Open-access Exposição ‘Zika Vidas que Afetam’: um relato de experiência

RESUMO

A epidemia do vírus Zika, que atingiu o Brasil entre 2015 e 2018, afetou, sobretudo, mulheres e crianças, mobilizando respostas da ciência, sociedade e governos. A Rede Zika Ciências Sociais promoveu a exposição ‘Zika Vidas que Afetam’, mostra inédita para os 120 anos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O objetivo desse relato foi trazer a experiência da construção da exposição, com destaque para a contribuição das mulheres - mães, gestoras, profissionais de saúde e pesquisadoras. A exposição é um dispositivo de divulgação científica construído coletivamente, entre outubro de 2018 e agosto de 2020. O método envolveu a participação, por meio de entrevistas, oficinas e reuniões, de representantes dos vários grupos e instituições afetados pela epidemia: cientistas, usuários, profissionais e gestores da saúde. Tal participação ocorreu desde a concepção, produção, finalização, validação e readequação da exposição à versão on-line, no contexto da pandemia de Covid-19. Os resultados mostram as potencialidades e os desafios do modo de construção coletiva - uma experiência que pode afetar outras experiências. A narrativa da exposição é feita majoritariamente por mulheres, sob diferentes pontos de vista, a partir das questões que as afetam, e evidencia o seu papel destacado na mobilização e resposta à Zika, na ciência, na política e na sociedade.

PALAVRAS-CHAVE Mulheres; Zika vírus; Emergências em desastres; Participação social; Eventos científicos e de divulgação

ABSTRACT

The Zika virus epidemic in Brazil mainly affected women and children and mobilized responses from science, society, and governments between 2015 and 2018. The Zika Social Sciences Network promoted the exhibition ‘Zika Affecting Lives’, an unprecedented event for Fiocruz 120th anniversary. This narrative aims to report the experience of constructing the exhibition, emphasizing the contribution of women - mothers, managers, health professionals, and researchers. The exhibition is a scientific dissemination device built collectively from October 2018 to August 2020. The method involved the participation of various groups and institutions affected by the epidemic representatives - researchers, users, professionals, and health managers - through interviews, workshops, and meetings. Such participation included the design, production, finalization, validation, and readaptation of the exhibition to an online version format, in the context of the Covid-19 pandemic. The results show the potential and the challenges of collective construction - an experience that could affect other experiences. The exhibition’s narrative is made chiefly by women, from different viewpoints, based on the issues that affect them, and highlights their prominent role in mobilizing and responding to Zika in science, politics, and society.

KEYWORDS Women; Zika virus; Disaster emergencies; Social participation; Scientific and educational events

Introdução

A epidemia de vírus Zika (em inglês, Zika virus, com abreviatura ZIKV), que atingiu o Brasil entre os anos de 2015 e 2017, afetou, sobretudo, mulheres e crianças e mobilizou diversas respostas da ciência, da sociedade e do Estado1.

Muitas mulheres eventualmente postergaram a decisão de engravidar durante a emergência sanitária. As grávidas precisaram se prevenir contra a doença, diante de um quadro de incertezas em relação aos riscos e consequências da contaminação. Aquelas que tiveram seus bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCVZ) buscaram incessantemente informações e respostas para tentar garantir o melhor tratamento e as melhores condições de vida para seus filhos. Em cenários como maternidades e salas de espera de hospitais, essas mulheres se encontraram2.

As mães das crianças afetadas pela Zika logo organizaram associações em diferentes regiões do País e vêm contribuindo para a construção do conhecimento acerca da SCVZ, assim como com estratégias para seu enfrentamento. Essas mulheres passaram por uma experiência comum de imprevisibilidade e falta de controle, o que subjugava qualquer projeto individual de futuro e estabelecia histórias de reconstrução, que foram a base para a mobilização da sua união2. As narrativas das ações coletivas, que sucederam as suas experiências singulares, logo foram percebidas como causas dos distintos efeitos que sobrevieram a sua organização política. Ao lado de diversos profissionais, famílias passaram a conhecer a síndrome na experiência de construir explicações efetivas para as múltiplas dimensões do adoecimento e do cuidado.

Esses grupos se reuniram para lutar pelos direitos de seus filhos e filhas ao acesso aos serviços públicos, como saúde, assistência social e educação2. As associações reivindicam ainda o direito à informação e ao conhecimento produzido sobre o ZIKV, assim como à participação nos processos decisórios das políticas públicas em resposta à epidemia. Atualmente, existem mais de dez associações e uma Frente Nacional na luta por direitos da pessoa com a SCVZ.

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi decisivo para o estabelecimento de respostas ante a epidemia. Gestores e profissionais precisaram reorganizar e reprogramar os sistemas e serviços de saúde diante das novas demandas de atendimento e cuidado às crianças suspeitas e diagnosticadas com a síndrome3.

O investimento em pesquisas e inovações foi central para enfrentamento da epidemia, com recursos nacionais e internacionais; além da conformação de rede e grupos de especialistas e instituições, envolvendo pesquisadores de diversas áreas da ciência3. Nesse processo, destacamos a ação e a liderança das mulheres nas grandes descobertas reveladoras sobre o vírus e suas consequências.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), como uma das principais instituições científicas de saúde do País, envolveu-se em diversas frentes de resposta à epidemia de vírus Zika. Produziu pesquisas; apoio às políticas e aos sistemas de vigilância; fortalecimento dos serviços de saúde; produção de insumos e tecnologias; comunicação e informação à sociedade; qualificação de profissionais4. Nesse contexto, a Rede Zika Ciências Sociais (RZCS), que conta com financiamento e pesquisadores de instituições nacionais e internacionais, foi constituída e liderada por Nísia Trindade Lima e Gustavo Correa Matta. Seu foco principal está nas implicações da epidemia de Zika na ciência, na saúde e na sociedade5. Um de seus objetivos é

[...] articular as práticas da educação e da pesquisa com os conhecimentos e estratégias produzidos por movimentos sociais, profissionais de saúde e assistência social, gestores e usuários do sistema de saúde6(1).

Em comemoração de seus 120 anos, a Fiocruz apresenta a Exposição ‘Zika Vidas que Afetam’ (https://expozika.fiocruz.br/) Resultado de um processo de construção coletiva e de ações de pesquisa científica, a mostra foi concebida pela RZCS, realizada em parceria com o Museu da Vida (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz) e inaugurada em março de 2021, data próxima do aniversário de 5 anos da Declaração Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Ela visa promover o envolvimento com os problemas decorrentes da epidemia e provocar reflexões sobre a vida das diversas pessoas afetadas pela Síndrome Congênita, que não podem ser invisibilizadas ou esquecidas.

O objetivo desse relato é mostrar a experiência da construção coletiva e participativa da exposição, com destaque para a importância da contribuição das mulheres - mães, gestoras, profissionais de saúde e pesquisadoras. Tal relato compreende o período de outubro de 2018 a agosto de 2020, no qual as autoras coordenaram o processo de curadoria participativa, que envolveu concepção, produção, finalização, validação e readequação da exposição à versão on-line, no contexto da pandemia de Covid-19.

Material e métodos

A exposição é um dispositivo de divulgação científica construído coletivamente. O método envolveu a participação, por meio de entrevistas, oficinas e reuniões, de representantes dos vários grupos e instituições afetados pela epidemia: cientistas, usuários, profissionais e gestores da saúde. Tal participação ocorreu em todas as etapas de desenvolvimento da mostra (concepção, produção, finalização, validação), incluindo sua readequação para versão on-line.

Grande parte das informações e do material usado para a exposição foi proveniente dos resultados das pesquisas realizadas no âmbito da RZCS. Das pessoas entrevistadas, mais de 50% eram mulheres.

Outra parcela das informações utilizadas na exposição derivou das discussões realizadas na Oficina de Trabalho, organizada também pela RZCS, no XII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, em julho de 20187. Naquela ocasião, foi elaborada a ‘Carta de Recomendações para o Enfrentamento das Consequências da Epidemia de Zika Vírus no Brasil’6. O documento foi chancelado pelo Conselho Deliberativo da Fiocruz e gerou uma Moção de apoio ao enfrentamento da Zika na XVI Conferência Nacional de Saúde, em 20198.

O evento teve uma participação majoritária de mulheres, que se envolveram em estratégias coletivas para tentar mudar o cenário de incertezas, inferir em decisões e políticas públicas, em nome do cuidado e de melhores condições de vida para as crianças e suas famílias. O engajamento dos distintos atores individuais e institucionais borrou as fronteiras entre o desenvolvimento técnico e a dimensão social da epidemia, devolvendo a discussão sobre a produção de respostas ao debate público e à arena política, constituindo uma verdadeira rede sociotécnica9.

Esses encontros foram uma oportunidade para articulação das representações da ciência, dos serviços de saúde e das famílias em torno de um compromisso político com a saúde pública e com a vida das crianças. Isso promoveu a ampliação das perspectivas para além das questões ligadas à produção do conhecimento científico. Especialistas e não especialistas, juntos, conseguiram abstrair os seus próprios interesses, colocar-se do ponto de vista do interesse comum, formular questões diversas e produzir recomendações plausíveis.

Os processos de concepção e produção da exposição não foram diferentes, eles evidenciaram que, na pesquisa, existem distintas modalidades de colaboração entre especialistas e não especialistas tanto nas situações em que os especialistas problematizam as questões e definem métodos para seu enfrentamento quanto no momento em que os resultados dos estudos são amplamente divulgados para o público em geral9. Nesse sentido, a exposição é fruto do diálogo entre cientistas de diversas áreas, gestores e profissionais de saúde, representantes da sociedade civil, mães e familiares de crianças diagnosticadas com a SCVZ. O acervo público é proveniente das famílias, de serviços de saúde, das instituições de pesquisa e da RZCS.

Durante o processo de curadoria foram realizados três encontros, entre os meses de outubro de 2018 e agosto de 2020, engajando representantes da ciência, dos serviços de saúde e das famílias. Nessas ocasiões, as coordenadoras expuseram o projeto do roteiro e os resultados preliminares referentes ao conteúdo, organização e layout da exposição. Todos tiveram o direito à fala garantido, sem hierarquia, em um processo de coprodução de conhecimento, o que enriqueceu as discussões. Ressaltamos que todas as etapas de construção passaram pelo processo de validação coletiva.

O objetivo pactuado foi divulgar conhecimento embasado em pesquisa científica e construção coletiva; ao mesmo tempo, provocar emoções, empatia e preocupação diante das consequências e do enfrentamento da Zika. Dessa forma, foi planejada uma linguagem simples, assim como uma narrativa feita por meio de textos curtos, fotos, vídeos e jogos.

A exposição estava prevista tanto para ser inaugurada presencialmente no Centro Cultural dos Correios, no município do Rio de Janeiro, em abril de 2020, quanto para itinerância nacional e internacional. Contudo, no contexto da pandemia de Covid-19, houve necessidade de suspensão da mostra presencial e readequação para a versão on-line. Esse formato permite, inclusive, ampliar o acesso ao seu conteúdo.

Na exposição virtual, a linguagem incorpora elementos digitais que devem proporcionar dinamismo ao conteúdo. O maior desafio da etapa de concepção foi se aproximar ao máximo de uma experiência de visita que não fosse simplesmente acesso a um site. O modelo on-line demandou a revisão dos vídeos que haviam sido produzidos para a versão presencial, no sentido de garantir mais leveza e agilidade dos conteúdos e do tempo de visitação. Assim, após uma pequena introdução geral, o visitante pode ‘caminhar’ na exposição e visualizar os conteúdos dos quatro módulos, na ordem em que preferir. Em consequência, houve uma demanda de maior integração entre alguns elementos-chaves dos conteúdos dos vídeos.

Uma das questões fundamentais foi garantir inclusão, tomada aqui como uma ação pela qual os grupos de pessoas têm as suas distinções valorizadas e reconhecidas10. Justamente durante a epidemia de Zika, o tema das deficiências ganhou maior visibilidade por causa dos possíveis efeitos da SCZV na vida das crianças. Nesse sentido, o projeto da exposição previu recursos de acessibilidade (contraste de cores, alternância de tamanho da fonte e audiodescrição), visando oferecer condições semelhantes de acesso a qualquer pessoa11. Foram integradas ferramentas digitais para remover barreiras na comunicação. Além da Língua Brasileira de Sinais (Libras), o conteúdo tem tradução para inglês e espanhol.

Considerando que a maioria da população brasileira acessa conteúdos de internet exclusivamente via celulares e smartphones, e que as redes sociais foram meios importantes de mobilização social desde o início da epidemia de Zika, a exposição on-line prioriza o acesso por meio desses dispositivos.

Sobretudo, o método de construção coletiva e os recursos utilizados para ampliação do acesso à exposição respondem à necessidade de produção de

[...] ambientes e instrumentos que permitam à população brasileira participar de forma mais democrática e cidadã nos debates que envolvem a ciência e tecnologia, em particular no campo da saúde12.

A pesquisa que originou o presente artigo seguiu as Resoluções CNS/MS nº 510, de 7 de abril de 2016, e CNS/MS nº 466, de 12 de dezembro de 2012, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, CAAE 67311617.8.0000.5240.

Resultados e discussão

Concepção e roteiro: narrativa, símbolos e afeto

A exposição busca contar a história do presente da epidemia de Zika no Brasil, ampliando a divulgação dos conhecimentos sobre como se construíram as respostas e sobre o seu impacto na vida das pessoas. Ela mostra a ameaça global representada pelo vírus Zika, e por suas consequências atuais, a partir do Brasil. Além disso, aponta desafios e caminhos que envolvem o cotidiano da vida das crianças afetadas, seus familiares e cuidadores. A mostra também é resultado de um trabalho que marca a história dos 120 anos da Fiocruz e reflete o compromisso institucional com a ciência, a vida, a saúde pública e os seus desafios atuais13.

O mosquito Aedes aegypti e as imagens de cabeças de bebês com microcefalia foram as principais representações visuais durante a epidemia de Zika no mundo14. Já a exposição tem como símbolo as mãos adultas e infantis entrelaçadas. Mãos dadas que remetem ao cuidado, ao carinho, ao amor e à preocupação com o outro. Simbolizam o sentido de acolher e proteger, assim como de solidariedade, parceria e cooperação para superação da epidemia de Zika e suas consequências. Representam a ampla mobilização social e política requerida nas diversas frentes de atuação sobre as questões que afetam, sobretudo, mulheres e crianças.

O nome ‘Zika Vidas que Afetam’ foi escolhido com a participação de mulheres representantes das associações das famílias. Surgiu da compreensão da pluralidade da noção de afeto, que diz respeito aos encontros que podem mobilizar a capacidade de agir15. Ele denota que, de algum modo, todos fomos afetados pela epidemia de Zika no Brasil, não apenas as famílias e as crianças com SCZV.

A ideia de ‘vidas que afetam’ remete particularmente às pessoas que se sensibilizaram, se interessaram e se mobilizaram, e cujo agir implicado foi o caminho para a busca de respostas e soluções para o enfrentamento da epidemia. Por esse ângulo, tal ideia tem relação com a continuidade da luta pelos direitos das crianças e famílias e pela efetivação do acesso aos diferentes setores e serviços necessários. Do mesmo modo, diz respeito ao apoio às pesquisas científicas sobre o ZIKV em diversos campos do conhecimento. Acima de tudo, afetar pessoas significa não permitir que a Zika e suas consequências caiam no esquecimento.

Sob esse aspecto, a exposição é uma produção que envolve o retorno da pesquisa colaborativa ao mundo. Ela se constitui em um dispositivo de divulgação científica com curadoria participativa, cuja construção promove a interação e a legitimação de discursos entre especialistas e não especialistas. Um cenário de expressão dos diversos pontos de vista e da autoridade pública sobre política16. O resultado pode ser visto como uma dinâmica entre ‘cidadania’ e ‘literacia’ científica16.

A linha narrativa da exposição parte do caráter inesperado do evento da Zika no mundo, passando pelas incertezas ligadas à epidemia de microcefalia no Brasil, o enfrentamento por diferentes atores e instituições, até as necessidades de respostas e conhecimentos. O roteiro foi elaborado de forma a destacar o papel da ciência brasileira, das famílias e do SUS no contexto de enfrentamento da epidemia. A exposição se divide em quatro módulos descritos a seguir.

O primeiro módulo aborda o aumento do número de casos de Zika e de bebês com microcefalia no Brasil. São evidenciadas as relações estabelecidas entre pesquisadores e instituições de pesquisa na problematização do evento sanitário e do nexo causal com casos de alterações neurológicas, principalmente de malformações congênitas em recém-nascidos. Destaca-se a grande contribuição de mulheres nesse momento: Patrícia Brasil, Celina Turchi, Maria Elizabeth Lopes, Débora Diniz, Cláudia dos Santos. Pesquisadoras que se debruçaram para tentar sanar as dúvidas, produzir cuidado, desvendar causas e efeitos sobre as condições de vida dos afetados.

O segundo módulo trata das incertezas sobre as consequências da epidemia de ZIKV para a saúde das pessoas, da Declaração de Emergência Sanitária, pelo Brasil e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), até a confirmação da existência da SCVZ. São narradas as condições de ocorrência dos casos de malformação congênita, as dificuldades enfrentadas pelas famílias afetadas e o seu empobrecimento. Apresentam-se novamente as interações entre pesquisadores, profissionais de saúde e famílias, além do apoio de redes e financiamentos nacionais e internacionais, que permitiu a descoberta inédita da SCVZ, pela ciência brasileira e pelo SUS. Nas instâncias internacionais, ressalta-se que tanto a OMS quanto a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) eram dirigidas por mulheres naquela ocasião: Margaret Chan e Carissa Etienne respectivamente. Na ciência brasileira, distingue-se a atuação de Adriana de Oliveira Melo, Ana Bispo, Vanessa van der Linden, Tereza Maciel Lyra, Consuelo Silva de Oliveira, Thalia Velho Barreto Araújo, entre outras mulheres.

O terceiro módulo apresenta a mobilização e as respostas geradas no contexto da epidemia de SCVZ. A ação conjunta da Fiocruz, dos institutos de pesquisa e das universidades permitiu a produção de inovações, conhecimentos e orientações para as políticas. Destacam-se o papel do SUS, seu caráter público e universal, e a organização das mulheres na luta por direitos. Nas associações de famílias afetadas, evidenciam-se as mulheres que participaram ativamente das pesquisas realizadas no âmbito da RZCS: Germana Soares, Joana Passos, Amanda Mota, Vanessa Aguiar e Vanessa Godoy Caldas.

O quarto módulo apresenta reflexões e apontamentos sobre o que ainda precisamos fazer em relação à ocorrência e às consequências do ZIKV no Brasil. São reiteradas as orientações de que os caminhos para garantir os direitos das pessoas afetadas devem passam pela proteção e pelo cuidado com a criança e com a mulher. São evidenciados os modos como as consequências da Zika retratam as desigualdades brasileiras e a mensagem de que essa e outras doenças podem ser mais bem respondidas quando ciência, movimentos sociais, saúde e políticas públicas caminham lado a lado. Nesse módulo, o visitante pode acessar a Carta de Recomendações, construída por pesquisadores, gestores e movimentos sociais, com indicações sobre o que ainda falta fazer.

A narrativa da exposição sob o olhar de diferentes mulheres

A construção coletiva da exposição sob diferentes olhares é sua maior riqueza, mas, também, seu maior desafio. Não é simples trazer a diversidade, o embate de ideias e experiências, integrando-os na busca de sentidos comuns.

Os encontros foram cenários de negociações e tensões. Nessas ocasiões, as representantes das associações das famílias afetadas puderam expressar as ameaças a que estavam submetidas. Os dilemas derivavam dos afetos, da disposição de prosseguir no debate e da vontade de dar visibilidade a temas não pautados pelo Estado17.

A narrativa da exposição foi feita majoritariamente por mulheres, que mostraram desde as incertezas e medos iniciais até as respostas e necessidades atuais. Elas foram afetadas de diversas formas pela epidemia de Zika, trazendo consigo suas experiências, interpretações, concepções e questões. Apontaram que a produção do conhecimento, das propostas e ações podem ser permeadas por embates de ideias e contradições nos processos de enfrentamento, mesmo quando as necessidades ou campos de ação são comuns, seja na ciência, na gestão de serviços de saúde, no cuidado ou na luta por direitos.

É importante ressaltar que, ao refletirmos sobre o ser mulher, não consideramos possível defini-lo de uma única forma18. As mulheres que contribuíram para a produção de conhecimentos e respostas à epidemia de Zika trazem olhares diferenciados e afetados por suas experiências enquanto cientistas, mães, gestoras e profissionais de serviços de saúde.

Destacam-se dois temas que geraram tensão nos debates durante o processo de curadoria participativa, construção e validação do roteiro da exposição: aborto e abandono. O aborto é um tema que causa polêmica, particularmente em razão das questões morais que desperta. O desconforto latente nos fóruns de discussão colocava em cena, por um lado, a religiosidade que embasa o discurso de algumas associações de famílias, sobretudo de suas porta-vozes; por outro, toda uma enunciação de militantes e especialistas sobre os direitos da mulher, que norteia as preocupações da saúde coletiva. Ressaltamos que havia ainda o grupo que argumentava ser controverso associar a discussão do aborto às questões sobre a deficiência.

As polêmicas em torno do abandono tencionaram as representantes das famílias. O abandono parental, tão divulgado pela mídia e pelas narrativas de algumas associações, foi visto de forma antagônica por outras. Para certas representantes, ressaltar o abandono dos pais era deixar de reconhecer tanto a importância da participação masculina nas questões do cuidado das crianças quanto o fato de que o abandono não aconteceu de forma generalizada.

As inquietações que cercavam os temas do aborto e do abandono foram agravadas por discussões polarizadas que sinalizavam as preocupações específicas de alguns grupos. Os fóruns não contavam com um público sem vínculo direto com aquelas questões, que pudesse delas se distanciar, para poder fazer a mediação entre os interesses singulares e coletivos. Na impossibilidade de produzir uma vontade geral a partir de desejos particulares9, ambos os tópicos foram considerados de extrema sensibilidade; e, por essa razão, foi acordada a sua não inclusão na narrativa da exposição. Abrangê-los de forma célere constituía um risco desnecessário diante de tantos outros enunciados possíveis e indispensáveis de serem colocados em cena. Embora, na condição de profissionais da saúde coletiva, mantivéssemos nossas opiniões, o objetivo do nosso exercício ao construir o roteiro era evidenciar certezas, incertezas, controvérsias, assentimentos, e não suscitar interesses inconciliáveis naquela ocasião.

Havia consonância de que o poder público não considerou as diversas dimensões nas quais a vida dessas famílias foi afetada. A insuficiência de serviços públicos e de medidas governamentais que atendessem às necessidades em diferentes contextos e situações foi qualificada, de modo geral, abandono do Estado. Do mesmo modo, as dificuldades de transporte, de renda, inclusão escolar, informação, saneamento básico e acesso aos serviços de saúde. O tema foi tratado de forma transversal na narrativa.

A mostra evidencia o que foi priorizado como resposta, em termos científicos, nas pautas dos movimentos sociais e das políticas públicas de saúde. A construção dessas respostas demonstra as experiências das diversas mulheres em seus campos de ação. A mensagem final é de que a Zika não acabou e de que ainda há muitas coisas a serem feitas, de forma conjunta, articulada entre sociedade, ciência e poder público.

A exposição convoca a pensar: o cenário sanitário nacional que remete à fantasmagoria de uma nova epidemia de SCVZ; as necessidades progressivas das famílias que continuam sendo afetadas; os cortes crescentes em importantes orçamentos para operacionalização de políticas públicas.

Considerações finais

A exposição acontece quando muitos acreditam que a Zika seja uma página virada da história, em virtude do desaparecimento das notícias sobre a doença. Mudar essa crença é um dos principais desafios evidenciados neste trabalho, pois a SCVZ continua a afetar a vida de diversas pessoas, sobretudo, das mulheres. As consequências têm sido cada vez menos priorizadas com o final da epidemia e das Declarações de Emergência Sanitária. Porém, em 2018 e 2019, foram registrados, respectivamente, 178 e 55 novos casos de Síndrome Congênita19. Dos casos confirmados de Zika em 2019, aproximadamente 24% foram em gestantes20. Além disso, as crianças com SCVZ estão crescendo, e novas demandas continuam surgindo. Apesar da queda do número de casos da doença, o ZIKV se mantém circulando, inclusive com estudos mostrando a existência de mais de uma linhagem viral no País21.

Estamos longe de produzir soluções definitivas e permanentes. O cenário plural e conturbado da Zika representa, ainda hoje, impacto e medo. Por outro lado, enfatizamos que ele gerou um processo de compartilhamento de saberes e construção coletiva de conhecimento, criando tentativas de enfrentamento com grande potencial transformador das relações entre a sociedade e as instituições de pesquisa. Uma história que não acabou, marcada não somente por incertezas, mas também por união e ação coletiva. Essa história é contada na exposição.

A participação pública no processo de curadoria aconteceu desde o início do trabalho e é uma perspectiva que vem sendo valorizada como metodologia de construção de dispositivos de divulgação científica. Os desafios desse modo de operar envolvem lidar com os diferentes olhares, compreensões, linguagens, experiências e, sobretudo, distintas expectativas quanto ao resultado. Exige capacidade de incorporar questões atravessadas por disputas de narrativas, interesses e contradições advindas das experiências e demandas dos diversos participantes. Outro desafio se refere à própria abordagem de temas tão delicados quanto a deficiência e as repercussões da epidemia para as famílias afetadas. Por isso, também a importância de a exposição ter tido sua narrativa construída majoritariamente por mulheres, que não apenas foram as mais afetadas, como igualmente foram as protagonistas nas repostas à epidemia, em várias frentes de atuação.

O êxito dessa construção mostra que é possível criar coletivamente uma narrativa sobre um tema, em uma linguagem que combina arte e ciência. Reforça também as inúmeras potencialidades das novas formas de produção e divulgação do conhecimento, com base em diálogo amplo e sistemático. A busca pela criação de sentidos comuns, com sinergia de saberes, narrativas e experiências das mais diversas, potencializa a constituição de outros olhares e modos de tratar de questões contemporâneos, tal como foi feito na exposição. Esse modo de operar favorece que os resultados possam ser mais bem incorporados por diversos tipos de pessoas e grupos interessados em usar as informações para produzir respostas e avanços em determinados temas e setores. Isso amplia as formas, os usos e as apropriações dos produtos de divulgação científica.

Nesse sentido, é possível que essa experiência seja reproduzida em outros contextos, com as devidas limitações. Os inúmeros eventos e materiais de pesquisa que subsidiaram a exposição vão além dos resultados das pesquisas propriamente ditas. Demandam um diálogo permanente com a sociedade, os pesquisadores e os governos, não sem conflitos e contradições. Prática, aliás, que sempre foi necessária e presente nas ações sociais, políticas e científicas no campo da saúde pública e em defesa da vida.

Mesmo não havendo perspectiva de generalização de resultados em contextos distintos, acreditamos que o presente relato possa servir de inspiração para aqueles que compreendem a concepção dialógica como uma reunião extraordinária de pessoas implicadas com a constituição de sentidos de bem comum.

Este trabalho evidencia o papel destacado das mulheres na mobilização e resposta à Zika, na ciência, na política e na sociedade. A mensagem deve afetar as pessoas de modo que a doença e suas consequências não caiam no esquecimento e que as crianças e famílias acometidas pela SCVZ não sejam invisibilizadas.

Agradecimentos

As autoras desse artigo agradecem ao projeto ‘Fiocruz 120 anos: os novos desafios da Saúde Pública e da Ciência, Tecnologia e Inovação no cenário Nacional e Global’, ao Newton Fund (Fundo Newton) e à União Europeia, por meio do Consórcio ZIKAlliance, pelo financiamento do projeto de pesquisa. As autoras também agradecem aos pesquisadores e colaboradores da Rede Zika Ciências Sociais e a todas as instituições de pesquisa, serviços de saúde e associações representantes das famílias afetadas pela Zika, que contribuíram com a construção da Exposição.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2020
  • Aceito
    18 Maio 2021
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