelos de organização da Atenção Primária à Saúde têm sido implantados como resposta ao desafio de organizar os sistemas de saúde para responder ao descompasso entre as condições de saúde das populações e a capacidade de enfrentamento pelos sistemas de saúde3.

Torna-se necessário que a gestão dos serviços de saúde adote políticas ativas e diferenciadas de forma a se ocupar com ações capazes de assegurar uma distribuição equitativa dos recursos e a universalidade do acesso à saúde4. As reformas dos sistemas de saúde nos anos 1990 abordaram os problemas de uma perspectiva economicista, reduzindo-os a questões financeiras, de escassez ou má distribuição de recursos5. Desse modo, as questões ligadas a usuários e trabalhadores da assistência e da gerência tiveram importância menor do que a busca de soluções vinculadas à eficiência e ao alcance do melhor custo-benefício nas ações e serviços.

Nesse contexto, começaram a ser desenvolvidos estudos e experimentações que pudessem representar possibilidades capazes de melhorar a qualidade dos serviços ofertados. A gestão do cuidado em saúde pode ser definida como o provimento ou a disponibilização das tecnologias de saúde, de acordo com as necessidades singulares de cada pessoa, em diferentes momentos de sua vida, visando seu bem-estar, segurança e autonomia para seguir com uma vida produtiva e feliz. É importante destacar a porosidade entre a micro e a macropolítica nos processos de produção do cuidado. Para tanto, deve-se traduzir a ‘externalidade’ (gestores, pesquisadores, gerentes) e a ‘internalidade’ (as equipes que fazem o cuidado), possibilitando maior permeabilidade entre essas esferas. No entanto, ressalta-se a riqueza do nível micropolítico para a adoção de práticas diferenciadas de gestão à saúde, uma vez que a gestão do cuidado se realiza em múltiplas dimensões6.

Neste texto, pretendemos abordar especialmente uma destas: a dimensão organizacional do cuidado, na esfera da atenção básica à saúde. Cabe destacar que a centralidade da gestão em saúde está na organização do processo de trabalho, na definição de fluxos de atendimento e na adoção de dispositivos compartilhados pelos profissionais, tais como: agendas, protocolos, reuniões de equipe, atividades de planejamento, avaliação, entre outras6.

Vários autores, porém, destacam que essa dimensão se apresenta em serviços de saúde marcados pela divisão técnica e social do trabalho, pela dificuldade do trabalho em equipe e pela ausência de atividades de coordenação e comunicação entre pessoas6-9. Nesse sentido, são reconhecidas diferentes concepções e tipologias de conflitos entre trabalhadores e gerentes, estando estas relacionadas com a falta de colaboração no trabalho; com o desrespeito decorrente de relações assimétricas entre trabalhadores; com o comportamento do funcionário-problema; com os problemas pessoais; com a assimetria com outros níveis de gestão e com a infraestrutura deficitária dos serviços10.

O conflito é sempre consciente, e sua eclosão e desenvolvimento ocorrem tanto por distintas posições que os atores envolvidos ocupam nas estruturas como por intencionalidades opostas desses. São fenômenos, fatos, comportamentos que, na vida organizacional, constituem-se em ‘ruídos’, podendo ser observáveis ou encobertos. São observáveis aqueles conflitos que exigem tomadas de providências do gestor ou encobertos os que circulam nos ‘bastidores’ e que, nos sistemas de gestão mais tradicionais, não conseguem ocupar a agenda da direção11.

O Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado é oferecido no contexto de qualificação da gestão da atenção básica na agenda pública e apresenta ferramentas voltadas para a abordagem de conflitos por meio das chamadas Práticas Restaurativas. Os círculos da paz são reconhecidos como uma prática restaurativa inscrita dentro de estratégias adotadas pela Justiça Restaurativa, com base em saberes de comunidades indígenas, principalmente do Sudeste Asiático e do Canadá12. São recomendados pela Organização das Nações Unidas e estão ganhando reconhecimento pela capacidade de gerenciamento de conflitos e pela aplicação em diversos campos da vida social.

Práticas restaurativas são aquelas em que uma pessoa assume o papel de facilitador e auxilia as demais (direta e indiretamente envolvidas) a realizarem um processo dialógico visando transformar uma relação de resistência e de oposição em uma relação de cooperação e colaboração. Nesse processo, os envolvidos decidem coletivamente como lidar com circunstâncias decorrentes do ato conflituoso. A ideia é promover reflexão, restauração e responsabilização, permitindo o fortalecimento das relações e dos laços entre as pessoas12. Já é conhecida a aplicação de práticas restaurativas na justiça e na educação13-15. No entanto, são poucas as experiências teoricamente fundamentadas no campo da saúde.

O Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado foi elaborado para dar conta dos problemas do cotidiano de UBS, e a gestão de conflitos constitui uma das questões mais frequentes com que se deparam os gerentes. Por outro lado, com frequência, a abordagem de conflitos é uma das questões em que a gestão na saúde menos se debruça, estuda e incorpora às atividades cotidianas11.

No movimento de prospecção e seleção de ferramentas para a abordagem de conflitos na atenção básica, considerou-se que a incorporação do Processo Circular (PC) seria interessante por sua potência de responder a diversos objetivos, tais como: trabalhar valores humanos essenciais (participação, respeito, responsabilidade, honestidade, interconexão, empoderamento e solidariedade); restaurar relações afetadas pelo conflito; construir relacionamentos e fortalecer a singularidade de cada um.

Destarte, este artigo teve como objetivo avaliar a aceitação e a aplicação da ferramenta PC na gerência de UBS a partir da proposição do Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado.

Métodos

Desenvolveu-se pesquisa exploratória e descritiva. O estudo foi exploratório e de natureza qualitativa, no sentido de descobrir ideias e intuições, na tentativa de adquirir maior familiaridade com o fenômeno pesquisado. Nesse sentido, estudos exploratórios possibilitam aumentar o conhecimento dos pesquisadores sobre os fatos, permitindo a formulação mais precisa de problemas; e são úteis para diagnosticar situações, explorar alternativas ou descobrir novas ideias16,17. Nesta pesquisa, pretendeu-se investigar a aplicação de uma ferramenta de abordagem de conflitos, na perspectiva de contribuir para a construção do conhecimento na área. Por outro lado, o estudo foi descritivo na medida em que procurou descrever características de uma determinada população ou fenômeno, sem assumir o compromisso de explicar os fenômenos descritos, embora seus resultados possam ser base para tal explicação18,19.

Utilizou-se o banco de dados secundários pertencentes ao Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado, que reuniu as avaliações de alunos concluíntes, realizadas no período de 1º a 31 de julho de 2018. O questionário foi elaborado e disponibilizado pela coordenação do curso, via ambiente de aprendizagem, utilizando Google Forms®. Continha questões fechadas voltadas para a avaliação dos conteúdos propostos pelas Unidades de Aprendizagens e uma questão aberta não obrigatória – que solicitava ao aluno que identificasse um efeito positivo que poderia ser atribuído ao Curso.

O link foi direcionado aos 504 egressos do Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado, todos profissionais com formação de nível superior em saúde e responsáveis pela gerência de UBS em municípios de todos os estados do País. No banco, foram encontrados 376 registros para as questões obrigatórias e 321 para a questão aberta não obrigatória.

Em uma análise preliminar, foi possível identificar que, entre as ferramentas de apoio ao gerente apresentadas pelo curso, o PC foi particularmente bem avaliado. Em uma escala na qual 1 era o valor mínimo e 4 o valor máximo, o escore máximo alcançou 82,4% das respostas. Comparando com a análise das demais ferramentas ofertadas pelo curso (fluxograma decritor, projeto terapêutico singular e Kanban/gestão de materiais), o PC foi a que obteve o maior percentual no escore máximo (4) e no somatório dos escores (4 e 3).

Definiram-se como objeto de análise as 321 respostas à questão aberta, procurando-se explorar a presença de citação sobre a ferramenta ‘processo circular’. Para essa etapa, todas as respostas abertas foram agregadas em um único arquivo, em que cada respondente correspondeu a uma linha e foi realizada a busca textual das palavras ‘circular’ e/ou’ conflito’. Foram identificadas 62 (19,3%) respostas contendo pelo menos uma dessas palavras, constituindo-se no corpus final de análise.

As respostas à questão aberta dos 62 respondentes foram analisadas segundo os princípios da análise temática de conteúdo que permitem colocar em relevo as informações obtidas, propor inferências e realizar interpretações segundo um quadro teórico. Bardin ressalta que a análise temática consiste em descobrir os ‘núcleos de sentido’ que compõem a comunicação e cuja presença ou frequência de aparição pode significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido20.

Procedeu-se à leitura das respostas de maneira coletiva entre os pesquisadores; e, a partir desse procedimento, foi elaborada uma grade de análise, em que as unidades de análise foram definidas a partir da repetição do conteúdo comum à maioria dos respondentes.

Resultados e discussão

Os aspectos centrais identificados conformaram duas unidades de análise de maior relevância para discussão: Processo Circular como ferramenta formadora de um perfil de gerente; e Processo Circular como ferramenta facilitadora do processo de trabalho.

Processo Circular como ferramenta formadora de um perfil de gerente

Os egressos do curso são profissionais com formação em saúde que exercem função de gerente de unidades básicas ou gestão intermediária na atenção básica, no âmbito exclusivo do SUS. Estes reconhecem a fragilidade de sua formação universitária para lidar com a equipe: “apesar da faculdade, não estava totalmente preparada [...], havia muita insegurança e pouca didática para lidar com a equipe multiprofissional” (C16).

A habilidade para a construção de relações interprofissionais saudáveis e colaborativas é pouco trabalhada no âmbito da formação universitária. Os cursos de graduação brasileiros dedicam pouco tempo para questões fora do modelo tradicional de formação, dito biomédico. Este se baseia em uma visão cartesiana de separação entre corpo e mente, que desqualifica aspectos psicológicos, sociais e ambientais envolvidos no processo do adoecimento do indivíduo, reduzido a um organismo biológico21. Nesse modelo, coexistem o despreparo de trabalhadores para o exercício das suas funções profissionais, o alto custo dos serviços de saúde fundamentados em especializações e a incapacidade de atender às reais necessidades da população.

Além disso, os conteúdos curriculares dão maior prioridade aos problemas de saúde individuais do que aos coletivos e desconsideram fatores psíquicos, afetivos, históricos e culturais do adoecer humano. Nesse modelo, valorizam-se aspectos cognitivos em detrimento de outras possibilidades, tal como o desenvolvimento da capacidade de análise, crítica e elaboração pessoal, e a adequação da formação à realidade também fica dificultada pelo fato de a academia priorizar o que foi legitimado pela ciência tradicional, e não o conhecimento que se origina nos desafios do trabalho. Há pouco estímulo para pensar criticamente a realidade, visando produzir respostas para questões cotidianas, e desconsidera-se frequentemente o aprendizado advindo das situações vividas nos serviços22.

As críticas ao modelo hegemônico de formação das profissões de saúde geraram movimentos que culminaram na publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), direcionadas para os cursos de graduação da área da saúde. As DCN representam uma tentativa de romper com esse modelo reducionista tradicional de formação biologicista e têm influenciado currículos na formação em saúde23.

Uma proposta de formação precisa considerar o encontro com o outro. Assim, criam-se possibilidades para novos arranjos de si, para a construção de novos olhares e para o questionamento sobre certezas. Porém, nesse encontro, também se revelam tensionamentos e conflitos24,25. Atuar como gerente de UBS significa estar, ao mesmo tempo, em diálogo tanto com a equipe de profissionais da assistência e da gestão quanto com o conjunto de usuários que demandam e têm necessidades múltiplas e singulares de cuidado, em que cada um é uma multidão. Todos têm opiniões e participam das construções e críticas relacionadas com a saúde, com a organização do serviço e com o modo como se sentem na vida26,27. Portanto, estar gerente não é uma tarefa trivial, é importante ter conhecimentos e habilidades que permitam exercer esse papel a partir de um referencial acolhedor e mediador de conflitos cotidianos.

A partir da revisão das diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), por meio da Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017, observamos modificações acerca da organização e funcionamento de UBS, além da inclusão da figura do gerente de atenção básica com o objetivo de

contribuir para o aprimoramento e qualificação do processo de trabalho nas UBS, em especial ao fortalecer a atenção à saúde prestada pelos profissionais das equipes à população adscrita28(22).

Cabe ao profissional nessa função, portanto, garantir o planejamento de acordo com as necessidades locais, além de gerir e organizar o processo de trabalho, integrando as ações da UBS com outros serviços.

Nesse sentido, o trabalho dos gerentes guarda potencial para operar mudanças positivas na organização dos serviços de saúde, e cabe aqui destacar a importância de tal movimento estar inscrito na concepção da Educação Permanente em Saúde (EPS). Esta pressupõe revelar, nos processos de trabalho, a complexidade e a articulação dos diferentes problemas e torna evidente a necessidade de estratégias múltiplas, que para serem propostas e implementadas necessitam de articulação com a gestão do sistema de saúde de forma intersetorial, interdisciplinar, multidisciplinar e interprofissional. Nesse sentido, apresenta-se também como uma estratégia de gestão, para que os recursos necessários para organização dos processos de trabalho possam ser mobilizados para enfrentar os desafios da saúde na perspectiva da rede integrada29,30.

Para ampliar a escuta, favorecer a responsabilização e as relações cooperativas dentro das unidades de saúde, é necessário mobilizar dispositivos para a análise do trabalho31. A gestão da educação permanente possibilita a produção de novos pactos e novos acordos coletivos de trabalho no SUS. O foco são os processos de trabalho, envolvendo a gestão, a formação, a atenção e o controle social, seu alvo são as equipes, seu local de intervenção são os coletivos, favorecendo inovações e mudanças das concepções e práticas de saúde, como estratégia indispensável para a consolidação do SUS.

Os trabalhadores precisam aprender a representar mentalmente o seu processo de trabalho, a organizar a informação e a planejar sua execução. Em especial, o trabalhador em posição de gestão deve desenvolver competências-chave, como motivação, trabalho em equipe, boa comunicação, relacionamento interpessoal, equilíbrio emocional, visão sistêmica, capacidade de gerenciar conflitos, saber trabalhar sob pressão, prever e prover recursos, ser criativo e flexível e saber ouvir. Por sua vez, essas competências passam a ser essenciais para uma possível transformação nos processos de trabalho32.

Nesse contexto, a boa avaliação e a adesão à ferramenta, identificadas tanto na questão que dimensiona o valor atribuído as ferramentas ofertadas pelo curso quanto nos relatos contidos nas respostas à questão aberta, mostram o quanto a comunicação e a mediação de conflitos estão no centro do exercício da gerência de equipes de saúde.

O PC ou círculos de construção de paz estão fundamentados no campo da Justiça Restaurativa33-35 e têm sido aplicados em diferentes países. Cabe ressaltar que o Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado fez uma proposição adaptada ao contexto da atenção básica no Brasil uma vez que os círculos têm regras básicas claras, mas que permitem alguma flexibilidade. Há vários tipos de círculos, e estes podem ser adotados como práticas restaurativas diversas, tais como reintegração, perdas, curas, conflitos em equipes, conflitos escolares e outros12,33.

A referencia à construção da ‘paz’ guarda questões importantes como definido por C8: “Processos Circulares! A ferramenta nos ensinou a fazer uma conversa respeitando a ideia do outro”. Nesse caso, a palavra paz é compreendida como a capacidade de lidar bem com a alteridade e com os conflitos na interação social cotidiana, e, portanto, com a qualidade de suas relações e (des)encontros consigo, com os outros e com o ambiente12,33.

Nesse contexto, é fundamental compreender que, em geral, as pessoas têm dificuldades de abertura ao novo. No momento em que algo diferente está se instaurando, a tendência é moldá-lo com base no que já é conhecido e familiar. Assim, cabe destacar que o PC, ou os círculos de construção de paz, não se propõem a (re)inventar os encontros em roda já adotados no campo da saúde, mas procuram fazer tais rodas girarem com maior potência. Dessa forma, no Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado, optamos por apresentar o PC como uma ferramenta gerencial, e não como um método na área social36. Na realidade, como uma ferramenta para a atuação desse gerente, trata-se de abrir o leque de possibilidades, mudando o foco com o qual se percebemos conflitos, em uma perspectiva de recuperação do sentido da restauração dos relacionamentos humanos.

Assim, o curso apresenta o PC como ferramenta de abordagem de conflitos, e defende que não se pode compreender a potência das práticas circulares sem a vivencia destas. Dessa forma, os alunos a experimentam com seu tutor e turma durante um dos encontros presenciais do curso e posteriormente propõem sua aplicação em sua UBS em uma perspectiva de EPS. Assim, tendo sentido o tipo de força/energia e restauração que circula, na forma de sentimentos e motivações diversas, reconexões de sociabilidade, encontro reequilibrante entre desconforto e afeto, potencial de cura de relações, suporte humano e elementos afins, prepara-se para o enfrentamento de questões próprias ao seu coletivo36.

Usei o bastão da fala com muito sucesso no meu processo de trabalho na unidade. Estava com um nível de desgaste altíssimo, pela própria fase de transição que passamos, houve muita pressão pelos indicadores e a forma de se rebelar é exatamente tumultuar o trabalho, não escutar as mensagens transmitidas. O bastão possibilitou organizar as reuniões com os agentes e com os outros profissionais. Foi realmente um sucesso, muito além do esperado. Começamos uma nova fase à partir do uso deste instrumento nas reuniões de equipe. C45.

Para os gerentes, a ferramenta PC contribuiu para melhoria das relações interpessoais e os ajudou a lidar melhor com as equipes, em especial no gerenciamento de conflitos. Nesse sentido, um dos núcleos de sentido produzidos pelo aprendizado a partir do conhecimento da ferramenta PC foi o do deslocamento do perfil gerencial clássico para o exercício de uma gerência mais sensível e comunicativa.

[...] mudou minha forma de comunicar e ouvir, de ouvir e falar. Melhorou minha visão e forma de avaliar as situações de conflito entre a equipe. Me qualificou como gerente pois aumentou a disponibilidade para ouvir o outro. C28.

Contribuiu para eu entender minha equipe e principalmente [...] trocar a lente para avaliarmos os problemas de várias vertentes diferentes. Isso contribuiu muito para que minha gestão passasse a ser uma gestão compartilhada. C44.

Processo Circular como ferramenta facilitadora do processo de trabalho

No desempenho de processos de gerência e gestão em saúde, “as habilidades sociais são hoje mais valorizadas que as técnicas”37(13), pois são elas que vão sustentar as atividades gerenciais relacionadas com a equipe e com os usuários. Uma dimensão do trabalho gerencial é a ‘relacional’, mas “os resultados apontam fragilidade da gerência para lidar com questões cotidianas do trabalho gerencial, especialmente com relações conflituosas”26(579).

Nesse sentido, outro núcleo de sentido indica que um dos principais efeitos da aplicação da ferramenta PC está relacionado diretamente com a perspectiva de mudanças no processo de trabalho.

Artigos sobre gerência em UBS publicados no período de 2011 a 2016 apontam a assunção majoritaria das funções gerenciais de maneira informal por profissionais com formação superior em enfermagem. Nessas publicações, o trabalho gerencial se configura como uma atividade burocrática, pouco reconhecida, realizada por pessoas com pouca experiência, com baixa remuneração, apesar do reconhecimento de sua importancia para a organização do trabalho. As principais dificuldades referidas são: falta de autonomia, influência político-partidária no processo de tomada de decisão, falta de recursos materiais, pouco uso dos instrumentos gerenciais, presença de conflitos e disputas entre os envolvidos assim como desarticulação entre as práticas de cuidados e de gerência. Os estudos indicam como possíveis soluções a profissionalização e a oficialização da gerência, assim como a elaboração de políticas destinadas ao trabalho, o compartilhamento de decisões e responsabilidade entres os envolvidos, o desenvolvimento de atividades de educação permanente e a articulação entre universidades e gestores para repensar a formação da gerência38.

Essas indicações sugerem a falta de instrumentos que ajudem no processo da micropolítica do trabalho, desvelando, em alguma medida, a fragilidade técnica dos gerentes e a falta de redes de apoio e trocas no processo de gestão39. Os alunos escreveram que o PC contribuiu para a melhoria desses processos:

[...] com o processo circular temos conseguido aperfeiçoar o trabalho cotidiano [...] tem sido o principal recurso para lidar com as situações desafiadoras no processo de trabalho. C33.

a ferramenta foi uma das que que mais me motivou. Ela facilitou o trabalho da equipe e o meu trabalho. Teve melhoria na resolutividade dos problemas interpessoais e no processo de trabalho. C5.

melhorou a abordagem para gerir conflitos nos serviços. Conflitos rotineiros encontrados na equipe entre alguns integrantes foram amenizados com uso da ferramenta processo circular. C56.

a ferramenta ajudou na mudança de práticas, reuniões mais efetivas, produtivas, organizadas, planejamentos em equipe. Reorganizei a forma de realizar os fóruns colegiados na UBS. C46.

Observa-se que o trabalho de gerentes de unidades de saúde, além do contexto relacional que inclui a subjetividade dos sujeitos, sofre influência do contexto político e pressupõe articulações com diferentes instâncias de poder. Nesse sentido, o comprometimento em construir relacionamentos antes mesmo da abordagem de assuntos centrais é uma estratégia importante e extremamente intencional do processo. Os participantes descobrem como suas jornadas humanas, por mais diferentes que possam ser, incluem experiências, medos, expectativas, sonhos e esperanças que são similares.

As etapas de construção do círculo geram uma maior conscientização entre os participantes. Os movimentos de abertura do círculo apresentam os participantes um ao outro de maneiras inesperadas, desafiando as suposições que possam ter feito um sobre o outro. A criação das diretrizes de forma conjunta dá oportunidade ao grupo de experimentar afinidades apesar das diferenças.

De maneira intencional, muitas vezes, um círculo não busca objetividade e toma tempo para criar experiências compartilhadas, de forma que a conexão no grupo aumenta o nível de segurança emocional. Esse processo permite que se verbalizem verdades mais profundas, estimula a autoanálise e oferece a oportunidade para o aprendizado coletivo.

Considerações finais

Apesar de sua origem ancestral, os PC ou Círculos de Construção de Paz são uma inovação no campo da saúde bastante interessante, em especial por serem de fácil apropriação e pela capacidade de produção de resultados concretos imediatos. Os círculos possuem características únicas que os distinguem de outros processos de resolução de conflitos, porém podem ser associados a diferentes dinâmicas e possuem aplicação abrangente. Tendo vivenciado uma oficina inicial, os participantes vencem barreiras entre teoria e prática e anunciam a realização dos seus primeiros círculos.

No entanto, como poderosas ferramentas na abordagem de conflitos no cotidiano de unidades de saúde, os círculos podem não apenas restaurar relações interpessoais, mas, principalmente, promover experiências dialógicas bem como a conscientização da humanidade dos participantes, seja em instituições, seja em comunidades.

Por fim, a experiência dos gerentes egressos do Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado mostrou que o PC foi uma ferramenta que teve grande adesão, sendo muito utilizada e bem avaliada. Todavia, a despeito da facilidade do seu manejo e dos resultados alcançados no processo de trabalho dos gerentes, cabe considerar que ela não responde a todas as dimensões do trabalho gerencial.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2019
  • Aceito
    16 Nov 2019
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