RESUMO
Trata-se de um estudo teórico crítico-reflexivo com o objetivo de refletir sobre questões de natureza interdisciplinar: o ageísmo na complexidade da pandemia da Covid-19 à luz dos fundamentos da Bioética de Intervenção. Parte-se do pressuposto de que problemas complexos requerem soluções complexas, os quais uma visão fragmentada e disciplinar não é capaz de enfrentar. Para isso, o ensaio está organizado em três atos: o ageísmo como fenômeno antigo e persistente; a sindemia covídica e a ampliação do ageísmo; e o enfoque bioético enquanto episteme e ferramenta interventiva. Espera-se que este exercício teórico possa transcender para o cotidiano pessoal, relacional e institucional, onde a compreensão sobre as dimensões e os determinantes do etarismo possa incitar pensamentos, sentimentos e atitudes éticas criativas para mitigar aspectos depreciativos relacionados à idade.
PALAVRAS-CHAVE Ageísmo; Covid-19; Bioética; Envelhecimento
ABSTRACT
This is a critical-reflexive theoretical study with the aim of reflecting on issues of an interdisciplinary nature: ageism in the complexity of the COVID-19 pandemic in the light of the fundamentals of Intervention Bioethics. The assumption is that complex problems require complex solutions, which a fragmented, disciplinary view is not capable of addressing. For this purpose, the essay is organized in three acts: ageism as an old and persistent phenomenon; the COVID-19 pandemic and the expansion of ageism; and the bioethical approach as an episteme and interventional tool. It is hoped that this theoretical exercise can transcend into personal, relational, and institutional daily life, where understanding the dimensions and determinants of ageism can incite creative ethical thoughts, feelings, and attitudes to mitigate age-related derogatory aspects.
KEYWORDS Ageism; COVID-19; Bioethics; Aging
Introdução
O ageísmo é um fenômeno complexo, com dimensões e determinantes múltiplos, caracterizado pela estereotipia, pelo preconceito e pela discriminação dirigida às pessoas com relação à idade. Sua ocorrência na esfera organizacional se refere às leis, regras e normas sociais, políticas e práticas das instituições que restringem oportunidades por causa da idade. Ademais, pode aparecer no âmbito interpessoal ao emergir nas interações sociais entre duas ou mais pessoas. Por fim, também é possível surgir de forma autodirigida a partir da internalização do ageísmo, pelo próprio sujeito, contra si1,2,3.
Compreender o processo de envelhecimento humano pode contribuir para reduzir preconceitos. Quanto maior a demonstração de atitudes negativas diante do envelhecimento, maior será o ageísmo, pois as atitudes de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, com relação a algo, podem ser favoráveis ou desfavoráveis e são influenciadas pelas experiências passadas, pelos sentimentos, pela cognição e pelo afeto, que, por sua vez, modulam o comportamento. Nessa direção, as percepções e as atitudes (discriminatórias ou valorativas) com relação aos mais velhos (e/ou aos mais jovens) são influenciadas por construtos sociais pessoais e relacionais4,5.
A pandemia da Covid-19, atualmente, um dos maiores problemas de saúde coletiva do planeta, apesar de acometer as pessoas de diferentes maneiras e idades, relaciona as pessoas com mais idade enquanto grupo vulnerável, consideradas como a população de maior risco para desenvolver a forma grave da doença e apresentar maior mortalidade. Vivese, consequentemente, um surto de ageísmo, que acentua as divergências intergeracionais, culpabilizando os mais velhos pela oneração do sistema de saúde, distribuindo recursos para o atendimento aos jovens e aos mais produtivos6.
Nessa perspectiva, a bioética lida com saberes na encruzilhada de várias disciplinas, sugerindo ser uma concepção interdisciplinar, ou mesmo transdisciplinar. O simples enunciado da bioética permite, todavia, convencer que nenhuma disciplina pode dar conta da pluralidade dos esclarecimentos necessários, pois a noção de vida, seu ponto central, é uma excelente prova disso. A Bioética de Intervenção (BI), um modelo teórico de origem latino-americana, contribui, com sua epistemologia inter/transdisciplinar, com o pensar, sentir e agir cotidiano, para compreensão e enfrentamento dos dilemas persistentes sobre questionamentos sociais, sanitários e ambientais, dialogando com os diversos campos de saberes em uma perspectiva transformadora7.
Os termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridade ou polidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade) e transdisciplinaridade são polissêmicos e fluidos8. Morin8 defende que a interdisciplinaridade, quando significa troca e cooperação entre disciplinas, transforma-se em algo orgânico. Com relação à transdisciplinaridade, essa “se caracteriza geralmente por esquemas cognitivos que atravessam as disciplinas, às vezes com virulência tal que as coloca em transe”8(34), pois “a ciência nunca teria sido ciência se não tivesse sido transdisciplinar”8(34). O filósofo completa esse raciocínio afirmando que não são somente as ideias de inter e de transdiciplinaridade que são importantes, mas tudo o que lhe é contextual; ou seja, deve-se ‘ecologizar’ as disciplinas.
Com base nessas perspectivas, este ensaio, que é parte de uma tese de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Família no Nordeste – da Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (Renasf ), na Nucleadora Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) –, tem o objetivo de refletir sobre o ageísmo na complexidade da pandemia da Covid-19 à luz dos pressupostos da BI, temas de natureza interdisciplinar.
Para isso, o texto está organizado em três atos, na sua elaboração, articulando: o ageísmo como fenômeno antigo e persistente; a sindemia covídica e a ampliação do ageísmo; e o enfoque bioético enquanto episteme e ferramenta interventiva. Parte-se do pressuposto de que problemas complexos requerem soluções complexas, os quais uma visão fragmentada e disciplinar não é capaz de enfrentar.
Espera-se que este exercício teórico possa transcender para o cotidiano pessoal, relacional e institucional, onde a compreensão sobre as dimensões e os determinantes do ageísmo possa incitar pensamentos, sentimentos e atitudes éticas criativas para mitigar aspectos depreciativos relacionados à idade.
O ageísmo como fenômeno antigo e persistente
O envelhecimento “é cercado por determinantes sociais que tornam as concepções sobre velhice variáveis entre indivíduos, de cultura para cultura, de época para época”9(12). Portanto, é impossível pensar sobre esse processo, em seus aspectos motores, funcionais e psicossociais, sem compreender cada contexto no qual ele se insere.
Considerando que o processo de envelhecimento ocorre em contextos de acentuadas transformações sociais, econômicas, culturais e ambientais, diante de avanços tecnológicos, de mudanças nos arranjos matrimoniais e na composição das famílias, entre outras, Beauvoir10 aponta que a lógica da estruturação sociocultural produtivista, inspirada no utilitarismo lucrativo, oprime a velhice, mitigando o alcance da longevidade.
Nesse contexto, Debert11 considera que a chamada terceira idade é uma invenção decorrente de um processo crescente de gestão da velhice, transformando-a de uma situação privada/familiar para uma condição pública. Como consequência, homogeneíza-se o processo de envelhecimento induzindo a uma homogeneização do processo de envelhecimento para intervenções estatais e para abertura ao mercado e ao consumo de produtos e de serviços, reduzindo a singularidade dos sujeitos mais velhos e, por derivação, a solidariedade intergeracional.
Considerando, por um lado, que o envelhecer pode ser valorizado pela sabedoria e pelos valores sociais da pessoa idosa, por outro lado, pode ser percebido enquanto desvalorização social, improdutividade e peso financeiro, por exemplo, previdenciário, quando considera o idoso como um gasto desnecessário para a família ou para o Estado. Logo, a qualidade de vida durante a velhice perpassa a aceitação individual e familiar desse idoso, bem como o fato dessa aceitação e dessa valorização advirem, também, da própria sociedade, que faz suas escolhas privilegiando alguns em detrimento de outros12.
Sabe-se que as sociedades mais coesas e produtivas apresentam menor violência e disfunções sociais, de forma que, nos países desenvolvidos, as pessoas enriquecem primeiro para depois envelhecerem, fato contrário ao que ocorre nos países em desenvolvimento, pela persistência dos contextos de desigualdade acentuando crises comprometedoras da qualidade da longevidade. Entretanto, os idosos também podem ser vistos com importância econômica, contrariando o pensamento hegemônico neoliberal de que são improdutivos13.
Butler14 apresentou o termo ‘ageísmo’, original da língua inglesa (ageism), para configurar antipatias e fugas de contato baseadas em mitos, capazes de produzir preconceitos e discriminação contra pessoas mais velhas, reprimindo interações sociais e dificultando, consequentemente, a compreensão sobre o processo de envelhecimento. No idioma português, costuma-se usar as palavras ‘idadismo’ e/ou ‘etarismo’, como sinônimos de ageísmo (tanto para os mais jovens quanto para os mais velhos), sendo incomum o uso (exclusivo aos mais velhos) das palavras ‘idosismo’ ou ‘velhismo’.
Atualmente, o termo ‘ageísmo’, apesar de recente, representa um fenômeno antigo que não está relacionado apenas às pessoas mais velhas ou idosas, mas a qualquer idade, inclusive, aos mais jovens. Entre seus determinantes, estão: idade; gênero; escolaridade; ansiedade; medo de morrer; tipos de personalidade; contato com grupos etários mais velhos (intergeracionais); forma de lidar com o processo de envelhecimento; proporção de adultos mais velhos na região; expectativa de vida; saúde mental e física, entre outros. Portanto, trata-se de um problema comum, apesar de escuso, que pode afetar pessoas, instituições e a forma de pensar sobre políticas sociais1,2,3.
Considerando que boa parte das pessoas, principalmente idosas, relata vivências de depreciação relacionadas com a idade em contextos sociais (piadas, indiferença, insultos, paternalismo, infantilismo, associação às limitações ou incapacidades etc.), a ocorrência do ageísmo pode ser considerada uma forma de violência. Nessa direção, o uso de instrumentos para identificação e/ou mensuração é importante para diagnosticar situações e planejar intervenções capazes de prevenir ou minimizar o ageísmo, estimulando a igualdade de oportunidades em todas as idades4.
Na realidade brasileira, Schumacher et al.15 afirmam a necessidade de realização de investigações sobre esse objeto para assimilar as divergências e semelhanças dos resultados nos diferentes contextos, pois a mensuração e a discussão acerca das concepções e atitudes preconceituosas poderiam contribuir para a construção de um ambiente mais harmônico e valorativo da diversidade intergeracional.
No contexto das relações humanas, inclusive no ambiente de trabalho, Sato et al.16 ressaltam a importância de estudos voltados para essa temática para se conhecerem as demandas dos trabalhadores e dar maior visibilidade às interações entre o processo de envelhecimento e o trabalho. Ademais, há uma escassez de investigações e ações sobre o ageísmo, especialmente pesquisas sobre as atitudes preconceituosas contra os trabalhadores mais velhos, incluindo instrumentos que possam identificá-lo nas instituições e ações visando à sua redução.
Sobre a estratificação etária, o termo ‘idoso’ foi criado na França na década de 1960, substituindo vocábulos depreciativos como ‘velho’ ou ‘velhote’, vinculados historicamente a aspectos negativos, tipo: inatividade ou doença. Outra adjetivação, denominada ‘jovens idosos’, diz respeito ao conceito de terceira idade, para a faixa etária compreendida entre 60 e 80 anos de idade, enquanto os ‘idosos velhos’, a partir dos 80 anos, fariam parte de uma quarta idade, tradicionalmente associada à imagem de decadência ou de incapacidade mental e física. Ademais, existem diversas classificações relacionadas com a idade (quadro 1), principalmente em função de hábitos de vida, padrões de consumo, habilidades com novas tecnologias ou perfil de trabalho17.
Um exemplo de que o ageísmo perpassa os diversos estratos etários pode ser observado entre as gerações Y e Z, onde a primeira estereotipa a segunda de ‘geração zombie’, caracterizando-a como ‘zumbis’, que, em analogia, andam em bandos, apresentam uma fome (consumo) insaciável (irreversível e insustentável), contaminam-se uns com os outros etc.; enquanto a segunda retribui a agressão adjetivando a primeira de ‘cringe’, cujo termo (gíria da língua inglesa), em tradução aproximada para a língua portuguesa, significa ‘vergonhoso’, pela manutenção de hábitos considerados, por alguns, como obsoletos – a exemplo de: pagar contas utilizando boletos bancários, consumir café; e pintar/usar unhas do tipo ‘francesinha’, entre outros18,19,20.
Assim, o ageísmo é tão antigo quanto os conflitos e negociações de interesses entre os jovens, os adultos e os idosos em função de relações de poder e de prestígio, simbólicas e/ou materiais. Logo, desde tempos imemoriais, em todas as latitudes e longitudes, diante de situações nas quais ocorrem crises, com ou sem privações ou perigo iminente de morte, os adultos não hesitam em priorizar inicialmente crianças e jovens, para considerar os mais idosos posteriormente12.
A internalização do ageísmo pelos próprios idosos não é incomum, quando naturalizam o aceite de tratamentos depreciativos e paternalistas que recebem das pessoas, das instituições, dos serviços (públicos e privados) e das redes sociais. Essa naturalização é silenciosa e perigosa porque amplifica os estereótipos, tornando-os atributos esperados com relação aos idosos, inclusive pelos próprios idosos. Com isso, pessoas mais velhas recebem tratamento e acesso desiguais no que diz respeito a direitos e oportunidades sociais, baseados em critérios ageístas e na falácia da homogeneização do envelhecimento, que considera o idoso uma pessoa frágil, dependente, improdutiva e desamparada13.
O ageísmo também pode ser compreendido a partir da ideologia produtivista frente a demandas capitalistas neoliberais que minimizam as histórias de vida das pessoas idosas, reduzindo suas redes de solidariedade e de apoio, intensificando as desigualdades sociais, as dificuldades financeiras e educacionais, refletidas, muitas vezes, em barreiras de gênero, de cor/raça e de textura da pele dos idosos, por vezes ressecadas pelas asperezas sociais, por lembrar da finitude ou pela invisibilidade identitária que oprime e exclui13.
Na lógica das leis do mercado, o sistema previdenciário social considera os idosos enquanto gastos permanentes para os cidadãos de bem, contribuintes para o progresso da nação capitalista. Com isso, são elaborados instrumentos para deixar viver e para fazer morrer, no hiato entre o ser e sentir-se produtivo ou dispendioso ao sistema, portanto, produzindo condições para sobrevivência ou para morte, física e/ou social21.
A sindemia covídica e a ampliação do ageísmo
O discurso ageísta se tornou, literalmente, mais ‘viralizado’ nas redes sociais também na sociedade brasileira, durante o surgimento da Covid-19, inicialmente considerada como uma doença de velhos onde se recomendava veementemente manter, e muitas vezes ‘prender’ ou ‘trancar’, os idosos em casa. A representatividade positiva da pessoa idosa foi substituída pela estereotipia depreciativa, disseminada juntamente com a divulgação de medidas de contenção do novo coronavírus, a exemplo do distanciamento físico, vertical, promotoras, também, às vezes, da negligência, da solidão, do isolamento social, da depressão, da ansiedade e de abusos físicos e psicossociais22.
Considerando que, antes da chegada do novo coronavírus, os longevos já conviviam com sentimentos de solidão, o distanciamento físico, chamado no imaginário do senso comum de ‘isolamento social’, colaborou para reduzir as relações sociais e as redes de apoio, potencializadas pela sensação de luto pela perda de familiares e de pessoas queridas, minimizando a sensação de pertencimento aos seus lares e lugares, acirrando sofrimentos. O desafio é encontrar novos arranjos de sociabilidade e de solidariedade intergeracionais22,23.
É consenso que a pandemia da Covid-19, que chegou ao País colapsando os sistemas de saúde de várias cidades, explicitou diversas facetas do ageísmo enraizado (persistente) no Brasil. Essa temática deveria ser debatida com maior frequência, na
Ilusória soberania dos vivos que um dia serão os próximos mortos, capitalizando prestígio social ao ofício dos provedores da vida, mas também dos cuidadores da morte24(550).
Por sua vez, as mídias sociais avançaram consideravelmente na disseminação de informações, enquanto meio de comunicação, impulsionando a necessidade de monitorar os conteúdos das notícias falsas (fake news) diante da sua rápida disseminação em diversos canais. Assim, paralelamente às notícias oficiais veiculadas em veículos tradicionais e idôneos, a circulação de áudios e de vídeos falsos com recomendações equivocadas, muitas vezes intencionalmente, simularam conteúdos supostamente verdadeiros, falseando suas fontes como se fossem de instituições de prestígio público25.
Em adição, os Determinantes Sociais de Saúde (DSS) afloraram em parceria com a pandemia, possibilitando que o Coronavírus encontrasse um território fértil nas desigualdades e nas injustiças sociais para que pudesse operar com mais eficiência seu itinerário desolador. Não se pode terceirizar a culpa atribuindo ao vírus a discriminação social que os humanos fazem, por exemplo, entrelaçada no nacionalismo, racismo, xenofobia e capitalismo, de forma que o avanço da Covid-19 conjuga cada vez mais as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça26.
A temática acerca da pandemia se espalhou nos noticiários e nas rodas de conversa entre amigos, vizinhos, familiares, colegas de trabalho e nos discursos dos políticos e dos gestores. Nessa direção, existe muito a ser feito além da esfera financeira. É necessário investimento humano ampliando a compreensão sobre essa realidade complexa, principalmente com relação aos que defendem a redução de políticas sociais e que revelam dificuldades de reconhecimento solidário com as comunidades mais vulneráveis economicamente6.
O caráter sinérgico entre os agravos e os problemas sociais compõe uma rede complexa de enlaces e de determinações, denominada ‘sindemia’ (juntando os termos ‘epidemia’ e ‘sinergia’), indicando que as epidemias podem se sobrepor umas às outras sob fatores sociais, ambientais e culturais propícios ao desenvolvimento de determinadas doenças. Nessa direção, uma sindemia ocorre a partir da interação de duas ou mais doenças em um contexto social nocivo à saúde pública, pela sincronia entre elementos biológicos e as disparidades sociais, que amplificam os efeitos, principalmente em grupos mais vulneráveis27.
Portanto, uma sinergia entre determinantes e condicionantes de saúde individuais e coletivos, influenciados por: patogenia, transmissibilidade, prevenção, terapêutica e prognóstico de agravos emergentes e/ou persistentes; aspectos socioculturais (hábitos, crenças, valores, educação); elementos estruturais populacionais (demográficos, etários, econômicos, migratórios); e por condições ambientais, a exemplo de poluição, esgotamento de recursos naturais e alterações climáticas28.
A designação da pandemia da Covid-19 a essa palavra (sindemia) não é modismo, pois amplifica a compreensão da problemática em direção a um enfrentamento mais abrangente e efetivo, reorientando os enfoques tradicionais da saúde coletiva, inclusive acerca do ageísmo, assumindo seu caráter complexo, polissêmico e polimorfo, enquanto manifestação articulada de fenômenos, ao mesmo tempo, sinérgicos e antagônicos, multidimensionais, multifatoriais e interdisciplinares29.
No Brasil, atualmente, Veiga-Neto29 identifica cinco tipos de crises sinérgicas: covídica; econômica; política; ética; e ‘estúltica’ (de asnice). Essa combinação se complexifica ainda mais em função de um mundo cada vez mais conectado, permeável e aberto à livre circulação de informações de todo tipo, tanto as boas quanto as más, bem como as falsas notícias, mentiras, orientações e desorientações, muitas vezes grosseiras ou bem elaboradas, amplas, críticas ou acríticas, porém, igualmente emitidas, difundidas e viralizadas.
Parte dessa estultice decorre de perfis mal preparados e acríticos dos consumidores das informações e dos conteúdos visualizados, lidos ou escutados, absorvidos como se tudo fosse, a priori, mentira ou verdade, muitas vezes apresentado de forma aparentemente plausível, intencional, intuído a enganar ou confundir. Certamente, esses aspectos deixam parte da população à mercê de influências externas, à deriva, errática, tendenciosa a mudar de opinião a partir da manipulação e não por criticidade ou reflexão29.
Em recente revisão integrativa, Silva et al.30 apontaram alguns impactos do isolamento social e do uso das tecnologias e mídias sociais nas relações intergeracionais no cenário da Covid-19, bem como criticaram a destinação de recursos e cuidados intensivos baseados exclusivamente em critérios etários. A maioria das publicações indicou que o ageísmo sempre esteve presente na sociedade, entretanto, sendo mais evidente durante a pandemia do novo coronavírus, na forma de discriminação contra os idosos.
Nessa direção, os discursos ageístas influenciam negativamente a vida dos idosos, causando prejuízos sociais e psicológicos. O tratamento dispensado aos idosos, no contexto pandêmico, confirma a ocorrência mais comum do ageísmo com relação aos mais velhos do que relacionados aos mais jovens, provavelmente pela combinação entre a maior vulnerabilidade biológica e o menor poder político daqueles quando comparado a estes30.
Na atualidade, independentemente de pandemias, boa parte dos idosos está cada vez mais diante da possibilidade de viverem sozinhos, com menores oportunidades de interação social, pois ficam mais tempo em casa e cada vez menos em atividades sociais e recreativas, pelas dificuldades de acessibilidade. Ademais, esse público recorre menos aos aplicativos de comunicação instantânea para informação, compras, contatos e para diversão. Tudo isso aumenta o risco da solidão pelo distanciamento, além de físico, social, exacerbado na sindemia da Covid-1931.
Considerando o isolamento social como sendo a ausência de contato ou de comunicação social ou de participação em atividades sociais, sua ocorrência está associada ao aumento de um terço de chance de mortalidade, de forma que a solidão emocional emerge enquanto experiência pessoal de produção de sentimentos negativos (desinteresse, tédio, fadiga e apatia), que amplificam as dores, as insônias, a falta de apetite e o sedentarismo, aumentando a possibilidade de evolução para depressão e sofrimento mental32.
A reformulação, enquanto sindemia, permite que os aspectos supracitados sejam considerados como partes não isoladas de um problema maior que afeta o mundo todo, que vai além dos agravos individuais e dos cuidados específicos com as doenças para os cuidados gerais com a saúde humana e ambiental, buscando identificar as interações biológicas, sociais, culturais, políticas, econômicas e ambientais, especificamente nos países em desenvolvimento, onde persistem problemas educacionais, desemprego, falta de saneamento básico, de tratamento de resíduos etc. Nesse contexto, esse complexo de problemas que amplificam as complicações e dificuldades existentes e persistentes pode gerar uma espécie de catástrofe biopolítica, cuja solução, difícil, exigirá atitudes à altura, em modos de ver, de ser e de agir biopolítico33.
No campo da biopolítica, ocorre a articulação, em um lado, de gestores astutos ou despreparados, bem ou mal-intencionados, e, do outro lado, os governados, parte desinformados ou indiferentes diante da aprendizagem e da necessidade de desenvolvimento de postura e de condutas éticas moralmente justificáveis, de acordo com princípios estruturados de forma histórico-social, para promover reconhecimento mútuo, respeitoso e solidário. Portanto, uma partilha sem ser caritativa, fundamentada na capacidade de escuta e de reflexão, centrada na potência do encontro, na ‘governamentalidade’ que conecta o governo de si mesmo com o governo dos outros29.
De fato, mais do que nunca, torna-se fundamental considerar a necessidade de pensar, de sentir e de agir através da proposição de medidas biopolíticas e/ou bioéticas para enfrentar tanto as manifestações da sindemia covídica quanto do ageísmo, para atenuar seus determinantes multifatoriais em suas diversas dimensões. Conforme a narrativa de cada governo tem sido de enfrentamento, de negação ou de indiferença à pandemia, a Covid-19 amplificou o ageísmo, principalmente com relação aos maiores de 60 anos de idade, da invisibilidade para uma abertura disseminada e em escala global28.
Nessa direção, a representação frequente dos idosos no contexto da sindemia covídica os expõe como um grupo de risco, como se esse público fosse um estrato homogêneo da população formado apenas por pessoas indefesas, vulneráveis e com necessidades de proteção que, de forma contraditória, não receberão a atenção adequada em função da priorização do atendimento aos mais jovens28.
O ageísmo vinculado à Covid-19 pode afetar a saúde mental dos mais velhos durante o distanciamento social, pois já se espera, naturalmente, que os idosos se isolem, independentemente de terem ou não algum agravo. Ademais, muitos deles se sentem um fardo para a sociedade, aumentando a sensação de frustração e a depressão, também pela demonstração de indiferença, por parte das pessoas e das instituições, com relação ao número de mortes de idosos pela pandemia28.
Uma das possíveis soluções perpassa a proposição e a divulgação (viralização) de iniciativas de valorização de espaços, da autonomia, da dignidade e de opiniões protagonizadas pelos mais velhos para que se sintam acolhidos e percebidos pela sociedade enquanto cidadãos ativos, independentes, críticos, produtivos e digitais, e não apenas uma massa amorfa pesada.
Afinal, a ausência da valorização do envelhecimento pela sociedade faz essa mesma sociedade algoz de si mesma, desconsiderando seu próprio processo de envelhecimento ao disseminar diversas manifestações de ageísmo ou infantilizar a imagem dos mais velhos. O mundo necessita com urgência de ativistas da longevidade.
O enfoque bioético enquanto episteme e ferramenta interventiva inter/transdisciplinar
Caracteriza-se um questionamento enquanto ‘ético’ quando ele se relaciona com a ação humana cotidiana envolvendo – no todo ou em parte – pessoas, coletividade e meio ambiente. Nesse modo, uma postura ética conjuga comportamentos e discernimentos existenciais modulando relações sociais para harmonizar interesses pessoais e coletivos associados com a qualidade de vida. Ademais, a bioética – enquanto ética aplicada – preocupa-se com os limites e com as finalidades da ação (intervenção) humana sobre a vida, compreendendo os conflitos para encontrar consensos plausíveis em cada situação analisada34.
Considerando que a expertise humana desenvolve critérios para enquadramento ético centrado no beneficiamento e na coesão da sociedade, os atos éticos (livres, voluntários e conscientes) deveriam ser: realizados por sujeitos com liberdade de pensamento e sem coerção de qualquer espécie; e baseados na percepção (consciência) da existência de conflitos, com posicionamento livre entre a emoção e a razão (autonomia) e com maturidade emocional, coerência e repertório social35.
A proposta da corrente de pensamento denominada ‘Bioética de Intervenção’ é ser um instrumento de reflexão sobre problemas bioéticos persistentes e/ou emergentes contextualizados em cenários de desigualdades sociais, a exemplo da América Latina e demais países do Hemisfério Sul. A BI contempla no seu escopo uma perspectiva de justiça social crítica contestadora do neocolonialismo social, cultural, econômico, científico e ambiental dos países desenvolvidos sobre os países em desenvolvimento36.
Entre os pressupostos da BI, figuram: a conscientização política de dilemas morais em circunstâncias de exclusão social, pensados ‘do’, ‘para’ e ‘com’ o Hemisfério Sul; a dialogicidade em permanente construção, sustentada pela solidariedade comprometida com o cotidiano e valorativa das diferenças; a proposição de transformação através da mobilização social nos espaços democráticos de encontro, reflexão, contestação e negociação; um consequencialismo descolonizado preocupado, principalmente, com as problemáticas persistentes que não deveriam acontecer mais na contemporaneidade, a exemplo do racismo, sexismo e do ageísmo37,38.
Percebe-se, portanto, uma proximidade do escopo da BI ao campo da saúde coletiva, pelo estímulo ao exercício de cidadania para o alcance da justiça como equidade, enlaçada numa capilaridade do saber transdisciplinar, ampliando olhares interdisciplinares acerca de aspectos conflituosos sobre a complexidade da vida em sociedades pluriversais. Ademais, ambas alicerçam suas construções nas reflexões das ações humanas sobre os desafios das situações sociais concretas exigentes de atitudes responsáveis transformadoras (pessoais, sociais, sanitárias e ecológicas), através intervenções éticas aplicadas7,39.
Acredita-se que o debate bioético sobre os valores que permeiam as questões estigmatizantes do ageísmo poderia auxiliar na visibilidade dessa problemática, minimizando as vulnerabilidades que afetam, principalmente, os idosos. Portanto, a BI e a saúde coletiva comungam da mesma militância enquanto episteme e ferramentas de inspiração e de aplicação (intervenção) de estratégias capazes de contribuir para reduzir as desigualdades sociais, bem como atenuar os determinantes e condicionantes do ageísmo em suas dimensões institucional, pessoal e autoinfligida, propondo pactuações e ressignificações, equilibrando suas relações de poder40.
Para isso, a BI considera os indivíduos de uma sociedade enquanto protagonistas, apurados com consciência crítica e comprometidos com a participação social, para alcance equitativo de direitos que assegurem o reconhecimento recíproco de pessoas e de grupos, prestigiando suas diversidades e seus valores41,42.
Diante do contexto da sindemia da Covid19, a estereotipia e a estigmatização baseada na idade demandaram discussões éticas importantes. Inicialmente, em função do risco iminente de sobrecarga e colapso no acesso aos sistemas de saúde, o debate aconteceu acerca da alocação de recursos de saúde prioritariamente para os usuários mais jovens e adultos, alimentando o dilema ético fundamental sobre o direito à vida e sobre o direito de algum(ns) profissional(is) decidir(em) quem deveria viver ou morrer30,43.
Parafraseando Singer44, quando argumenta sobre a inexistência de diferença intrínseca entre matar e deixar morrer, não há significado ético intrínseco entre discriminar e deixar discriminar. Portanto, consequentemente e aparentemente, diante de situações cotidianas em que se identifiquem ou se percebam pensamentos, sentimentos ou atitudes depreciativas relacionadas com a idade das pessoas, todos seriam ageístas.
Entre os dilemas éticos mais evidentes durante a sindemia da Covid-19, inicialmente, surgiu a classificação da triagem utilitária, quanto ao acesso a equipamentos biomédicos, em três situações possíveis, contextualizados diante da escassez de recursos: as pessoas com probabilidade de sobreviver sem cuidados médicos; os indivíduos com possibilidades de sobrevivência caso recebessem assistência médica; e aqueles que, ainda que recebessem cuidados/assistência médica, não sobreviveriam. Diante desse dilema, em muitos lugares, apenas os sujeitos classificados na segunda alternativa descrita acima receberam assistência médica. Nesta situação, a lógica consensual era a ideia utilitarista de equilibrar recursos limitados com a maior eficácia possível45.
O etarismo, persistente, dificultou o alcance da plenitude de direitos: à saúde; ao acesso; à justiça; e à vida (e à morte) digna. A lógica de seleção de corpos (principalmente dos mais idosos) como descartáveis transferiu a celebração da conquista do aumento da expectativa de vida, verificado na transição demográfica, para a estigmatização enquanto um fardo financeiro sustentado pela seguridade social, bem como com relação ao abandono ou à ausência do governo em assegurar a proteção dos idosos, com o argumento de que a morte deles na pandemia representaria economia aos cofres públicos e à seguridade social. Consequentemente, a sindemia da Covid-19 exacerbou, no Brasil, os abusos psicológicos, econômicos, culturais e físicos já existentes e, agora, mais do que nunca, persistentes45,46.
Retomando a questão da ocupação de leitos escassos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e no acesso a respiradores, a depreciação relacionada às pessoas idosas contribuiu para modelar as práticas sociais quando associou predominantemente o tempo de vida como critério valorativo social de cada um, de forma que as decisões protocolares podem conter vieses implícitos desconsiderando a diversidade e o pluralismo do envelhecer. Nesse sentido, protocolos que incorporem, de maneira reducionista ou simplista, decisões contrárias às pessoas mais velhas, sem levar em consideração a complexidade dos demais aspectos, podem atuar como instrumentos a serviço de uma necropolítica ageísta47.
Lloyd-Sherlock et al.48 apontam a necessidade de reconhecimento das singularidades das pessoas longevas, que devem ser consideradas na elaboração de planos locais, nacionais e internacionais para enfrentamento do novo coronavírus, pois o risco de morte por Covid-19 aumenta com a idade, para evitar a aplicação de critérios discriminatórios, pela impossibilidade de atender a todos. Nesse contexto, a bioética é indispensável para estimular reflexões pertinentes buscando alternativas coerentes.
Algumas situações merecem consideração, no contexto dos países em desenvolvimento, pelo risco de aumentarem a desigualdade de acesso e a marginalização dos idosos: a dinâmica familiar em que os pais trabalham distante de suas residências, deixando os filhos com os avós enquanto estão no trabalho, fato que dificulta o distanciamento físico; a quantidade significativa de pessoas idosas que residem em instituições de longa permanência (lares de idosos), que exigem fiscalização sanitária para que não se tipifiquem como incubadoras de infecções; a capacidade dos sistemas de saúde de lidar com aumentos da demanda, especialmente nas situações que requerem suporte respiratório, principalmente com relação às pessoas mais velhas, frente às restrições de equipamentos e de capacidades; e o quantitativo de trabalhadores de saúde com expertise adequada para enfrentamento, em tempo hábil, dos desafios da sindemia48.
Portanto, a destinação de recursos e as oportunidades de acesso à saúde baseadas apenas na idade caracterizam-se como ageísmo, pois, mesmo em situações consideradas críticas, outros parâmetros devem ser requisitados, a exemplo das limitações clínicas, vulnerabilidades, funcionalidades/capacidades e comorbidades. Todos têm direito à vida, e as decisões rápidas deveriam ser tomadas pela equipe, em conjunto com o usuário e com sua família. Torna-se cada vez mais importante a comunicação adequada entre todos para melhorar a compreensão da heterogeneidade do envelhecimento, renunciando os estereótipos relacionados com a velhice30.
A tensão intergeracional, caracterizada enquanto conflito entre pessoas de diversas gerações, esteve manifestada geralmente na forma de raiva, ódio ou cancelamento nas redes sociais, por exemplo, por causa da resistência de alguns quanto ao uso de máscaras ou pela falta de adesão às medidas de distanciamento. Além disso, a forma como os profissionais de saúde consideram o envelhecimento e o idoso pode determinar e influenciar o atendimento e o tratamento direcionado aos longevos49.
Ademais, na sindemia covídica, em alguns territórios, foi estabelecida a premissa de que os mais velhos já viveram de forma suficiente suas vidas, sendo agora a hora, portanto, de uma renúncia, desconsiderando sua autonomia, independência e suas necessidades sociais. Tais fatos indicaram uma acentuada diferença de perspectivas de vida, bem como de elevação da animosidade entre gerações, quando fundamentadas de forma simplista apenas relacionadas à idade, como uma espécie de marcador de risco e de letalidade43.
Com o afloramento dos conflitos morais referentes ao valor da vida das pessoas idosas, destacam-se alguns apontamentos baseados na ética e no conhecimento sobre o envelhecimento saudável para o combate ao ageísmo durante a sindemia da Covid-19: o idoso faz parte de um estrato heterogêneo, com saúde e funcionalidade bem melhores do que os estereótipos negativos sugerem; os limites/barreiras de idade para acesso aos serviços de saúde, bem como à terapia intensiva e outras formas de assistência médica, são inapropriados e antiéticos; a visão depreciativa da velhice é perigosa para os idosos e para a própria sociedade, que também envelhece; a solidariedade entre as gerações deve ser fortalecida; deve-se resistir às atitudes paternalistas ou infantilizadas relacionadas aos idosos; e a crise da Covid19 exige o uso de modernas tecnologias da informação e comunicação entre os idosos50.
A Atenção Primária à Saúde (APS) é importante enquanto cenário para identificação, prevenção e enfrentamento das manifestações de ageísmo, no sentido de aprimoramento das ações de vigilância em saúde, pela vinculação mais próxima das comunidades, a exemplo das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), principalmente pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que atuam de forma cotidiana nos territórios. Portanto, a APS precisa ser considerada a partir de uma abordagem mais integral, gerando informações e conhecimentos sobre os aspectos singulares da vida em todas as suas etapas e idades51.
A capilaridade perene entre trabalhadores, usuários e gestores, na APS e no SUS, é pertinente para se pensar em estratégias conjuntas de enfrentamento, estabelecendo linhas de cuidado na rede local e intermunicipal de saúde, a partir do trabalho interprofissional, com parcerias intersetoriais articuladas, em ações mais enfáticas que não fiquem apenas a nível dos discursos e que tenham, de fato, um componente interventivo e transformador inspirado nos referenciais da BI36,38,52.
A atual crise, global e local, é sindêmica, sanitária, política, econômica e social, e exige inovação nos modos de operação e radicalização da lógica de intervenção comunitária no exercício de novas formas de sociabilidade e de solidariedade. A APS tem a seu favor a proximidade de conhecimento do território, do acesso e do vínculo entre os usuários e suas equipes de saúde, na integralidade da assistência, no monitoramento das pessoas e famílias vulneráveis e no acompanhamento dos casos suspeitos e leves, fundamentais para a contenção da pandemia e para evitar o agravamento das pessoas com a doença. Essa capilaridade pode ser decisiva na sensibilização e no respeito às estratégias de mitigação do ageísmo6,51,52.
Considerações finais
O artigo articulou aspectos do ageísmo relacionados à sindemia da Covid-19, considerando os referenciais da BI enquanto corrente epistemológica e ferramenta interventiva aproximando saberes ao escopo da saúde coletiva. Discute-se o exercício teórico de abordar problemas complexos sob a ótica de diálogos interdisciplinares: a sindemia covídica para compreensão e enfrentamento bioético dos determinantes e condicionantes ageístas.
O enfrentamento do ageísmo deve ocorrer a partir da implantação de políticas públicas perenes que visem ao bem-estar intergeracional, além de uma educação que resgate o respeito humano, a valorização dos idosos, enquanto prepara de forma igualitária os mais jovens para envelhecer de modo saudável, com solidariedade intergeracional e respeito aos direitos e à vida.
Ressalta-se a natureza crítico-reflexiva sustentada em importantes pressupostos teóricos que permitem analisar diversos pontos críticos socioculturais e de abrangência em saúde coletiva, trazendo à tona esse tema ainda pouco discutido com relação à sindemia da Covid-19 no Brasil e no mundo. Faz-se necessário aumentar os esforços para a redução do ageísmo, bem como a disseminação responsável de informações sobre essa prática nefasta.
Do ponto de vista prático, espera-se que o artigo possa incentivar a discussão sobre o tema na sociedade e estimular a implantação de práticas para a mitigação do ageísmo, na perspectiva de estimular atos éticos de religação responsáveis e capazes de ampliar conhecimentos, habilidades e competências para elaborar e aplicar intervenções intergeracionais plausíveis e pautadas na ética da vida.
Agradecimentos
Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (RenasF); e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Jun 2022 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2022
Histórico
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Recebido
27 Out 2021 -
Aceito
16 Mar 2022