Open-access Mapas corporais narrados: estudo de caso sobre cuidado e viver de mulheres com HIV

Body-map storytelling: case study on the living and care of women with HIV

RESUMO

O objetivo do estudo foi compreender o viver e o cuidado em saúde de mulheres vivendo com HIV/Aids identificando potencialidades e desafios, compreendendo os efeitos sobre o viver com HIV/Aids no cotidiano dessas mulheres e as relações com a rede de atenção à saúde no município de Porto Alegre. O município tem taxas de detecção para o HIV/Aids seis vezes maiores que as taxas nacionais e, em 2019, atingiu 17,6 casos/mil nascidos vivos. Foi realizado estudo exploratório descritivo, do tipo estudo de caso, e a produção de dados utilizou a construção de mapa corporal narrado. Participaram quatro mulheres com diagnóstico confirmado de HIV/Aids, vinculadas a a uma unidade de saúde do município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Os mapas corporais e as narrativas permitiram conhecer um universo povoado por estigma, preconceito, medos e inseguranças. A produção do cuidado em saúde para as mulheres vivendo com HIV/Aids exige a participação de diferentes campos do saber, de ampla e planejada atuação dos profissionais; portanto, é fundamental a construção de itinerários de cuidado que atendam às demandas dessas pessoas de forma humanizada e acolhedora, também por meio de políticas públicas que fortaleçam a rede de atenção à saúde para o enfrentamento do estigma e preconceito.

PALAVRAS-CHAVES HIV; Sistema Único de Saúde; Cuidado em saúde; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

The objective of the study was to understand the living and health care of women living with HIV/AIDS, identifying potentialities and challenges, understanding the effects on living with HIV/AIDS in the daily lives of these women and the relationships with the health care network in Porto Alegre. The municipality has HIV/AIDS detection rates six times higher than the national rates and in 2019 reached 17.6 cases/1,000 live births. A descriptive exploratory study was carried out, of the case study type, and the production of data used the construction of a narrated body map. Four women with a confirmed diagnosis of HIV/AIDS, linked to to a primary health care in the city of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, participated. Body maps and narratives made it possible to discover a universe populated by stigma, prejudice, fears, and insecurities. The production of health care for women living with HIV/Aids requires the participation of different fields of knowledge, a wide and planned performance of professionals, and, therefore, the construction of care itineraries that meet the demands of these people in a humanized and welcoming way, as well as through public policies that strengthen the health care network to face stigma and prejudice.

Keywords: HIV; Unified Health System; Health care; Primary Health Care

Introdução

No Brasil, os primeiros casos de pessoas que desenvolveram quadros clínicos da síndrome da imunodeficiência adquirida foram detectados em meados da década de 19801. A abordagem terapêutica para pessoas vivendo com HIV/Aids ainda é um objeto de estudo complexo, composto por condições simultâneas e com muitos efeitos sobre o indivíduo. A produção do cuidado em saúde para pessoas vivendo com HIV/Aids, enquanto objeto de conhecimento e de intervenção, exige a participação de diferentes campos do saber, de diversas dimensões da experiência humana, de uma ampla e planejada atuação dos profissionais que, face a face com os pacientes, na intensidade do cotidiano desses sujeitos, constroem singulares projetos terapêuticos buscando abordagens atentas às necessidades de cada pessoa.

Mocellin et al.2 descrevem falhas ao longo do itinerário terapêutico de pessoas vivendo com HIV/Aids, as quais tiveram como desfecho o óbito. A mais recorrente entre elas expressou o despreparo dos serviços de saúde na assistência prestada a esses usuários, na identificação e retenção para o tratamento da doença. O estudo destaca a fragilidade das Redes de Atenção à Saúde (RAS) voltadas às pessoas vivendo com HIV/Aids e enfatiza a importância de melhorias em algumas dimensões, como: acesso à prevenção e tratamento, assistência em saúde e agilidade nos fluxos de assistência à rede de atenção.

Boletins epidemiológicos da última década têm mostrado que, embora o Brasil tenha mais casos de Aids (decorrente da infecção pelo HIV) em homens, a diferença entre os sexos ao longo dos anos tem diminuído, contrastando com os dados da década de 1980, quando a maior parte dos casos era registrada em gays adultos, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis1,3,4. Em 1985, para cada 26 casos de HIV/ Aids, 1 mulher estava contaminada, já em 2010, a razão entre os sexos chegou a 1,7 caso em homens para 1 caso em mulheres1. No contexto deste estudo, os dados de Porto Alegre, em 2019, apontam coeficiente de mortalidade por HIV/Aids (22 óbitos/100 mil hab.) cinco vezes maior que o coeficiente nacional. No mesmo ano, Porto Alegre apresentou coeficiente de mortalidade por HIV/Aids de 7,6 óbitos/100 mil habitantes. No Brasil, foram diagnosticados 41.909 novos casos de HIV e 37.308 casos de Aids. A proporção de infecção entre homens e mulheres foi de 2,64.

O aumento de casos em mulheres, ao longo dos anos, motivou as pesquisadoras a conhecer os itinerários em relação ao tratamento e à assistência em saúde. A escolha do tema de pesquisa surge, em parte, para identificar possibilidades de acolhimento e vínculo na RAS, mas, essencialmente, para visibilizar aos serviços de saúde o quanto o viver com HIV, no cotidiano das mulheres, ainda dificulta o acesso aos cuidados e o quanto os serviços de saúde precisam qualificar seus processos de trabalho para o cuidado dessas mulheres.

A reorganização para acompanhamento e assistência médica e farmacêutica de usuários assintomáticos e estáveis na rede de Atenção Primária à Saúde (APS) em Porto Alegre, iniciou- se no primeiro quadrimestre de 20145, quando o tratamento para as pessoas vivendo com HIV/Aids passou a ser descentralizado e coordenado pela APS5. A RAS estruturou-se para seguir critérios do protocolo clínico e diretrizes terapêuticas de manejo da infecção pelo HIV/Aids em adultos, elaborados pelo Ministério da Saúde6.

Unindo-se à perspectiva de construção de produtos inovadores para a saúde de mulheres vivendo com HIV/Aids, tanto no itinerário singular quanto na perspectiva coletiva da produção de cuidado nas RAS, este estudo buscou compreender o viver com HIV/Aids e o cuidado em saúde de mulheres vivendo com HIV/Aids. Foram abordados as potencialidades e os desafios no cuidado em saúde compreendendo os efeitos da infecção e soropositividade no cotidiano de mulheres com foco na RAS em Porto Alegre.

Destaca-se que o aumento do número de casos de infecção pelo HIV/Aids em mulheres pode estar relacionado com fatores como o não (re)conhecimento do corpo por essas mulheres, dificuldade de negociação sobre uso de preservativos, baixa escolaridade, situações financeiras instáveis, desigualdade de gênero, violência doméstica, moral, patrimonial e sexual.

Segundo dados do Ministério da Saúde divulgados no ano 20007, já era possível mapear uma expansão do número de casos entre mulheres, principalmente na faixa etária entre 20 e 49 anos. Um conjunto de características identificavam as mulheres infectadas pelo HIV/Aids: pobreza, residentes nas periferias urbanas e cidades do interior, contaminadas principalmente por relação heterossexual desprotegida, respondendo por 86,8% dos casos notificados em mulheres7.

Em estudo sobre a sobreposição entre violência e HIV/Aids no Brasil, as autoras destacam que mulheres soropositivas experimentaram mais violência física e sexual ao longo da vida do que mulheres HIV negativas. De acordo com os resultados do estudo, na cidade de São Paulo e, também, de Porto Alegre, as mulheres soropositivas provavelmente sofreram violência física várias vezes por um parceiro íntimo, inclusive na infância e adolescência, e violência sexual diversas vezes por um parceiro íntimo8.

Em se tratando de gênero, as mulheres estão submetidas historicamente e culturalmente a subordinação, sexo inseguro, casamento e maternidade, aceitação da violência no contexto familiar em prol da manutenção de suas famílias9. As relações de gênero surgem como importante papel na cadeia de transmissão do HIV/Aids somada com vulnerabilidades às quais as mulheres estão expostas pela subordinação: comportamento de risco, diminuição de cuidado de si por não conhecimento de seu corpo e de seus direitos10.

Almeida e Labronici11 destacam que as pessoas vivendo com HIV/Aids convivem com estigmas e preconceitos e alertam para a caminhada solitária e silenciosa dessas pessoas que convivem com medo da exposição e sofrem preconceitos, levando a esconder sua situação de saúde e produzindo invisibilidades e sofrimento.

Neste estudo, consideraram-se itinerários de cuidado na perspectiva de Bonet12 que analisou os caminhos que os usuários buscam receber atendimento. “Em outras palavras, fui atraído pela circulação dos usuários pelo sistema”12(334), bem como por uma visão processual: “ao se movimentarem pelos serviços, os usuários tomam decisões e, com elas, vão construindo uma história”12(335). Ao fazer um caminho pelo sistema, constrói-se uma história, ultrapassando a abordagem da doença em si e enfocando percursos, a forma singular como cada um cuida de si na sua rede de afetos e da relação com as equipes de saúde.

Material e métodos

A pesquisa foi realizada na Unidade Básica de Saúde (UBS) de atenção primária de xxx. O convite para as participantes foi feito por meio de contato telefônico com as mulheres vinculadas à UBS cenário do estudo, na qual fazem seu tratamento e acompanhamento de saúde, com prontuário de atendimento e registros em Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) do sistema informatizado de saúde e-SUS até maio de 2021, maiores de 18 anos e com o diagnóstico confirmado de HIV/Aids, após dois testes rápidos reagentes de antígenos diferentes e que conheciam seu diagnóstico. A partir do contato telefônico realizado no período do estudo, quatro mulheres responderam ao convite, foram entrevistadas e realizaram a construção de mapas corporais. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, CAAE 41510620.2.00005347, com parecer nº 4.653.189.

Mapas Corporais Narrados (MCN) são desenhos dos corpos dos participantes em tamanho real complementados por narrativas orais. Esses desenhos são criados utilizando pinturas ou outras técnicas artísticas e representam visualmente aspectos da vida das pessoas, de seus corpos e do mundo em que vivem. Contar histórias a partir de mapas corporais tem o potencial de conectar tempos e espaços na vida das pessoas, sendo que o produto desse processo é uma história mapeada13.

Apenas a pesquisadora mestranda teve acesso ao prontuário eletrônico, utilizando-se dos filtros do sistema e-SUS (opção: selecionar mulheres/Ciap correspondente ao diagnóstico de HIV/Aids maiores de 18 anos) para o conjunto de informações que identificaram as mulheres elegíveis.

A técnica para produção de dados utilizada foi a construção do MCN (Body Map Storytelling)13. Este artigo é resultado da dissertação de mestrado profissional Ensino na Saúde, e buscou conhecer o viver com HIV/ Aids de mulheres para repensar processos educativos em saúde e ações de educação permanente com os trabalhadores da unidade cenário, bem como possibilidades de percurso na RAS para mulheres vivendo com HIV/Aids.

Foram realizados três encontros com cada participante, de aproximadamente 60 minutos, em sala reservada, na associação de moradores vizinha à UBS, garantindo privacidade, sigilo e confidencialidade das participantes.

As mulheres foram convidadas a contar sobre o viver com HIV/Aids, impactos e efeitos no cotidiano e relatar seus itinerários de cuidado nas RAS, buscando identificar nós críticos dessa trajetória por meio da elaboração de um painel em tamanho real de seus corpos. A esses desenhos, foram adicionados símbolos, letras de músicas, lemas e outros itens que as participantes consideraram importantes. As narrativas foram gravadas e transcritas, e os painéis foram fotografados para análise.

A atividade proposta no primeiro encontro foi a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o traçado do contorno corporal e a discussão sobre as relações entre corpo e saúde. Além disso, foi solicitado que escolhessem uma postura para narrarem suas trajetórias por meio do mapa corporal.

Destaca-se a relevância de esclarecer, a modo que não restassem dúvidas para as participantes, que as atividades propostas no âmbito da pesquisa não guardaram relação com outras atividades desenvolvidas pela unidade (atividades de educação e promoção em saúde, atividades em grupos, rodas de conversa etc.).

No segundo encontro, abordaram-se o viver com HIV/Aids, os impactos no cotidiano, relatos sobre seus itinerários de cuidado nas RAS. As participantes foram convidadas a escolher frases, palavras, lemas, expressões, símbolos para suas histórias.

O terceiro encontro foi o momento de as participantes narrarem a produção do mapa corporal construído nos encontros anteriores. Ao final de cada encontro, foram convidadas a visualizar o mapa corporal e a contar o que viam, como forma de recapitular o que foi falado e tecer suas considerações.

A análise das narrativas se deu a partir da Análise de Discurso (AD) e utilizou-se do aporte de autores que convergem quanto à apreensão do discurso no momento de sua emergência. Como traz Brasil14, Pêcheux apropria-se da noção de formação discursiva e a ressignifica no campo da AD, e o sujeito é o resultado da relação entre história e ideologia.

Sobre o discurso, ressalta-se que é um

Fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade15(132,133).

Também foi utilizado diário de pesquisa anotando percepções importantes que não foram descritas nas narrativas.

As participantes tiveram seus nomes mantidos em sigilo em codinomes. Foram chamadas por nomes de pedras preciosas para evidenciar beleza, cor, brilho e, principalmente, a dureza para manterem-se vivas com HIV/Aids em uma sociedade tão opressora. Os profissionais citados receberam codinomes alusivos a anjos pela forma como seu acolher foi determinante para a adesão ao tratamento.

Sobre o uso de codinomes, a partir das discussões de Lima Monteiro16, as pesquisadoras tiveram a preocupação de não apenas ocultar nomes, transformando as pessoas em iniciais, mas buscaram nomear as participantes e os trabalhadores da unidade de saúde a partir da construção daqueles atores naquele lugar,

Enfatizando que as histórias construídas ali também carregam a potência da ambiguidade, uma vez que são formas de identificação e, ao mesmo tempo, personificações localizadas no dispositivo que as fez emergir16(166).

A investigação qualitativa por intermédio dos MCN pode provocar a reflexividade em participantes e pesquisadores, conduzindo a uma melhor compreensão das condições sociais, reveladas na pluralidade de estruturas indicadas em seus mapas corporais. Segundo Gastaldo et al.17, o mapeamento corporal é uma metodologia visual, narrativa e participativa, e a construção dos mapas corporais revela momentos reflexivos quando, diante da oportunidade de pintar e desenhar seus corpos e circunstâncias sociais, articulam suas complexas jornadas de vida. As autoras destacam que, especialmente para a pesquisa em saúde, esse método lança

Protagonistas improváveis contado suas histórias e produzindo discursos contra-hegemônicos às racionalidades capitalistas, patriarcais e colonialistas excludentes17(1).

Como metodologia emergente, os MCN têm sido usados para estudos para abordar as experiências de saúde e bem-estar de pessoas descapacitadas nas sociedades globais. Algumas dessas pessoas desprivilegiadas incluem mulheres e homens vivendo com HIV/Aids18,19,20,21.

Destaca-se o potencial da técnica para gerar dados que arquitetam as relações entre micro e macro, em uma ação permanente de reprodução da vida.

Resultados e discussão

O viver com HIV/Aids em uma sociedade reprodutora de desigualdades sociais, em que a violência de gênero é extremamente presente, constitui-se um desafio na vida de mulheres.

Individualmente, a realização dos MCN e as questões norteadoras do estudo proporcionaram às participantes oportunidades para manifestarem suas percepções sobre si, sobre o viver com HIV/Aids, sobre preconceitos sofridos. Ao mesmo tempo, as representações que permeiam seus discursos remetem às ideias produzidas social e culturalmente.

Itinerários possíveis: descobrindo trilhas para o cuidado

A religiosidade foi fundamental no itinerário de cuidado dessas mulheres, operando como suporte para que encontrassem forças para enfrentar o diagnóstico. A fé em algum deus mostrou-se importante para desaguar angústias e aflições e transformá-las em esperança e acolhimento. A oração foi um pilar para o cuidado, pois trouxe forças para seguir em frente, em momentos que a família, que poderia ser alento, não sabia do diagnóstico. Ter a RAS articulada, com adequado sistema logístico e suporte para deslocamentos foi relevante para as mulheres, pois o cuidado requer pontos de atenção em rede e conectados, que trabalhem em ações interprofissionais para responder às necessidades e demandas dessas usuárias.

Figura 1
Mapa corporal: Pérola Negra

De acordo com Oliveira e Junqueira22, dificuldades para o acesso a direitos sociais, como o transporte gratuito ou benefício de prestação continuada, precisam ser dimensionados e ofertados de imediato aos usuários com diagnóstico de HIV/Aids, pois, caso contrário, impactam negativamente ao serem disponibilizados tardiamente (quando o usuário teve agravos de saúde e quadro clínico de Aids). As condições econômicas e de moradia podem compor barreiras e constituem-se como dificultadores no processo de cuidado, o que poderia ser amenizado com o fornecimento regular de benefícios sociais, prevenindo o agravamento da condição de saúde pelo não acesso à rede de atenção.

O tratamento de primeira linha (testagem, exames para detecção de carga viral, para acompanhamento do sistema imunológico – contagem de células CD4 – e acesso aos medicamentos antirretrovirais que compõem o protocolo do Ministério da Saúde para a infecção pelo HIV/Aids) realizado nas unidades de saúde próximas à moradia das usuárias, como era a situação das participantes, constituiu importante ferramenta ao acompanhamento e tratamento no serviço de saúde, evitando deslocamentos para pontos distantes da rede.

Figura 2
Mapa corporal: Esmeralda

A unidade de saúde de atenção primária de Porto Alegre, cenário da pesquisa, é destacada pelas participantes como espaço de cuidado e acolhimento. As participantes a identificam como local de aconchego, esperança, apoio. Os encontros para falar sobre saúde mental, abertos à comunidade, e a meditação, prática realizada há muitos anos na unidade, são identificados como práticas de acolhimento. Destacam-se a disponibilidade de testes rápidos para HIV/Aids com diagnóstico imediato e outras atividades desenvolvidas na UBS – encontros de arteterapia e estabilidade dos servidores (trabalhadores há mais de 17 anos na mesma unidade).

Valer-se de estratégias como rodas de conversas, sala de espera, grupos de apoio ou materiais educativos pode auxiliar na adesão ao tratamento23. Na unidade de saúde de Porto Alegre, os grupos de meditação, arteterapia e saúde mental não são voltados exclusivamente para as pessoas vivendo com HIV/Aids, mas auxiliam no processo de aceitação e vinculação ao tratamento, como observado nas narrativas.

A atenção primária RAS, porta de entrada no sistema, constitui ponto importante para o cuidado dos usuários. As equipes possuem profissionais que permanecem por mais tempo no mesmo local de trabalho e inseridos no território, possibilitando construção de vínculos com a comunidade24,25. Para as participantes, as relações e o apoio familiares mostraram-se amenizadores de sofrimento; e, quando familiares não sabiam do diagnóstico, as relações de cuidado se mostraram mais frágeis. Por outo lado, ter apoio e dividir medos e aflições revelaram-se como sobrecarga menor, também, por não haver preocupações com medicamentos (mantidos em frascos diferentes ou com rótulos raspados ou mesmo omitir motivo de não amamentar).

A riqueza das falas e depoimentos infelizmente não caberia neste artigo, assim como as afetações da pesquisadora ao colher os dados. Foram relatos sobre relações difíceis com ex- -marido, sexo, família, histórias de abuso psicológico, físico, sexual, entre outros aspectos do viver destas mulheres. Muitas vezes, as participantes afirmavam:

estou falando aqui coisas que estavam guardadas dentro de mim e que nunca tive coragem de dizer para ninguém, nem mesmo tinha tempo para pensar sobre mim e olhar para estas questões.

Em dados divulgados pela Unaids26, quando o sigilo é quebrado e revelado a pessoas mais próximas, a experiência é melhor do que quando revelado a pessoas não íntimas. Uma das causas de manter o diagnóstico em sigilo está relacionada com a carga de estigma relativa ao HIV/Aids e de quanto este pode prejudicar o cotidiano26.

Possuírem filhos pequenos ou dependentes de cuidado – como netos – estimularam as participantes a lutarem contra a doença e contra os obstáculos do tratamento, como os efeitos adversos da terapia medicamentosa27,28. Não adoecer se tornou prioridade; e, de forma clara, as mulheres relatam a preocupação com os agravos aos quais estão suscetíveis (infecções oportunistas) e o quanto esse adoecer produz efeitos nas suas possibilidades de cuidar de todos no seu entorno (filhos, netos, o companheiro adoecido pela infecção do HIV/Aids). Além disso, manter os cuidados para não contaminarem seus filhos nas gestações e no pós-parto, como não amamentar e seguir a prescrição de medicamentos para seus bebês, foi trazido como principal meta.

Figura 3
Mapa corporal: Rubi

O caminho e o caminhar para as mulheres com HIV/Aids: potencialidades e desafios

A descoberta da gravidez e o início do pré- -natal, para muitas mulheres, é um momento de alegrias e descobertas, mas para Quartzo Rosa e Rubi, o diagnóstico de gravidez trouxe o diagnóstico de HIV/Aids, com angústia, desespero e pânico. Quartzo Rosa traz em sua narrativa que não comemorava cada gravidez porque parecia que, quando está grávida, as idas frequentes às consultas, exames e cuidados com a gestação lembravam mais que tinha HIV/Aids.

Após o nascimento dos filhos, iniciava-se mais uma maratona de cuidados para que o bebê não se contaminasse, e, com esses cuidados, o ato de não amamentar estava presente. Amamentar surge como sonho e desejo, e ver seus seios fartos de leite e não poder ofertar causava grande tristeza. Além do desejo de amamentar e gerar afeto e alimento negados pelas contraindicações de mães HIV/Aids positivas, precisaram esconder o motivo de não amamentar, sendo julgadas e questionadas por familiares e pessoas próximas.

Figura 4
Mapa corporal: Quartzo Rosa

As mulheres do estudo de Reis et al.29 trazem também sentimento de impotência perante a impossibilidade de amamentar, sentindo-se culpadas. Rodrigues e Maksud30 detalham dificuldades nos itinerários terapêuticos com lacunas nos serviços de saúde que aparentemente impactam na oferta de cuidado integral. Reforçam a necessidade de acompanhamento dos cuidados em saúde, não só em seus itinerários terapêuticos, mas nas práticas profissionais.

O viver com HIV/Aids, mesmo após décadas de diagnóstico, ainda traz marcas impressas no corpo e alma das participantes. O estigma e o preconceito foram apresentados nas narrativas e se misturaram em significados, surgem nas histórias com doses de sofrimento, dor e angústia. A opção de manter sigilo do diagnóstico vem de experiências prévias observadas no meio de convívio familiar ou social. Presenciar falas e atitudes de preconceito – como separar talheres e copos – ou discursos taxativos de que a contaminação se dá a partir de práticas sexuais promíscuas, mesmo quando relacionadas com terceiros, afetaram negativamente as participantes, que trouxeram narrativas de dor e sofrimento diante dessas situações, mesmo quando vividas por outrem.

Estudos26 indicam que o medo de estigma e preconceitos ainda levam as pessoas vivendo com HIV/Aids a não revelar seu diagnóstico a familiares. A maior parte revela a pessoas mais próximas, e há situações de exposição que ocorrem sem consentimento para vizinhos, colegas de escola e professores, tornando o local de moradia e de estudo potencialmente constrangedor. A solidão foi amenizada pela religiosidade nos casos em que o diagnóstico foi mantido em sigilo e não revelado aos familiares. Por outro lado, quando o diagnóstico foi contado a familiares, e, com isso, adveio apoio e acolhimento, esses sentimentos foram mais bem trabalhados.

O estigma relacionado com o HIV/Aids ainda se mostra como grande dificultador do processo de enfrentamento a esse agravo em saúde31.

Depressão, tristeza, frustração, angústia, mágoa, medo da morte, desespero, pânico e tentativa de suicídio fizeram, em algum momento, parte do cotidiano das participantes. A baixa autoestima por perda de peso e eventual perda da dentição também contribuíram para exacerbar um sentir-se em um mundo a desabar, no meio de uma tempestade.

A RAS é imprescindível no itinerário, desde a busca por testes rápidos, apoio aos processos individuais, manejo dos efeitos colaterais e atendimento para transtornos. Em publicação de Unaids26,90,5% receberam tratamento ou cuidados relativos ao vírus no Sistema Único de Saúde (SUS), reforçando sua importância fundamental. No presente estudo, os efeitos adversos da Terapia Antirretroviral (Tarv) são um desafio e podem vir somados às mudanças hormonais da gestação. O abandono do tratamento não foi predominante para as participantes, mas, quando ocorreu, fez parte do processo de negação da doença.

Para Rodrigues e Maksud30, a falta de apoio emocional e os efeitos colaterais pelo uso da Tarv foram os principais motivos para o abandono de tratamento além de questões financeiras, negação da doença, medo da morte, depressão e o estigma relacionados ao HIV/Aids.

O diagnóstico para o HIV/Aids vem regado de sentimentos negativos, culpabilização e negação da doença, revelando sofrimentos profundos que, não raro, culminam em atentar contra a própria vida27.

Envolvimento com o crime, uso de cocaína, crack, álcool e violência doméstica foram trazidos como fatores determinantes de sofrimento. Pérola Negra relatou que sofria violência física perpetrada pelo companheiro quando este fazia uso de drogas e de álcool, o qual não aderiu à Tarv e morreu por complicações decorrentes do HIV/Aids.

Rubi enfrentou filas para visitar o companheiro no presídio, que tinha envolvimento com o tráfico, era usuário de drogas, até que decidiu se separar e passou a ser ameaçada de morte. Quartzo Rosa também enfrentou a dependência química do marido que não fazia a Tarv, adoeceu, e ela passou a ter que cuidar sozinha dos filhos e do cônjuge, além de manter o sigilo de seu diagnóstico.

Além de cuidar de si, cabe a essas mulheres, em muitas situações, cuidar do companheiro, que muitas vezes é o primeiro a adoecer32,10. Mesmo com sofrimento, o ato de cuidar de seus parceiros mostrou-se questão de honra, e elas relataram que estiveram presentes em todos os momentos necessários.

Quadro 1 Perfil socioeconômico das entrevistadas
Entrevistada Idade em anos Raça/Cor autodeclarada Anos de estudo Profissão Renda Tempo de diagnóstico para o HIV em anos
Pérola Negra 58 Negra 5 Do lar Não possui 8
Esmeralda 66 Branca 13 Auxiliar de enfermagem 2 salários mínimos 8
Rubi 28 Branca 28 Do lar Não possui 10
Quartzo Rosa 35 Branca 11 Do lar Não possui 13
  • Fonte: elaboração própria.
  • Infectadas pelos companheiros, as mulheres do estudo de Lima10 assumiram o cuidado dos parceiros e, por vezes, negligenciaram seu cuidado; a sexualidade foi amplamente afetada após o diagnóstico, chegando a casos de aversão ao sexo com companheiro estável ou medo de ter novos relacionamentos. Falas sobre sentir-se suja, práticas de limpeza exacerbada da genitália e anular-se para a prática sexual ou culpa pela contaminação foram frequentes. Tais relatos afloram também na construção de MCN no presente estudo.

    O viver com HIV/Aids impacta negativamente na autoestima das pessoas: há sentimentos de inutilidade, depreciação, sentimento de aversão a si, como sentir-se sujo, além de sentir vergonha e culpar-se pela soropositividade26. O aumento do número de casos de HIV/Aids entre mulheres aumentou as vulnerabilidades já existentes nessa população. A não aceitação por parte do companheiro em utilizar preservativos reforça a vulnerabilidade feminina nas relações estáveis e a histórica subordinação à qual estão expostas em prol de uma suposta segurança financeira vividas no casamento. As violências sofridas no contexto familiar foram aceitas em favor da manutenção do casamento nas regras da sociedade patriarcal9,10,33,34.

    Os resultados apontam para um cuidado que envolve muito mais do que a rede de saúde e o SUS, do que pontos de atenção especializada, hospitalar, referências e contrarreferências, especialidades médicas e laboratórios. O caminho de cuidado amplia-se para as relações pessoais, muitas vezes fragilizadas ou destruídas pela doença, pela violência, pelos contextos sociais e culturais de mulheres vulnerabilizadas.

    Pensar itinerários de cuidado passa por reconectar os serviços de saúde com as experiências pessoais dessas mulheres, desenvolvendo estratégias de suporte social, de inclusão e reorganização de processos de trabalho que possam estar centrados nas pessoas e nas suas possibilidades, e não apenas alicerçados em protocolos e emoldurados pela frieza das relações institucionais. Inequivocamente, os serviços de saúde precisam enfrentar o machismo estrutural nas instituições sociais, além de buscar formas de garantir os direitos fundamentais às mulheres também como percurso de cuidado. São em grande número os dados sobre violência contra as mulheres no Brasil e no mundo, construídos historicamente e perpetuados na sociedade; portanto, são urgentes estratégias e políticas públicas que defendam os direitos humanos em suas várias instâncias sociais: famílias, instituições públicas, espaços privados, entre outros35.

    O cuidado tem múltiplos caminhos, diferentes atores e arranjos (incluindo medicamentos, suporte psicossocial, transporte, acesso facilitado às consultas, trabalho e renda, entre outros), e precisa estar apoiado no acolhimento, vínculo e escuta, para possibilitar a (re) construção de caminhos de vida e de saúde para as mulheres que vivem com HIV/Aids.

    Para essas mulheres, o viver com HIV/ Aids transformou radicalmente suas vidas, chegando em alguns momentos, a ser uma sentença de morte. Passaram a viver às escondidas, omitindo fatos, escondendo frascos de medicamentos, desvinculando-se de serviços de saúde próximos à comunidade com o receio de serem descobertas por vizinhos e parentes. Ser mulher e ainda carregar todo o peso do estigma e preconceito impostos pela infecção por HIV/Aids em uma sociedade tão patriarcal ainda é um dos grandes desafios do viver com HIV/Aids.

    Considerações finais

    Escutar e acolher em sua plenitude essas mulheres com histórias de vidas marcadas pelo sofrimento foi um mergulho intenso em um mar de sofrimentos, mas também de conhecimento.

    Os mapas corporais construídos resgataram marcas intensas, muitas vezes adormecidas e que expressaram o caminhar, o lutar e o viver dessas mulheres. Ainda que marcadas pelo estigma, seguem suas vidas com a esperança de que, em algum momento, um dos maiores, se não o maior problema que elas enfrentam, o preconceito, seja banido da sociedade.

    O trabalho da temática HIV/Aids com as equipes de saúde, buscando qualificação dos processos de trabalho e mitigando problemas de acesso, foi um desacomodar-se e despir- -se de preconceitos existentes nos espaços de saúde. Nesse sentido, faz-se necessário políticas públicas e serviços de saúde que compreendam essas mulheres de forma a superar as dificuldades, buscando amenizar problemas.

    A produção do cuidado em saúde para as mulheres vivendo com HIV/Aids, enquanto objeto de conhecimento e de intervenção, exige a participação de diferentes campos do saber, das dimensões da experiência humana, de ampla e planejada atuação dos profissionais. Ademais, é fundamental a busca por itinerários de cuidado que atendam às demandas dessas pessoas de uma forma humanizada e acolhedor. É também vital que as relações de cuidado sejam espaços de escuta e troca de saberes e é crucial o investimento em políticas públicas e no setor de saúde para garantir salários dignos aos profissionais e condições necessárias de trabalho para as unidades de atendimento.

    • Suporte financeiro: não houve

    Referências

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2023
    • Data do Fascículo
      Oct-Dec 2022

    Histórico

    • Recebido
      22 Abr 2022
    • Aceito
      12 Set 2022
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