RESUMO
A judicialização na saúde suplementar supera a que ocorre no setor público, evidenciando a fragilidade de sua regulação e dificultando o acesso aos planos de saúde. Serão analisadas ações judiciais contra uma operadora da saúde suplementar em Belo Horizonte, entre os anos de 2010 e 2017. Analisaramse proces¬sos judiciais por meio de técnica de análise documental. As variáveis foram relativas à natureza do processo judicial, ao perfil dos beneficiários e às características das demandas. A Regressão de Poisson foi utilizada na avaliação de impacto e relevância das variáveis selecionadas, e o software R versão 3.6.1 para os testes de significância. No período de 2010 a 2017, foram movidas 6.090 ações. As principais causas são questões contratuais, negativa de procedimento, órtese/prótese e exames. Planos anteriores à ‘Lei dos Planos de Saúde’ correspondem a 3% da carteira e 37,4% da judicialização. Este estudo demonstrou que a possibilidade de judicializar é maior entre clientes masculinos, contratos individuais, planos assistidos em rede ampla, sem coparticipação. A judicialização é mais acessível a cidadãos de maior condição econômica. Questões contratuais evidenciam frágil regulação. Adequada regulamentação reduz o desequilíbrio entre clientes e operadoras. A Agência Nacional de Saúde Suplementar precisa exercer sua função reguladora.
PALAVRAS-CHAVE
Judicialização da saúde; Saúde suplementar; Setor privado; Planos de sistemas de saúde
ABSTRACT
Judicialization in supplementary health surpasses that which occurs in the public sector, evidencing the fragility of its regulation and making access to health plans difficult. Lawsuits against a Supplementary Health operator in Belo Horizonte, between 2010 and 2017, will be analyzed. Legal proceedings were analyzed using a document analysis technique. Variables were related to the nature of the legal process, the profile of the beneficiaries and the characteristics of the demands. Poisson Regression was used to assess the impact and relevance of the selected variables, and the R software version 3.6.1 for the significance tests. In the period from 2010 to 2017, 6090 actions were filed. The main causes are contractual issues, denial of procedure, orthosis/prosthesis and exams. Plans prior to the ‘Health Plan Law’, correspond to 3% of the portfolio and 37.4% of the judicialization. This study showed that the possibility of taking legal action is greater among male clients, individual contracts, plans assisted in a wide network, without co-participation. Judicialization is more accessible to citizens of higher economic status. Contractual issues show fragile regulation. Adequate regulation reduces the imbalance between customers and operators. The National Supplementary Health Agency needs to exercise its regulatory function.
KEYWORDS
Health judicialization; Supplemental health; Private sector; Health systems plan
Introdução
A Constituição de 198811 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. estabelece o direito à saúde, direito social e fundamental, garantido a todos os cidadãos. O crescimento econômico, o acesso à educação e à saúde propiciaram, no período seguinte, um ambiente no qual tornou-se possível ao cidadão a busca da garantia de seus direitos. Desde então, um caminho cada vez mais utilizado é o da judicialização22 Oliveira MRM. A judicialização da saúde no Brasil. Rev. Tempus Actas de Saúde Colet. 2013; 7(1):79-90..
O termo judicialização é aplicado quando o poder judiciário necessita intervir em outro setor ou área da qual, a princípio, não participaria33 Travassos DV, Ferreira RC, Vargas AMD, et al. Judicialização da saúde: um estudo de caso de três tribunais brasileiros. Ciênc. Saúde Colet. 2013; 18(11):3419-3429.. Essa intervenção, normalmente, tem por objetivo garantir os princípios e direitos constitucionais11 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.. Havendo a intervenção do Poder Judiciário nos campos político, social ou moral, ocorre, então, a judicialização44 Gomes FFC, Cherchiglia ML, Machado CD, et al. Acesso aos procedimentos de média e alta complexidade no Sistema Único de Saúde: uma questão de judicialização. Cad. Saúde Pública. 2014; 30(1):31-43.. Para Machado e Dain55 Machado FRS, Dain S. A audiência pública da saúde: questões para a judicialização e para a gestão de saúde no Brasil. Rev Adm. Pública. 2012; 46(4):1017-1036., a judicialização ocorre quando o poder jurídico passa a intervir nas políticas públicas.
Atualmente, no Brasil, a judicialização da saúde atinge proporções preocupantes, acarreta imenso esforço ao judiciário, além de prejudicar o planejamento no sistema público, podendo, inclusive, agravar desigualdades no atendimento aos cidadãos66 Asensi FD, Pinheiro R. Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiências. Conselho Nacional de Justiça. 2015. [acesso em 2018 nov 2]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/06/6781486daef02bc6ec8c1e491a565006.pdf.
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. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2011, ocorreram 240.890 ações judiciais em saúde no Brasil77 Balestra Neto O. A jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - evolução rumo à racionalidade. Rev Direit. Sanit. 2015; 16(1):87-111.. Em 2015, essas ações chegaram a 300.00088 Paula CEA, Bittar CML. Judicialização da saúde e seus reflexos na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Direit. Hum. Efet. 2017; 3(1):19-41.. Conforme o relatório ‘Justiça em Números 2020’, do CNJ, são mais de 2 milhões de processos em tramitação nesse ano99 Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2020. 2020. [acesso em 2020 dez 23]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-especial-coronavirus-debate-judicializacao-da-saude-nesta-quinta-feira-6-8/.
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No setor privado de saúde suplementar, além de solicitações assistenciais, a judicialização ocorre, também, por questões contratuais, com base na Constituição, na Lei dos Planos de Saúde1010 Brasil. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Diário Oficial da União. 4 Jun 1998. e nos Direitos do Consumidor1111 Biehl J, Amon JJ, Socal MP, et al. Between the court and the clinic: lawsuits for medicines and the right to health in Brazil. Health Hum. Rights. 2012; 14(1):36-52.. Analisando estatísticas do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), referentes à judicialização na saúde suplementar, Robba1212 Robba R. Judicialização dos planos e seguros de saúde coletivos no Tribunal de Justiça de São Paulo. 2017. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017. 238 p. identificou, em 2010, 1.095 ações julgadas; e, em 2015, 5.082 ações, configurando um crescimento próximo a 500%. Destaca-se que, no período de 2011 a 2016, o TJSP julgou em segunda instância mais ações contra planos de saúde (63.238 decisões) do que contra o Sistema Único de Saúde (SUS) (49.959 decisões)1313 Scheffer MC. Em São Paulo, de janeiro a setembro de 2017, foram julgadas 120 ações por dia contra planos de saúde. Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar Departamento de Medicina Preventiva Faculdade de Medicina da USP. 2017. [acesso em 2018 out 3]. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/361403168/Observatorio-OUTUBRO2017-04-10-1.
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. O crescimento é confirmado quando se observa que, apenas no ano de 2019, o sistema judiciário de São Paulo julgou 34.613 ações contra planos de saúde1414 Scheffer MC. Cresce o número de ações judiciais contra planos de saúde no Estado de São Paulo. Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde do Departamento de Medicina Preventiva Faculdade de Medicina da USP. 2020. [acesso em 2020 dez 23]. Disponível em: https://sites.usp.br/geps/publicacoes/.
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A judicialização da saúde, como vem ocorrendo no Brasil, contribui para iniquidades, quando determina políticas públicas ao SUS e interfere no orçamento, desviando recursos, desconsiderando a hierarquização e as prioridades1515 Wang DW, Vasconcelos NP, Oliveira VE, et al. Os impactos da judicialização da saúde no município de São Paulo: gasto público e organização federativa. Rev Adm Pública. 2014; 48(5):1191-1206.. Essa judicialização na saúde suplementar evidencia uma regulação ineficiente por parte da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)1616 Trettel DB, Kozan JF, Scheffer MC. Judicialização em planos de saúde coletivos: efeitos da opção regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar nos conflitos entre consumidores e operadoras. Rev Direit. Sanit. São Paulo. 2018; 19(1):166-187., mobiliza enormes recursos, encarecendo os planos de saúde, e é favorecida pelo fato de a judicialização ser implementada, na maioria das vezes, por solicitações de médicos que atuam no setor privado1717 Campos Neto OH, Acurcio FA, Machado MAA, et al. Médicos, advogados e indústria farmacêutica na judicialização da saúde em Minas Gerais, Brasil. Rev. Saúde Pública. 2012; 46(5):784-790..
O Brasil possui um sistema de saúde híbrido1818 Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.,1919 Menicucci TMG. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011.: O SUS público, que presta assistência integral e gratuita a toda a população, e a saúde suplementar, que assistia a 47 milhões de brasileiros (1/4 da população) em 20202020 Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dados do Setor. 2021. [acesso em 2021 jan 21]. Disponível em: http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais.
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. Esses usuários da saúde suplementar também podem judicializar contra o SUS. Por ser a saúde objeto de relevância pública, cabe ao Estado garantir a qualidade de sua assistência11 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.. Seja por essa garantia de qualidade, seja pela própria judicialização, esse tema é de grande relevância.
Percebendo a importância da saúde suplementar e a proporção que a judicialização na saúde suplementar atinge, afetando não apenas o sistema de saúde, mas, também, o sistema judiciário, este trabalho pretende avaliar as ações judiciais contra uma operadora de planos de saúde, contribuindo para o conhecimento desse complexo problema.
Material e métodos
Trata-se de um estudo descritivo retrospectivo, cuja unidade de análise constituiu-se de processos judiciais individuais ou coletivos, cadastrados no banco de dados (cedido para este estudo em caráter confidencial) da operadora de planos de saúde Unimed-BH, com sede na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil2121 Unimed-BH. Base de dados Judicialização da Saúde. Unimed-BH: Belo Horizonte. 2018.. Essa operadora comercializa planos apenas na cidade de Belo Horizonte e em sua região metropolitana.
A operadora foi escolhida por ser uma das maiores operadoras de planos de saúde do Brasil e por, entre as grandes operadoras, ser a mais bem qualificada pela ANS, através do Índice de Desempenho da Saúde Suplementar (IDSS)2222 Unimed-BH. Resoluções ANS. Belo Horizonte: Unimed-BH; 2019. [acesso em 2020 jun 8]. Disponível em: https://portal.unimedbh.com.br/wps/portal/corp/unimedbh/noticias/noticias_lateral/idss_unimedbh_notamaxima#!/#main-container.
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Foram analisados processos judiciais cadastrados entre primeiro de janeiro de 2010 e 31 de dezembro de 2017, ajuizados contra a operadora por seus clientes, reivindicando assistência médica e/ou discutindo ações pertinentes a seu contrato. Foram excluídos os processos nos quais não foi possível caracterizar pelo menos uma das variáveis deste estudo. A coleta de dados foi realizada no ano de 2018.
As variáveis analisadas foram: beneficiário: sexo (masculino/feminino), idade em anos (média, desvio padrão, mediana, intervalo interquartílico), idade categorizada (<= 19, 20-39, 40-59, 60 ou mais); características do plano contratado: tipo de contratação (individual/coletivo), rede assistencial (preferencial/ampla), regulamentação (regulamentado ou não conforme a Lei nº 9.656/98), abrangência da cobertura (coparticipativo, básico, abrangente, outros); e ações judiciais: motivos/causas (assistencial/não assistencial), caracterização (instância, liminar, recursos) e a decisão (favorável ou não).
Foram utilizadas proporções para comparar a ocorrência de judicialização e o desfecho com as variáveis selecionadas. As análises comparativas foram realizadas para identificar possíveis diferenças e semelhanças significantes entre as características dos pacientes (demandantes) e as ações e seus resultados (deferimento ou não da demanda). A Regressão de Poisson foi utilizada na avaliação de impacto e relevância das variáveis selecionadas. Com o conhecimento acumulado sobre o tema, sabe-se que a distribuição do fenômeno estudado não tende a ser normal, portanto, utilizou-se a Regressão de Poisson. Para os testes de significância, foi utilizado o software livre R versão 3.6.1.
Os aspectos éticos e a confidencialidade deste estudo foram observados, e o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Coep) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob o nº 2.936.828. Este estudo faz parte do projeto ‘A Saúde Suplementar do ponto de vista dos contratos coletivos: uma análise das contratações e negociações coletivas’ (CNPq/GPES/FM/UFMG).
Resultados
No período de 2010 a 2017, foram ajuizadas 6090 ações contra a operadora. Desse total, 4.149 (68%) ocorreram devido à negativa de solicitações de assistência à saúde (denominadas neste trabalho como assistenciais). As outras 1941 ações (32%) devem-se a questões contratuais (chamadas não assistenciais). A tabela 1 demonstra as principais causas.
Número de ações judiciais em uma operadora de planos de saúde segundo tipo de demanda. Belo Horizonte, Minas Gerais, 2010-2017
Com relação aos demandantes, conforme tipo de contrato (coletivo ou individual), os clientes com contrato individual, que representam 20% da carteira, foram responsáveis por 34,7% das demandas contra a operadora. Por outro lado, os clientes de contratos coletivos, cerca de 80%, representaram 60% do total de demandas.
Os planos contratados possuem outras características que os diferenciam: rede assistencial (local onde o cliente pode ser assistido), possuir coparticipação ou não (havendo coparticipação, o cliente tem um acréscimo em sua mensalidade quando o utiliza) e plano regulamentado ou não (plano não regulamentado ou antigo foi adquirido anteriormente à Lei dos Planos de Saúde nº 9.656/98, que passou a vigorar em janeiro de 1999).
Para realização deste estudo, os nomes dos planos de saúde comercializados pela empresa foram substituídos. O plano que se encontra na primeira posição no portfólio da empresa corresponde a Abrangente, com 13,2% da carteira (162.487 clientes) e 17,8% dos clientes demandantes. O Abrangente é o plano de maior valor, que exige maior desembolso por parte do comprador.
O plano de menor valor foi nomeado Básico, com atendimento em uma rede restrita, sendo grande parte dela pertencente à operadora, prevendo apenas internação em enfermaria. No Básico, é introduzido o sistema de coparticipação. Quando o cliente utiliza o plano é cobrado um acréscimo em sua mensalidade proporcional à utilização. O Básico atende a 21,2% da carteira (260.964 clientes) e apenas 5,7% dos demandantes.
O plano com maior número de clientes, 54,7% (673.336 clientes), recebeu o nome de Coparticipativo, e, como previsto no nome, possui a coparticipação, que possibilita um dispêndio bem inferior ao do Abrangente, garantindo a mesma rede assistencial. Essa modalidade abrange 54,7% da carteira e possui 29,7% dos demandantes.
O plano Saúde da Família adota um modelo bastante semelhante ao da Estratégia Saúde da Família do SUS, com atendimento em uma rede planejada, composta por médicos especialistas em saúde da família, e prevê coparticipação. O modelo representa 3,5% da carteira (43.084 clientes) e 0,2% dos demandantes.
O plano Anterior à Lei (Lei nº 9.656/98) é responsável por 3% da carteira (35.698 clientes), mas atinge 34,7% dos demandantes. Existem, ainda, 4,5% de clientes (55.393) com planos diversos, chamados de Outros, oriundos de cooperativas absorvidas pela operadora. Nesse grupo, o percentual de demandantes é de 9,2%. Os planos Anterior à Lei e Outros possuem as mesmas características do Abrangente. É importante ressaltar que os planos anteriores à lei não são regidos pela atual Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98), de modo que a obrigação da operadora se restringe apenas ao que consta no contrato.
A idade dos clientes demandantes é outra variável analisada, sendo que a incidência de demandas cresceu conforme o aumento da idade. Os clientes na faixa etária de zero a 19 anos são 297.645, correspondendo a 24,18% da carteira, e são responsáveis por 4,1% da judicialização. Entre 20 e 39 anos, os usuários correspondem a 34,6% da carteira e 18,8% da judicialização. No intervalo entre 40 e 59 anos, são 30,5% da carteira e 20,4% da judicialização. A população de clientes acima de 60 anos, que corresponde a 10,76% do total de clientes, é responsável por 50,7% de todas as demandas no período de 2010 a 2017. Em 6% das ações, não foi possível identificar a idade do litigante.
Tópico importante na discussão dos resultados é o desfecho das ações. Considerando as ações que possuem decisão em alguma instância, encontrou-se decisão favorável ao demandante em 81% delas, e, quando a solicitação é assistencial, as decisões favoráveis ao demandante atingem 89% (tabela 2).
Além do desfecho, também são relevantes a tutela antecipada (liminar) e o tempo de trâmite das ações na justiça. Desse modo, nas ações contra essa operadora, a tutela antecipada foi solicitada em todas. Pode-se dizer que foi sempre deferida, visto que apenas 7 (sete) foram negadas, de um total de 6.090.
Com relação ao tempo de trâmite, das 6.090 ações, 2.174 possuem decisão em primeira instância, 1.964 em segunda instância, e apenas 139 em terceira instância. Existem 1.813 ações sem decisão alguma. Tais números demonstram que as ações são bem demoradas e, aparentemente, prolongam-se por todas as instâncias possíveis.
Na tabela 3, analisando-se cada variável de maneira independente, percebe-se que a possibilidade de judicializar é menor para o sexo masculino. Na variável idade, tanto a média como a mediana demonstram que, entre os demandantes, há um percentual maior de indivíduos com idade mais elevada. Analisando a faixa etária, fica evidente que a possibilidade de judicializar aumenta com a idade, sendo bem mais frequente após os 60 anos. Com relação ao tipo de contrato, os individuais e aqueles assistidos em rede ampla favorecem a judicialização. Plano Anterior à Lei (que regulamenta os planos de saúde) é a variável que mais favorece a judicialização. Na variável tipo de produto contratado, os planos Básico e Saúde da Família inibem a judicialização, enquanto os planos Abrangente e Outros aumentam a chance de judicializar, quando se tem por base o coparticipativo.
Características demográficas dos beneficiários e dos planos contratados segundo serem ou não demandantes de ações judiciais contra uma operadora de planos de saúde, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2010 a 2017
Por meio da Regressão de Poisson, examinou-se como se comportam essas variáveis, em conjunto. Nessa análise, a chance de o demandante ser do sexo masculino é maior, diferente do resultado da tabela 3. Quanto à idade, a possibilidade de o demandante possuir 60 anos ou mais é grande. Nas variáveis tipo de contrato, rede assistencial e anterior à lei ou não, a possibilidade de judicializar é maior quando o cliente possui contrato individual e é assistido em rede ampla, aumentando ainda mais caso o plano seja anterior à lei. Na variável tipo de produto, houve surpresa ao se constatar que os planos Básico e Saúde da Família favorecerem a judicialização, além do Abrangente e Outros, tendo o Coparticipativo como padrão, conforme demonstra a tabela 4.
Modelo múltiplo de Regressão de Poisson para fatores associados à demanda por ação judicial contra uma operadora de planos de saúde, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2010 a 2017
A análise estatística confirma a grande maioria das constatações anteriores. Na tabela 4, fica evidente, de maneira estatisticamente significativa, que, neste estudo, a possibilidade de clientes do sexo masculino judicializarem é maior. A possibilidade de judicializar cresce de acordo com a idade, sendo bem maior após os 60 anos. A probabilidade de um cliente portador de um contrato individual judicializar é bem maior que de um portador de contrato coletivo. Clientes assistidos em rede ampla (livre escolha) também apresentam maior probabilidade de judicializar quando comparados aos assistidos em rede preferencial. Com relação à regulamentação, nos planos não regulamentados (anteriores à Lei nº 9.656/98), a judicialização é extremamente maior. Ao se avaliar o tipo de plano, todos são favoráveis à judicialização, quando comparados ao Coparticipativo.
Após a análise estatística, apenas o plano Básico não confirmou as tendências apontadas pela análise descritiva. Apesar de possuir coparticipação, ser atendido em rede restrita e ser o plano que requer menor dispêndio, sua possibilidade de judicializar é maior que o Coparticipativo.
Discussão
Foram encontradas 6.090 ações judiciais, correspondendo a 0,5% dos clientes, em 31 de dezembro de 2017 (1.230.962). Trabalho que analisa a judicialização no convênio Cassi, no período de 1998 a 2009, indica 7271 ações, em um universo de 681.282 clientes, correspondendo a 1% dos clientes. Considerando-se apenas o período de 2002 a 2009 (mesmo número de anos deste trabalho), o percentual permanece em 1%2323 Oliveira JAD. Demandas jurídicas por coberturas assistenciais - estudo de caso: CASSI. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010. 72 p.. Importante ressaltar que o convênio Cassi é uma operadora do segmento de autogestão, empresa administrada pelos próprios usuários e que não visa ao lucro, mas, mesmo assim, apresenta o dobro de ações judiciais comparado à operadora objeto deste trabalho (uma cooperativa médica). Infelizmente, não foram encontrados outros trabalhos que trazem o quantitativo de ações por operadora.
No presente estudo, o volume de ações assistenciais (negativa de assistência à saúde) atinge 4.149 (68%) e supera em dobro as não assistenciais (questões contratuais), que totalizaram 1.941 (32%). Esses resultados contrariam a literatura consultada, pois um estudo que analisou ações julgadas pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), nos anos de 2012 e 2013, relativas à Saúde Suplementar, apresentou 44% de ações não assistenciais2424 Abade EAF. A judicialização da assistência médica suplementar: um estudo de caso em Pernambuco. [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015. 85 p.. Outro trabalho que analisou decisões judiciais do TJSP, nos anos de 2012 e 2013, referentes a contratos coletivos, encontrou 48% de ações não assistenciais1616 Trettel DB, Kozan JF, Scheffer MC. Judicialização em planos de saúde coletivos: efeitos da opção regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar nos conflitos entre consumidores e operadoras. Rev Direit. Sanit. São Paulo. 2018; 19(1):166-187.. Em ambos, os percentuais se aproximam de 50%.
À primeira vista, o maior percentual de ações assistenciais pode sugerir uma maior negativa de assistência. No entanto, em relação ao convênio Cassi, a operadora em estudo apresenta uma redução em 50% no volume total de ações (mesmo a Cassi sendo uma autogestão). Outro fato importante a ser considerado nesta discussão é que entre as grandes operadoras de saúde suplementar no País, a empresa objeto deste estudo é a mais bem avaliada pela ANS. Ponto fundamental para essa avaliação é o número de reclamações e opiniões dos clientes. Considerando a avaliação pela ANS e o menor volume de ações, se comparada a uma autogestão, é inevitável admitir a possibilidade de uma melhor gestão de clientes, diminuindo o número de questões contratuais.
A compreensão de como ocorre a judicialização na saúde suplementar passa pela tentativa de traçar um perfil do demandante. Nesse aspecto, o tipo de contrato é muito importante. Atualmente, a maioria dos planos de saúde privilegia clientes corporativos (contratos coletivos), entre outros motivos, por não haver inadimplência (débito em folha) e pelo reajuste das mensalidades não ser definido pela ANS.
Este trabalho demonstra que a judicialização também é um motivo para privilegiar os contratos coletivos. Na operadora em estudo, os clientes individuais (indivíduos e/ou famílias) correspondem a 20% do total, mas são responsáveis por 34,7% da judicialização. Já os clientes coletivos (empresariais), 80% do total de clientes, são responsáveis por 60% da judicialização.
Sendo, portanto, todos clientes de uma mesma operadora, por que clientes individuais judicializariam mais? As causas assistenciais não são as respostas, pois as demandas de saúde não se alteram conforme o tipo de contrato. Nas causas não assistenciais, há distinção conforme o tipo de contrato. A inadimplência, primeira causa não assistencial, ocorre apenas entre os clientes individuais. No entanto, reajuste e alterações contratuais, respectivamente, segunda e terceira causas não assistenciais, são mais pertinentes aos clientes coletivos, visto que para os clientes individuais o reajuste é definido pela ANS, e o contrato é sempre o mesmo. Acredita-se que dessa forma há um equilíbrio, com as causas interferindo muito pouco.
O único fator que resta diferenciando contratos individuais e coletivos é o preço pago pelo plano. O desembolso para planos individuais é muito superior, podendo chegar ao dobro do valor de um plano coletivo, o que sugere que clientes com maior capacidade de investimento judicializam mais.
Dois estudos confirmam o maior percentual de judicialização provocado por clientes portadores de contratos individuais. Analisando acórdãos julgados pelo TJSP no período de 1994 a 2004, contatou-se que 88% das ações foram ajuizadas por clientes individuais, e apenas 11% por clientes portadores de contratos coletivos2525 Scheffer MC. Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações movidas por clientes de planos de saúde, relacionadas à negação de coberturas assistenciais no estado de São Paulo. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006. 212 p.. Outro estudo que analisou ações judiciais relativas à assistência médica suplementar, julgadas no TJPE, nos anos de 2012 e 2013, demonstrou que os clientes individuais (58%) judicializaram mais que os clientes de planos coletivos (42%)2424 Abade EAF. A judicialização da assistência médica suplementar: um estudo de caso em Pernambuco. [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015. 85 p..
A operadora em estudo comercializa diversos planos de saúde com características distintas conforme a rede assistencial, coparticipação e ser regulamentado ou não. Percebeu-se que os planos atendidos em rede ampla e sem coparticipação (Abrangente, Anterior à Lei e Outros) apresentam um elevado percentual de judicialização. Esses são os planos nos quais o percentual de demandantes é bem superior ao percentual de clientes.
A coparticipação isolada parece inibir a judicialização, como ocorre na modalidade de Coparticipativo, que possui 55% dos clientes e 30% dos demandantes. A soma da coparticipação e o atendimento em rede restrita reduzem bastante o percentual de judicialização, fato percebido nos planos Básico e Saúde da Família.
Os clientes portadores de planos com coparticipação exercem uma espécie de autorregulação, reduzindo a utilização para não aumentar seu desembolso. A redução da utilização certamente reduz a judicialização. A rede restrita possibilita um atendimento sobre o qual a operadora exerce maior controle, estabelecendo protocolos, monitorando os fluxos, evitando solicitações que possam gerar judicialização.
No entanto, é preciso ressaltar que, novamente, os clientes de planos mais caros judicializam mais. Um plano assistido em rede ampla, sem coparticipação, exige um investimento extremamente superior a um plano atendido em rede restrita, com coparticipação. Excluindo os planos Anterior à Lei, os planos Abrangente e Outros possuem 17,7% dos clientes e são responsáveis por 27% da judicialização.
Importante destacar na análise estatística (tabela 4) que, no plano Básico, a possibilidade de judicializar é superior à do Coparticipativo, resultados esses que serão discutidos mais à frente.
O plano Anterior à Lei nº 9.656/98 merece uma discussão à parte. Nele, a operadora tem como obrigação ofertar aos clientes apenas o que está previsto no contrato, sendo que cada contrato/plano nessa modalidade contém um rol de atendimento próprio, podendo prever, inclusive, restrições para atendimentos e internações. Por outro lado, grande parte dos métodos propedêuticos e terapêuticos, largamente utilizados hoje, simplesmente não existia quando da promulgação da Lei. Devido ao enorme volume de judicialização nesse tipo de plano, supõe-se que a operadora objeto deste estudo negue, sistematicamente, o que não está previsto nos contratos, induzindo a um percentual elevado de judicialização, pois 3% do conjunto de clientes são responsáveis por 37,4% de todos os processos judiciais.
A literatura confirma a elevada judicialização entre os planos anteriores à Lei. Um estudo que analisou acórdãos do TJSP, no período de 1999 a 2004, relatou que 44% dos planos eram anteriores à Lei, 1% posteriores e 55% não informados2525 Scheffer MC. Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações movidas por clientes de planos de saúde, relacionadas à negação de coberturas assistenciais no estado de São Paulo. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006. 212 p.. O estudo referente à Cassi, de 1999 a 2009, demonstrou maior judicialização entre os planos anteriores à Lei, que perfaziam 14% da carteira e 30% da judicialização2626 Oliveira JAD, Fortes PAC. De que reclamam, afinal? Estudo das ações judiciais contra uma operadora de plano de saúde. Rev Direit. Sanit. São Paulo. 2013; 13(3):33-58.. Entretanto, estudo abordando ações relativas à assistência médica suplementar, julgadas pelo TJPE, em 2012 e 2013, aponta que os planos anteriores à Lei provocaram apenas 16% das ações, e os posteriores, 84%2424 Abade EAF. A judicialização da assistência médica suplementar: um estudo de caso em Pernambuco. [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015. 85 p.. Como nesse trabalho não é informado o percentual de clientes por tipo de plano, não se pode afastar a possibilidade de, percentualmente, os demandantes de contratos anteriores à Lei superarem os regulamentados.
Analisando-se a idade dos clientes demandantes, fica evidente que, na operadora em estudo, a judicialização aumenta com a idade, sendo que o aumento é progressivo até os 59 anos. A partir dos 60 anos, ocorre um salto, atingindo 23 demandantes por 1.000 clientes, isto é, 10% dos clientes são responsáveis por 50% da judicialização. Esse salto, muito provavelmente, deve-se ao aumento das necessidades em saúde, acarretando maior utilização, com a possibilidade de propedêutica e terapêutica dispendiosas. Também para essa faixa etária, os reajustes são bem mais elevados, podendo motivar questionamentos na justiça. Apesar desses razoáveis motivos, novamente, os planos que requerem maior desembolso são os que apresentam maior judicialização.
Com relação ao sexo dos agentes demandantes, a análise estatística demonstrou que a possibilidade de judicializar é ligeiramente superior entre os clientes do sexo masculino (tabela 4).
Analisando o desfecho das ações, percebe-se que é altamente favorável ao demandante. Em 81% das decisões, ele foi beneficiado. Nas ações assistenciais, o ganho de causa pelo demandante atinge 89%.
A literatura apresenta resultados semelhantes aos aqui relatados. Um estudo que analisou decisões do TJSP entre 2013 e 2014, em ações contra planos de saúde movidas por clientes de contratos coletivos, apresentou resultados semelhantes aos do presente trabalho. Houve decisão totalmente favorável ao usuário em 88,08% dos casos1616 Trettel DB, Kozan JF, Scheffer MC. Judicialização em planos de saúde coletivos: efeitos da opção regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar nos conflitos entre consumidores e operadoras. Rev Direit. Sanit. São Paulo. 2018; 19(1):166-187.. Outro trabalho que analisou acórdãos, também do TJSP, no período de 1999 a 2004, apresentou 74,5% de ações deferidas, 3,7% deferidas em parte e 20,4% negadas2424 Abade EAF. A judicialização da assistência médica suplementar: um estudo de caso em Pernambuco. [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015. 85 p.. Uma análise relativa à assistência de saúde suplementar no TJPE, entre 2012 e 2013, encontrou 88,7% de decisões favoráveis ao demandante, 2,4% parcialmente favoráveis e 8,3% desfavoráveis2323 Oliveira JAD. Demandas jurídicas por coberturas assistenciais - estudo de caso: CASSI. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010. 72 p.. Esses elevados percentuais de sucesso sistematicamente obtidos pelos demandantes em tribunais diversos certamente estimulam a judicialização da saúde.
Instrumento jurídico fundamental é a ‘tutela antecipada’ (liminar), principalmente como recurso à atenção oportuna. Sua incidência, no entanto, chama a atenção quando em apenas sete das 6090 ações estudadas ocorreu negativa para a solicitação de tutela antecipada. Dessa forma, independentemente da solicitação demandada, o juiz sempre determina que a solicitação seja atendida logo no início da ação. No que se refere ao tempo para conclusão das ações, das 6.090 ações ocorridas no período de 2010 a 2017, para 1813 (30%) não existiam decisões até o ano de 2018. Das 642 ações iniciadas em 2010, apenas 27 possuem decisão em terceira instância, e para 121 não havia nenhuma decisão.
É importante destacar que nas ações em que ocorre ‘ganho de causa’ por parte da operadora, a restituição não é automática, dado que cada caso dependerá da análise do juiz. Ao somar-se a tutela antecipada, o ganho de causa pelo demandante (acima de 80%), o longo trâmite da ação e a incerteza quanto ao ressarcimento, torna-se discutível, do ponto de vista econômico, a estratégia de judicialização adotada nessa operadora. A operadora concede a solicitação no início da demanda (liminar) e arca com um grande custo da judicialização, uma vez que não há garantias de ressarcimento, mesmo com uma decisão favorável.
Com relação ao sexo do cliente demandante, ficou demonstrado que a chance de ser masculino é superior, apesar de o número de clientes do sexo feminino ser maior (54,5%).
No quesito idade, comprovam-se os resultados obtidos na análise descritiva. Na faixa etária de 20 a 59 anos, a chance de judicializar é três vezes maior que na faixa etária de 0 a 19 anos. Entre aqueles com idade igual ou superior a 60 anos, a possibilidade de judicializar é seis vezes maior. As necessidades em saúde crescem com a idade, tanto em volume como em complexidade. Planos anteriores à Lei foram comercializados até 1998, o que certamente determina um percentual maior de clientes com idade superior a 60 anos.
Com relação ao tipo de contrato (individual ou coletivo), fica demonstrado que a chance de um cliente de plano individual judicializar é duas vezes maior que a de um cliente de plano coletivo.
Por fim, avaliou-se por tipo de plano e constatou-se que a possibilidade de um cliente assistido em rede ampla judicializar é cinco vezes maior do que a de um cliente assistido em rede restrita. Os planos Abrangente e Outros possuem chance de judicializar duas vezes maior quando comparados ao Coparticipativo. Já quando se trata de plano Anterior à Lei, essa chance é onze vezes maior.
Conclusões
Este estudo demonstrou que, na operadora de planos de saúde analisada, a possibilidade de judicializar é maior entre clientes do sexo masculino, detentores de contratos individuais, portadores de planos assistidos em rede ampla e sem coparticipação. Essa possibilidade também aumenta conforme aumenta a idade do cliente.
Esses resultados corroboram a teoria de a judicialização ser mais acessível a cidadãos de maior condição econômica, pois a possibilidade de judicializar é maior entre os planos que exigem maior desembolso.
Ao se desenvolver um trabalho que aborda a judicialização na saúde suplementar, no Brasil, ressalta-se a necessidade de tecer comentários sobre dois aspectos que se julgam fundamentais: modelo de remuneração e regulação.
O modelo de remuneração em saúde adotado pelo Brasil é determinante para a judicialização da saúde. No SUS, e, principalmente, na saúde suplementar, os estabelecimentos de saúde e os médicos são remunerados por intervenções (procedimentos). Quanto maior é o número de intervenções e maior for a sua complexidade, maior a remuneração2727 Gibran SM, Ferreira Filho M. A possível superação da discricionaridade na judicialização da saúde suplementar. Percurso. 2018; 1(24):84-109.. Esse modelo de remuneração estimula a intervenção, principalmente, por intermédio das inovações tecnológicas e de alta complexidade. Ao analisar as causas das demandas assistenciais, percebeu-se a influência desse modelo de remuneração. As principais causas assistenciais são negativas de procedimentos, órtese/prótese, exames e internação.
Deve-se ressaltar, também, a fragilidade da regulação exercida pela ANS, fato similarmente determinante para a judicialização. A judicialização na saúde suplementar supera a que ocorre no setor público, em grande parte, porque, além da questão assistencial, existe a contratual. O elevado percentual de ganho de causa pelo demandante demonstra a pertinência da judicialização, pois o ganho de causa nas ações não assistenciais deixa claro que há descumprimento de contrato firmado. Esse alto volume de judicialização não assistencial evidencia a fragilidade da regulação pela ANS, visto que uma regulação frágil permite o descumprimento contratual por parte dos planos de saúde2828 Lazzarini M, Bahia L, Scheffer MC. O cúmulo da captura da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). IDEC; 2018. [acesso em 2018 dez 25]. Disponível em: https://idec.org.br/artigo/o-cumulo-da-captura-da-agencia-nacional-de-saude-suplementar-ans.
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Ao detalhar as características dos planos e clientes com maior possibilidade de judicializar, este trabalho traz algumas contribuições pertinentes: auxiliar com a compreensão da judicialização da saúde suplementar, contribuir para a elaboração de políticas para garantir a assistência, evitar a elevação do custo dos contratos e reduzir a própria judicialização.
Outro aspecto são os clientes/consumidores portadores do plano Anterior à Lei nº 9.656/98, posto que a ANS não pode permitir que a sua atenção à saúde seja prejudicada por uma questão contratual. Os clientes detentores de planos não regulamentados necessitam de uma regulação específica, uma vez que a qualidade da assistência à saúde deve ser garantida, conforme determinação da Constituição Federal.
A judicialização, em qualquer esfera, é um direito inalienável ao cidadão. Entretanto, demonstrou-se que, na operadora em estudo, a possibilidade de judicializar é maior entre os cidadãos que possuem plano de saúde de maior custo. Essa comprovação sugere que a judicialização é mais acessível aos cidadãos de melhor condição econômica, o que pode contribuir para o agravamento das desigualdades. É imperativo que a ANS exerça de fato a sua função reguladora, garantindo o acesso e a qualidade da assistência à saúde.
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Suporte financeiro: não houve
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Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
Referências
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7Balestra Neto O. A jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - evolução rumo à racionalidade. Rev Direit. Sanit. 2015; 16(1):87-111.
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12Robba R. Judicialização dos planos e seguros de saúde coletivos no Tribunal de Justiça de São Paulo. 2017. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017. 238 p.
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13Scheffer MC. Em São Paulo, de janeiro a setembro de 2017, foram julgadas 120 ações por dia contra planos de saúde. Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar Departamento de Medicina Preventiva Faculdade de Medicina da USP. 2017. [acesso em 2018 out 3]. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/361403168/Observatorio-OUTUBRO2017-04-10-1
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14Scheffer MC. Cresce o número de ações judiciais contra planos de saúde no Estado de São Paulo. Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde do Departamento de Medicina Preventiva Faculdade de Medicina da USP. 2020. [acesso em 2020 dez 23]. Disponível em: https://sites.usp.br/geps/publicacoes/
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15Wang DW, Vasconcelos NP, Oliveira VE, et al. Os impactos da judicialização da saúde no município de São Paulo: gasto público e organização federativa. Rev Adm Pública. 2014; 48(5):1191-1206.
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23Oliveira JAD. Demandas jurídicas por coberturas assistenciais - estudo de caso: CASSI. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010. 72 p.
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27Gibran SM, Ferreira Filho M. A possível superação da discricionaridade na judicialização da saúde suplementar. Percurso. 2018; 1(24):84-109.
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28Lazzarini M, Bahia L, Scheffer MC. O cúmulo da captura da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). IDEC; 2018. [acesso em 2018 dez 25]. Disponível em: https://idec.org.br/artigo/o-cumulo-da-captura-da-agencia-nacional-de-saude-suplementar-ans
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Set 2022 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2022
Histórico
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Recebido
29 Jan 2022 -
Aceito
16 Jun 2022