Open-access Clínica, cuidado e subjetividade: afinal, de que cuidado estamos falando?

RESUMO

Este ensaio procura discutir o processo de decisão clínica e o cuidado em saúde, a partir do reconhecimento de que o organismo humano é habitado por um corpo afetivo e por um corpo anátomo-clínico. O processo terapêutico requer que essas duas dimensões sejam contempladas para o cuidado em saúde. O cuidado não se faz apenas sobre a disfunção ou lesão dos órgãos, ele deve contemplar toda a existência de uma pessoa, porque ela é um ser complexo, que, além do seu problema de saúde mais objetivamente identificado, traz sua história de vida, recheada de expectativas, desejos, relações de afeto, familiares e sociais, produzidas em determinado meio. Os autores lançaram mão da cartografia, ou seja, um olhar com base nos processos e diversos fatores que produziram as questões que estão no foco de análise. O pressuposto é que o usuário deve ser o protagonista do seu projeto terapêutico. São estas questões que estão sendo debatidas no texto que conclui pela necessidade de considerá-las em um movimento de renovação dos saberes e práticas clínicas para uma abordagem mais integral do corpo e do cuidado em saúde.

PALAVRAS-CHAVE Clínica; Atenção Primária à Saúde; Cuidado

ABSTRACT

This essay discusses the clinical decision-making process and health care, based on the recognition that the human organism is inhabited by an affective body and by an anatomo-clinical body. The therapeutic process requires that these two dimensions be contemplated for health care. The care is not only about organ dysfunction or injury, it must contemplate the whole existence of a person, because he/she is a complex being, who, in addition to his/her most objectively identified health problem, brings his/her life story, filled with expectations, desires, relationships of affection, family and social, produced in a given environment. The authors used cartography, that is, a look based on processes and various factors that produced the issues that are the focus of analysis. The assumption is that the user must be the protagonist of their therapeutic project. It is these issues that are being debated in the text that concludes the need to consider them in a movement of renewal of knowledge and clinical practices for a more comprehensive approach to body and health care.

KEYWORDS Clinic; Primary Health Care; Care

Introdução

Este texto procura discutir, em formato de ensaio, o cuidado em saúde tomando como foco o trabalho do médico no exercício da clínica na atenção básica. Produto de uma pesquisa em rede de saúde em uma cidade do estado do Rio de Janeiro, tem como foco os parâmetros da prática clínica e os valores no seu exercício, olhando para as relações entre trabalhador e usuário. Mais especificamente, reflete sobre o ato de cuidar com base na prática da visita domiciliar, a qual aproxima o trabalhador da realidade do usuário, pois se vê diante do seu contexto de vida, da casa e suas relações de família, do ambiente, da situação socioeconômica e dos seus modos de viver. Assim, verifica a existência da pessoa como um conjunto a ser observado, inserido em determinado contexto, sendo esta complexidade o foco da sua atuação, considerando que sua ação não é isolada, ou unidirecional, mas compartilhada com o usuário e com todos os que se colocam na cena do cuidado. Nesse sentido, o texto interroga o trabalho que tem por foco o cuidado direcionado apenas na disfunção do corpo, ou a lesão de algum órgão como seu objeto. O cuidado é a arte de produzir potência no outro, em qualquer circunstância, e, para isso, tem por objetivo operar sobre o conjunto do seu organismo, considerando além do corpo biológico o que Deleuze chamou de corpo sem órgãos, ou seja, afetivo1.

Este é possivelmente o maior desafio para o trabalho e para o cuidado em saúde, o ajuste das práticas de um trabalhador ou equipe de saúde, para o exercício da clínica na sua complexidade, para além dos protocolos, considerando aquele que nos procura como um ser com histórias, valores, expectativas, desejos, relações sociais e afetivas. Isto significa uma ruptura com o modo convencional de exercício da clínica, apenas como um instrumento para atuar sobre o corpo anátomo-clínico. É assim que Foucault2 vai registrar nos seus estudos sobre o nascimento da clínica, que esta nasce a partir do olhar sobre o corpo, descobrindo suas formas, as cores, a textura dos órgãos, uma descoberta exclusiva sobre a massa biológica que compõe esse corpo.

Essa prática se hegemoniza no campo do fazer e do saber, com óbvias repercussões em todo sistema formador de profissionais para a saúde. Instituiu-se nas escolas, na atenção básica e nos Hospitais os mesmos referenciais dessa prática clínica. Essa lógica se hegemoniza com a afirmação do paradigma da Medicina Científica ou Flexneriana, que refere-se ao modelo de prática clínica pensada a partir do relatório de Abraham Flexner, publicado nos EUA em 1910, que avaliou o ensino médico americano e sugeriu a sua reforma para um modelo centrado na pesquisa biológica, o que orientou a partir deste episódio o trabalho dos profissionais na clínica. Aquela clínica fundada sob o conceito de corpo anátomo-clínico formula o conjunto teórico conceitual que tem por base o método científico, vendo o corpo apenas como uma máquina, passível de intervenção em cada parte dele, por especialistas das partes desse complexo corpo humano (clínica do corpo de órgãos). No entanto, não é sobre essa clínica que considera apenas esse corpo anátomo-clínico que queremos refletir.

Alguns autores no campo da saúde coletiva discutem o fato de que, no mundo ocidental, por meio da medicalização e disciplinarização da vida; as práticas em saúde se constituíram de forma que o saber científico e a explicação biológica se colocaram hegemonicamente como explicação única para os sofrimentos humanos, constituídos a partir de determinados lugares de poder, retirando totalmente das pessoas a possibilidade de cuidar de sua própria saúde, desconsiderando a subjetividade e a singularidade nos modos de levar a vida de quem acessa os serviços3.

Na saúde, de modo geral, quando falamos em cuidado, atribui-se ao termo um sentido já consagrado no senso comum, qual seja, o de um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de um certo tratamento, que é ditado por profissionais para os ‘pacientes’ que os procuram nos serviços.

Contudo, cuidado para nós não é só um conjunto de recursos, medidas terapêuticas e procedimentos que permitem efetivar a aplicação de um Projeto Terapêutico. É mais do que isso. Cuidar demanda a utilização de vários tipos de tecnologias no âmbito dos serviços de saúde, bem como, ao considerar a existência da pessoa no mundo, requer pensar o ambiente, os estressores do cotidiano aos quais o usuário está submetido, relações de família e comunidade. Qualquer análise, portanto, deve ser multidimensional, tomando a experiência de viver também como foco da análise de risco e plano de cuidado a ser implementado.

Ayres considera cuidado

[...] como um constructo filosófico, uma categoria com a qual se quer designar simultaneamente, uma compreensão filosófica e uma atitude prática frente ao sentido que as ações de saúde adquirem nas diversas situações entre dois ou mais sujeitos4(74).

Ele nos fala dos já relativamente bem conhecidos efeitos positivos e negativos das transformações da Medicina contemporânea rumo à progressiva cientificidade e sofisticação tecnológica. Partindo de uma proposição hipotética a respeito dessa indagação, afirma que a atual crise de legitimidade das formas de organização do cuidado em saúde talvez decorra do fato de que a terapêutica médica estivesse perdendo seu interesse pela vida, estivesse perdendo o elo entre seus procedimentos técnicos e os contextos e finalidades práticas que os originam e justificam, ou seja, a produção da vida.

Outras reflexões importantes sobre o cuidado nos traz Merhy5-7, que advoga a ideia segundo a qual o cuidado é produto do trabalho em saúde; e, por ser assim, tem imanente uma dimensão tecnológica. Segundo o autor, o núcleo de produção do cuidado está no processo de trabalho e suas tecnologias. Ele classifica as tecnologias de duras, leve-duras e leves, considerando sua inscrição na maquinaria e instrumentos, no conhecimento técnico e nas relações respectivamente. Como as relações dizem respeito à subjetividade inscrita no trabalhador que opera as tecnologias de cuidado, seja ele individual ou coletivo, podemos inferir que a produção do cuidado é dependente do agir em ato do trabalhador e, por ser assim, tem a relevância do trabalho vivo, sendo este o grande trunfo do cuidado, e no qual habita sua extraordinária potência instituinte.

O trabalho vivo traz possíveis agenciamentos instituintes, justamente porque tem como principal atributo a liberdade; por ser um trabalho no seu exato momento de criação e produção, a decisão sobre o processo de trabalho, em ato, é do próprio trabalhador na relação com o usuário. Sendo assim, observa-se nesse cenário o exercício autogestionário do trabalho, colocando um leque de possibilidades na condução do projeto terapêutico que vai estar, também, na ordem do desejo do trabalhador na sua relação com o usuário.

Geralmente, quando um profissional de saúde pensa na assistência, vem de imediato a aplicação de tecnologias para o bem-estar físico e mental das pessoas. Em geral, a ciência produz o conhecimento sobre as doenças, a tecnologia transforma esse conhecimento em saberes e instrumentos para a intervenção, os profissionais de saúde aplicam esses saberes e instrumentos, e produz-se a saúde, sem considerar o que sente ou deseja esse usuário, que muitas vezes nem se permite desejar.

Precisamos ter claro que nem tudo que é importante para o bem-estar pode ser imediatamente traduzido e operado como conhecimento técnico. Devemos estar atentos para o fato de que quase nunca, quando assistimos à saúde de outras pessoas, nossa presença na frente do outro se resume ao papel de simples aplicador de conhecimentos4(84).

Tecnologia não é apenas aplicação de ciência, não é simplesmente um modo de fazer, mas é também, enquanto tal, uma decisão sobre quais coisas podem e devem ser feitas, então,

[...] temos que pensar que nós, profissionais de saúde, estamos construindo mediações, escolhendo dentro de certas possibilidades o que deve querer, ser e fazer aqueles a quem assistimos – e nós próprios10(86).

‘Cuidar é ir ao encontro do outro para acompanhá-lo, e juntos promoverem e fomentarem uma vida boa para todos’ [...] é uma proposta ética que não se resume à enunciação de regras; antes seu ideal consiste numa atividade de relacionamento8(122).

Cuidado como proposta ética, e não como ato isolado de assistência ou atenção à saúde, refere-se à atitude, modo de ser, a maneira como a pessoa funda e constrói suas relações com as coisas, com os outros, com o mundo e consigo mesma. Essa atitude é de ocupação, de preocupação, de responsabilização radical, de sensibilidade para com a experiência humana e de reconhecimento da realidade do outro, como pessoa e como sujeito, na sua singularidade. Não se trata de desconsiderar que, quando alguém procura um serviço de saúde, é portador de uma demanda e é, portanto, potencial “objeto de conhecimento e intervenção”. Esse é um dos papéis dos profissionais de saúde. “Contudo, nada nem ninguém pode subtrair a esse mesmo indivíduo como aspirante ao bem-estar, a palavra última sobre suas necessidades”4(84-85).

Não podemos definir para o outro um projeto terapêutico sem considerar sua história de vida. Não cabe a nós decidir sobre que vida vale a pena ser vivida. Essa escolha é do usuário, que pode ser mediada pelo conhecimento técnico profissional, mas não apenas prescrita por ele. Conhecer um pouco da história de vida das pessoas que nos procuram é fundamental no processo de cuidar. O problema é que na maioria das vezes nem consideramos o outro como sujeito, mas, sim, como mero objeto de nossas práticas. Não podemos limitar a arte de cuidar apenas à criação e à manipulação de ‘objetos’. Cuidar é mais que prescrever, diagnosticar, é não perder a dimensão do outro como igual, sujeito na relação que estabelece consigo na vida, nos serviços de saúde.

O campo do cuidado não pode ser reduzido ao campo da clínica, ele é pura tecnologia leve, dialógica, relacional, é o mundo das sabedorias e não dos saberes. A clínica que tem a pretensão de que tudo é clínica pode ser um desastre, ela amplia, mas não rompe, continua serializando comportamentos, protocolizando formas de vida saudável, comportamentos ‘corretos’, ditados por profissionais11(11).

Ao pensar a produção do cuidado como um encontro de afetos em ato, apostamos na produção de encontros nos quais o outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens preestabelecidas, em que eu (profissional de saúde) possa executar a minha ‘clínica’; e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência. Essa vulnerabilidade ao outro depende, para sua sustentação, da ativação de uma potência específica do sensível, que Rolnik12 chamou de corpo vibrátil. Ela afirma que, segundo pesquisas recentes da neurociência, cada um de nossos órgãos dos sentidos é portador de uma dupla capacidade, uma cortical e outra subcortical.

A primeira corresponde à percepção, a qual nos permite apreender o mundo em suas formas, para em seguida, projetar sobre elas as representações de que dispomos, de modo a lhes atribuir sentido. Esta capacidade, que nos é familiar, é, pois, associada ao tempo, à história do sujeito, e à linguagem. Com ela erguem-se as figuras de sujeito e objeto, as quais estabelecem entre si uma relação de exterioridade, o que cria as condições para que nos situemos no mapa de representações vigentes e nele possamos nos mover.

Já a segunda, que por conta de sua repressão nos é mais desconhecida, nos permite apreender a alteridade - qualidade do que é outro - em sua condição de campo de forças vivas, que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença que se integra à nossa textura sensível, tornando-se assim, parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo. Esta segunda capacidade de nossos órgãos dos sentidos que a autora chamou de corpo vibrátil12(12).

A clínica, tal como hegemonicamente praticada na medicina ‘Flexneriana’, é produto do olho retina, é uma das dimensões do cuidado, do campo das tecnologias duras e leve-duras. Tem sempre alguém ensinando, prescrevendo algo a outro. Já o cuidado opera também no corpo vibrátil, é do mundo das sensações e dos afetos, constituído predominantemente de tecnologias leves, relacionais. No campo das sensações, o outro é uma presença que se integra à nossa textura sensível, tornando-se, assim, parte de nós mesmos. Dissolvem-se assim as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo. Essa ‘ativação de uma potência do sensível’ é que entendemos como um dos importantes componentes do cuidado.

As práticas em saúde na atenção básica são quase sempre pautadas na ‘vigilância em saúde’; e seus protocolos, ditados pelas ações programáticas (saúde da mulher, da criança, controle de hipertensos e diabéticos etc.). Esses processos são ordenados por uma redução dos núcleos de competência dos profissionais de saúde, em que prevalecem, cada vez mais, atos de saúde bem estruturados, que não deixam mais nítido quem comanda quem: se o trabalhador ao seu saber, ou se o saber protocolar ao trabalhador.

Metodologia

Buscando desvelar as práticas de cuidado em saúde nos encontros entre profissionais de saúde e usuários, para além da percepção do olho retina, este ensaio se utiliza da cartografia como forma de entrar em contato com o objeto, e, na relação com ele, produzir os dados para análise do que se observa. A escolha da cartografia justifica-se por ser um modo de pesquisar que busca a produção de sentido no cotidiano de trabalho na medida em que outros sentidos são produzidos nesse mesmo processo. Ela reconhece a realidade como um mapa em aberto que se processa em redes rizomáticas, ou seja, as que se produzem no movimento dinâmico da vida e no seu cotidiano, que não são lineares nem protocolares, mas produzem o mundo, e se produzem com ele ao mesmo tempo, a partir dos fluxos-conectivos que operam entre os sujeitos na micropolítica do trabalho em saúde13.

Kastrup14 afirma que a cartografia é um método que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar um processo de produção. De saída, a ideia de desenvolver o método cartográfico para utilização em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas, pois é um método que não busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre um método ad hoc (para isto, ou para aquele fim específico).

Todavia, sua construção caso a caso não impede que se procure estabelecer algumas pistas que têm em vista descrever, discutir e, sobretudo, coletivizar a experiência do cartógrafo. Kastrup chama a atenção para a importância do funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. Não se trata de buscar uma teoria geral da atenção no trabalho do cartógrafo. A ideia é que, na base da construção de conhecimento por meio do método cartográfico, há um tipo de funcionamento da atenção que foi, em parte, descrito por S. Freud com o conceito de atenção flutuante: “recomenda a utilização de uma atenção onde a seleção se encontra inicialmente suspensa, cuja definição é ‘prestar igual atenção a tudo”14(16). Essa atenção aberta, sem focalização específica, permite a captação não apenas dos elementos que formam um texto coerente e à disposição da consciência do analista, mas também do material “desconexo e em desordem caótica” 14(16). A função da atenção não é de simples seleção de informações. Seu funcionamento não se identifica a atos de focalização para preparar a representação das formas de objetos, mas se faz mediante detecção de signos e de forças circulantes, ou seja, de pontas do processo em curso, que, muitas vezes, são imperceptíveis ao ‘olho retina’, mas podem ser perceptíveis ao ‘corpo vibrátil’. Uma ‘atenção à espreita’, uma concentração sem focalização, segundo Gilles Deleuze15.

Outra importante pista para a utilização do método cartográfico nos lembra Kastrup ao trazer à cena o conceito de ‘suspensão’:

[...] que significa a colocação entre parênteses dos juízos sobre as pessoas e sobre o mundo. A suspensão constitui uma atitude de abandono, ainda que temporário, da atitude recognitiva, dita natural pela fenomenologia. Trata-se de uma suspensão da política cognitiva realista, onde o conhecimento se organiza a partir da relação sujeito-objeto14(17).

A autora lembra ainda que a cartografia é um método de cognição concebido em uma perspectiva construtivista, ou seja, não há coleta de dados, mas, desde o início, uma produção dos dados, em que o cartógrafo é também parte desse processo. A visita domiciliar relatada abaixo é fruto de uma cartografia realizada em um encontro no domicílio entre profissionais de saúde e uma usuária, descrita em Hubner11.

Resultados e discussão

Trazemos à cena o relato de uma visita domiciliar feita por profissionais de saúde a um domicílio, cujo objetivo era fazer busca ativa de ‘pacientes rebeldes’, que, por razões diversas, não aderiam às prescrições da equipe em prol da sua própria saúde. Dona ‘Tarsila’ (nome fictício) era um desses casos, que apesar de hipertensa, e apresentando alguns de seus exames bem alterados, ingeria bebidas alcoólicas diariamente. Esses profissionais da equipe sugeriram que o apoiador os acompanhasse nessa visita para poder pensar juntos ‘o que fazer’ com essa ‘paciente’11.

Elas chegam à porta da casa de D. Tarsila, batendo palmas chamando-a. Ela, sentada à mesa da cozinha, reconhece a voz familiar das profissionais e as autoriza a entrar. Médica e técnica de enfermagem entram observando o interior da casa. Elas se cumprimentam e se abraçam. Tarsila as convida para sentar e inicia a conversa dizendo que está um calor. Era um dia de verão carioca com sensação térmica acima de 40 graus, e sem água no domicílio. Oferece água gelada e um sorriso estampado no rosto. Diz ainda que não vai oferecer a cerveja que está tomando, porque sabe que a doutora é contra e está em horário de trabalho. O apoiador é apresentado à D. Tarsila. Ele se dirige a ela, aperta sua mão e elogia a aparência da cerveja, muito gelada, e afirma que também gosta muito de cerveja. Ela se admira e oferece a ele, que recusa por estar em horário de trabalho, mas afirma que em outro horário partilharia a cerveja com ela com prazer. A doutora franze a testa e faz cara de poucos amigos, de insatisfação.

Todo corpo no encontro tem o poder de afetar e ser afetado, podendo neste momento de intensidades, comporem ou não comporem entre si, gerando efeitos sobre estes mesmos corpos. Quando estes efeitos são de alegria, aumenta a potência de agir, e de tristeza, gera o efeito inverso, reduz a potência12. Portanto, o modo como se processa o encontro entre o profissional de saúde e o usuário, tem efeitos inclusive de ordem terapêutica, pois um bom encontro, vai aumentar a energia vital, com efeitos positivos sobre o projeto terapêutico.

Observando a cena, de fora, o corpo vibrátil do cartógrafo não percebe fluidez nesse encontro, mas um tensionamento. A expressão de desenvoltura e alegria de nossa usuária parece contrastar com as feições de nossa doutora. Ela abre sua maleta de médico e pede à técnica de enfermagem que meça sua pressão (que está alta), e mostra seus últimos exames (bastante alterados). No seu olhar, percebe-se desconforto, descontentamento com aquela imagem à sua frente – D. Tarsila e a garrafa de cerveja quase vazia. Se apresenta neste momento com a autoimagem quase costumeira, de ‘doutora zangada’ ali estampada, ele aciona automaticamente todo seu protocolo para hipertensos e diabéticos: não comer sal, açúcar, e muito menos beber. O cartógrafo atento observa, e com seu corpo vibrátil tenta devorar as sensações da nossa ‘paciente’. Percebe que sua máscara de expressão que transmitia alegria, afeto, intimidade, despedaça-se, e imediatamente outra é colocada no lugar. Está mais séria, mais dura, mas segura, absolutamente conectada àquela situação. Máscara de desapontamento, mas muito clara em matéria de expressão, de quem sabe onde está pisando, o que quer, sem qualquer senão. As intensidades experimentadas por elas eram díspares, distantes. Não se produziu até aquele momento nenhum plano de consistência, de concordância, em que seus afetos pudessem se encontrar. A médica, apenas com seu olho retina, não compreende a postura de D. Tarsila e olha com ares de interrogação para o cartógrafo e pergunta: “E aí, o que faço com uma mulher dessa?” “Sugiro ouvir nossa Tarsila, saber dela o que acha dessa situação. Quer falar sobre isto, Dona Tarsila?”. Ela, do alto de seus 78 anos, fala, já voltando a sorrir, um pouco sobre a sua vida.

Criei cinco filhos sozinha, ajudei cada um deles a construir seu canto, seu lar. Fui passadeira, faxineira, merendeira, me ‘virei nos trinta’ pra sobreviver e criar meus meninos doutor. Fiquei viúva aos 42 anos e nunca mais tive um companheiro para poder partilhar sonhos, despesas, namorar. Hoje, se precisar de alguma coisa, tenho minha aposentadoria e minha filha que mora no andar de cima com sua companheira que pode me ajudar. Meu prazer nessa vida doutora, fala dona Tarsila sorrindo, é beber, tomar cerveja, provocar quem passa na rua, brincar. Mas quando acho que estou passando dos limites vou pra cama, e rio sozinha, vendo tudo rodar. Portanto vou lhe dizer uma coisa: Tirar de mim a cerveja é quase me matar. Ela é a minha alegria, minha vontade de viver, de acordar. Minha vida foi muito dura, doutora, já vivi muito,‘tô no lucro’, e se morrer amanhã, fique tranquila, não vou te culpar. Portanto, lhe peço, pare de me mandar parar com a cerveja, senão vou me chatear muito com a senhora.

O cartógrafo observa nossa doutora e percebe sua máscara de expressão se transtornar, mas mesmo contrariada diz, “fazer o que né, a senhora é quem sabe”. E com sua máscara de expressão de doutora contrariada, se dirige ao cartógrafo que até então somente observava, e interroga. O que fazer? Não sei mais como posso ajudar? Ele se cala. Ela se despede lhe entregando folhas de receitas em papel, que nossa Tarsila, sorridente, pega e pede para sua filha guardar. O cartógrafo observa nossa doutora e sua máscara de expressão clivada, cindida, um tanto contrariada, sem clareza de sensação. Parece que nossa doutora está, nesse momento, tocada pela dupla capacidade de seus órgãos dos sentidos. Com seu olho retina ela se percebe constrangida, contrariada, mas seu corpo vibrátil (que ao que parece ela desconhece), de alguma forma se manifesta, e sem graça se despede, se frustra. Após a saída da casa, o cartógrafo não resiste e fala:

você deveria vir mais frequentemente visitar D. Tarsila, e se quiser após o horário de trabalho, quem sabe tomar uma cerveja com ela, pois nessa troca acho que vocês podem muito se ajudar.

Ela, reflexiva, talvez ainda não perceba que nesse encontro com D. Tarsila, doutora da vida, expressão de alegria, de vontade de levar a vida a seu modo, autonomamente; nossa doutora tinha acabado de se ‘consultar’. A vida é feita de escolhas, e nossa Tarsila parece saber muito bem o que quer e autonomamente escolheu como quer viver e sonhar. Afinal ‘toda vida vale a pena ser vivida’, e a nós, profissionais de saúde, cabe apenas perguntar: será que eu posso te ajudar? Mas não impor, ditar. Nossa Tarsila me pareceu mais feliz que muitos de nós em seu modo de viver, de se cuidar. Sigamos nossas vidas, D. Tarsila, e, se precisar de mim, estarei lá na unidade para lhe acolher e cuidar, é o que considero a única conduta a ser tomada por nossa profissional no seu interesse em ajudar.

Em outros encontros, a profissional relata ao cartógrafo que ela e a nossa Tarsila se tornaram boas amigas, às vezes se encontram apenas para conversar. No aniversário de Tarsila, ela foi como convidada tomar uma cerveja com ela, e passaram um bom tempo conversando sobre a vida, sobre o amor, sobre o mar.

A nossa médica, na sua forma usual de agir – um mesmo protocolo para certos problemas de saúde – considera que tem o conhecimento técnico e a competência para intervir sobre o corpo do outro, prescrevendo ‘modos corretos’ de levar a vida, de viver, orientando para uma biossubjetividade capturada pelo saber médico, controle do corpo e submissão à prescrição sobre os modos de vida. Isso seria traduzido como ‘produzir saúde’ e leva o nome de ‘cuidado’; em uma relação assimétrica, na qual o trabalhador comanda o outro, ditando a ele como agir, como se comportar. O que talvez a nossa médica nem perceba é que seu trabalho vivo, livre e criativo, está sendo comandado pelo trabalho morto, a maquinaria e os protocolos, instrumentalizando o cuidado, que permanece contido no seu universo tecnológico, (ações programáticas em saúde). Tudo isso não considera o modo como se constroem socialmente e afetivamente as necessidades desse ou de qualquer outro usuário. Não se trata de julgá-la ou de censurá-la pela sua forma de atuar. Foi assim que ela, uma excelente profissional, aprendeu a cuidar.

Ayres4 nos fala de um ativo e atual movimento de profissionais e serviços de saúde no sentido de se voltarem à presença do outro no espaço assistencial, otimizando e diversificando as formas e a qualidade dessa interação eu-outro e, a partir daí, compreender as relações que se estabelecem no dia a dia desses serviços, na micropolítica do processo de trabalho, vivo e em ato.

Rolnik12 considera que o campo de produção do cuidado é o da desterritorialização das profissões, e se dá na micropolítica, que é o lugar das questões que envolvem os processos de subjetivação em sua relação com o outro, no momento do encontro, afetando-se e podendo afetar esse outro, sem protocolos, sem amarras, sem definições a priori do que o outro pode vir a precisar. Falar de cuidado nos remete, portanto, à invenção de estratégias para a construção de novos territórios, outros espaços de vida e de afeto, uma busca de ‘saída’ dos territórios que parecem sem saída. Afinal, Saúde é felicidade, e em nossos encontros deve caber sempre a pergunta: será que eu posso te ajudar?

A clínica é instrumento do cuidado, e essa percepção é fundamental para analisá-la, pois isso lhe dá potência, e, ao mesmo tempo, limites, evitando qualquer tentativa de reificação do conhecimento clínico na relação com o cuidado em saúde. Ela é apenas mais uma peça que compõe a ‘caixa de ferramentas’ de um profissional de saúde que se propõe a cuidar.

É forçoso, quando cuidamos compreender que concepção de vida orienta os projetos existenciais dos sujeitos a quem prestamos assistência. Como é que aparece ali, naquele encontro de sujeitos no e pelo ato de cuidar, os projetos de felicidade de quem queremos cuidar.

A ampliação da ‘caixa de ferramentas’ dos profissionais incorporando mais tecnologias leves, relacionais, na produção do cuidar, pode ser uma aposta para que possamos pactuar dialógicos processos terapêuticos com aqueles a que nos propomos cuidar. Saúde é felicidade, lembremos sempre, para que possamos ajudar a quem nos procura, sem o interditar.

Considerações finais

Este estudo revela a paradoxal prática clínica, no campo do cuidado em saúde, em especial na atenção básica. Por que lidamos com um paradoxo? Porque ao mesmo tempo que se pretende cuidar, a clínica é restrita porque simplifica a ideia de corpo às estruturas e funções anátomo-fisiológicas e por consequência estrutura um saber e prática que não conseguem atuar na plenitude do corpo. Nesse sentido, permanece aprisionada ao seu nascimento no século XVIII, quando Foucault2 descreve a clínica como originária do ato de olhar o corpo, centrada no corpo anátomo-fisiológico. Reconhecemos a insuficiência desta ‘clínica’, pois ela não considera o corpo afetivo como existência, agenciado pela realidade e capaz de agenciar a ação sobre o mundo16. Nesse sentido, os autores vão propor a ‘clínica dos afetos’ como uma prática clínica, complementar à clínica convencional, e que reconhece o corpo afetivo como capaz de responder ao processo de cuidado, ser ativo e altivo na busca da sua reabilitação e recuperação. Mais do que isso, o afeto é gerador de potência e pode ativar energias no campo do desejo, capazes de atuar como força propulsora e colocar esse corpo em movimento no sentido do ‘cuidado de si’, que é ativado como fator de melhora do coeficiente de produção do cuidado em geral.

Ademais, é justamente no ‘corpo afetivo’ que muitas questões vão se revelar, relacionadas com a existência da usuária, e que passam despercebidas nas práticas clínicas, quando estas estão centradas na disfunção ou na lesão do corpo anátomo-fisiológico. Podemos afirmar que os estudos relacionados com a subjetividade e processos de subjetivação vão demonstrar o quanto esses aspectos importam para o processo terapêutico, e para o cuidado em saúde.

Essas questões nos remetem ao tema da ‘decisão clínica’: por onde passa essa decisão, e onde se situa o usuário neste processo. O que eles pensam, sentem a partir dos projetos terapêuticos que nós, profissionais de saúde, definimos para eles? No nosso exemplo, D. Tarsila, no seu modo singular de viver, parece não concordar com o projeto terapêutico definido para ela. Afinal, toda vida vale a pena ser vivida.

A nossa usuária tem também uma ideia de saúde, e pratica um ‘projeto terapêutico’, que do seu jeito, leva a vida como considera que deva levar. É importante reconhecer o protagonismo de todo usuário no seu processo de cuidado. Todo projeto terapêutico deve ser pactuado entre profissional e usuários, como forma de melhor considerar os múltiplos fatores da vida da pessoa no ato de cuidar.

O organismo é formado por um ‘corpo com órgãos’, e um ‘corpo sem órgãos’, sendo esse o corpo afetivo. O cuidado deverá necessariamente contemplar esses corpos em todos os seus componentes. O afeto carece de reconhecimento como dispositivo capaz de ativar o desejo, e forças internas que colocam o corpo no sentido de produção da vida em si mesmo, e no seu ambiente. Portanto, este estudo amplia a visibilidade sobre esses aspectos da prática clínica, e chama atenção para o processo de abordagem das reais ‘necessidades de saúde’17 de quem nos procura no e pelo ato de cuidar.

Merhy6 nos diz que, na medicina tecnológica, há um empobrecimento da valise das tecnologias leves, deslocando-se o eixo do cuidado para uma articulação entre as valises das tecnologias leve-duras e duras. Esta prática expressa certos procederes bem-definidos, reduzidos a meros procedimentos pontuais, subespecializados no plano da competência profissional, com os quais os profissionais estabelecem seus verdadeiros vínculos, e por meio dos quais capturam os usuários e seu mundo.

As redes de serviços de saúde estão repletas de situações como a analisada neste texto. Nos aprece urgente que uma abordagem mais adequada, que considere a complexidade dos sujeitos que procuram os serviços de saúde, deva ser tratada já no âmbito da formação profissional. Práticas mais dialógicas, que reconheçam as necessidades de saúde de cada usuário, e a sua forma de estar no mundo.

Afinal como nos diz Ayres precisamos ter claro que nem tudo que é importante para o bem-estar pode ser imediatamente traduzido e operado como conhecimento técnico. Temos que pensar que estamos construindo mediações, escolhendo dentro de certas possibilidades o que deve querer, ser e fazer aqueles a quem assistimos – e nós próprios.

Nada, nem ninguém, pode subtrair a esse mesmo indivíduo, como aspirante ao bem-estar, a palavra última sobre suas necessidades4.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2019
  • Aceito
    18 Nov 2019
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