Open-access Acidente de Trabalho com Exposição a Material Biológico: percepções dos residentes de medicina

Accident at Work with Exposure to Biological Material: perceptions of medical residents

RESUMO

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado em um complexo hospitalar universitário, com o objetivo de descrever as percepções dos residentes de medicina que sofreram um Acidente de Trabalho com Exposição a Material Biológico quanto aos fatores pessoais, institucionais e sociais associados à ocorrência do acidente. As informações foram coletadas por meio das fichas de notificação dos acidentes e de entrevistas com uma questão aberta norteadora. Foi utilizada a análise de conteúdo de Bardin e o fechamento amostral por saturação. Foram entrevistados vinte e um residentes de medicina e identificados dois eixos temáticos: condições de trabalho e estado emocional do residente médico. Os resultados revelaram que a sobrecarga de trabalho, o acúmulo de atividades, a equipe de saúde reduzida, a ausência de supervisão por um preceptor médico e a imperícia do profissional contribuíram para ocorrência do acidente. Além disso, foram relatados fatores como cansaço, fadiga, privação do sono, desatenção e, sobretudo, estresse emocional. São poucos os estudos sobre o tema, porém, as percepções dos residentes médicos evidenciaram um cenário em que o processo de trabalho interfere no bem-estar físico e psíquico dos profissionais, contribuindo para a ocorrência dos acidentes.

PALAVRAS-CHAVE Acidentes de trabalho; Residência médica; Estresse profissional; Exposição ocupacional; Saúde do trabalhador

ABSTRACT

This was a qualitative study carried out in a university hospital complex, with the objective of describing the perceptions of medical residents who suffered an Accident at Work with Exposure to Biological Material regarding the personal, institutional and social factors associated with the occurrence of the accident. Information was collected using accident notification forms and interviews with an open guiding question. Bardin content analysis and saturation sampling were used. Twenty-one medical residents were interviewed and two thematic axes were identified: working conditions and emotional state of the medical resident. The work overload, the accumulation of activities, the reduced health team, the absence of supervision by a medical preceptor, and the professional incompetence contributed to the occurrence of the accident. In addition, factors such as tiredness, fatigue, sleep deprivation, inattention, and especially emotional stress were reported. There are few studies on the subject, but perceptions of medical residents showed a scenario in which the work process interferes with the physical and psychological well-being of professionals, contributing to the occurrence of accidents.

KEYWORDS Accidents; occupational; Internship and residency; Occupational stress; Occupational exposure; Worker´s health

Introdução

Os Acidentes de Trabalho com Exposição a Material Biológico (Atemb) são um problema de saúde pública e geram repercussões relevantes, tanto individuais como sociais, aos Trabalhadores da Área de Saúde (TAS), decorrentes de danos emocionais, aquisição de doenças, absenteísmo e toxicidade dos medicamentos da profilaxia pós-exposição1,2.

A notificação dos Atemb no Brasil é compulsória desde 2004, e realizada por meio do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (Sinan)3. De acordo com dados disponíveis no Anuário da Saúde do Trabalhador, houve um aumento de 200% das notificações dos Atemb, passando de 15.735, em 2007, para 47.292, em 2014, evidenciando o elevado número de TAS acidentados4. Esse aumento se deu pela melhoria do Sinan e pelo crescimento no número de TAS formados e praticando a profissão, principalmente os médicos e técnicos de enfermagem4.

Os serviços de saúde são considerados ambientes insalubres, com presença de fatores nocivos à saúde dos trabalhadores, como a exposição aos agentes biológicos, seja durante a assistência ou pelo contato com superfícies contaminadas1,2. Os agentes biológicos correspondem aos micro-organismos (vírus, bactérias, fungos); parasitas (vermes, protozoários); culturas de células; príons e toxinas5.

A exposição ocupacional a agentes biológicos entre os TAS pode ocorrer por meio percutâneo, como picadas de agulhas, nas membranas mucosas, pele não íntegra, mordedura ou arranhaduras com sangue1. Representam risco de contaminação para mais de 60 tipos diferentes de patógenos, porém, os Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), hepatite B (VHB) e hepatite C (VHC) apresentam maior prevalência1.

No mundo, entre os tipos de exposição, a percutânea é a mais frequente. Estima-se que 385 mil casos ocorrem em hospitais dos EUA a cada ano6. Segundo estudo realizado sobre a estimativa global das doenças atribuíveis aos acidentes com perfurocortantes contaminados, entre os TAS, podem ter ocorrido no ano de 2000: 16.000 infecções pelo VHC, 66.000 por VHB e 1.000 pelo HIV6.

A natureza das doenças ocupacionais que acometem os trabalhadores vem sofrendo alterações ao longo dos anos, como consequência da globalização, de fatores organizacionais do ambiente de trabalho, avanço tecnológico e exposição aos riscos físicos, químicos, biológicos e ergonômicos (biomecânicos e psicossociais) envolvidos nas atividades laborais7,8.

A complexidade das situações de trabalho que levam ao Atemb deve ser analisada pelas instituições, e a saúde do trabalhador destaca a necessidade de revisão do processo e da organização do trabalho, observando as várias circunstâncias que possibilitem a ocorrência do acidente, que poderá ter mais de uma origem3,9.

Estratégias como as recomendações de biossegurança nos serviços de saúde são fundamentais para proteção da equipe de assistência e dos usuários, sendo capazes de reduzir o número de Atemb e as exposições dos profissionais aos riscos biológicos3,9.

Entre as medidas para a prevenção primária dos Atemb e um ambiente de trabalho mais seguro, encontram-se as Precauções Padrão (PP), que são definidas como um conjunto de práticas que tem por finalidade diminuir os riscos de transmissão dos micro-organismos nos serviços em que há o contato com material biológico7,10. Envolvem ações como: lavagem das mãos; descarte adequado de perfurocortantes, resíduos químicos, tóxicos; dispositivos de segurança; uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI) e imunização7,9,10. Vale lembrar que a adoção das PP muitas vezes não impede o Atemb, porém, reduz as suas chances de acontecer7,10.

A literatura nacional e internacional aponta que as categorias profissionais mais expostas ao Atemb são os TAS, que atuam direta ou indiretamente na assistência à saúde9,11. Os estudos demonstram que os profissionais de enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares) e os médicos são os TAS que apresentam maior risco de contaminação com agente biológico4,9,11. Tal fato justifica-se por: maior número de trabalhadores dessas categorias nos serviços de saúde; atividades de assistência em tempo integral ao usuário com contato constante com agentes biológicos; carga horária de trabalho excessiva; estresse ocupacional; falta de capacitação e recursos adequados; entre outros3,9,11. As conjunturas políticas, sociais e econômicas adotadas no País interferem diretamente nas condições reais do trabalho8.

Os residentes médicos, profissionais em processo de especialização, representam um grupo, entre os médicos, com elevada ocorrência de Atemb. Em dois estudos transversais realizados em hospitais-escola, de Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte (MG), os residentes médicos aparecem como a segunda categoria profissional que mais relatou o Atemb, atrás somente dos técnicos de enfermagem12,13.

A elevada incidência dos Atemb é uma realidade no cotidiano dos TAS, justificando-se os estudos que abrangem não somente a epidemiologia dos acidentes, como, também, a perspectiva dos profissionais expostos. As análises desses dados podem subsidiar o planejamento de ações voltadas à segurança ocupacional que viabilizem mudanças no processo de trabalho.

Portanto, esta pesquisa objetivou descrever as percepções dos residentes de medicina que sofreram um Atemb quanto aos fatores pessoais, institucionais e sociais associados à ocorrência do acidente.

Material e métodos

Trata-se de um estudo descritivo, de natureza exploratória, com abordagem qualitativa, realizado com os médicos residentes acometidos por um Atemb, no complexo hospitalar universitário público presente na Universidade Estadual de Campinas, no interior de São Paulo, onde são realizados procedimentos de alta complexidade e atividades ligadas a ensino, extensão e pesquisa. A área hospitalar conta com dois hospitais, quatro centros especializados e diversos ambulatórios. No quadro de TAS, em 2021, estavam nas equipes 688 residentes em 47 especialidades, 36 áreas de atuação e seis programas de anos adicionais, credenciados junto à Comissão Nacional de Residência Médica14.

Desde 2011, os casos de TAS expostos aos Atemb que ocorrem nesse complexo hospitalar são atendidos e notificados no Centro de Saúde da Comunidade (Cecom), onde o profissional é acolhido, e segue-se a conduta necessária para cada acidentado. A população do estudo foi composta pelos residentes médicos que compareceram ao Cecom para notificar os Atemb ocorridos no período compreendido de dezembro de 2019 a dezembro de 2020. Correspondem aos TAS que mais notificaram os acidentes nos anos de 2011 a 2020, sendo esse o motivo da escolha desse público para a pesquisa.

A coleta de informações ocorreu por meio de formulário com a seguinte questão aberta norteadora: ‘descreva os fatores pessoais, institucionais e sociais que você associa ao acidente’. Optou-se por uma pergunta central disparadora devido à pouca disponibilidade desses TAS em permanecerem mais tempo no serviço. Os residentes, normalmente, estão com pressa para retornar às atividades, conforme observado na rotina de trabalho da pesquisadora no atendimento desses profissionais no Cecom. Os dados demográficos, tipo de acidente, área e ano na residência médica e uso de equipamentos de proteção individual foram obtidos do banco de dados que é alimentado com os dados da Ficha de Notificação de Atemb.

O convite para a participação na pesquisa e para a aplicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi realizado pela própria pesquisadora, em diferentes momentos em que compareceram ao Cecom: durante a notificação do Atemb, nos casos de acompanhamento ambulatorial ou no retorno do TAS ao serviço para retirada de resultados de exames, normalmente, entre os horários de cirurgias ou do almoço.

O tempo máximo de acompanhamento ambulatorial é de até seis meses a partir da data do Atemb, e observou-se que os TAS se lembravam do ocorrido e discorriam facilmente sobre a questão apresentada, mesmo não tendo sido feita a entrevista no dia do acidente.

Na sala de consulta, na presença da pesquisadora, os participantes discorreram livremente sobre a questão. A duração do preenchimento foi de, em média, 10 minutos, e participaram 21 residentes de medicina.

A decisão de finalizar a coleta de informações se deu pela constatação da saturação teórica, quando é interrompido o arrolamento de participantes, porque a interação entre o campo de pesquisa e o investigador não fornece mais novos temas para a discussão do contexto estudado15.

Utilizou-se a técnica de análise de conteúdo de Bardin, seguindo as três etapas: pré-análise, exploração do material e interpretação dos dados16. Foram realizadas a organização e a leitura exaustiva do material, o agrupamento dos temas, de acordo com as afinidades de conteúdo, e o desenvolvimento da análise articulando-a com pressupostos teóricos.

Existem limitações para a generalização dos resultados encontrados no presente estudo, devido ao método utilizado, e por ter sido conduzido em um único complexo hospitalar universitário público da região. No entanto, os achados são importantes para o avanço da área de saúde do trabalhador e do ensino médico.

Em atendimento à Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, os aspectos éticos da pesquisa foram respeitados, e ela foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas, sob Parecer nº 3.510.458/2019.

Resultados e discussão

Os sujeitos da pesquisa foram 21 residentes de medicina, com idade entre 24 e 33 anos, sendo 12 do sexo masculino e 9 do feminino. Quanto ao ano em que estavam cursando a residência, 12 eram do primeiro ano, 4 do segundo e do terceiro, e 1 do quarto ano.

Entre as especialidades médicas, em ordem de frequência, estavam: oftalmologia (4), clínica médica (3), seguidas de neuroclínica (2), dermatologia (2), cirurgia geral (2), anestesiologia (1), otorrinolaringologia (1), ortopedia (1), tocoginecologia (1), cirurgia plástica (1), anatomia patológica (1), neonatologia (1) e cirurgia vascular (1). A amostra apresentou diversidade entre as áreas de atuação no ambiente de trabalho.

A exposição percutânea predominou, com 19 acidentes, e a exposição por mucosa ocular ocorreu em 2 casos. O uso adequado de EPI, no momento do Atemb, foi relatado por 18 profissionais. Houve indicação da profilaxia pós-exposição com medicamentos antirretrovirais em 2 residentes de medicina, por se tratar de acidentes que envolveram pacientes-fonte positivos para o HIV e em janela imunológica.

Os eixos temáticos que emergiram do material coletado foram agrupados por afinidade de conteúdo, permitindo a compreensão dos acidentes conforme a percepção dos profissionais expostos. Foram identificados dois: condições de trabalho e estado emocional do residente médico.

No eixo ‘condições de trabalho’, foram identificados sobrecarga de trabalho, acúmulo de atividades e demanda elevada do serviço, exemplificados pelas seguintes falas:

Na mesma semana do acidente, houve desistência de um residente, levando à sobrecarga de trabalho entre os demais [...]. (E1).

Volume grande de pacientes agendados para horário curto. (E11).

Como consequência do grande número de pacientes, tem-se o acúmulo de múltiplas tarefas na rotina diária de uma equipe de saúde reduzida, além de os residentes médicos sentirem-se pressionados, sendo este aspecto relevante para a ocorrência dos acidentes, conforme constatado:

[...] Pressão para resolução rápida dos afazeres devido a outras coisas que aguardam para serem realizadas. (E4).

Velocidade de execução do procedimento devido a número alto de pacientes. (E11).

Pressão para terminar logo o procedimento. (E17).

Segundo Schimidt17, a organização do trabalho influencia a gênese do acidente, expondo os trabalhadores a diferentes tipos de pressão, como à pressão por produtividade, em que há uma preocupação constante do trabalhador com prazos, metas, volume e produção.

Nesse sentido, as condições de trabalho dos setores de saúde acabam aproximando-se das existentes no setor industrial, com enfoque na produtividade, e são centradas em procedimentos, com a fragmentação das tarefas, restringindo a relação entre o profissional e o usuário, voltando a atenção mais para a doença e as atividades laborais do que para o doente17,18.

A qualidade dos instrumentos e materiais disponíveis na instituição e a localização dos recipientes para descartar materiais perfurocortantes com necessidade de deslocamento do TAS também foram associadas aos acidentes:

[...] não usamos navalhas novas, usamos navalhas já utilizadas para cortar [...] ou seja, já contaminadas. (E1).

Local para descarte de perfurocortante é em outra sala, fora da sala cirúrgica. (E19).

Esses achados sugerem que, no ambiente de trabalho, não foram adotadas as recomendações de acordo com a Norma NR-32, onde medidas de proteção aos TAS que estão expostos aos riscos biológicos são estabelecidas. Entre elas: o uso de perfurocortante com dispositivos de segurança, o descarte em recipientes rígidos no local de utilização e imediatamente após o uso5.

Dificuldades quanto ao uso de EPI foi outra situação identificada a partir do relato de um dos participantes, que se acidentou com exposição à mucosa ocular: “não foi oferecido óculos de proteção pela instituição”, demonstrando a falta de informação sobre a disponibilização de EPI aos trabalhadores. Práticas como a checagem na adesão ao uso de EPI, reforço para a sua utilização, a oferta e a facilidade no acesso são ações que devem estar presentes na instituição e que fortalecem a segurança no trabalho10.

Frequentemente, em abordagens reducionistas para análise dos acidentes de trabalho, considera-se que eles podem ocorrer devido aos comportamentos do trabalhador (culpabilização da vítima). Por exemplo, na última fala ilustrada, a profissional estava em condições inseguras devido ao não uso do EPI, portanto, o acidente deu-se devido à falha do TAS em não respeitar as normas de segurança. Ainda assim, as questões de higiene, segurança e controle dos riscos no ambiente de trabalho também são de responsabilidade do empregador3,8,18.

Na análise sistêmica dos acidentes de trabalho, as causas são múltiplas, não limitadas aos comportamentos do acidentado3. Devem ser considerados na origem dos acidentes a organização do trabalho, a divisão das tarefas, a complexidade estrutural do sistema, os problemas nas comunicações verticais e horizontais e as concepções sobre segurança3,18.

Outra fala de um participante fez referência à “baixa compreensão do paciente acerca do procedimento” (E11), após ter sofrido acidente perfurocortante devido à agitação do paciente durante um procedimento. Nesse sentido, percebe-se uma dificuldade na relação médico-paciente quanto à comunicação em linguagem acessível; e a necessidade de informações e esclarecimentos durante o atendimento, bem como de adaptar o passo a passo do procedimento para atender à singularidade para o cuidado dos usuários.

Para os participantes, a formação profissional dos TAS no trabalho, a imperícia e a falta de conhecimento contribuíram para ocorrência do Atemb, conforme constatado nas falas:

Dificuldades técnicas na execução do procedimento. Poderia ter sido evitado o acidente com a troca do kit do cateter o qual impunha dificuldades no manuseio. (E3).

Não ter tanta prática no procedimento. (E17).

Falta de experiência e habilidade para manusear instrumentos. (E8).

Período curto de aprendizado adequado da técnica. (E14).

Inexperiência ou imperícia da [...] que foi retirar o ar da seringa de gasometria arterial e houve pressão, e ‘explodiu’ em toda sala de emergência. (E5).

O conjunto de aspectos citados permite inferir que o TAS pode perder o controle do curso de ação em um procedimento, pois tem conhecimento insuficiente sobre como realizar uma tarefa específica. No modelo de gestão cognitiva dinâmica da atividade, proposta pelo médico francês Amalberti, o trabalhador elabora um plano antes de iniciar as atividades, e esse plano é atualizado no decorrer da ação, que poderá ter intercorrências19.

As situações inesperadas durante o trabalho mobilizam no profissional atenção, capacidade de antecipar os riscos potenciais e necessidade de conhecimento prévio (experiência, formação, habilidade), orientando as decisões para o enfrentamento de um maior número de perturbações não previstas19,20. Dessa forma, os profissionais mais experientes dominam melhor a execução de uma atividade e os imprevistos do que os novatos20.

Também foram apontados, por alguns entrevistados, o fato de não se sentirem adequadamente preparados para função, como citado: “residentes de anos inferiores com uma carga de responsabilidade que julgo importante” (E15); e a falta de um preceptor orientando o trabalho, pontuado em “ausência de supervisão [...]” (E12).

A residência em medicina é uma modalidade de ensino de pós-graduação latu sensu (especialização) destinada aos médicos, na forma de treinamento em serviços de saúde, para aquisição de conhecimento prático e desenvolvimento de habilidades21,22. Constitui-se como um alicerce na formação médica, em um período mínimo de dois anos com dedicação exclusiva, a depender da especialidade escolhida21.

Os residentes médicos, além de estudantes, são importantes forças de trabalho nos serviços de saúde, em que compõem o quadro de TAS, assumindo responsabilidades, por vezes, próprias de um médico especialista, apesar da inexperiência na função22,23.

É prevista a supervisão constante de um preceptor médico qualificado e experiente aos residentes médicos no processo de aprendizagem24,25. Todavia, na prática, a interação entre os residentes novatos e veteranos é maior do que com os seus supervisores24.

O segundo eixo identificado no estudo foi o ‘estado emocional dos residentes médicos’. Os residentes mostram-se sobrecarregados diante da dinâmica imposta no serviço, onde o espaço é limitado para ativar a criatividade e a expressão das suas necessidades, podendo causar a exaustão mental18,22,24,26. A capacidade do trabalhador de detectar e interpretar sinais de perigo no ambiente de trabalho pode ser afetada por cansaço, fadiga, privação do sono, com consequente diminuição do estado de vigília8,18,20. Tais fatores facilitam o acontecimento de Atemb, como relatado:

Longas horas de trabalho. Estava há 25 horas trabalhando [...]. (E4).

O acidente ocorreu durante o exercício de minha atividade como residente (durante uma cirurgia), durante plantão da madrugada, possivelmente associado ao cansaço [...]. (E13).

A carga horária de atividades prevista na residência médica é elevada, correspondente a 60 horas semanais, sendo que, segundo relatos dos residentes, há plantões com jornada de 36 horas sem interrupções24.

A exaustão emocional, somada ao cansaço excessivo, despersonalização e diminuição da capacidade de produção caracterizam a Síndrome de Burnout ou Síndrome do esgotamento profissional, que pode acontecer entre os residentes médicos. Seu aparecimento está associado ao excesso de trabalho, a pressões constantes e carga horária elevada23. Entretanto, vale salientar que não foram encontrados estudos abordando os Atemb e a Síndrome de Burnout, especificamente, entre os residentes médicos e os profissionais de saúde, em geral.

Além disso, a privação do sono devido às longas jornadas de trabalho desencadeia desgaste físico, dificuldade de concentração, déficit da memória recente e fadiga, podendo comprometer o exercício da profissão e a qualidade da assistência18,27.

Foram citados outros fatores que interferiram no processo de trabalho e potencializaram as chances de acidentes, como o estresse e o nervosismo, conforme as respostas abaixo:

Stress do momento era em uma situação de emergência, associado à falta de atenção. (E9).

Estresse de trabalho, de ter que fazer as coisas com pressa. (E6).

Nervosismo para acertar o procedimento, fazer corretamente e com a assepsia correta. (E15).

A vulnerabilidade psicológica dos residentes de medicina ao estresse é decorrente da presença de fatores estressantes no processo de trabalho, entre eles, os inerentes à profissão e à fase de treinamento em que se encontram27. Há o excesso de trabalho, a carga horária elevada, as condições de trabalho precárias em serviços de saúde sucateados, o peso da responsabilidade na tomada de decisão e o contato frequente com doenças e com a morte18,22,27. As situações de urgência e emergência podem ser angustiantes para alguns residentes, principalmente no início da profissão, pois exigem capacidade de ação e decisões rápidas, com excessiva responsabilidade devido ao risco iminente de morte do paciente, desencadeando no trabalhador o estresse como resposta fisiológica e psicológica ao ambiente de tensão28,29.

A literatura traz, ainda, que outros agentes estressores também estão presentes no trabalho do profissional médico, identificados por: relacionamento com a equipe multiprofissional, autonomia profissional restrita, pouca participação nas decisões, ausência de reconhecimento, baixa remuneração, falta ou escassez de materiais, estrutura física inadequada e insuficiência de TAS18,30.

Em um estudo realizado em dois hospitais de Santa Catarina, foram avaliados sintomas de estresse emocional nos residentes de medicina31. Os mais prevalentes encontrados corresponderam a: tensão muscular, mudança de apetite, esquecimento, cansaço excessivo, irritabilidade sem causa aparente e vontade de fugir de tudo31. O alívio do estresse emocional é dificultado pelo tempo reduzido de descanso, a pouca interação social com familiares, amigos, e uma menor atenção às atividades de lazer31.

O estresse também provoca alterações fisiológicas no organismo, como no sistema cardiovascular, resultando em aumento da frequência cardíaca, com casos de taquicardia e hipertensão arterial, porém, neste estudo, houve pequeno número de residentes com sintomas cardiovasculares31.

Em outros casos, os entrevistados identificaram a desatenção no contexto do acidente:

Desatenção no momento de manipulação do material perfurocortante. (E10).

Acredito que o principal fator associado ao acidente que tive foi a distração, fazer algo banal, do dia a dia, sem a devida atenção [...]. (E19).

Falta de atenção durante procedimento cirúrgico por colega. (E7).

Na fala de E19, há associação do acidente com atividade considerada rotineira, a qual é executada com mais confiança e às vezes de maneira automática.

Já no último relato do E7, o acidente foi provocado pelo colega de trabalho que estava junto em campo cirúrgico e perfurou o TAS. Correspondeu, portanto, a um evento inesperado. Segundo Reason, esses eventos são sempre não intencionais32. Apesar da não intencionalidade do acidente, houve indisposição entre os envolvidos, principalmente pela exposição ao risco de contaminação do acidentado.

Finalmente, o estudo aborda um tema sobre o qual há pouco material científico produzido, sendo necessárias novas investigações para expandir o conhecimento acerca dos fatores associados à ocorrência dos Atemb entre os residentes médicos.

Considerações finais

De acordo com a análise das percepções apontadas pelos residentes médicos, ficou clara a complexidade dos fatores envolvidos na gênese do Atemb, que vai além da responsabilidade do próprio TAS. No entanto, houve maior enfoque nos discursos relacionados aos comportamentos adotados, à questão psíquica e à falta de treinamento adequado no momento do acidente.

Os Atemb não foram relacionados, em sua maioria, às falhas na adoção das PP ou no desconhecimento das normas de segurança pelos residentes de medicina.

As percepções evidenciaram, sobretudo, um cenário em que o processo de trabalho com cobranças constantes, verticalização das relações interpessoais, falta de infraestrutura e o elevado fluxo de pacientes propiciam problemas, como o estresse, o cansaço e a desatenção entre os residentes, podendo contribuir para o aumento das chances de um Atemb acontecer.

Os resultados obtidos aprofundam as reflexões sobre a relação do trabalhador (residente de medicina) com as condições de trabalho e seu bem-estar físico e psíquico. Tendo em vista os achados, para uma mudança efetiva no ambiente de trabalho, são necessárias alterações estruturais (econômicas, sociais) e a participação ativa dos TAS (residentes de medicina, preceptores da residência médica, supervisores em saúde) na formulação dos processos de trabalho em saúde, na análise das atividades de trabalho, no incentivo à elaboração de programas de proteção contra os acidentes na instituição, além de um olhar mais voltado para o coletivo, visando à segurança durante as atividades laborais.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2021
  • Aceito
    20 Jun 2022
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