RESUMO
Como se tornou possível a desconstrução da autoridade sanitária do Sistema Único de Saúde (SUS) em plena radicalização da pandemia do novo coronavírus? No presente ensaio, propõe-se a discussão de que essa situação expressa um problema de fundação da própria democracia brasileira, que consiste na afirmação rigorosa de direitos sem a democratização dos fundamentos do poder. Tendo em vista esse marco analítico, sugere-se a compreensão dos processos de financeirização e mercantilização da saúde em sua convergência com os princípios regressivos da judicialização, da comunicação oligopolizada e, mais recentemente, da militarização. Ante os apontamentos, após o golpe de 2016, a desinstituição dos espaços mínimo de construção e disputa da soberania popular deflagram um tempo em que as forças políticas da Reforma Sanitária estão desafiadas a recriar os caminhos de republicanização do poder.
PALAVRAS-CHAVE Sistema Único de Saúde; Infecções por coronavírus; Democracia; Mercantilização; Política
ABSTRACT
How did it become possible to deconstruct the health authority of the Unified Health System (SUS) in the midst of the radicalization of the new coronavirus pandemic? In this essay, we propose the discussion that this situation expresses a problem of the foundation of Brazilian democracy itself, which consists in the rigorous affirmation of rights without the democratization of the foundations of power. In view of this analytical framework, it is suggested to understand the processes of financialization and commodification of health in their convergence with the regressive principles of judicialization, oligopolized communication, and, more recently, militarization. Considering the notes, after the 2016 coup, the deinstitution of the minimum spaces for construction and the dispute over popular sovereignty sparked a time when the political forces of the Sanitary Reform are challenged to recreate the paths of republicanization of power.
KEYWORDS Unified Health System; Coronavirus infections; Democracy; Commodification; Politics
Introdução
O esforço de localizar o drama do Sistema Único de Saúde (SUS) no interior da desagregação mais ampla da democracia brasileira é o desafio a que se propõe este artigo. Nosso entendimento é que se encontra em curso um franco processo de desconstituição do poder sanitário do SUS, que, apesar de não ter se iniciado com o golpe de 2016, conhece desde então um ponto de inédita inflexão destrutiva. A documentação do caos sanitário e econômico que dominam a vida pública brasileira no contexto da pandemia da Covid-19 forma o retrato das características mais visíveis da desorganização institucional provocada pelo governo Bolsonaro. É preciso, no entanto, descer à sua gênese e estrutura.
O escândalo da desinstituição da autoridade sanitária do SUS em plena pandemia, por meio da cena aberrante da ocupação do Ministério da Saúde por militares, exige um aprofundamento da análise conceitual e histórica dos vetores que vêm operando para minar a soberania constitucional desse sistema de saúde. O projeto do SUS é a afirmação mais alta da soberania popular que se expressou na Constituição de 1988, entretanto, é preciso reconhecer que seu longo e difícil processo de institucionalização deu-se em um cenário de soberania popular limitada pela transição conservadora e pela ascensão do neoliberalismo nos anos 19901. Agora, esta vem sendo golpeada no centro pela fusão entre o neoliberalismo e o governo de ultradireita de Bolsonaro.
Por esse entendimento, a superação da pandemia requer a reconstituição do demos, do princípio da soberania popular, centro vital da gênese e da sustentação de todo o aparato institucional do SUS. Como procuraremos argumentar, a afirmação de direitos na Constituição de 1988 não se fez acompanhar de uma democratização dos fundamentos do poder e de sua reprodução. Isso implica reconhecer que a atuação corrosiva do neoliberalismo se apoiou em outros vetores regressivos da ordem política brasileira, como o princípio da judicialização, o princípio da oligopolização da comunicação e, mais recentemente, o princípio da militarização.
Como bem formulou Paim2, os rumos do SUS são indissociáveis dos caminhos da Constituição de 1988. Assim compreendidos, pode-se dizer que a construção material do SUS expõe o drama essencial dos conflitos mais intensos da democracia brasileira, que consiste em atender à expectativa de expansão de direitos sob o tacão de uma política fiscal restritiva de gastos1. Em termos políticos, esse não deixa ser o próprio drama da autoafirmação e soberania dos brasileiros e brasileiras como sujeitos políticos.
No pós-2016, o conteúdo regressivo do estado brasileiro assume um renovado dinamismo, aprofundando a corrosão dos espaços em que a luta por cidadania buscava afirmar sua agenda sanitarista em três caminhos: i) em uma direção, retira da deliberação pública temas fundamentais da vida coletiva, blindando a economia da vida política. Essa dimensão ganhou um sentido extremo com a Emenda Constitucional (EC) 95, ao definir um regime fiscal para o orçamento da União por 20 exercícios financeiros consecutivos. Ao inaugurar um franco processo de desfinanciamento do SUS, essa medida interdita sistemicamente as agendas das lutas sanitárias, ao passo que fomenta propostas de fortalecimento do setor privado; ii) em outro trajeto, persegue a desregulamentação da intervenção estatal quando a legislação opera reduzindo assimetrias de poder entre os sujeitos políticos. Essa condição se faz presente, por exemplo, com as reformas recentes na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) ao fragilizar as normas de construção de equipes multidisciplinares para os gestores municipais3; iii) a terceira trilha das transformações políticas consiste na adoção de práticas que desrespeitam a dinâmica de funcionamento dos espaços de participação e controle social, desidratando a importância dessas instâncias4. Esse aspecto explica, em boa medida, os retrocessos nas políticas de Saúde Mental e Atenção Básica, a desconstrução do Programa Mais Médicos e mesmo a liberação indiscriminada de agrotóxicos no País5.
Esse caminho autoritário, que combina concentração e dispersão do poder institucional de decisão, compõe o processo de desconstituição da autoridade sanitária do SUS, uma vez que esvazia os espaços que os sujeitos políticos da Reforma Sanitária sempre buscaram ocupar. No contexto de enfrentamento da pandemia, essa mordaça imposta aos momentos de controle democrático do poder se associa à crise nas relações federativas na qual o governo federal sabota deliberadamente os esforços de estados, municípios e distrito federal, bloqueando o repasse de recursos, forçando o fim prematuro das medidas de distanciamento social e desarticulando a cadeia de comandos do Ministério da Saúde.
Na primeira seção deste artigo, discutiremos a relação instituinte entre a soberania popular e a sustentação institucional das democracias. Na recuperação desse sentido republicano da democracia, apontaremos como os movimentos de expansão do neoliberalismo se associaram a outros vetores regressivos persistentes na ordem institucional brasileira, corrompendo progressivamente a constituição da autoridade sanitária do SUS. Identificaremos aqui os processos estruturais que conduziram ao esvaziamento dos espaços democráticos de realização do conflito e da luta política. Na segunda seção, procuraremos documentar os momentos de formação e o recente aprofundamento dos impasses histórico do SUS. Na conclusão, serão identificados importantes movimentos de resistência democrática que se articulam ao campo da saúde no contexto do enfrentamento da pandemia. Nosso intuito consistirá em fundamentar o argumento de que a reconstituição do demos é a própria reestruturação do centro vital de sustentação institucional democrática do SUS.
O mercado e as três dinâmicas de corrosão da soberania sanitária
Sem considerar as dinâmicas profundas do paradoxo neoliberal à soberania popular, não se entenderá como, em pleno pesadelo da pandemia no Brasil, a soberania do SUS foi ‘golpeada’, como bem afirmou Sonia Fleury6. Esse cenário explicita o descolamento forçado dos sujeitos políticos da Reforma Sanitária dos lugares de disputa acerca da direção da política sanitária do País, inserido no movimento mais amplo de esvaziamento da própria democracia brasileira. A Constituição de 1988 foi, com todas as suas limitações democráticas decorrentes da transição conservadora, a expressão mais importante de um princípio de afirmação da soberania popular, constituindo, por excelência, a mais substantiva afirmação dos direitos humanos em toda a história brasileira. O SUS, incorporando esse princípio em sua fundação, abrigou a participação democrática em sua configuração mesma, atribuindo poderes participativos e decisórios, em regime tripartite, aos usuários, aos trabalhadores e aos governos eleitos.
Essa afirmação rigorosa de direitos na Constituição de 1988 não correspondeu, todavia, a uma democratização dos fundamentos do poder e de sua reprodução. O sistema de partidos e eleições surgido após as reformas da fase final da ditadura foram mantidos; o sistema judiciário7, elitista e autonomizado de controles democráticos, ficou intocado; o poder militar com seus braços de militarização nas políticas de segurança pública foi garantido sem a aplicação de uma Justiça de Transição8; o sistema de comunicação oligopolista não foi alterado por novas medidas de comunicação pública e novos marcos regulatórios9. Esta contradição em movimento, a afirmação alta dos direitos e a baixa aposta no imperativo de submeter o poder político a uma dinâmica profunda de soberania popular, está no coração dos impasses da construção do SUS e, de resto, de toda a construção de direitos no pós-1988.
Contra a soberania popular e sua luta pela afirmação universal do direito fundamental à vida, armaram-se, ao longo do tempo da institucionalização do SUS, os sujeitos políticos que buscaram mercantilizar o acesso à saúde. A afirmação de direitos sem a devida democratização do poder favoreceu a associação - ainda que indireta - dos interesses mercantis a outras forças desconstituidoras da soberania popular, como: i) a judicialização da política; ii) a oligopolização da comunicação; e iii) a militarização - que recentemente se tornou mais explícita. Negociados, pactuados e permanentemente disputados no âmbito da democracia brasileira, esses elementos de força antirrepublicana adquiriram uma pulsão destruidora do SUS sem freios após o golpe parlamentar que levou ao impeachment da ex-presidenta Dilma. A partir de então, mais do que um autodenominado programa de reformas, a transformação que se opera promove uma mudança qualitativa do eixo constitucional a qual vinha se dando a ‘expansão cívica’ no pós-1988.
De longe, foi o princípio mercantil o que mais operou para destruir por fora e por dentro a realização plena do SUS. Externamente, o movimento articulou estruturas de limitações orçamentárias drásticas e persistentes do sistema, que se reconhecem nas medidas de Desregulamentação dos Recursos da União (1995), na Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), e na EC-95 (2016). Internamente, a destruição se fez reconhecer pelo assalto ao provimento público dos servidores por meio de sua terceirização, e com a criação da Agência Nacional de Saúde (1998), que, de fato, retirou do âmbito da soberania do SUS, e do próprio Conselho Nacional de Saúde (CNS), a regulação do mercado suplementar da saúde.
Esse sistema de articulação concorrencial do setor privado com o SUS se tornou, como sabemos, um enclave duradouro ao avanço da agenda democrático-popular da saúde1,2,5. Reafirmado na Constituição de 1988, esse fenômeno patrimonialista não apenas encontrou mutações como também ampliou sua capacidade de bloquear e desestabilizar a invenção democrática brasileira na área da saúde. O diagnóstico dessa dialética negativa entre as frentes do interesse mercantil e os propósitos públicos e universais do SUS forjou, no campo da saúde coletiva, importantes estudos identificando o subfinanciamento público e seus vínculos com o hibridismo público-privado de interesses e seus desdobramentos para o planejamento e gestão do sistema. Em uma perspectiva política, a persistência temporal desses impasses deve ser compreendida como o desafio matricial da própria afirmação da soberania popular na democracia brasileira.
Não obstante o avanço dessas fronteiras de mercantilização da saúde, a Constituição de 1988 vingou, por certo tempo, como um vigoroso regulador de interesses contrários e fortemente assimétricos. Decerto, uma arquitetura excludente, instável e precária no processamento dos conflitos amadurecidos em uma ordem social secularmente regressiva, mas que permitiu a expansão de políticas sociais mesmo contrapostas com reformas antiestado e processos de empresariamento da saúde. Com todos esses percalços, por um curto período, formou-se mesmo na ciência política brasileira o quase-consenso de que a forma histórica assumida pela democracia brasileira, embora limitada, havia encontrado um caminho adequado de equacionamento de seus conflitos políticos por meio de eleições regulares, competitivas e com expectativa de rotatividade no poder10,11. Como se sabe, desde 2016, a estabilidade institucional que a ciência política brasileira supunha existir encontrou sua ruína histórica patente. Na área da saúde, esse processo ampliou o dinamismo das pressões mercantis existentes sobre o SUS, evidenciando que seus objetivos encontravam apoio na atuação de outras vertentes políticas regressivas não superadas na Constituição de 1988.
Assim, do ambiente de incorporação precária dos programas progressistas, transitamos para uma ordem de agressiva imposição de interesses mercantis, em que os recursos e espaços institucionais que tornavam a vocalização da divergência política possível encontraram rápida dissolução. Em termos políticos, o golpe de 2016 foi um ataque revanchista contra a soberania popular e os seus lugares de expressão na democracia. Como estamos formulando, mais que uma cassação do resultado eleitoral ou perseguição a segmentos da representação político-partidária, o processo desencadeado alcançou a desconstrução da expressão política em sua forma democrática, que, como estamos vendo com a pandemia, é imprescindível para a sustentação institucional da autoridade sanitária do SUS. Com o golpe de 2016, reiterava-se o dilema da fundação da democracia brasileira que consistiu na afirmação de direitos sem a devida correspondência na democratização dos fundamentos do poder de Estado e de sua reprodução.
Ao encontro dos interesses do circuito empresarial na saúde, a hipertrofia do sistema judicial brasileiro empobreceu os espaços democráticos de decisões e conflitos políticos produtores da cidadania e amplificou a deslegitimação dos demais poderes do sistema político. Vista como uma tendência nas democracias ocidentais, a autonomização do judiciário em relação aos controles democráticos produziu uma judicialização crescente da política, variando pragmaticamente o seu juízo, progressista ou antidemocrático, segundo diferentes contextos.
Segundo Avritzer et al.7, a judicialização é potencialmente mais perigosa à democracia - quanto menos democrática a organização do sistema nacional de justiça, mais alargado o seu campo da jurisdição deliberativa e precário o controle das instâncias democráticas eletivas sobre o seu funcionamento. Considerando essas dimensões, é possível identificar que, no Brasil, o sistema de justiça não sofreu uma reforma democrática profunda após o regime militar. Na verdade, ampliou suas funções discricionárias de controle constitucional e deliberação, mantendo-se fortemente marcado por dimensões corporativas que resistem ao controle público. Como analisou Wanderley Guilherme dos Santos, a compreensão de que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem poderes ilimitados de interpretar, inclusive monocraticamente, a Constituição, está no cerne do ‘golpe jurídico’ de 201612. Além do impeachment sem caracterização adequada de um crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma Rousseff, o amplo e reiterado processo de quebra do devido processo legal da Operação Lava Jato são evidências da efetiva ameaça que a judicialização da política representa para a democracia brasileira13.
No Brasil pós-constituinte, o direito coletivo não recebeu das instâncias judiciais o tratamento público e universal que a saúde encontrou na tradição sanitarista. Pelo contrário, o que se desenvolveu foi a judicialização do direito individual como forma de acesso a serviços e remédios particularmente onerosos, não raro, estimulada por indústrias farmacêuticas e de medicina diagnóstica, em detrimento de uma avaliação das prioridades públicas do sistema14. O não julgamento da inconstitucionalidade da EC-95, que desconstrói direitos coletivos previstos na Constituição de 1988, é outro elemento que evidencia os limites democráticos da tradição jurídica brasileira e que contribui para a alienação da autoridade sanitária do SUS.
O cotejamento das tensões estruturais que a via jurídica repõe à afirmação da cidadania ativa como fonte soberana dos direitos não se confunde com a desconsideração da sua centralidade para a afirmação da própria democracia. Ao contrário, a documentação das distorções dos fundamentos republicanos democráticos presentes no judiciário se ocupa de recuperar o entendimento de que, relativizada a soberania popular como seu princípio fiador, restará um poder aberto à influência dos interesses mercantis oligárquicos.
Outro momento em que a democratização do poder não se materializou na Constituição de 1988 e que repôs limites crescentes aos propósitos do SUS se encontra no plano da comunicação15. A condição oligopolizada e mercantil do sistema midiático brasileiro opera desde a origem do SUS como ator de veto ao reconhecimento público da sua autoridade sanitária. O fosso que se pode identificar entre a crítica equilibrada das potencialidades e limites do SUS, como o faz prestigiados centros nacionais e internacionais de estudos, e a representação massiva e unilateral do ‘SUS problema’15, sempre operou como uma forma de confinar a agenda sanitária a uma verdadeira condição de semiclandestinidade. O aprendizado é que sem uma formação democrática da opinião pública, com a comunicação mantendo-se como recurso concentrado de poder político, as campanhas pela superação dos gargalos financeiros do SUS sempre encontraram dificuldade de se enraizar no cotidiano dos cidadãos. Permanecendo como um cidadão sem voz, o SUS seguiu até a chegada da pandemia sendo representado como caso reiterado de fracassos para boa parte dos seus próprios usuários.
Ao problema tradicional da assimetria de fala e, portanto, de corrupção da opinião pública9, soma-se a atuação dos novos circuitos de mídia. Ao lado dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, o Brasil tem-se destacado quanto à interferência das mídias sociais em assuntos públicos16. Controlados a partir de grandes provedores corporativos globalizados, as novas mídias se valem de grandes bancos de informação sobre cidadãos mantidos por empresas e governos para interferir na formação da opinião pública e sobre questões políticas da vida em sociedade.
Os sentidos mercantis da comunicação presentes na democracia brasileira têm produzido um verdadeiro processo de silenciamento das lutas populares pelo direito básico e universal à saúde. No contexto da pandemia, não deixa de ser revelador e trágico que seja o Jornal Nacional, ao lado de um ‘consórcio das mídias tradicionais’, que se destaque como porta-voz cívico da racionalidade de uma autoridade sanitária, e não as instituições da saúde coletiva.
Outro vetor de corrosão do princípio da soberania popular e que afeta a autoridade sanitária do SUS tem sido o da militarização, que bloqueou, desde 1988, as políticas de segurança pública de um princípio de afirmação cidadã de direitos humanos. Como o fim da ditadura militar, não houve Justiça de Transição para a retomada da convivência democrática no Brasil, senão muito parcialmente, por meio da dinâmica de memória e reparação dos atingidos do regime. Certamente, a perseguição reiterada ao padrão masculino, negro e pobre que compõe a dimensão mais popular brasileira é um legado desse vetor de desagregação democrática17. As linhas de influência política da militarização no pós-1988 vão desde a manutenção do seu controle sobre a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e o Ministério da Defesa e do papel desempenhado pela Justiça Militar até a presença de uma ‘bancada da bala’ no Congresso brasileiro. As funções assumidas pelas forças armadas na manutenção da ordem interna por ocasião da ECO-92, durante o governo FHC, na realização das Olímpiadas, no governo Dilma, e a descarada intervenção militar no Rio de Janeiro decretada por Michel Temer atestam o programa repressivo na vida civil brasileira.
Neste momento de pandemia, essa vertente da militarização chegou ao centro do SUS, e abate agora o Ministério da Saúde, desarticulando toda uma memória de gestão técnica acumulada em décadas de trabalho dos sanitaristas. A ocupação de cargos-chave no ministério por militares implica ana substituição da competência dos quadros técnicos, comprometendo a manutenção de programas e políticas amadurecidas nos duros conflitos travados pelos sujeitos políticos da Reforma Sanitária. Essa experiência é, sem dúvida, um caso extremado mas não externo ao impasse histórico da violência institucionalizada que permaneceu atuante na redemocratização brasileira. O processo de recrudescimento das dinâmicas repressivas se faz pari passu ao constrangimento dos espaços de negociação e pactuação democráticas vitais ao SUS, favorecendo o espraiamento das iniciativas mercantis. A convergência de forças militarizadas com interesses de mercado no assédio às democracias não é um fenômeno inédito na América Latina, como bem evidencia a triste experiência chilena, de 1973 a 1990.
Como estamos procurando discutir, a desconstrução da autoridade sanitária do SUS - de fragilização da sua institucionalidade e capacidade técnica - expressa um problema de fundação da própria democracia brasileira: afirmar direitos sem democratizar lugares importantes de reprodução do poder. Com esse entendimento, a dificuldade sanitarista de se fazer núcleo dirigente da política de saúde no contexto da pandemia pode ser entendida como um problema de afirmação política da própria soberania popular. O complexo cruzamento de interesses não republicanos do mercado com os princípios do militarismo, da judicialização da política e do silenciamento histórico da voz sanitarista praticado pela mídia oligopolizada está na raiz desse processo.
A memória, o ideário e a prática política das democracias são, antes de tudo, fatos políticos em disputa. Em que pesem os registros históricos de que o moinho das democracias sempre foi impulsionado pela luta de oprimidos contra os sistemas de desigualdades, no século XX, ela se projetou como uma larga evolução do liberalismo oligárquico18. Essa condição, comparece, por exemplo, na influente reflexão de T. H. Marshall19(84), para quem os direitos de cidadania seriam “instrumentos corriqueiros da democracia moderna [que] foram aperfeiçoados pelas classes altas e, então, transmitidos, passo a passo, as mais baixas”.
No seu processo de cristalização teórica, o liberalismo substituiu a noção de soberania popular republicana democrática por uma noção de soberania do poder que se autolimitaria no plano econômico, reconhecendo como legítima a desigualdade estruturante do capitalismo. Além disso, a tradição liberal passou a vincular o direito à liberdade de expressão cidadã ao mercado de imprensa em expansão, carente de regulação e controle social. A própria noção de um ‘Estado de direito’ resguardado por uma ordem jurídica autonomizada da esfera da política deslegitimaria o constitucionalismo democrático fundado na soberania popular. Nas democracias liberais, enfim, o princípio da legitimidade ascendente do poder, de participação direta ou semidireta de controle da representação, a formação de uma opinião pública democrática, a regulação da economia pelos institutos da soberania popular, a subordinação do poder judiciário às suas fontes originais e populares de legitimação, sempre foram fortemente relativizadas.
Como aponta Wendy Brown20, a maior vitória do neoliberalismo tem sido a sua capacidade de definir-se como caminho único aos desafios coletivos no século XXI. O que resulta em reconstituir a gramática da política a partir da sua razão econômica, distanciando radicalmente as forças populares dos processos políticos que afetam a vida coletiva. O centro da crítica neoliberal ao chamado liberalismo social ou keynesiano é que a dinâmica do sufrágio universal levaria a uma demanda crescente pela criação de novos direitos, gerando uma irracionalidade econômica e, pior, o aumento opressivo da presença do Estado contra a liberdade dos indivíduos. A aceitação da universalização do direito de voto, que se consolidou no liberalismo democrático do pós-guerra, não deveria ser mesmo confundida com a aceitação plena do princípio da soberania popular.
Thomas Briebricher21 identifica três argumentos centrais contra a soberania popular nas teorias neoliberais. A dinâmica de rent-seeking, que é intrínseca aos processos eleitorais nas democracias, levaria a que os políticos, em nome de maximizar votos, operassem uma corrida sem limites para atender às demandas de seus clientes, onerando abusivamente o Estado. A partir daí, o melhor caminho seria o de autarquizar as principais decisões do processo de soberania popular, conferindo às instituições econômicas uma autoridade que se autolegitima, eliminando, conforme propõe a tradição da Escola de Chicago, o constrangimento de as minorias proprietárias terem que se submeter às maiorias.
Com o neoliberalismo, consolida-se a radicalização do ataque ao princípio da soberania popular, que não deve ser mais relativizada, mediada ou negociada, mas anulada. Na experiência brasileira, essa condição conecta o processo e o programa de reformas do estado operado nos governos FHC com a estação definitiva de transformações aceleradas após 2016. Em essência, procuram revogar o eixo constitucional ao qual vinha se dando a recortada expansão cívica desde o pós-1988. Na próxima seção, discutiremos como esse processo de desidratação dos espaços políticos de constituição de uma cidadania sanitária ganhou sua forma histórica.
Impactos da crise política na saúde
No dia 27 de maio de 1986, um segmento expressivo de moradores da Baixada Fluminense fechou a movimentada Rodovia Presidente Dutra com o objetivo de chamar a atenção das autoridades para os problemas de saúde da região. No ano anterior, a fiscalização popular organizada pelos ‘Conselhos Comunitários de Saúde’ de Caxias, Nilópolis, São João de Meriti e Nova Iguaçu, compostos por associações de moradores, médicos, igrejas e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), já havia conseguido mudar o chefe de Medicina Social do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), e levado ao descredenciamento serviços particulares, por mal funcionamento22.
Essa consciência do caráter político da saúde se articulava nacionalmente com o Movimento Operário Popular em Saúde (Mops), que, anos antes, no VII Encontro Regional de Saúde Popular, definira a luta pela saúde “a partir de decisões tomadas pelo povo, sem fazer concessões”23. A afirmação desse “poder popular” por meio da participação em conselhos gestores se tornaria uma das principais inovações democráticas da Constituição de 1988.
Em 2019, existiam cerca de 36 mil Conselhos Municipais de Políticas Públicas no País, que, na área saúde, alcançava 97% dos municípios24. Os anos de formação dessa estrutura democrática participativa revelam mesmo uma estação de lutas políticas. A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, tornou-se um momento fundador da Reforma Sanitária, por, entre outros motivos, abrir-se, de forma inédita, a essa participação popular ampliada. Atesta a relevância das lutas populares o veto inicial do então presidente Fernando Collor a todos os artigos relativos à descentralização e ao controle social presentes naquela que seria a Lei Orgânica da Saúde, em 199025. Já em junho de 2014, passados 24 anos, essa reação conservadora voltaria ao primeiro plano da vida pública nacional para se colocar contra a edição do Decreto nº 8.243 pautado por Dilma Rousseff, que visava implementar a Política Nacional de Participação Social. O tom de indignação que marcou o contraponto de deputados, senadores, empresários, articulistas e editoriais jornalísticos26 revelaria novamente que as formas participativas de exercício da política permaneciam enquadradas como uma ameaça à própria democracia. Ato contínuo, essa aversão ao ativismo popular se consolidaria, em 2019, com o Decreto nº 9.759/19, editado por Jair Bolsonaro. A iniciativa visava à supressão de 35 órgãos de participação democrática, como o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso e a Comissão Nacional de Política Indigenista. Mais que um desconforto, a voracidade do gesto deixava patente a demofobia da tradição política conservadora brasileira, que, reiteradamente, procurou reproduzi-la no plano institucional.
No período que separa os governos Collor e Bolsonaro, as instâncias de participação social se consolidaram como um modo de disputa política e ampliação dos direitos sociais. Como indicam diversos estudos, a partir de 2003, essas formas participativas de exercício da cidadania se tornariam paradigmáticas. No caso das Conferências Nacionais, 70% delas seriam realizadas pela primeira vez entre 2003 e 2011, somando um total de 74 edições, envolvendo aproximadamente 5 milhões de pessoas27.
O contraponto às possibilidades criadas pela participação democrática desde 1988 tem seu enraizamento vinculado aos circuitos sociais e sujeitos políticos orgânicos às instituições do mercado. Na resistência de Fernando Collor, a orientação tinha lastro em sua equipe econômica, como destacou Paim25. Na oposição à iniciativa de Dilma Rousseff, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo chegou a formular que a sociedade deveria “rejeitar tal ação autoritária”28. À época, em editorial, o jornal O Globo já havia afirmado que o ‘decreto agride a democracia’ posto que se tratava de um ‘golpe de gabinete’26. A essa convergência entre grandes empresários e oligopólios de mídia, somaram-se a representação de parlamentares e os segmentos das camadas médias, que, àquela altura, já se valiam da gramática espúria que se tornaria usual nos anos seguintes.
A deslegitimação dos processos e dos resultados alcançados pelas formas mais populares de participação, a desautorização e a criminalização dos seus resultados, tipicamente recepcionados na chave do aparelhamento da máquina pública, da infiltração de grupos inclinados à corrupção e desmandos, devem ser reconhecidas como uma gramática política da tradição conservadora brasileira. Tal perspectiva compõe uma das estruturas que atuaram decisiva, e mais intensamente, na desagregação da ordem democrática em 2016.
A contraface dessa narrativa que procura deslegitimar a influência da participação ampliada nas decisões políticas é a naturalização dos circuitos institucionais em que os interesses corporativos empresariais são encaminhados. Como atestam diversos estudos, o lobby das empresas da saúde se estende a um grande espectro político-partidário dos poderes legislativos e executivo29, faz-se presente nas instâncias da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)29 e na editorialização das corporações de mídia. Em 2010, as principais empresas da saúde suplementar “destinaram R$ 11,8 milhões em doações oficiais para as campanhas de 153 candidatos a cargos eletivos”, contribuindo para a “eleição de 38 deputados federais, 26 deputados estaduais, 5 senadores, além de 5 governadores e da presidente da República”29(98). É parte dessa forma de fazer política, o evento que reuniu mais de 20 corporações ligadas à saúde suplementar, em 2016, para fomentar a criação dos chamados planos populares de saúde30. À época, já na gestão Temer, a proposta foi formulada e encaminhada à ANS sem que nenhuma representação dos conselhos gestores ou mesmo que as instituições da saúde coletiva fossem ouvidas30. Nos circuitos oligopolizados das empresas de mídia, ao lado da divulgação do ‘SUS problema’, reportagens pagas pelo setor suplementar faziam o trabalho de divulgar os novos planos populares como uma boa oportunidade para os negócios31.
O contraste em termos de recursos de poder entre os sujeitos políticos que lutam pela agenda sanitarista e os atores articulados pelos interesses do mercado suplementar é historicamente notável. Sendo essa uma condição persistente no arranjo institucionalizado pela Constituição de 1988, após 2016, o estreitamento dos canais de construção e pactuação políticas do SUS nos ensina que, com o enfraquecimento da política cidadã e participativa, impõem-se os termos da razão mercantil.
Como estamos formulando, a autoridade sanitária do SUS deve ser compreendida a partir da vitalidade política da sociedade brasileira. Constrangidos os sujeitos políticos e seus espaços de mobilização, pactuação e conflito que permitem o cultivo desse poder soberano, a capacidade institucional do SUS torna-se ainda mais vulnerável às forças desconstituidoras dos seus princípios. No contexto da pandemia, ações como aquelas que vêm sendo desenvolvidas pela Central Única das Favelas e outras associações comunitárias, mobilizando comunidades, pensando propostas e estabelecendo redes de comunicação, materializam resistências fundamentais à sustentação do SUS32.
Nessa perspectiva, além dos lugares do controle social aqui avaliados, outros atores importantes para o enriquecimento do sentido republicano da saúde são o CNS, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). A atuação desses sujeitos políticos nas principais articulações em torno do financiamento do SUS está registrada em momentos como a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em 1997, a campanha pela EC 29, em 2000, o movimento ‘Saúde +10’, iniciado em 2012, e, mais recentemente, a ‘Marcha pela Vida’. No contexto da pandemia, uma iniciativa marcante é a construção do ‘Painel CONASS COVID-19’, que, em 2020, vem marcando um contraponto decisivo à censura do governo federal do número de vítimas da Covid-19.
As contradições internas desses espaços e os limites das ações desempenhadas, decerto, existem e não devem ser descartados33. A título de exemplo, recentemente, foi possível acompanhar o apoio do Conasems às reformas no modelo de financiamento da PNAB, cujos impactos negativos já se fazem presentes na estrutura da Atenção Primária à Saúde (APS)3. Não são poucas as fronteiras; contudo, o constrangimento das lutas travadas nesses espaços, o desrespeito e a deslegitimação a seus trâmites e sujeitos políticos exprimem, em boa medida, a natureza política do processo de desconstituição da democracia brasileira, que se agrava aceleradamente com a eleição de Jair Bolsonaro.
Na área da saúde, o movimento de contração da política e expansão da influência dos interesses mercantis ficou claramente definido com o teto de gastos apontado pela EC 95/16. Explorando seus sentidos políticos, o primeiro entendimento é que a constitucionalização desse regime fiscal expressa com precisão a força da coalizão político-empresarial e financeira que assumiu a presidência com Temer, em 2016, em meio a forte influência dos meios jurídicos7,13. Com a referida emenda, a economia passava a se tornar imune a qualquer controle democrático, expressando, de forma bruta, que a plena realização dos interesses do mercado exige a restrição e a censura das práticas políticas dos trabalhadores, pensionistas, desempregados, e outros segmentos sociais.
Em 2016, em meio aos intensos protestos da sociedade civil, greves e ocupações estudantis que ocorreram nas escolas e universidades públicas de todo o País contra a ‘lei do teto de gastos’, os representantes da Febraban e do Banco JP Morgan do Brasil compunham forças contrárias no Congresso Nacional. Concomitantemente, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfjan, ex-economista-chefe do Itaú Unibanco, executava uma intensa agenda pública midiatizada angariando apoio ao tema34. Em 2018, Goldfjan seria eleito o melhor banqueiro entre os presidentes de bancos centrais do mundo pela revista britânica ‘The Banker’, do grupo Financial Times35.
No momento de fundação do SUS, é possível identificar que, na contraface dos movimentos que almejavam a republicanização do direito à saúde, atuavam distintos segmentos empresariais, organizados em instituições como a Federação Brasileira de Hospitais e a Associação Brasileira de Medicina de Grupo. Nos 32 anos de construção do SUS, essas frentes de exploração mercantil da saúde passaram por importantes mutações, operando o movimento de enraizamento de sua agenda no momento mesmo em que se expandia a assistência pública. Na virada dos anos 1990 aos anos 2000, como identificado por Faleiros36, as corporações de mercado deslocariam a tese do confronto com os sanitaristas para o campo da convergência, da parceria e da colaboração entre os interesses privados e os objetivos públicos. Não obstante, como explica a autora, a agenda empresarial se mantinha articulada em torno de pautas como a diminuição da carga tributária sobre produtos e serviços de saúde, a flexibilização da legislação trabalhista e a abertura ao capital estrangeiro. Nesse fluxo, Sestelo37(21) identificou ainda a atuação de “grupos econômicos globais no controle e intermediação comercial das operadoras de seguros de assistência à saúde”.
A concepção fiscalista da economia, que opõe a organização das contas públicas à dimensão social dos direitos, exige uma complexa arquitetura de poder para se impor. No Brasil, com os governos FHC, um conjunto particular de circunstâncias históricas favoreceu essa imersão. Nesse processo, o trabalho de dogmatização da linguagem das ‘reformas’ na vida nacional contou com a normalização de expressões como ‘gerencialismo’, ‘flexibilização’, ‘desburocratização’ e ‘ajuste fiscal’. No bojo das transformações que essa gramática política estimulava, no ano 2000, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal abriu caminhos extraordinários à participação privada na organização dos serviços públicos, limitando o quadro de pessoal e atingindo dramaticamente os municípios1. No SUS, o seu impacto é sensível.
Em 2016, considerando apenas o estado de São Paulo, 58% dos estabelecimentos públicos de saúde eram gerenciados por Organizações Sociais de Saúde (OSS), e as 10 maiores empresas do setor já estavam presentes em 17 estados do País38. Considerando a administração pública estadual do Rio de Janeiro, atualmente existem 14 OSS responsáveis pela gestão de todas as Unidade de Pronto Atendimento de Saúde e 15 hospitais. Analisando o quadro de servidores da Secretária de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (SES/RJ), entre 2014 e 2020, o modelo de gestão terceirizada motivou a redução em 54% do seu pessoal concursado39. Em substituição, uma variedade significativa de contratos flexibilizados e terceirizados de trabalho passou a predominar nessa repartição do estado. No município do Rio de Janeiro, a flexibilização dos vínculos trabalhistas, proposta como virtude central dos modelos gerenciais de gestão, favoreceu nos últimos anos o descredenciamento de um quarto das Equipes de Saúde da Família. Em plena pandemia, esse processo de desmonte culminou com a desassistência de mais de 1 milhão de pessoas dos serviços da APS.
O estudo das determinações políticas que operam na desconstituição da autoridade sanitária do SUS contribui para compreender por que o País é o segundo em número de vítimas fatais e contaminações pelo novo coronavírus no mundo. Como estamos problematizando, para além da dinâmica de contágio própria da Covid-19, existem razões políticas para a sua expansão massiva. O caos cotidiano reportado nos meios de comunicação documenta os efeitos mais sensíveis da desconstituição sanitária do sistema, presente desde a falta de respiradores e equipamentos de segurança, passando pela a carência de leitos públicos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e profissionais de saúde, à corrupção que comparece nas parcerias privadas para implantação dos hospitais de campanha.
Entre março e junho de 2020, mais de 430 mil profissionais da saúde foram infectados pelo novo coronavírus, dos quais 19,21% foram a óbito. Ao todo, o Brasil já ultrapassa os 70 mil mortos e se aproxima da marca de 2 milhões de infectados, desproporcionalmente concentrados nas trabalhadoras e trabalhadores pretos e pardos das periferias. Se com o ex-Ministro Mandetta havia uma autoridade sanitária parcial, a todo momento deslegitimada por Bolsonaro, com Nelson Teich, criou-se um vácuo inoperante. Com o general Pazuello, houve um verdadeiro sequestro do Ministério da Saúde, em que o ato de maior impacto do general interino tem sido o de tentar mascarar o número de mortos, formando os novos desaparecidos políticos do novo coronavírus. Na ausência de condições democráticas, a desinstituição da autoridade sanitária do SUS abre caminho a um genocídio - e, como tal, a morte evitável de cada cidadão e cidadã brasileiros deve ser compreendida como crime político.
Em busca de uma autoridade sanitária democrática nacional
O sequestro do poder instituinte do povo funda o grande risco do SUS. Essa afirmação implica denunciar que o fiador das democracias não é e não se prende aos humores do mercado, não se confunde com o sistema judiciário e não emana das forças armadas ou de grandes corporações de mídias. Na experiência brasileira, os movimentos de ruptura democrática sempre foram, a bem da verdade, iniciativas dessas vertentes oligarquizadas de poder. A construção da autoridade sanitária do SUS, fruto das lutas ascendentes do poder nos últimos 30 anos, coloca-se, portanto, como um movimento de resistência a essas forças políticas.
As dimensões políticas que impulsionam a Covid-19 foram aqui compreendidas no bojo dos processos mercantis que sempre procuraram se impor sobre os espaços da luta política. A esse movimento de colonização já identificado na tradição de estudos da saúde coletiva, procuramos apontar a convergência dos vetores regressivos não superados na Constituição de 1988, em que destacamos a militarização, a comunicação oligopolizada e a judicialização da vida política.
Com essa perspectiva, apontamos que os efeitos mais duros da pandemia do novo coronavírus denunciam uma aguda desagregação do demos, da fragilização da sua capacidade de se impor como a referência legítima ao exercício do poder. Dito de outro modo, a democratização do poder continua sendo o mistério político que se impõe ao alargamento dos direitos de cidadania no Brasil. No âmbito do SUS, esse enclave à realização do interesse popular se materializa com os processos privatistas que interditam a realização plena dos seus objetivos públicos e universalistas.
Atualmente, o País parece se encontrar em uma situação de impasse: não se enfrenta consistentemente a pandemia, e não se retoma as linhas vitais da economia. Mantida essa condição, os estudos epidemiológicos projetam um futuro cinza, entregue à contingência que a pandemia for capaz de ditar. No revés dessa contra-autoridade estatal, que é hoje antissanitarista, é possível identificar caminhos vigorosos de reconstrução da democracia. Em seu centro, encontra-se o movimento Frente Pela Vida, liderado pelas principais entidades sanitaristas do País, e apoiado por mais de 400 organizações da sociedade civil, indo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da OAB a Centrais e Sindicatos de diversas categorias trabalhistas, passando por dezenas de associações profissionais e de lutas por direitos humanos. No documento ‘Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19’, encontra-se um rigoroso programa do direito à vida do povo brasileiro. Ao encontro dessa força cívica sanitarista, as iniciativas do Consórcio do Nordeste, estruturadas em torno do seu ‘Comitê Científico de Combate ao Coronavírus’, materializam encaminhamentos e medidas que representam verdadeiras experiências políticas de resistência ao negacionismo selvagem bolsonarista. Governados por variados espectros das esquerdas e centro-esquerdas, o Consórcio se torna ainda mais importante por evidenciar a necessidade de se alinhar definitivamente à tradição sanitarista no centro desses programas partidários.
O terceiro movimento, particularmente notável, tem sido a energia e a capacidade de articulação e resistência dos diversos coletivos das populações de favelas no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Salvador e em outras capitais brasileiras. O protagonismo de institutos como o Raízes em Movimento, a Frente de Mobilização da Maré e o Comitê Comunitário de Enfrentamento da COVID-19 nos bairros populares de Salvador é referência da vitalidade necessária à reconstituição histórica dos fundamentos republicanos do poder. O vínculo entre entidades e quadros sanitaristas, coalizações político-partidárias progressistas e ações populares estão na concepção do SUS. Na atual conjuntura, é fundamental fazer convergir essa dinâmica política para efetivar a construção de uma permanente autoridade sanitária democrática nacional, alternativa, em tudo, ao governo Bolsonaro.
Com a pandemia, o SUS veio ao centro da vida nacional, tornando-se um fato político potencialmente desestabilizador do ethos neoliberal. A expansão da sua legitimação no plano dos valores públicos assenta a compreensão de que, sem o SUS, não superamos essa pandemia. A esse sentimento público e às energias políticas organizadas das forças que desde já disputam o futuro do SUS e da democracia brasileira, não deve, no entanto, escapar o entendimento de que esse é um processo de recriação, e não de recuperação da ordem anterior. A atenção aos circuitos concentrados de poder e do seu vínculo com as exigências mercantis do neoliberalismo constitui parte central da agenda. Como a história nos ensina, a perpetuação desses impasses políticos fará de qualquer tentativa democrática no Brasil uma experimentação precária e provisória. Não existe democracia sem sentimento de república.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Ago 2021 -
Data do Fascículo
Dez 2020
Histórico
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Recebido
15 Jul 2020 -
Aceito
04 Set 2020