RESUMO
A proposta deste ensaio é discutir a micropolítica da gestão e do cuidado em saúde na Rede Básica (RB). Inicia-se pelo que se entende por RB e depois por micropolítica – da gestão e do cuidado. Analisam-se as forças que estão operando no cotidiano da RB que se instauram nos atos relacionais, nos encontros, entre gestores e trabalhadores, entre trabalhadores, entre todos esses e os usuários, constituindo campos de força, que conformam modos de estar no encontro, agenciando processos de subjetivação. Destacam-se cinco forças-valores centrais para que sejam pensados o dentro e o fora do comum dos acontecimentos que ocorrem no dia a dia das práticas de cuidado em saúde: a força-valor trabalho, a força-valor território, a força-valor governo de si e do outro, força-valor clínica-cuidado e a força-valor trabalho em equipe. A aposta em um modo de cuidar na RB centrado na produção de potências para o enfrentamento dos desafios do viver com sofrimento, com o adoecimento e seus desdobramentos em situações diversas e adversas deve contribuir para produção de existências possíveis e favoráveis aos melhores modos de andar a vida, com todos os seus desafios.
PALAVRAS-CHAVE Assistência integral à saúde; Atenção Primária à Saúde; Políticas públicas de saúde; Relações interpessoais; Prática profissional
ABSTRACT
The purpose of this paper is to discuss the micropolitics of health management and care in the Basic Healthcare Network (RB). It starts by what is understood by RB and then by micropolitics – of management and of care. We analyze the forces that are operating in the daily routine of the RB that are established in the relational acts, in the meetings, between managers and workers, among workers, among all these and the users, constituting fields of force, which shape ways of being in the meeting, managing processes of subjectivation. Five central value forces stand out so that the inside and the outside of everyday events of health care practices can be thought of: labor force-value, territory force-value, government of self and government of the other force-value, clinical-care force-value and teamwork force-value. The bet on a way of caring in RB, centered on the production of potencies to face the challenges of living with suffering, with illness and its unfoldings in diverse and adverse situations should contribute to the production of possible and favorable existences to the best ways of walking life with all its challenges.
KEYWORDS Comprehensive health care; Primary Health Care; Public Health Policy; Interpersonal Relations; Professional Practice
Introdução
Este ensaio discute a micropolítica da gestão e do cuidado em saúde na Rede Básica (RB). Iniciamos apresentando o que entendemos por RB e depois por micropolítica – da gestão e do cuidado – na atenção à saúde.
A RB é uma aposta de fazer chegar o cuidado em saúde aos diferentes territórios em que a vida é produzida. Cuidado contextualizado, que reconhece a singularidade da produção de cada existência e também as circunstâncias específicas da vida em cada território, em função de relações que ampliam ou constrangem a potência das vidas. Ou seja, a RB é uma aposta de organizar o cuidado singular, articulando o individual e o coletivo, sendo saúde entendida de modo ampliado, não somente referida ao corpo biológico e seus adoecimentos.
Uma aposta que pede a combinação de múltiplos saberes em saúde, tanto os técnicos, das diferentes profissões, como os produzidos a partir da experimentação da vida em diferentes tempos e territórios. Essa é uma RB que pede interprofissionalidade e compartilhamento com os usuários, seus saberes e viveres, para poder produzir cuidado capaz de ampliar as potências de vida, de favorecer a produção de melhores modos de conviver com problemas que não podem ser resolvidos, de dialogar com a diversidade de modos e sentidos que a vida tem para os diferentes viventes a cada momento.
Essa aposta de organizar a RB como um cuidado territorializado, articulando atenção individual e ações coletivas, começou a ser discutida no Brasil no início dos anos 19601, esteve expressa nos debates da III Conferência Nacional de Saúde e teve o sanitarista Mário Magalhães da Silveira como seu principal formulador.
Movimento interrompido pelo golpe militar, a construção da RB vem sendo experimentada, com diferentes arranjos, desde meados dos anos 1970, em diferentes lugares do Brasil, ganhando capilaridade a partir da construção do Sistema Único de Saúde (SUS).
Essa ideia de RB, assim como a de saúde coletiva, é uma formulação que expressa especificidades da luta brasileira pela saúde como direito de todos e dever do Estado. RB que não se limita a ser o ‘primeiro nível de atenção’, pois traz como constitutiva a garantia de cuidado contínuo, produzido em rede por diferentes tipos de serviços, de saúde ou não. RB que não é simplesmente ‘a porta de entrada’ do sistema de saúde, pois existem várias outras entradas, dependendo dos problemas que levam os usuários a procurar os serviços.
RB que vai muito além da atenção primária em saúde, que se consolidou como uma proposta de organizar a assistência médica2 capilarizada, produzida por um generalista – e que, por isso mesmo, sempre precisa estar acompanhada da oferta das chamadas ações de saúde pública – vacinação, vigilância epidemiológica etc., ofertadas por outras equipes ou serviços3. Nessa RB, tudo isso está articulado nas ações e no cuidado produzidos por equipes de saúde. É da produção dessa RB que vamos falar.
Uma Unidade Básica de Saúde (UBS) é definida pelas políticas de saúde em um plano formal, que estabelece sua finalidade, seu desenho básico, os papéis de gestores, trabalhadores e usuários. Entretanto, não é só esse plano formal da política que define o que se passa em uma UBS, pois no processo de produção da política, em diferentes momentos, prosseguem os enfrentamentos entre forças, que marcam mais ou menos definições e práticas.
Ressaltamos que, derrotadas ou vitoriosas na formulação da política, essas forças continuam atuantes na construção concreta das práticas, atuando como molaridades4. Por exemplo, a força médico-hegemônica, a biopolítica, as do mercado continuam operando e incidindo nos processos de subjetivação, mesmo que as políticas de saúde e seus dispositivos tensionem no sentido da ampliação do conceito de saúde, do reconhecimento da singularidade na produção das existências, da construção compartilhada dos projetos terapêuticos4.
As forças que estão operando no cotidiano constituem campos de disputa, que se instauram nos atos relacionais do campo da micropolítica, nas relações de poder, nas relações intersubjetivas. O que quer dizer isso? Que é nos encontros, entre gestores, trabalhadores e usuários, nas relações que aí se estabelecem, que se instauram os campos de força, que conformam modos de estar no encontro, constituindo processos de subjetivação.
Processos de subjetivação são processos contínuos de tensionamento (produzidos pelas forças em disputa) que conformam os sujeitos no cotidiano da vida; aqui, neste debate, no cotidiano do trabalho e do cuidado em saúde na RB. Eles são marcados pelas molaridades, pelas histórias de vida, pelos efeitos da composição das equipes de trabalho ou de distintos coletivos, pelos encontros com a população de um território e sua história, pelas convicções político-religiosas de cada um e pelo encontro, a cada dia, com os usuários e seus contextos, entre outros4.
Os processos de subjetivação são marcados pela imprevisibilidade dos agenciamentos, quer dizer, dos efeitos mútuos que gestores, trabalhadores e usuários produzem uns nos outros em seus encontros. Por isso, preferimos falar dos processos de subjetivação, e não dos sujeitos. Os processos de subjetivação, enquanto processos, estão em contínuo movimento, são transitórios, passíveis de mudança. Em contrapartida, sujeito pode dar ideia de algo dado, fixo, estabelecido, determinado estruturalmente.
Como dissemos, essas forças – estruturais ou molares – estão atuando, compondo o campo de forças, sempre em disputa com outras forças que tensionam o instituído nas sociedades capitalistas. Ou seja, uma força só existe por existir outra força, intensivamente diferente, atuando no mesmo campo. Onde há uma força atuando em um sentido, sempre há outra operando resistência; e, em geral, nos campos de força, há várias forças em tensão, não somente pares contraditórios.
Assim, as resultantes em cada momento são analisadoras da potência de agenciamento das diferentes forças, pois os processos de subjetivação, apesar das molaridades, são provisórios, em permanente movimento e se expressam por meio de valores, mobilizados pelas forças em tensão.
Desse modo, uma análise micropolítica se propõe a pensar os vários acontecimentos no cotidiano do mundo do cuidado. Por essa dinâmica mutante, de constante disputa e produção, não seria possível mapear e apontar todas as intensividades operando em uma dada situação. Isso porque o acontecimento não é um dado, mas um acontecendo, singular a cada encontro e situação.
No entanto, isso não nos impede de apontarmos para algumas intensividades, emblemáticas, que ganharam visibilidade nas nossas experiências no mundo da RB – por meio dos estudos, pesquisas e de nossas experimentações no campo do trabalho, da gestão e da educação permanente em saúde em vários municípios brasileiros5-8.
Nesse âmbito micropolítico, o objetivo deste ensaio é destacar cinco forças-valores centrais para pensarmos o dentro e o fora do comum dos acontecimentos cotidianos das práticas de cuidado em saúde na RB: as forças-valores trabalho, território, governo de si e do outro, clínica-cuidado e trabalho em equipe.
Força-valor trabalho
As forças-valores que interferem na configuração do trabalho em saúde são decisivas no desenho e nas apostas da gestão (formal e informal) e dos arranjos propostos para a atenção à saúde. Sem a pretensão de esgotar as possibilidades, vamos destacar aqui alguns elementos desse campo de forças.
As práticas de saúde configuram atos produtivos, buscam modificar alguma coisa e produzir algo novo. São trabalho, pois buscam alterar um estado de coisas identificado como problema ou como potencial problema de saúde9. Claro que a definição do que é problema já é, em si, produto das disputas em um campo de forças constituído pela ciência, pelos modos de produção econômica e de produção da vida, pelos sentidos da vida, que variam historicamente.
Logo, o trabalho em saúde está tensionado pelas ‘necessidades sociais’, interferidas pela estrutura produtiva da sociedade e pelos desejos e demandas de seus usuários diretos. Além disso, nos serviços de saúde, os atos de produção e consumo da saúde ocorrem ao mesmo tempo, com a singularidade de que o produto oferecido varia com a relação trabalhadores-usuários, pois as duas partes se afetam e se modificam, configurando uma relação de interseção.
Essa interseção, esse mútuo afetamento, acontece em ato, nos encontros; portanto, o trabalho em saúde se dá em ato. Quanto mais os atos em saúde forem afetados pela singularidade do encontro, maior a possibilidade de produção de respostas que façam sentido para as duas partes, mais vivo o trabalho. Quanto menos afetados pela singularidade, quanto mais orientados por definições a priori (sobre qual o saber válido, quem é o usuário, quais são seus problemas e como devem ser entendidos e enfrentados), maior o predomínio do trabalho morto.
O trabalho em saúde é tecnológico – construído com o uso de tecnologias materiais e imateriais10. Entre as tecnologias materiais, estão todas as ferramentas e instrumentos produzidos para serem usados de modo determinado em dadas situações (equipamentos, instrumentos). Essas, segundo Merhy11, são as tecnologias duras. Há dois tipos de tecnologias imateriais envolvidas no trabalho em saúde11: as tecnologias leve-duras, que correspondem aos saberes estruturados das profissões da saúde – que, em parte, são duras, porque são produzidas e disponibilizadas a priori, mas, em parte, são leves porque podem ser usadas de modo singular a depender da situação e do encontro; e há as tecnologias leves que correspondem a tudo que é utilizado para favorecer o encontro – escuta, empatia, reconhecimento, porosidade, conhecimentos produzidos a partir da experiência e agenciados pelo encontro, entre outros.
Tais tecnologias são indispensáveis ao trabalho em saúde, mas dependendo do tipo de tecnologia que preside o encontro, maior ou menor será seu potencial cuidador, maior ou menor a porosidade para o encontro, maior ou menor a troca e a construção de sentidos comuns. Ademais, os arranjos do trabalho favorecem a presidência de um ou outro tipo de tecnologia, como veremos adiante na discussão das outras forças-valores.
Outro elemento fundamental a ser considerado em relação à força-valor trabalho: ao admitir que o trabalho em saúde acontece em um tipo de encontro em que as partes se influenciam mutuamente, é fundamental o reconhecimento da legitimidade dos saberes, valores, desejos que movimentam os diferentes tipos de trabalhadores de saúde e os usuários. Caso contrário, uns terão voz e outros não. Por isso, é fundamental compreender o próprio trabalho como uma micropolítica, como um campo relacional.
Todas as partes chegam informadas e com uma ideia a respeito do que deve ocorrer naquele encontro – a produção de um diagnóstico, a escuta de uma aflição, uma intervenção que resolva o problema ou diminua o sofrimento, a dispensa do usuário, e outros – sobre como a produção deve ocorrer e qual o papel de cada um. O encontro é carregado de expectativas, a priori, e de interferências mútuas, que dão um caráter de imprevisibilidade ao produto do trabalho em saúde; e como o encontro acontece em ato, ele é parcialmente incontrolável.
Existe uma força-valor trabalho que aposta no controle do trabalho vivo, que desenvolve dispositivos para controlar e padronizar o trabalho segundo critérios a priori, que valoriza determinados saberes, e não outros, que define e fixa lugares e papéis, que considera as normas e as prescrições suficientes para a produção das respostas e condutas. O gerencialismo, que tem imperado nas apostas da gestão em saúde, é tributário dessa força-valor trabalho, produzindo trabalhadores e usuários tensos e insatisfeitos, esmagados e desobedientes, aprisionados e ameaçados.
Existe outra força-valor trabalho que reconhece que, apesar das relações de poder, todos governam o trabalho em saúde em alguma medida, pois todos interferem, todos entram no encontro com suas apostas, criando e disputando determinados valores e produções.
Segundo essa força, para governar o trabalho em saúde, reconhecendo que todos governam e todos disputam projeto, é preciso criar espaços de conversa e escuta, colocar o trabalho em análise para recolher os efeitos produzidos sobre os envolvidos; é preciso tensionar os a priori e criar situações que favoreçam a abertura para os desafios que as singularidades nos impõem. Segundo essa força, o trabalho em saúde, para favorecer a produção do cuidado, precisa ser construído de modo coletivo e compartilhado, e estar sempre em questão. A gestão micropolítica do trabalho e do cuidado em saúde é constitutiva dessa segunda força-valor trabalho.
Força-valor território
O conceito de território tem sido utilizado e desenvolvido em diversos campos de saberes e práticas, inclusive na saúde coletiva brasileira, com múltiplas dimensões e sentidos. Essa polissemia pode ser observada nas diferentes experimentações no campo da RB. Isso adquire muita visibilidade na disputa entre a tentativa de impor uma ideia de território como mapas dos lugares – que definem como distintos coletivos devem ser tratados – e o modo como os usuários e movimentos se posicionam – considerando que território corresponde aos seus processos singulares de construir e de viver suas vidas como Redes Vivas Existenciais12.
O território não se reduz à sua dimensão material; ele é um campo de forças, uma teia ou rede de relações. É construído historicamente, remetendo a diferentes contextos, intensividades e escalas: o si mesmo – como produção de si (territórios existenciais)7 e os lugares de produção da vida (a casa, a rua, o trabalho, o bairro, a cidade, a região, a nação, o planeta).
Território é um conceito polissêmico porque diferentes forças, em distintos momentos, no interior de determinados campos discursivos, apropriam-se da questão e produzem valores diferentes. Não somente campos de saberes e práticas disciplinares, pois, para os povos originários, por exemplo, território se define pela inseparabilidade da constitutividade dos viventes e da Terra-Mãe.
Interessa-nos aqui explorar a força-valor território como campo de tensões que atravessa as práticas de saúde na RB – fundamental, pois a RB foi pensada como possibilidade de cuidado territorializado.
A saúde coletiva e as políticas de atenção básica evocam a formulação de Milton Santos13, que indica o espaço geográfico como uma mediação entre o mundo e a sociedade, um conceito indispensável para a compreensão do funcionamento do mundo. Entretanto, há uma força-valor território operando na RB que levou a que o conceito de território no cotidiano ficasse reduzido a território adscrito, desde as primeiras experiências municipais. Território entendido como delimitação espacial, conhecido a partir de dados demográficos, geográficos, econômicos, sociais, culturais e epidemiológicos.
Há uma força-valor território que mobiliza as equipes a mapear o território geográfico e social dos grupos que serão objeto de cuidado como se esses fossem lugares ‘físicos’. Lugares estes que podem ser plenamente conhecidos a priori, sem a participação efetiva do outro, mediante o uso de certas ferramentas que supostamente permitem conhecer sobre onde e como vivem. Esse conhecimento unilateral frequentemente usado como base para o planejamento de ações de saúde programáticas é limitado para a produção do cuidado em saúde.
Tal força agencia subjetivações que autorizam o agir programático sobre a população adscrita, já que os territórios cobertos pela RB, sobretudo na Estratégia Saúde da Família (ESF), são marcados pela vulnerabilidade social, como pobreza, infraestrutura precária, acesso muito limitado a bens e serviços de todas as ordens. Vulnerabilidade esta que fabrica os que ali vivem como ‘carentes’, ‘portadores de necessidades’, desprovidos de potência. Ainda, essa força-valor agencia o medo e o preconceito, porque a cidade, inclusive trabalhadores da saúde, fecham as janelas dos carros, gradeiam ruas, militarizam-se, enquanto os jornais falam de guerra nos morros, nas periferias, nas favelas. Pouco as conhecem, mas temem seus moradores e os responsabilizam pela violência urbana.
Há outra força-valor território que agencia no mesmo sentido, que mobiliza o ‘conhecer sobre’ para disciplinarizar e controlar comportamentos, modos de viver14. Essa direção está presente quando, por exemplo, utiliza-se inadequadamente os mapas de risco ambiental, tais como aterro sanitário, depósito de lixo, áreas sujeitas a deslizamento, soterramento ou inundação, fonte de poluentes, barreiras geográficas, entre outros. Essa força-valor, mesmo sem desejar, acaba por constranger, culpabilizar e produzir preconceitos em relação à população moradora dessas áreas, que, muitas vezes, vivem nesses espaços por não terem outras opções.
Essa é uma marca da ESF, construída prioritariamente a partir do campo da vigilância à saúde, segundo a qual, além da vigilância direta sobre as casas, a ação no território ficou muito voltada ao ambiente15, sem reconhecer que, sim, os modos de viver nesses territórios são produtores de sofrimentos, mas também de potências e modos próprios de relações que precisam ser reconhecidos e trabalhados em sua singularidade. Singularidade que ‘as ações coletivas’, majoritariamente de educação e orientação, não conseguem contemplar. Esse agenciamento, mais tarde, foi ainda agravado a partir das metas gerencialistas de intervenção sobre a população adscrita.
Essas forças-valores território têm sido amplamente vencedoras no tensionamento com outra força-valor território que reconhece os modos de viver da multiplicidade de coletivos que habitam esses espaços. Coletivos que se constituem singularmente em territórios existenciais, portadores de saberes, desejos e de estratégias para viver (não somente sobreviver), apesar das dificuldades e restrições a que são submetidos.
Pensadores como Milton Santos13, Suely Rolnik e Felix Guattari16 discutem os processos de territorialização e desterritorialização que se inscrevem na produção dos territórios do viver. Foucault14 marca esse campo como política das existências. Campo em que se disputa o viver como obra de arte, como criação e invenção de si e dos outros para si, sempre no campo das relações micropolíticas. Lugares de enfrentamentos de uma multiplicidade de forças saberes-poderes-devires. Lugares de invenção de modos de viver que potencializem mais viveres. Lugares de uma guerra por territórios enquanto devires-vidas.
Força-valor governo de si e do outro
A saúde é um campo de práticas e saberes constituído em cada país de modos e em tempos distintos, como parte dos dispositivos de disciplinarização dos corpos e depois de regulamentação da vida14. Saúde passa a ser um assunto de política pela necessidade de disciplinarizar corpos e pela ocupação das cidades, além de produzir novos valores, como higiene, trabalho, família. Nessa perspectiva, o Estado ‘cuida’ da saúde segundo certos interesses, e a população e os trabalhadores passam a tensionar os limites e sentidos desse cuidado. Sempre que estamos falando de saúde estamos no campo de forças governo da vida dos outros – governo de si17 em uma tensão constitutiva que vai além do campo formal do governo e da gestão.
Na RB – cuidado territorializado, o mais próximo de onde a vida é produzida (não só nas casas) – essa questão se coloca de modo veemente. Estar próximo, conhecer a vida, entender as relações e os movimentos podem servir, ao mesmo tempo, para cuidar melhor e para melhor controlar. A tensão está posta o tempo todo.
Por outro lado, como trabalho produzido na micropolítica do encontro, há um emaranhado de relações, em que todos os envolvidos com a produção do cuidado exercem, em alguma medida, o governo de si e o governo do outro. No complexo e multifacetado mundo do cuidado, “todos governam: gestores, trabalhadores e usuários”9(68).
Os gestores, por meio de políticas institucionais, almejam governar os serviços, os trabalhadores e a população. Os trabalhadores, entretanto, têm seus corpos marcados por conceitos, concepções, interesses e modos de estar no mundo, que interferem na condução de suas práticas, além de serem afetados, dos mais diversos modos, pelo encontro com os usuários. Assim, no trabalho vivo em ato, exercem o governo de si, com alto grau de autonomia, apesar dos desígnios da gestão e dos desejos e demandas dos usuários. Já os usuários exercem seu autogoverno incorporando ou não as prescrições terapêuticas estabelecidas, ou, ainda, buscam governar os serviços e trabalhadores disputando, a partir de seus desejos e concepções de cuidado, os modos de operar os serviços e os encontros.
Nesse contexto em que todos governam, há forças e tensões permanentemente em disputa, em busca da hegemonia de seus projetos, da autonomia, do controle. As forças operam capturando ou agenciando o cuidado, com todos disputando como as práticas de saúde devem ser operadas em distintas circunstâncias.
Em experiências de pesquisa, gestão e cuidado na RB, vimos em acontecimento a força-valor governo de si e governo do outro agenciando gestores, serviços e trabalhadores no sentido das ações de saúde como “práticas disciplinares ou de controle”18(300), a partir de atos prescritivos e protocolos definidos, a priori, por marcadores da clínica e da epidemiologia. Essas práticas, ao produzirem projetos terapêuticos que medicalizam e normatizam as vidas (individual e coletivamente), cerceiam as ações cuidadoras agenciadas no encontro, no campo das tecnologias leves, das afetações mútuas, do trabalho vivo em ato, que podem colocar no centro do cuidado as singularidades e multiplicidades que pulsam nas vidas e nos territórios existenciais e geográficos.
Em muitas situações, portanto, a RB pode operar mais como um dispositivo disciplinarizador dos corpos do que como um dispositivo que ofereça elementos para os usuários viverem suas vidas, enfrentando com potência ampliada os seus problemas de saúde.
As forças biopolítica e biopoder atravessam permanentemente os arranjos e os modos de produzir cuidado nos serviços de saúde. No campo da biopolítica, o corpo biológico é um poderoso ponto de governo dos outros por meio da regulamentação da vida19. No campo do biopoder, um certo saber-fazer dos trabalhadores da saúde agencia modos de fazer no sentido da dominação sobre a vida do outro, prescrevendo modos de viver e produzindo valores para reorientar hábitos e comportamentos.
Nesse processo de governar e disciplinarizar o usuário, vale trazer para a cena elementos que intensificam a força-valor ‘governo do outro’ na dobra governo da vida. Os trabalhadores orientam suas práticas levando fortemente em conta o corpo biológico, e suas ‘anormalidades’. O que são essencialmente valorizados para a definição das práticas de saúde e projetos terapêuticos são o diagnóstico clínico e a busca do ‘normal’ preconizados para os diferentes grupos populacionais20 seja por meio de mecanismos de cura para o corpo doente, seja mediante tratamentos para o corpo saudável não adoecer18.
Uma das forças nesse campo busca agenciar gestores, trabalhadores da saúde e usuários com base em protocolos, procedimentos e prescrições concebidos a partir dos mais recentes avanços científicos e tecnológicos, com medicamentos, equipamentos e comportamentos que prometem produzir a cura ou, ainda, evitar que a doença acometa os corpos biológicos dos indivíduos e coletividades18. É uma força atuante nos serviços de saúde e na sociedade, empoderada pela saúde pública, como uma maneira de categorizar as multidões, buscando intensamente gerir a vida dos outros, agir sobre seus corpos e seus modos de viver20.
Na RB, esse componente disciplinarizador é potencializado pelo predomínio de usuários socialmente vulneráveis. Geralmente são tomados como indivíduos ou coletivos com pouco ou nenhum poder de vocalização e de reivindicação sobre seus desejos e projetos de cuidado; ou como máquinas desejantes equivocadas, muitas vezes nem reconhecidos como desejantes. Nesse contexto, com pouca escuta e sensibilidade às demandas das vidas que buscam o cuidado nas equipes, predominam as forças operadas para o controle sobre os modos de andar a vida dos usuários, e sobre escolhas dos projetos de cuidado, os quais agenciam a captura do trabalho vivo e a diminuição da porosidade para o encontro.
A pouca porosidade acontece quando as equipes, tragadas por ofertas de ‘cuidado’ estabelecidas a priori, com agendas programadas disparadas pela política, gestores ou pela própria equipe, por protocolos e metas a serem cumpridas, não encontram espaço para os desejos e questões trazidas pelos usuários que não sejam consideradas ‘prioridades’ para o serviço. Mesmo espaços potentes para o encontro, como as visitas domiciliares, podem ser capturados e transformados em procedimentos mecânicos ou em momentos de disciplinarização intensiva.
Nesse contexto, o usuário tem duas opções: ‘encaixa-se’ no ‘cardápio’ de ações oferecidas ou exerce de outra maneira a força-valor governo de si e do outro e, a partir de seus processos de agenciamento, assume seu cuidado e adota estratégias próprias para atender suas questões e para fazer uso das ofertas do sistema. Os usuários adaptam as prescrições, desprezando o que não lhes faz sentido, incorporando ações cuidadoras que tenham alguma conexão com suas existências, possíveis de serem operadas em suas vidas. Criam/acionam Redes Vivas Existenciais12 para os ajudarem nesse processo de cuidar de si e dos seus, disputando projetos terapêuticos.
É importante destacar que, ainda que o ‘diagnóstico clínico’ seja o mesmo, o viver o adoecimento é singular a cada vivente; as marcas, as histórias e os contextos que cada um vivencia interferem nos modos de conduzir suas existências. Uma mesma condição de saúde é incapaz de produzir “serialização subjetivante no modo de desejar e produzir a vida”18(295). Entretanto, muitas equipes operam um modelo autoritário de atenção, fundamentalmente prescritivo, previsível e normativo19, sem admitir possibilidades outras de cuidado, cujos sentidos seriam construídos no encontro.
Na micropolítica dos encontros entre os trabalhadores e usuários, não há nada decidido de antemão, há sempre uma disputa entre quem cuida e quem é cuidado. A força-valor governo de si e governo do outro é acontecimento, permanentemente atravessada por forças outras em tensão no mundo da vida e do cuidado.
Força-valor clínica-cuidado
Existe um campo de forças clínica-cuidado, muito importante no encontro entre trabalhadores e usuários na RB, que tem a ver com os saberes reconhecidos como legítimos ou não e com a possibilidade ou não de construção compartilhada de um projeto terapêutico, de modo que ele faça sentido para o usuário e sirva para enriquecer seu viver, apesar dos problemas e sofrimentos com que eventualmente precise viver ou enfrentar.
Como já dito, a base da clínica das várias profissões da saúde é o saber técnico hegemônico, com pretensão de verdade produzida a partir da ciência, que toma o corpo como uma máquina biológica dada, definida, fixa, deslocada das intensidades do viver. Saber técnico produzido de modo fragmentado, em função das especializações. Essa força-valor clínica é alimentada por várias outras forças que contribuem para sua legitimação como verdade – campo de forças do mercado, das indústrias de equipamentos, de remédios, de aparatos tecnológicos, que socialmente ajudam a construir certas verdades sobre saúde, doença e os modos de proteger uma e livrar-se da outra.
Há outro tipo de saber sobre saúde na força-valor cuidado que é o saber produzido a partir da vida, do viver. Esse é um saber do corpo. Tem a ver com sentir-se bem e mal, com e sem forças, com e sem vontade, com reconhecer algo como sofrimento, dor, prazer, como reconhecer o que lhe faz bem e mal, que tem a ver com experimentações da vida em sua multiplicidade em diferentes situações. Esse saber a partir das experimentações do corpo é subjetivante e singular.
A força-valor cuidado, por se constituir a partir da experimentação da vida, atravessa a todos, pois, a qualquer momento, um gestor ou um trabalhador pode se transformar em usuário. Por isso, essa força agencia implicação com o outro, solidariedade com o sofrimento humano, compreensão com as fragilidades, maior sensibilidade às singularidades e multiplicidades existenciais de cada usuário.
Enquanto a força-valor clínica mobiliza o usuário como objeto da ação dos trabalhadores, a força-valor cuidado agencia o usuário como protagonista na produção de sua existência e como legítimos seus modos de sentir e enfrentar sofrimentos, problemas e dificuldades. Agencia o reconhecimento das intensidades do viver que, naquele momento, estão atravessadas pela possibilidade de adoecer, pela doença ou por um sofrimento sem nome definido pela ciência.
Assim, nos encontros entre trabalhadores da saúde e usuários, movidos por essas duas forças, há várias possibilidades de disputas, conflitos e confrontos. Para começar, na definição/reconhecimento da legitimidade do que é apresentado como problema de saúde, do que é reconhecido como sofrimento.
O olhar cientificamente armado pretende definir tecnicamente o que são os problemas de saúde legítimos e os modos de enfrentá-los. Os problemas referidos pelos usuários são, então, julgados e catalogados como ‘verdadeiros’ ou não, adequados ou não ao tipo de serviço que se oferece na atenção básica, por exemplo.
Dentro das próprias equipes, esse confronto de forças muito comumente deslegitima o saber dos agentes comunitários em relação ao que deve ser considerado problema e aos modos de enfrentar as situações. Outrossim, atravessa as disputas por hegemonia entre as diferentes profissões da saúde, além de alimentar a desresponsabilização de um e de outro em relação a problemas não considerados ‘próprios’ de seu campo ou pertinentes ao escopo da atenção básica.
A força-valor clínica opera no sentido de tensionar as relações na equipe e no encontro com os usuários, pois a clínica pertence a uns, e não a outros; a clínica de uns é mais valorizada que a de outros. Em um diálogo produzido tendo a clínica como base, mesmo que ela seja ‘ampliada’, uns estão dentro, outros estão fora.
As expectativas de cada um nesse encontro também são diferentes e aumentam a tensão. Uns, agenciados pela força-valor clínica, querem que a doença ocupe lugar central na organização da vida, e os saberes técnicos determinam o que deve ser realizado. Outros, agenciados pela força-valor cuidado, querem ajuda para continuar a viver do modo mais potente e prazeroso possível, apesar do problema/doença/sofrimento21.
Por pertencer ao mundo da experiência de todos, a força-valor cuidado pode favorecer a negociação. O cuidado pertence a todos, não é nem exclusivo da saúde, pois família, amigos, professores cuidam. Portanto, a força-valor cuidado agencia a conversa e os encontros a partir do trabalho vivo em ato, favorecendo a articulação de saberes que pertencem à molecularidade do mundo da vida e não estão aprisionados pela razão instrumental da clínica.
Tensionados pelas próprias experimentações, intensificadas pelos encontros, os trabalhadores, com os usuários, podem interrogar a clínica das profissões a partir dos problemas que ‘não encaixam’. Ao invés de serem rejeitados ‘por não fazerem parte do escopo de ação das profissões ou da RB’, esses problemas favorecem a invenção de novas estratégias e manejos a partir da composição de todos os saberes – da equipe e dos usuários. Favorecem que os próprios saberes da clínica sejam operados de maneira leve, podendo ser úteis no manejo dos problemas. Interrogados e modificados pelas singularidades, agregando possibilidades, produzem interferências que podem ser decisivas para o bem-estar.
A clínica, subsumida ao cuidado, passa a ser elemento importante na construção compartilhada – entre todos – de projetos terapêuticos que ampliem a potência de vida, realmente a serviço do melhor enfrentamento das situações. A tensão produzida entre as forças-valores clínica e cuidado produz efeitos completamente diversos a depender do predomínio de uma sobre a outra. A questão não se resolve abandonando uma ou outra. Com os efeitos do encontro e as tecnologias leves na centralidade do cuidado, a partir da singularidade dos usuários, os saberes estruturados acerca do corpo podem ser apresentados como oferta, e não como imposição e única referência.
Na gestão micropolítica do trabalho em saúde, é preciso tensionar o instituído – a força-valor clínica e a centralidade das tecnologias duras e leve-duras na condução do encontro com os usuários. É preciso interrogar o instituído a partir das próprias experimentações de vida de gestores e trabalhadores, a partir da ampliação da escuta e do encontro com a singularidade da vivência/existência dos usuários.
Assim, os encontros intensivos entre profissionais–usuários podem se tornar relações entre viventes, com histórias e experiências de vida diferentes. Favorecem a construção de espaços de escuta e reconhecimento do outro, e a produção de arranjos e manejos singulares, que, mesmo que não ‘resolvam’ o problema, possibilitem que ele seja vivido pelos usuários da melhor maneira possível.
Força-valor trabalho em equipe
A RB se destaca como o lugar do cuidado povoado por uma diversidade de profissionais de saúde. No início, sua experimentação foi com equipes multiprofissionais amplas (contando com até dez diferentes profissões), e outras não tão amplas, contando com três especialidades médicas, enfermagem, psicologia, serviço social.
Com a expansão da ESF, mesmo com a equipe mínima (médico, enfermeiro, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde inicialmente; depois odontólogo e técnico de saúde bucal, além de trabalhadores administrativos, limpeza e segurança), já estava envolvida na RB uma equipe mais ampla do que a APS oferece na maior parte dos países.
Com a incorporação, a partir de 2008, dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, mesmo que na modalidade matriciamento, está envolvida uma diversidade ainda maior de trabalhadores. Isso sem falar em outros matriciamentos em rede, como na saúde mental e com outros especialistas, que também se multiplicam pelo País. Isso reflete uma aposta, do movimento da Reforma Sanitária Brasileira e do SUS, de que, para operar a saúde de modo ampliado e no território, em oposição ao modelo hegemônico, seria importante contar com equipes multiprofissionais.
No entanto, para trabalhar em equipe, não basta reunir em um mesmo espaço uma diversidade de trabalhadores, nem atribuir a eles tarefas que se entrecruzam, tampouco estabelecer normativamente que se deve trabalhar em equipe e até reservar um tempo para que se reúnam. Equipe, assim como rede, é uma construção ativa, que implica enfrentar diferenças, relações de poder e a construção de um comum21.
Existe uma força-valor trabalho em equipe que mobiliza encontros apenas no plano formal e da hierarquia, com baixa potência para superar tensões e diferenças, levando à produção de conflitos e burocratização.
Existe outra força-valor trabalho em equipe que agencia o diálogo entre os núcleos de saber, em uma certa lógica de matriciamento. Todavia, como já discutido na força-valor trabalho e na força-valor clínica-cuidado, cada profissional de saúde quando vai atuar mobiliza saberes do núcleo profissional e saberes da experiência. De modo geral, apesar das disputas entre as profissões, em quase todas o saber técnico está fortemente baseado em um saber centrado no corpo biológico, estando o potencial cuidador de todas empobrecido.
O diálogo disparado a partir dos núcleos profissionais exclui os usuários, tende a tomá-los como objeto, pois quem predomina é a força-valor clínica. Além disso, essa força-valor trabalho em equipe tende a produzir relações que não são de cooperação, mas de transmissão de conhecimentos técnicos, em que uns sabem e outros aprendem. Os núcleos profissionais estão estabelecidos como “ilhas de competência que não param de operar sua máquina através das especialidades e dos especialismos cada vez maiores, fabricando e alargando novas incompetências e desautorizações de produzir cuidado”22(93), instituindo um campo em que a força de um movimento para o cuidado, muitas vezes, fica obstruída pela força do núcleo profissional.
Há, contudo, ao menos, uma terceira força-valor trabalho em equipe, dependente da força-valor cuidado e da força-valor trabalho, que reconhece que todos governam. Essa força tensiona os núcleos de saber de cada profissão, colocando a singularidade das situações vividas pelos usuários no centro da interação para conformar um comum. Desse modo, partindo do encontro com o usuário e suas questões, pode-se chegar a problemas que são novidade para os núcleos profissionais, ou seja, que vão exigir a produção de novas respostas, vão impor desafios à construção/composição do agir tecnológico das profissões. Não há mágica, há que se abrir espaço de escuta ampliada ao usuário e suas questões.
Esse comum, produzido a partir da complexidade e singularidade das situações, dá visibilidade à pobreza e ao limite das respostas isoladas de cada núcleo de saber técnico. Esse comum pede composição, não somente entre os trabalhadores, mas com os usuários. Desse modo, é agenciada uma inversão nessa tensão núcleo profissional – cuidado, favorecendo que os trabalhadores
posicionem suas verdades como secundárias a uma outra mais importante: a defesa da vida nos seus vários planos de produção, nas apostas que o outro faz para se produzir23(3).
Outro plano de tensão produzido por essa terceira força-valor trabalho em equipe tem a ver com o reconhecimento de que todos governam e, portanto, toda a construção da dinâmica do trabalho em saúde precisa ser feita de modo compartilhado. Entretanto, isso não acontece espontaneamente. Ao contrário, as relações de poder e as disputas de projeto tendem a produzir fragmentação e desresponsabilização.
Considerações finais
A RB pode ser um espaço privilegiado de aproximação aos distintos territórios em que se produzem as vidas em multiplicidade, em que o cuidado em saúde pode ganhar sentido, sendo produzido de modo compartilhado e capaz de ampliar as potências de viver. No entanto, pode ser também o lugar da captura mais cruel das existências, produzindo vidas tristes e serializações medicalizadas. Tudo depende do modo como trabalhamos o encontro, organizamos o governo, favorecemos ou não a invenção e a produção de sentidos compartilhados.
A educação permanente em saúde, abrindo espaço para reflexões e trocas, é fundamental para agenciar outra dinâmica. Todos aprendem pela experiência, então é preciso que o façam coletivamente, o que enriquece muito a possibilidade de interrogar, de colocar o trabalho produzido e seus efeitos em análise24. Como o meu trabalho afeta o outro? Como o que eu desejo interfere no modo do outro trabalhar ou viver? Como conseguimos cuidar do usuário X, e não do usuário Y? Muitas perguntas e provocações, singularmente produzidas a partir das situações vividas, possibilitam abrir outras visibilidades para o trabalho e trazer a complexidade das vidas para a cena.
As políticas nacionais de atenção básica e de educação na saúde não privilegiam esse trabalho vivo de interrogação e reflexão. Com raras exceções, estão centradas na atualização do saber técnico25. Então cabe aos gestores, trabalhadores e usuários dos espaços locais/municipais a produção desse tipo de movimentos.
A gestão micropolítica do cuidado abre espaços para a potência, mas dá trabalho, nos desafia e coloca diante das incertezas. Cabe a todos nós nos posicionarmos diante desses importantes desafios.
Finalmente, não pretendemos fechar este debate, mas trazer para análise aspectos importantes e comuns do cotidiano do trabalho na RB e, assim, provocar reflexões e interrogações sobre como produzimos o cuidado em saúde, potencializados pela micropolítica dos encontros. Nesse sentido, será necessário realizar pesquisas com esse objetivo.
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Suporte financeiro: não houve
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Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
23 Fev 2019 -
Aceito
12 Nov 2019