Open-access Uso de leitos hospitalares privados por sistemas públicos de saúde na resposta à Covid-19

Use of private hospital beds by public health systems in response to Covid-19

RESUMO

Neste estudo, examinaram-se estratégias adotadas por países com sistemas públicos de saúde que expandiram a oferta de leitos por meio da utilização de hospitais privados na resposta à Covid-19. Utilizou-se estudo de casos selecionados para explorar o contexto institucional em que as medidas foram implementadas, os instrumentos de gestão utilizados e como se caracterizou a ação governamental em oito países: Austrália, Espanha, Irlanda, Itália, Chile, México e Peru, além do Brasil. Esta análise pode auxiliar a identificar mecanismos de gestão de sistema de saúde necessários para a coordenação de ações governamentais para resposta a situações de Emergência em Saúde Pública (ESP), bem como para aperfeiçoar a governança dos sistemas de saúde na relação entre os setores público e privado.

PALAVRAS-CHAVE Administração de serviços hospitalares; Administração de saúde pública; Serviços médicos de emergência; Parcerias Público-Privadas

ABSTRACT

In this study, strategies adopted by countries with public health systems that expanded the supply of beds through the use of private hospitals in response to Covid-19 were examined. The study of selected cases was used to explore the institutional context in which measures were implemented, the management tools used and how to characterize government action in eight countries: Australia, Spain, Ireland, Italy, Chile, Mexico and Peru, in addition to Brazil. This analysis can help to identify health system management mechanisms necessary for the coordination of government actions to respond to Public Health Emergency situations, as well as improve the governance of health systems in the relationship between public and private sectors.

KEYWORDS Hospital facilities administration; Public health administration; Emergency medical services; Public-Private Sector Partnerships

Introdução

Emergências em Saúde Pública (ESP) testam a resiliência de sistemas de saúde e exigem de governos capacidade para implementar ações rápidas e eficientes dirigidas a mitigar impactos em saúde e oferecer assistência e orientação à população1,2. Na pandemia provocada pelo novo coronavírus SARS CoV-2 (Covid-19), um dos maiores impactos sobre o sistema de saúde foi o rápido aumento na demanda por internações hospitalares, especialmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTI)3,4. Isso exigiu dos gestores de sistemas de saúde a adoção de diferentes estratégias para expandir a capacidade instalada de oferta assistencial5.

Entre as estratégias observadas para reorganizar a rede assistencial, visando a absorver o aumento da demanda hospitalar, destacaram-se: ‘mudança de rotina’, com adiamento de procedimentos, cirurgias e internações eletivas; ‘mudança de perfil’, por meio da redefinição da vocação de hospitais ou alocação de alas hospitalares para destinação de leitos exclusivos para internação de pacientes Covid-19; ‘ampliação da estrutura assistencial permanente’, mediante a transformação de leitos de enfermaria em leitos de maior complexidade, com ênfase em leitos destinados a cuidados críticos; e ‘ampliação de estrutura assistencial temporária’, por meio do aluguel de hotéis ou montagem de hospitais de campanha para casos de menor complexidade6.

Além dessas alternativas, também se verificou que alguns países fizeram uso de leitos em hospitais privados na resposta pública à Covid-196. Essa medida mostrou-se efetiva, pois, em muitas situações, esses leitos já dispunham de estrutura, equipamentos e pessoal para adequado funcionamento, conferindo agilidade às ações e reduzindo a necessidade de investimentos para a construção de novos leitos. Porém, a relação entre os setores público e privado na saúde tem particularidades que variaram de acordo com o contexto de cada país e o modelo de organização de seus respectivos sistemas de saúde, podendo ser geradoras de inequidades no uso dos recursos disponíveis7.

Neste estudo, foram examinadas estratégias adotadas por países com sistemas públicos de saúde que expandiram a oferta de leitos hospitalares por meio da utilização de serviços privados na resposta à pandemia. Buscou-se descrever o contexto institucional em que as medidas foram implementadas, os instrumentos de gestão utilizados e como se caracterizou o modo de ação governamental. Esta análise pode auxiliar a coordenação de ações governamentais em resposta à ESP, bem como oferecer lições para aperfeiçoar a organização e a governança dos setores público e privado nos sistemas de saúde num cenário pós-Covid.

Material e métodos

Utilizaram-se como método o estudo de casos selecionados e a análise qualitativa dos dados dos países estudados. Buscou-se selecionar uma amostra intencional de países com sistemas públicos de saúde que ampliaram a utilização de hospitais privados na resposta à Covid-19 e que pudessem representar modos distintos de ação governamental no uso de recursos privados pelo poder público. Para identificar os países e coletar dados de pesquisa, realizou-se busca em websites de órgãos governamentais, organismos internacionais e imprensa, complementada por entrevistas com informantes-chave. A busca documental foi realizada entre março e maio de 2020, e foram consultados 14 informantes-chave, entre os quais, pesquisadores e gestores de sistemas de saúde, do Brasil e de países selecionados.

Em seguida, buscou-se caracterizar o contexto institucional, com informações sobre os sistemas de saúde dos países analisados com relação a recursos financeiros alocados na saúde (ano base: 2015): gasto per capita em U$ PPA, percentual do Produto Interno Bruto (PIB), percentual do gasto público e privado e percentual de desembolso direto sobre gasto privado; e recursos humanos e físicos disponíveis: número de médicos e de leitos hospitalares e percentual de leitos públicos (último ano com dados disponíveis). Para coleta desses dados, foram consultadas informações disponíveis nos websites dos escritórios regionais da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre os quais: Organização Pan-americana de Saúde (Opas)8 e OMS Europa9, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)10, Perfil Internacional de Sistemas de Saúde11 e Datasus, do Ministério da Saúde12.

Por fim, procedeu-se a uma análise qualitativa, buscando caracterizar aspectos da organização do sistema de saúde, com relação a governança, financiamento e participação do setor privado, instrumentos de gestão utilizados para uso de recursos hospitalares privados e o modo de ação governamental em cada um dos países analisados.

Resultados

Foram encontradas oito experiências de países que expressam diferentes modos de ação governamental no uso de leitos privados por sistemas públicos. Entre eles, um da Oceania: Austrália; três da Europa: Espanha, Irlanda, Itália; e três da América Latina: Chile, México, Peru, além do Brasil.

Na tabela 1, encontram-se dados sobre recursos financeiros e físicos disponíveis nos sistemas de saúde.

Tabela 1
Recursos financeiros e físicos disponíveis no sistema de saúde

A seguir, será apresentada uma síntese sobre o contexto institucional de cada um dos sistemas de saúde e os instrumentos utilizados para a ampliação do uso de leitos privados na resposta à Covid-19.

Austrália

O sistema público de saúde australiano é universal, e os três níveis de governo são coletivamente responsáveis pela prestação de assistência à saúde11. O governo federal financia e apoia os estados na prestação de serviços. Os governos estaduais são responsáveis pela gestão de hospitais públicos, serviços de ambulância, serviços comunitários e de saúde mental11. Os governos locais atuam na prestação de programas preventivos, como imunização. Apesar de o financiamento público corresponder a 6,4% do PIB e representar 68,8% do gasto total, o setor privado tem importante participação no sistema de saúde, sendo responsável por quase 60% das cirurgias realizadas do País e por dispor de um terço dos leitos de UTI existentes10.

Para enfrentar a pandemia da Covid-19, o governo federal australiano assinou um acordo com representantes dos hospitais privados e das associações médicas e de enfermagem do País, que permitiu colocar 34 mil leitos privados à disposição do sistema público13. Esse acordo auxiliou a manter a receita do setor, reduzida pelo cancelamento das cirurgias eletivas. A parceria também mobilizou cerca de 105 mil profissionais de saúde, dos quais, 57 mil são da área de enfermagem14. O acordo nacional foi adaptado a cada estado. Em Victoria e Queensland, as parcerias incluíram planejamento conjunto de resposta às necessidades, compras coletivas de equipamentos, medicamentos, insumos e intercâmbio de profissionais de saúde15; na Austrália do Sul, restringiram-se à contratação de leitos privados16.

Espanha

O sistema de saúde espanhol é composto de três subsistemas, que coexistem: o Sistema Nacional de Saúde (SNS), complementado por fundos mútuos para os funcionários públicos das forças armadas e do judiciário, e mutualidades focadas na assistência a acidentes e em doenças ocupacionais9. O SNS é universal, financiado por impostos, e a governança é regional, espelhando a divisão administrativa do País em Comunidades Autônomas9. O gasto público em saúde é de 6,2% do PIB, correspondendo a 70,5% do total em saúde, e a maior parte dos leitos hospitalares é pública11. O setor privado é suplementar ao público.

No enfrentamento à Covid-19, o setor privado de saúde teve importante papel no apoio ao SNS, porém, a relação foi variável em cada região. Em geral, o número de centros de saúde e de leitos hospitalares foi ampliado e as unidades reformuladas para abrigar pacientes com a Covid-19. Seguindo o Decreto-Lei que definiu medidas urgentes na esfera econômica e para a proteção da saúde pública17, leitos privados de UTI foram estatizados provisoriamente, ficando disponíveis para atender pacientes do sistema público quando este tivesse sua capacidade esgotada18.

A ocupação dos leitos privados, entretanto, foi bastante variada, alcançado 100% dos leitos disponíveis em algumas regiões, enquanto em outras houve baixo ou quase nenhum uso19,20. Além disso, o modo de organização da rede assistencial foi diferenciado. Certas regiões definiram que hospitais públicos seriam totalmente dedicados aos pacientes de Covid, enquanto os privados passaram a cuidar das demais causas de internação, abrindo oportunidades para fortalecer a integração entre os setores num cenário pós-Covid-1921.

Irlanda

A Irlanda dispõe de um sistema universal de saúde, financiado por impostos e taxas9. Todos os residentes no País têm direito a receber assistência médica prestada no sistema público de saúde. O sistema privado de saúde é suplementar ao público. O País conta com 5,2 leitos de UTI por 100.000 habitantes, a maioria públicos, enquanto a média da comunidade europeia é de 11,5 por 100.00010. O gasto público em saúde é de 5,3% do PIB, correspondendo a 74,6% do gasto total10.

Na resposta à pandemia da Covid-19, todos os cerca de 2.000 leitos hospitalares (14% do total), nove laboratórios e centenas de profissionais de saúde do setor privado foram requisitados para atuar no sistema público de saúde22. O Estado manteve o controle e a administração das instalações privadas de saúde durante os meses de março e maio, período de maior demanda de casos da pandemia no País23. O arranjo foi bem avaliado e poderá ser retomado caso ocorra novo aumento de casos24.

Itália

O sistema nacional de saúde italiano é universal e organizado regionalmente, sendo papel do governo central definir um pacote nacional de benefícios estatutários a ser oferecido em todas as regiões9,11. As 19 regiões do País e duas províncias autônomas têm a responsabilidade de organizar a prestação de serviços de saúde por meio de unidades de saúde locais, com autonomia na forma de fazê-lo. A maior parte dos leitos hospitalares é pública. O gasto público em saúde é de 6,5% do PIB e corresponde a 73,9% do gasto total10. O setor privado é suplementar ao público.

Para responder a situações de emergência, um decreto presidencial foi publicado contendo medidas urgentes com relação à contenção e ao manejo da emergência epidemiológica da Covid-19. Aplicável em todo o território nacional, o decreto permitiu a requisição, pelo poder público, de estruturas, equipamentos e profissionais de saúde do setor privado25, e abriu espaço para diálogo e construção de acordos entre os governos regionais e o setor privado, representado pelas associações locais de hospitais privados26.

Em muitos casos, as unidades privadas foram utilizadas para receber pacientes do sistema público com diagnósticos que não fossem de Covid, permitindo que as estruturas públicas se concentrassem no atendimento a pacientes com quadros respiratórios27. Em outras regiões, com menor capacidade de internação de pacientes críticos no setor público, unidades privadas foram dedicadas exclusivamente para atendimento de pacientes de Covid28. Também houve acordos do tipo ‘fila única’, que contemplam hospitalização em unidades públicas ou privadas de pacientes com todos os diagnósticos, não apenas Covid29,30.

Chile

O Chile apresenta um sistema de saúde segmentado, que inclui um seguro público (Fundo Nacional de Saúde - Fonasa), um privado (Instituições de Seguridade Social - Isapre), substitutivo ao público, e outros seguros específicos para as Forças Armadas8. A prestação de serviços públicos de saúde é realizada por secretarias ministeriais regionais. O gasto público em saúde é de 4,9% do PIB e corresponde a 60,5% do total. O setor privado, porém, concentra a maior parte dos leitos hospitalares10.

Em 2009, na pandemia do H1N1, o Ministério da Saúde do Chile criou um dispositivo para uso de recursos privados pelo sistema de saúde público chamado de UGCC (Unidad de Gestión Centralizada de Camas), com vistas a coordenar o uso de leitos para pacientes críticos, no setor público e no setor privado31. Quando as unidades públicas de saúde chegam à saturação, os leitos do setor privado passam, automaticamente, a ser utilizados. A UGCC ordena o fluxo de pacientes graves seguindo uma classificação de complexidade, dando prioridade para a ocupação dos leitos públicos. Na resposta à Covid-19, o governo chileno publicou um decreto que atribui à UGCC a autoridade de regulação de todos os leitos para pacientes críticos existentes no País32. Não se verifica resistência a essa medida por parte do setor privado, e os valores pagos pelas internações são pactuados previamente entre as partes33,34.

México

O sistema de saúde mexicano é segmentado, composto por instituições de seguridade social do setor público que cobrem trabalhadores do setor formal; o Sistema de Proteção Social em Saúde, que atende a população não coberta pela previdência social e o setor privado, que presta serviços à população com capacidade de pagamento direto8. O gasto público em saúde é de 3,1% do PIB, pouco superior ao privado - 52,5% do total. Observa-se alta proporção de desembolso direto para pagamento de despesas com saúde: 40% do gasto privado10. A maior parte dos leitos hospitalares está no setor público.

Em resposta à Covid-19, o governo federal e a Associação Nacional de Hospitais Privados assinaram um acordo de colaboração no qual a rede de hospitais privados disponibiliza 50% de seus leitos e equipamentos para atender pacientes não Covid-19, cobertos exclusivamente pelos seguros públicos, a fim de liberar leitos no setor público para o atendimento de pacientes com Covid-1935. A estratégia, denominada ‘Todos Juntos contra a Covid-19’, colocou 3.115 leitos em hospitais privados à disposição para a população geral36. O pagamento pelos serviços aí prestados será feito pelo setor público, aos preços acordados para a compra de serviços entre a seguridade social e o departamento de saúde do governo federal37. O contrato é temporário e tem validade de um mês.

Peru

O sistema de saúde do Peru é segmentado, divido em subsetor público, que dirige a maior parte das unidades de saúde públicas do País e presta serviços a populações pobres por meio do sistema de Seguro Saúde Integral; um sistema de seguridade social, que possui a segunda maior rede do País e atende exclusivamente assalariados e familiares; e os serviços de saúde das Forças Armadas e da Polícia Nacional8. O gasto público em saúde é de 3,2% do PIB e corresponde a 61,5% do total. O subsetor privado atende principalmente a população de maior renda, sendo 30% dos gastos privados feitos por desembolso direito8.

No Peru, o decreto legislativo estabeleceu o ‘intercâmbio de benefícios’, permitindo que pacientes sejam tratados em unidades com vagas disponíveis, independentemente se públicas, privadas ou da previdência social, a valores pré-definidos38. Graças a essa medida, todas as pessoas sem cobertura privada ou da previdência social têm acesso ao sistema integrado. Isso inclui pessoas em situação irregular, como migrantes. Essa medida está respaldada pelo Decreto de Emergência do Peru, que autoriza o Executivo a impor aos hospitais privados a execução de “serviços extraordinários por sua duração ou natureza”39.

Brasil

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é universal e descentralizado, com responsabilidades divididas entre as três esferas de governo. Cabe ao governo federal a definição e o financiamento de políticas nacionais de saúde; aos estados, a organização regional; e aos municípios, a gestão da prestação da maior parte dos serviços. Apesar de o setor privado ser constitucionalmente complementar ao SUS, 56,8% do gasto em saúde é privado, o que corresponde a 5% do PIB, dos quais, 20,35% por desembolso direto. O gasto público é de 3,8% do PIB. Apesar de o SUS contar com a da maioria dos leitos hospitalares, a maior parte dos leitos de UTI encontra-se no setor privado.

Em razão da desigualdade no número de leitos de UTI entre os setores público e privado, esteve em debate no País a implementação de uma ‘fila única’ para acesso aos leitos de UTI para atendimento a pacientes com Covid-19. Isso permitiria a hospitalização de pacientes do SUS em leitos privados, quando a capacidade pública estivesse esgotada40. No entanto, associações de planos de saúde, hospitais privados e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) se opuseram ao compartilhamento de leitos41. Até o mês de agosto de 2020 não houve registro de ação federal para orientar o uso de recursos privados para ampliar a capacidade do SUS.

Por outro lado, verificam-se iniciativas em estados, como Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Maranhão, que publicaram, respectivamente, edital de chamamento público para leitos privados atenderem ao SUS, portaria que estabeleceu a possibilidade de uso de recursos privados quando a rede pública for insuficiente e decreto determinando a requisição administrativa dos serviços privados em caso de necessidade42-44. Em âmbito municipal, a Prefeitura de Curitiba publicou decreto estabelecendo condições e regras para a requisição de bens e serviços de assistência à saúde na pandemia, e a de São Paulo publicou decreto estabelecendo parâmetros para abrir até 20% da rede privada para atender pacientes do SUS45,46. O quadro 1 apresenta uma síntese dos resultados encontrados.

Quadro 1
Quadro síntese

Análise e discussão

As experiências analisadas demonstram que o uso de leitos em hospitais privados por sistemas públicos pode ser uma alternativa para a rápida expansão da capacidade hospitalar na resposta à Covid-19. Entretanto, o modo de utilização é variado, sendo influenciado pelo contexto institucional, pela estrutura do sistema de saúde e, especialmente, pela ação governamental. Entre as experiências analisadas, podem-se observar três tipos de ação governamental.

Um primeiro tipo é ação nacional de ‘determinação’ da requisição de serviços privados, embasada em leis para situações de emergência ou decreto presidencial. A requisição pode ser total, como na Irlanda; conforme a necessidade apresentada pelo sistema público, como no Chile e no Peru; ou decidida regionalmente, como na Espanha e na Itália. Nessas experiências, a regulação de acesso ao leito é feita por meio de ‘fila-única’ coordenada pelo sistema público de saúde, nacional ou regionalmente.

Um segundo tipo de ação nacional é a ‘negociação’ entre o governo federal e representantes do setor privado hospitalar, sendo estabelecidos acordos para colocar um determinado número de leitos privados à disposição para uso do sistema público de saúde. Na experiência da Austrália, o acordo nacional foi adaptado regionalmente, permitindo aprofundar a integração público-privada de acordo com as necessidades de cada região. Nesses casos, ocorreu uma expansão da capacidade hospitalar pública sem necessidade de fila única.

Por fim, um terceiro tipo de ação é realizada por níveis subnacionais de governo, diante da ausência de coordenação nacional, como ocorre na resposta à Covid no Brasil. Nesse caso, a expansão da capacidade hospitalar por meio do uso de serviços privados é limitada ao tipo de ação definido em cada local, que varia desde a contratação de número determinado de leitos até a requisição conforme necessidade.

A presente análise, entretanto, apresenta limitações, que precisam ser exploradas em estudos futuros. Por exemplo, se existe correlação entre orientação política de governos, estrutura de Estado, modelo de financiamento e organização dos sistemas de saúde no modo de ação governamental sobre o uso de recursos privados na resposta à Covid-19. Além disso, é preciso aprofundar a análise sobre algumas questões relativas à relação público-privada em situações de ESP:

  • Dilema ético-institucional: se houver vagas disponíveis em hospitais privados, como negar acesso em meio a uma Pandemia?

  • Responsabilidade sanitária do setor privado: esgotada a capacidade pública, a disponibilidade de serviços privados mediante medidas compensatórias adequadas não deveria ser uma responsabilidade social dessas empresas?

  • Remuneração: como estabelecer remuneração adequada para os hospitais privados, visando a reembolsar os custos reais?

  • Equidade: como garantir que o paciente do sistema público receba cuidado com a mesma qualidade oferecida no setor privado?

Considerações finais

As experiências estudadas demonstraram que existem diferentes possibilidades de uso de estruturas hospitalares privadas por sistemas públicos de saúde para promover rápida ampliação da capacidade assistencial em situações de ESP. A forma da utilização, porém, é influenciada pelo contexto e pela política institucional estabelecida em cada país e pelos instrumentos de gestão utilizados para operacionalizar a relação público-privada. Sistemas públicos de saúde fortes, com adequado financiamento público, governança e capacidade de alocação de recursos têm maior capacidade de coordenar a relação entre os setores público e privado, ampliando a capacidade assistencial sem comprometer a equidade no acesso a serviços de saúde. As lições apreendidas no enfrentamento da Covid-19 devem ser utilizadas para fortalecer sistemas públicos de saúde num cenário pós-pandemia.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2020
  • Aceito
    17 Set 2020
location_on
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Av. Brasil, 4036, sala 802, 21040-361 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel. 55 21-3882-9140, Fax.55 21-2260-3782 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro