RICHARD GUY PARKER É ANTROPÓLOGO, PESQUISADOR, PROFESSOR e ativista norte-americano. Desde cedo atento às implicações sociais e políticas da epidemia de Aids no corpo social, foi um dos atores centrais para a efetivação do que ficou conhecido como a resposta brasileira ao HIV/ Aids. Graduado e doutor em Antropologia pela University of California, autor e organizador de diversos livros, artigos, coletâneas, conferências, boletins, entre outras publicações, é um dos autores indispensáveis para uma análise crítica e engajada dos caminhos pelos quais políticas de saúde são pensadas, desde o processo de planejamento à sua execução.
Aproveitamos sua ida ao VIII Congresso Brasileiro em Ciências Sociais e Humanas em Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), nos dias 26 a 30 de setembro de 2019, em João Pessoa/PB, para dialogar sobre sua trajetória no campo, bem como para discutir suas percepções sobre o quadro político e epidemiológico da Aids nos dias de hoje. A entrevista foi realizada no dia 28 de setembro de 2019, na Universidade Federal da Paraíba, por pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura (Grupessc). Fez parte das atividades do projeto de pesquisa ‘Fases e Faces do HIV/Aids na Paraíba’, desenvolvido pelo Grupessc entre 2018 e 2020, com o objetivo de investigar a incorporação das tecnologias farmacológicas de prevenção ao HIV no estado da Paraíba.
Parker foi professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) por quase 20 anos, e é Professor Titular Emérito da Columbia University. Atualmente, atua como professor visitante no Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Iesc/UFRJ) e desde 1998 preside a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, a Abia. Nesta instituição, esteve ao lado de atores políticos importantes, que contribuíram na luta pelos direitos das pessoas que vivem e convivem com o HIV/Aids. A Abia é uma das principais ONG/Aids do Brasil que atuam no monitoramento das políticas públicas de saúde sobre HIV/Aids. Além de contribuir para o aprimoramento dos esforços governamentais e do debate sobre a epidemia, tem sido um instrumento potente para a democratização da informação sobre as estratégias de combate, controle, prevenção e tratamento1.
Defensor da solidariedade como projeto ético e político, crítico à ‘rebiomedicalização’ da resposta à Aids, Richard Parker discute, nesta conversa, modos de compreender a epidemia e seus impactos à vida. Na entrevista, contamos ainda com a participação do Vagner de Almeida, companheiro de Parker e, também, ativista, assessor de projetos da Abia e coordenador do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens. Vagner contribuiu de forma significativa para o aprofundamento do debate. Cabe destacar que vivíamos em um contexto no qual os desafios diante a pandemia da Covid-19 ainda não habitavam o horizonte do debate, e enfrentávamos o primeiro ano de governo do então presidente Jair Bolsonaro, o que nos ajuda a dimensionar análises aqui presentes e os rumos da conversa.
Mónica – Bom dia. Antes de dar início a nossa entrevista, gostaria de agradecer a sua disponibilidade para estar conosco aqui hoje. Nossa primeira pergunta tem a ver com a sua trajetória no campo da Aids e na antropologia. Como foi que você, como antropólogo, chegou ao tema do HIV/Aids?
Richard – Eu comecei a fazer doutorado em antropologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1980. Já tinha feito graduação em antropologia antes disso. Naquela época, apesar de já existirem pesquisas sobre sexualidade e gênero, essa não era uma área de especialização dentro da carreira, você não podia nem imaginar que se abrisse uma vaga para contratar um professor que trabalhasse com esses assuntos. Além disso, era uma época de crise, havia muito pouco trabalho para os antropólogos, e as maiores chances para entrar na docência estavam ligadas aos campos exóticos. Eu tinha interesse em vir para o Brasil e tinha uma ideia muito vaga de fazer pesquisa com povos indígenas na Amazônia. Então, em 1982, vim passar três meses aqui em uma espécie de pré-campo, para ver se conseguiria me adaptar ao País. Muito rapidamente, percebi que sair das grandes cidades não era meu caminho e resolvi trabalhar na ‘selva urbana’ ao invés da selva amazônica. Gostei muito do Rio e decidi ficar por lá. Em 1983, quando voltei a Berkeley, montei um projeto de doutorado sobre o carnaval, especificamente sobre a manipulação política do carnaval. Eu estava interessado na maneira como diferentes forças políticas desde os anos 30 tinham investido no carnaval com o objetivo de garantir seus interesses políticos. Com esse projeto, ganhei uma bolsa da Fundação Fulbright, e foi assim que comecei a pesquisa. Nesse meio tempo, a epidemia de Aids estava começando, os primeiros casos tinham sido reportados em 1981, na Califórnia, onde eu estudava, e em 1982, justamente quando eu coloquei o pé no Brasil pela primeira vez. Apesar de eu ainda não imaginar que iria fazer pesquisa sobre esse tema, como um homem jovem e gay, eu estava muito preocupado com a epidemia. Abri uma pasta e comecei a guardar recortes de jornais, a juntar documentos sobre o tema, sem imaginar que um dia aquilo pudesse se tornar um campo de pesquisa. Minha tese de doutorado2 foi, de fato, sobre carnaval, mas a forte presença da simbologia de sexualidade e gênero no carnaval me chamou muito a atenção e comecei a escrever sobre isso.
Paralelamente, eu e Vagner nos conhecemos em 1983 e, no ano seguinte, ele voltou comigo para Berkeley, onde passamos uns quatro anos. A gente tinha que organizar uma maneira de viver entre duas culturas, entre dois países, em um momento em que não havia menor chance de conseguir um visto por uma relação homossexual. Em 1985, eu estava na metade da escrita da tese, e viemos passar uns meses no Brasil para organizar algumas coisas. Naquele tempo, a Aids já não era apenas uma notícia de jornais, tinha se tornado uma realidade muito mais presente. E foi nesse retorno ao Brasil que conhecemos o Herbert Daniel e o companheiro dele, Claudio Mesquita. Lembro bem de nós quatro subindo ao bairro de Santa Teresa para ficar no apartamento onde eles moravam e começando a falar sobre políticas de Aids. Em 1985, a primeira ONG/Aids tinha sido criada no Brasil, o Gapa/São Paulo. Ainda não tinha nenhuma organização no Rio – foi só em 1986 que Betinho e Daniel começaram a ter conversas para a criação da Abia –, mas em 1985, a problemática política já estava muito presente. O Daniel estava pensando muito sobre essas questões e foi ele quem me incentivou a tornar a Aids uma questão de pesquisa. Entre 1985 e 1986, quando terminei a tese de doutorado, resolvi levar essa sugestão adiante. Inicialmente, parti da pesquisa sobre sexualidade e gênero no carnaval e escrevi um artigo sobre Aids no Brasil, que foi publicado em 1987, no segundo número da nova revista ‘Medical Anthropology Quarterly’. Na sequência, de 1987 a 1988, eu e Vagner resolvemos voltar para o Brasil, porque Vagner já tinha esgotado todas as possibilidades de renovar o visto de estudante nos Estados Unidos. Eu escrevi um projeto de pesquisa sobre políticas da Aids e consegui um pequeno financiamento, de cinco a dez mil dólares, da fundação WennerGren, que é a única fundação no mundo que só financia pesquisas antropológicas, além de uma bolsa de pesquisa da Social Science Research Council, uma das principais fontes de apoio para pesquisas nas Ciências Sociais nos Estados Unidos. E foi desse modo que, em 1988, voltamos para o Brasil. Eu tinha um visto cultural de um ano para fazer a pesquisa, mas, de fato, voltamos para ficar, vendemos tudo nos Estados Unidos, e nosso cachorro foi viver com a minha irmã.
Aquele foi um momento bastante intenso na resposta à epidemia no Brasil. A Abia tinha sido criada em 1986 e tinha formalizado seu estatuto em 1987. O Peter Fry, que também era antropólogo e gay, portanto, com um interesse muito forte na epidemia, estava atuando como representante no Brasil da Fundação Ford, que tinha começado a se preocupar com o tema. O Peter tinha conseguido financiamento da Ford para a Abia e estava interessado em criar um programa sobre Aids, não um programa formal, porque isso ainda não era possível, mas uma linha que permitisse financiar as primeiras atividades das ONGs/Aids a partir dos outros programas existentes, como educação e raça. Peter me contratou como consultor para ajudar a organizar esses financiamentos, e eu passei alguns anos conseguindo recursos para os Gapa em diferentes lugares, no Ceará, no Rio Grande do Sul, financiamos o Grupo pela Vidda que existia no Rio e em São Paulo, estivemos em Curitiba, embora não lembre se chegamos a financiar alguma organização lá. A gente tinha muito pouco dinheiro, alguns anos conseguíamos uns 50 mil dólares, em outros anos, um pouco mais, esse valor era o mínimo para conseguir algum impacto. Além do incentivo financeiro às ONGs, Peter também queria estimular pesquisas sobre Aids nas ciências sociais. Ele tinha contatos com um grupo no Instituto de Medicina Social [IMS] da Uerj: o Sérgio Carrara, que tinha feito mestrado com ele, e a Andrea Loyola, com quem ele tinha contato na época em que o Peter trabalhava na Unicamp. Ele me pediu para facilitar esse projeto, várias conexões foram acionadas e eles conseguiram uma bolsa de recém-doutor para mim, que me permitiu ficar três anos como professor visitante no IMS. A expectativa era de que a Uerj abriria um concurso e eu poderia ser efetivado, o que acabou acontecendo. Esse primeiro projeto do IMS foi basicamente composto por antropólogos e pelo Jurandir Freire Costa, psicanalista, e tinha também um projeto que financiou um estudo demográfico, feito pela Elza Berquó e pelo grupo dela na Unicamp. Esse foi o meu primeiro núcleo de estudos sociais sobre a questão da Aids.
Nessa época, como a Aids estava explodindo e não tinha muitas respostas organizadas, eu acabei me envolvendo em vários projetos. Durante dois anos, fiquei praticamente na ponte aérea Rio-Genebra, pois a Organização Mundial da Saúde [OMS] tinha criado o Programa Global de Aids em Genebra. Eu trabalhava na unidade sobre pesquisa social e comportamental, no incentivo a projetos e atividades de pesquisa qualitativa, porque eles tinham várias pesquisas quantitativas sobre comportamento sexual, mas queriam conhecer as dimensões culturais da epidemia. Assim, além do meu trabalho na Uerj, viajava com regularidade para Genebra, onde também fiz alguns estágios mais longos, de alguns meses. Era uma época muito interessante, embora muito incipiente, pois não havia nenhum centro de pesquisa especializado em Aids. Na falta de uma iniciativa institucionalizada, criou-se uma rede transnacional de pesquisadores em Aids. Como sempre acontece, era mais difícil mobilizar pesquisadores em países do sul, os países mais industrializados tinham mais recursos e, portanto, tinham uma resposta mais rápida. O Brasil, entretanto, foi pioneiro nessa mobilização. O trabalho que o Peter Fry implementou na Fundação Ford, no qual eu trabalhei, foi o primeiro financiamento para ONGs/Aids que a Ford fez em qualquer lugar, depois é que formalizaram iniciativas semelhantes em Nova Iorque e em outros países. E, no começo dos anos 1990, o campo explodiu de um jeito que é até difícil de descrever; poderíamos ficar aqui horas só falando sobre isso. Foi um período muito intenso.
Marcos – Só uma pergunta, essa questão da temporalidade, você começa a se inserir na OMS em que ano?
Richard – Em 1987 eu começo a publicar sobre Aids, em 1988 eu volto para o Brasil, e em 1988, começo esse trabalho, tanto com a Ford no Rio quanto com a OMS em Genebra. Eu só fiquei em Genebra até 1990, quando ocorreu uma briga política muito forte entre o primeiro diretor do programa, Jonathan Mann, e a direção da OMS. Jonathan Mann era epidemiologista, mas tinha uma visão muito progressista, acreditava que a ideia dos Direitos Humanos poderia revolucionar o trabalho com Aids. Por causa das suas ideias, acabou brigando com a direção da OMS e se viu forçado a pedir demissão. No tempo em que o Jonathan esteve à frente do Programa, ele chamou muitas pessoas das comunidades mais afetadas pela epidemia para trabalhar com ele, ativistas de trabalhadores do sexo, homens gays, ex-usuários de drogas. Todas essas pessoas foram expulsas quando Jonathan se demitiu. Levou um bom tempo até a OMS reabrir as portas para as pessoas não tão desejáveis que tinham trabalhado naqueles primeiros tempos.
Então, no começo dos anos 1990, realmente as coisas explodiram de uma maneira muito intensa no Brasil. As ONGs começaram a ficar muito mobilizadas e críticas porque a resposta do governo brasileiro à Aids era muito ruim, especialmente no governo Collor, embora no governo Sarney também tivesse sido bem complicada. O Ministro de Saúde de Collor, Alceni Guerra, deu uma resposta à epidemia extremamente preconceituosa, estigmatizante, com umas campanhas que a gente chamava de terroristas, do tipo ‘Se você não se cuidar, a Aids vai te pegar’. E na mobilização da sociedade civil para a saída de Collor, puxada pelo Movimento pela Ética na Política, um dos articuladores mais importantes foi o Betinho. Foi ele quem subiu a rampa do Congresso com a carta da sociedade civil em mãos pedindo o impedimento de Collor. Foi um momento bastante emocionante porque o Betinho estava muito frágil fisicamente e a figura dele subindo a rampa, fazendo a longa marcha na Esplanada dos Ministérios, na sua fragilidade, foi comovente. Voltando à questão da Aids, graças à articulação do movimento, o Alcenir Guerra foi demitido, e quem assumiu o Ministério da Saúde foi o Adib Jatene, que era do partido conservador, o então PFL, mas era um homem um pouco mais esclarecido. Ele continuou no Ministério depois de Collor sair, já com Itamar Franco como presidente. Jatene restabeleceu o Programa de Aids, chamou o primeiro diretor de volta, o Lair Guerra, e convidou uma série de pessoas com destaque nacional naquela época. Paulo Teixeira, que tinha dirigido o programa em São Paulo, foi chamado para liderar a sociedade civil, Celso Ramos do Rio de Janeiro também foi chamado, e eu fui convidado para chefiar a unidade de prevenção. Esse foi um momento importante porque realmente reestruturou o Programa de Aids, começou a transformar um programa estigmatizante em um programa com base na perspectiva de direitos humanos, um quadro conceitual que viria a ser aprofundado posteriormente para renovar as políticas. Esse período marca o começo do que seria a resposta mais positiva que o Brasil conseguiu desenvolver ao longo dos anos 1990 e nos anos 2000. Na atual década, esses avanços estão sendo minados, mas durante uns 20 anos, o Programa Nacional de Aids brasileiro foi um programa de bastante sucesso.
Eu percebi rapidamente que não tinha talento para operar dentro do Estado e saí do Ministério da Saúde em 1992, no mesmo ano em que Herbert Daniel morreu. Naquele tempo, eu já havia feito um trabalho com a Abia nos bastidores, e com a morte do Daniel, o Betinho me chamou para assumir uma parte da direção da Abia. De 1992 a 1995, eu fiquei como coordenador geral da Abia, atuando efetivamente como diretor executivo. Em 1995, entrei no Conselho da Abia, como secretário geral. Em 1997, Betinho morreu, e na seguinte eleição interna, em 1998, eu entrei como presidente da Abia, e continuo até hoje. Nesse período, a partir de 1991 e 1992, atuei simultaneamente em duas frentes: por um lado, construí minha carreira acadêmica como pesquisador sobre sexualidade, gênero e sobre Aids, por outro lado, trabalhei no ativismo mais direto na Abia. Até acho que essa foi uma maneira de manter minha sanidade mental; eram tempos ruins antes de existir qualquer medicamento, as pessoas morriam com rapidez e de maneiras muito violentas, com muito sofrimento. Então, eu continuava fazendo algumas pesquisas sobre sexualidade que não tinham nada a ver com Aids como uma maneira de escapar da face mais dura da epidemia. Também me envolvi em projetos relacionados às políticas de Aids, em que conseguíamos juntar ativismo e pesquisa de uma maneira que deu muito certo. A Abia e o IMS fizeram parcerias ótimas que resultaram em livros, como ‘A Aids no Brasil’3 e ‘Quebrando o silêncio’4, ambos publicados pela extinta Relume-Dumará, uma editora do Rio que abria muito espaço para o pensamento progressista. Eu penso que a parceria academia/ONG, como a que nós fizemos, foi um empreendimento muito positivo e que caracteriza o que eu chamaria de época de ouro da resposta ante a epidemia no Brasil.
Outro aspecto sobre o qual tenho escrito, e que vale a pena retomar aqui, é que o advento da Aids aconteceu no Brasil em um momento histórico único, em plena abertura democrática depois de 20 anos de ditadura. As pessoas que tinham sido importantes em mobilizar a sociedade civil na resistência ante a ditadura foram as primeiras a se organizar no campo da Aids, tanto na sociedade civil quanto no Estado. Tinha a nata do movimento sanitário, que fez resistência ao longo da ditadura, pessoas como Paulo Teixeira, que assumiu o programa estadual de Aids em São Paulo no governo Montoro Franco, quando havia eleições diretas para os estados, mas ainda não nacionalmente. As pessoas envolvidas na resposta diante da epidemia viviam intensamente o movimento de redemocratização. Por isso, costumo dizer que foi um acidente histórico que deu certo, no sentido de que havia no Brasil uma base política para pensar uma resposta progressista perante a epidemia. Levou algum tempo ainda para que esse movimento chegasse até o governo federal, porque ainda tinha Sarney, eleição indireta para Presidente, o movimento das ‘Diretas Já’ falhou, mas nos estados havia muita coisa positiva acontecendo. Depois do fracasso do governo Collor e do período de Itamar, finalmente a mudança chegou ao governo federal, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, uma eleição direta de alguém que, embora a gente possa criticar pelo seu alinhamento à política neoliberal, tinha um compromisso profundo com a democracia. O PSDB trouxe uma série de pessoas, como o José Serra no Ministério da Saúde, que tinham trajetórias importantes, e que ajudaram bastante na organização da política de Aids. Foi um período muito interessante, em que foram estimuladas parcerias entre ONGs, sociedade civil e academia, uma das características históricas da resposta brasileira à Aids. Muito do que a gente conseguiu nesse tempo teve a ver com esse diálogo intersetorial. E eu acho que Abia fez isso bem, convocando acadêmicos, lideranças da sociedade civil, gestores, pessoas dos serviços de saúde, diferentes setores para se sentar à mesma mesa, dialogar e debater. Isso nos ajudou muito a avançar ao longo dos anos.
Luziana – Depois de mais de 30 anos de epidemia, o que a Aids tem ensinado à antropologia?
Richard – Ótima pergunta! Mais de 30 anos e chegando em breve a 40. A resposta da antropologia nas primeiras duas décadas foi muito positiva e intensa. Nos Estados Unidos, antes de existirem instituições formais de pesquisa sobre Aids, foi criado o ‘Aids and Anthropology Research Group’, que foi muito importante para conectar as pessoas que trabalhavam sobre o tema e se sentiam isoladas e, também, para estimular novas pesquisas sobre Aids. Além disso, nos anos 1980 e primeira metade dos 1990, foi a Aids que abriu espaço para as pesquisas sobre sexualidade. Essa situação muda um pouco depois da segunda metade dos anos 1990, a onda promovida pela Aids perde força, e são os movimentos LGBT e feministas que passam a influenciar mais na abertura de espaços acadêmicos. Durante o período inicial, as pesquisas antropológicas fizeram duas coisas. Em primeiro lugar, criaram muitas oportunidades de trabalho para pessoas que pesquisassem HIV e Aids, especialmente nos Estados Unidos, que é o maior mercado mundial para a antropologia. Em segundo lugar, as pesquisas antropológicas, e, também, as pesquisas realizadas por sociólogos, foram a alternativa social para as pesquisas biomédicas que estavam sendo produzidas na saúde pública, nas escolas de medicina. Os psicólogos, nos Estados Unidos, pelo menos, adotaram uma perspectiva comportamentalista e se afinaram mais com as pesquisas biomédicas; esse não é o caso do Brasil, onde a psicologia social sempre foi mais atenta às questões sociais. Já antropólogos e sociólogos fizeram um contraponto a essa tendência, destacando a importância das questões sociais e culturais. No Brasil, os cientistas sociais também tiveram um papel fundamental nos anos 1990, ao trazer conceitos como violência estrutural, vulnerabilidade, conceitos que enfatizaram os determinantes sociais da saúde e trouxeram uma perspectiva social para o campo da aids. Nesse sentido, o Brasil teve a felicidade de contar com a longa tradição da reforma sanitária e com o campo da saúde coletiva, que colocaram as questões sociais, políticas e econômicas como sendo fundamentais para pensar questões de saúde. O comportamentalismo que dominou sempre nos Estados Unidos não teve essa hegemonia no Brasil. Aqui o campo de pesquisa com Aids, que foi estabelecido e construído nos anos 1990 e ao longo dos anos 2000, é mais rico do que nos Estados Unidos, e isso foi muito positivo para lançar questões importantes para a academia e, também, para as práticas.
O que precisamos discutir agora é se essa situação ainda se mantém, porque as coisas mudaram muito na última década. Houve um divisor de águas em meados dos anos 2000, e tudo que a gente construiu nos anos 1990 e começo dos anos 2000 começou a ser jogado fora. O que estamos vivendo agora é o retorno da biomedicalização da epidemia. A perspectiva que levava em conta a vulnerabilidade, a violência estrutural e outros processos que buscavam desbiomedicalizar a resposta perante a epidemia começa a mudar de maneira muito acelerada a partir de 2005. Neste momento de rebiomedicalização da epidemia, temos o desafio de pensar questões como as que vocês estão pesquisando (PEP, PrEP, Tratamento como Prevenção) em suas dimensões sociais. Essa abordagem é mais difícil agora porque a ênfase nessas tecnologias surge do campo biomédico. Na cabeça de muitos médicos e cientistas biomédicos, as respostas sociais ante a epidemia não podem dar certo, e por isso precisamos achar uma ‘bala mágica’ que vai resolver o problema de saúde sem mudar a sociedade. Essa é uma visão oposta à que nós temos trabalhado, porque a ideia de vulnerabilidade implica que é preciso mudar as estruturas sociais, é preciso enfrentar as desigualdades para, de fato, enfrentar a epidemia. Os médicos nunca se convenceram disso, e o poder biomédico reagiu em direção à busca de soluções simples, que poderiam ser ‘vendidas’, quase como slogans publicitários: Testar e Tratar, Tratamento como Prevenção... Essas tecnologias são apresentadas à sociedade como ditados que poderiam se usar para vender detergente! De certa forma, muitos atores do campo biomédico se convenceram de que as pessoas não mudariam seu comportamento e que somente super-heróis de jaleco branco poderiam resolver as coisas. E a história da Aids mostra que não é com super-heróis e balas mágicas que se enfrenta uma epidemia.
Marcos – Muito legal isso que você colocou, do contraponto das ciências sociais a um ponto de vista exclusivamente biomédico; mas, na sua fala mesmo, você aponta que existiu também uma cooperação naquele momento entre epidemiologistas, outros profissionais e antropólogos, no campo da saúde coletiva, incluindo as ciências sociais, humanas e da saúde. Você vê isso mudando? Porque o ponto de vista epidemiológico não é um ponto de vista exclusivamente biológico, ele leva em consideração determinantes sociais.
Richard – Claro! A epidemiologia no Brasil e na América Latina tem essa perspectiva de maneira mais marcante do que em alguns outros lugares. De fato, diferentes países, diferentes culturas, têm diferentes tradições, até dentro da saúde pública. Na África do Sul, por exemplo, a epidemiologia é vista como uma aliada na luta contra o apartheid, quase todos os epidemiologistas foram ligados ao partido comunista, que se alinhou contra o apartheid. No Brasil, tem a tradição da epidemiologia social, que é também muito forte. Já nos Estados Unidos e na maior parte dos países da Europa, essa tradição é bem menos marcada, a influência da biomedicina é maior, embora seja possível encontrar pessoas adeptas a uma visão social da epidemiologia. Então, os campos do saber não mapeiam o mundo de forma totalmente igual, mas, por outro lado, há processos políticos globalizados que pressionam em certas direções. Por exemplo, depois de 2005, ficou muito difícil conseguir recursos internacionais de pesquisa para questões sociais. Todos os recursos se voltam às novas tecnologias de prevenção, que são biomédicas. Recursos para fazer o tipo de pesquisa que eu historicamente fiz, sobre políticas de resposta à epidemia, somem quase por completo. Nós ainda conseguimos financiamento para uma pesquisa grande, de 2005 a 2010, sobre respostas religiosas à Aids, abordando as diferentes tradições religiosas: catolicismo, igrejas evangélicas, religiões afro-brasileiras. Foi uma pesquisa multicêntrica em colaboração com diversos pesquisadores: Fernando Seffner em Porto Alegre, Vera Paiva em São Paulo, Felipe Rios em Recife, Veriano Terto e o pessoal da Abia no Rio de Janeiro. Esse tipo de pesquisa que conseguimos financiar entre 2005 e 2010, com recursos do NICHD – National Institute of Child Health and Human Development, não é o tipo de pesquisa que hoje seria visto como interessante para os financiadores. Então a onda foi realmente nessa direção das tecnologias biomédicas que eventualmente podem ser utilizadas para tentar responder à epidemia como se o problema fosse simplesmente uma questão farmacêutica. Nisso realmente o mundo mudou; e nós, das ciências sociais, estamos na contramão da tendência atual.
Mónica – Pensando ainda sobre essa tendência atual que você menciona, queria trazer um pouco de nossa experiência e colocar uma questão para continuar a conversa. O primeiro financiamento no Grupessc foi em 2007, para uma pesquisa sobre casais sorodiscordantes, em que abordamos conjugalidade, sexualidade, vulnerabilidade, risco, estigma, enfim, um leque de questões sociais sobre o viver e o conviver com HIV. Quase uma década depois, em 2015, tivemos a oportunidade de acompanhar o X Congresso Nacional de HIV/Aids, que foi realizado aqui, em João Pessoa. Na ocasião, lembro que nos surpreendeu muito o clima de ufanismo em torno da estratégia 90/90/90 e a ênfase no discurso sobre o ‘fim da Aids’. Parecia existir uma confiança enorme no potencial dos avanços tecnológicos para superar qualquer barreira. E aí eu pergunto para você, por que você acha que as ciências sociais desconfiam desse discurso? O que faz com que a gente se situe, como você apontou, na contramão dessa tendência?
Richard – Basicamente, esse discurso é construído como se as diferenças sociais, econômicas, políticas não existissem. A estratégia 90/90/90, a cascata de cuidados, esses constructos biomédicos são feitos quase sempre a partir da experiência dos Estados Unidos e dali aplicados como uma receita pronta para os demais países. São descrições do que acontece em lugares desenvolvidos e ricos, onde muitas barreiras e impedimentos socioeconômicos não existem ou existem de uma forma diferente ao que ocorre em outros contextos, e depois são transformadas em modelos, passando de descrições empíricas da realidade a políticas públicas que deveriam ser implementadas em outros países, mesmo quando as condições sejam extremamente diferentes. Então, quando se transporta a cascata de cuidados para um país como o Brasil, com um sistema de saúde que funciona de uma maneira precária, com os serviços muito menos estruturados para acolher as pessoas, o modelo não dá certo. E como a biomedicina entende essa situação? Como um ‘treatment failure’, fracasso de tratamento, ou seja, as pessoas são tratadas como fracassadas porque elas não conseguem desenvolver o seu tratamento de uma maneira que se encaixe no modelo elaborado nos Estados Unidos e transportado para o Brasil, ou para a África do Sul, ou para outros países que têm condições e sistemas de saúde profundamente diferentes daquele do modelo. É uma forma de individualizar situações sociais, como se aquele indivíduo em particular não fizesse as coisas direito, como se ser aderente dependesse apenas de sua vontade, não foi o seu médico que fracassou, não foi o sistema de saúde que fracassou. Esse tipo de raciocínio parte de uma perspectiva neoliberal, que joga a responsabilidade e a culpa sobre os indivíduos, como se não se tratasse de um processo social mais abrangente.
Recentemente, nós temos falado muito sobre isso na Abia, sobretudo a partir das experiências trazidas pelas pessoas da equipe mais diretamente envolvidas com os serviços, como o Juan Carlos Raxach, um médico cubano que veio para o Brasil nos anos 1990. Por ser médico, ele trabalha muito com as pessoas que estão em tratamento, e ele faz a seguinte análise: no Brasil, temos acesso universal aos medicamentos, o que é superpositivo; e graças a esse acesso, temos menos casos de Aids, mas estamos tendo mais infecções pelo HIV e, também, temos mais pessoas que não conseguem seguir a cascata, que não conseguem se encaixar no 90/90/90 e, portanto, estão morrendo. Essa morte é tratada como falta de adesão do indivíduo, não como uma falta de acolhimento desse indivíduo pelo sistema. E quando falo sistema, refiro-me ao preconceito, ao estigma que ainda existe nos serviços de saúde; é a falta de preocupação com o HIV, o julgamento das pessoas nos serviços que deveriam acolher, mas que são estigmatizantes, discriminatórios. No caso da PEP, no Rio, é muito difícil conseguir informação, as pessoas não sabem o que é PEP, não sabem te encaminhar, e quando a pessoa consegue finalmente achar um serviço que oferte a PEP, depois de muitas barreiras, é tratada como alguém que fez alguma coisa errada. Depois de enfrentar esse tratamento estigmatizante uma, duas, três vezes, as pessoas resolvem que não vão mais procurar o serviço.
Vagner – Trazendo essa reflexão para meu trabalho, gostaria de dar uma contribuição à nossa discussão. Eu trabalho diretamente com jovens em situação de extrema vulnerabilidade, estrutural principalmente. E o que acontece na prática é que, embora existam essas novas tecnologias disponíveis e gratuitas – PrEP, PEP, antirretrovirais –, os jovens com os quais eu trabalho não dão importância a elas porque precisam enfrentar outras vulnerabilidades, como a violência estrutural, o desemprego, a dificuldade de ir para uma universidade, ou até mesmo para uma escola secundária ou primária, problemas na família... Se você falar com eles sobre PrEP, eles vão perguntar: ‘O que é PrEP? Eu tenho que pensar em comida, no risco de levar uma bala porque sou negro, em quantas vezes por semana sou parado pela polícia na rua’. Além desses problemas, que muitas vezes não escutamos, há também as dificuldades que eles trazem sobre o atendimento: exames de CD4 que demoram seis meses para sair, a falta de infectologistas e como as pessoas terminam se automedicando porque não têm quem as oriente quando têm uma crise de herpes, por exemplo. Então, nós vemos muitas vezes esses processos de cima pra baixo, mas no nosso projeto, trabalhamos de maneira horizontal, aprendemos com a população o que eles realmente precisam. Eu já escutei uma mãe falar para mim: "Antes de pensar nessa coisa de Aids, eu preciso resolver onde vou deixar meu filho para poder trabalhar porque não tem creche". Essa vulnerabilidade precede a infecção por HIV, e a gente precisa estar muito atento a isso.
Richard - A intervenção de Vagner é bem importante porque ela traz à tona que, além de fazer a crítica ao que está posto, precisamos propor alternativas. Ou seja, precisamos continuar criticando a rebiomedicalização da epidemia, mas é importante lembrar que a prevenção biomédica é socialmente construída, e que tudo que é construído pode ser desconstruído e reconstruído. Na Abia, temos feito isso a partir da ideia da ‘pedagogia da prevenção’, que é uma forma de reconstruir o modo como pensamos a prevenção biomédica incluindo as comunidades afetadas, como a história da epidemia mostra. Nesse sentido, a chegada das tecnologias biomédicas de prevenção cria uma situação muito parecida à primeira onda de acesso ao tratamento. Naquele contexto, os ativistas, os grupos, as ONGs que trabalhavam com Aids criaram a ideia, em inglês, de treatment literacy, que a gente traduziu como a ‘pedagogia do tratamento’. Quando chegaram os primeiros tratamentos, tinha um leque de procedimentos extremamente complicados, com regimes de tratamento complexos de administrar. Tanto no Brasil como em outros países com epidemias generalizadas, como na África do Sul, foram criados programas comunitários de educação popular para ensinar as pessoas a fazerem uso da medicação. Hoje em dia, estamos em uma situação muito parecida com a prevenção biomédica, que também é complexa de entender: a PEP, a PrEP, o Tratamento como Prevenção são ideias complexas para os profissionais de saúde, que dirá para os usuários. Então, quando foi importada para o Brasil a ideia de prevenção combinada, o que faltou foi uma pedagogia como suporte a isso. Na prática, saímos do ‘mantra da camisinha’ para a ‘mandala da prevenção combinada’ sem que essas tecnologias chegassem às pessoas. Uma pedagogia da prevenção combinada precisaria ser pensada de maneira simples, usando técnicas de educação popular, que são muito bem desenvolvidas nesse país. Infelizmente, em uma época em que Paulo Freire e a educação popular são tão criticados, o poder público não investiu nisso. Simplesmente começou a recitar um novo mantra, que é a mandala, sem colocar essa mudança dentro de metodologias pedagógicas que realmente falassem da realidade das pessoas de forma que elas conseguissem incorporar esses recursos. Uma pedagogia da prevenção deveria trabalhar pelo empoderamento das pessoas, para que elas possam ter maior controle sobre as suas decisões, porque se essas tecnologias ficarem restritas a uma expectativa de que as pessoas sigam as ordens médicas, nem a prevenção nem o tratamento darão certo. Não deu certo nem com a camisinha, que continua sendo uma das metodologias mais eficazes para a prevenção!
Se olharmos para o passado, o que está ocorrendo agora com a prevenção combinada é muito diferente de como surgiram as duas metodologias de prevenção mais eficazes na história da epidemia: a ideia de sexo mais seguro e a ideia de redução de danos. Ambas surgiram no começo dos anos 1980, o vírus do HIV ainda não tinha sido isolado e elas surgiram das comunidades afetadas. Essas metodologias foram eficazes justamente porque faziam sentido para essas comunidades. As coisas mudaram quando especialistas em saúde pública, os experts em Aids, apropriaram-se dessas metodologias e as transformaram em intervenções tecnocráticas, arrancadas das comunidades. Nesse sentido, eu argumento que precisamos de um grande retorno para as comunidades afetadas, trabalhar com elas, para definir uma pedagogia da prevenção que faça sentido na vida dessas pessoas. O perigo é tratar essas tecnologias como uma receita de bolo que um expert prescreve e que somente é preciso seguir todos os passos para que dê certo. É isso que está acontecendo com a PrEP, que está sendo positiva para uma faixa muito específica e pequena da população: pessoas razoavelmente escolarizadas, com recursos razoáveis, que conseguem minimamente dominar o sistema, acessar e utilizar a PrEP. Para os gays e homens que fazem sexo com homens mais pobres, mais marginalizados e afetados por opressões, para as mulheres, para as travestis, para as trans, enfim, para todo esse conjunto que não é uma pequena faixa razoavelmente empoderada, a PrEP não está funcionando, não está sendo acessada, não está sendo seguida. Há problemas de adesão que são absolutamente previsíveis se a opção pedagógica for por uma pedagogia bancária, na linguagem de Paulo Freire, que trata as pessoas como deficitárias de informação.
Vagner - Além disso tudo, os técnicos nos serviços não sabem trabalhar com a PrEP. O que nós temos observado na nossa prática é que os médicos têm um conhecimento muito raso dessas tecnologias e estabelecem um julgamento moral sobre as pessoas que procuram a PrEP. Eles enxergam essas pessoas como sendo promíscuas e pensam que o governo está pagando por uma promiscuidade que eles condenam moralmente. Eles não discutem o HIV com os usuários, não discutem outras [Infecções Sexualmente Transmissíveis] IST, não informam que a PrEP bloqueia a infecção pelo HIV, mas não a sífilis, que está crescendo de uma maneira assustadora. A gente tem escutado bastantes relatos de médicos nos serviços que não sabem discutir a PrEP, e que não têm nenhum interesse em saber.
Richard - E na atual situação, são os médicos que fazem a triagem para escolher quem merece, quem precisa da PrEP. Não tem como as pessoas serem sujeitos de direito dentro de um sistema organizado desse modo. As pessoas são tratadas como meros objetos do poder médico, elas não escolhem. Eu entendo que essa limitação é dada porque os recursos não são suficientes para ofertar a quantidade necessária, mas quando se estrutura um sistema desse jeito, o problema é o sistema, não são as pessoas. E com isso, voltamos à questão sobre a contribuição da pesquisa antropológica para o campo da Aids. Eu penso que o papel da antropologia em traduzir sistemas culturais e conhecimentos é muito importante neste momento. Clifford Geertz, um antropólogo muito conhecido, que nunca trabalhou sobre medicina, muito menos sobre HIV e Aids, defendia que o exercício da antropologia consiste na tradução de conceitos próximos da experiência das pessoas para os conceitos e a linguagem mais distanciados das ciências sociais, usando esse percurso como uma maneira de oferecer uma melhor compreensão da experiência das pessoas em seus contextos de vida. Nesse sentido, a antropologia pode contribuir com o momento atual levando a sério a experiência das comunidades mais vulneráveis, entendendo o mundo delas, para ajudar a desenvolver trabalhos pedagógicos que falem mais adequadamente com elas. Esse é um papel que a antropologia assumiu desde o começo da epidemia, mas que, neste momento, poucas pessoas continuam levando adiante. A Aids, definitivamente, saiu do cenário de prioridades. Há trabalhos importantes sendo feitos sobre gênero e sexualidade, que poderiam ser ampliados para a saúde sexual e que, certamente, dariam resultados práticos excelentes.
Geissy - A gente está fazendo pesquisa em um serviço de atendimento especializado aqui em João Pessoa, e eu, especificamente, discuto a questão do TcP, do Tratamento como Prevenção. O que temos percebido é que, no serviço, o TcP não existe, os funcionários não fazem referência a essa forma de prevenção. O TcP está no protocolo do Ministério da Saúde, os funcionários conhecem a informação de que a pessoa com a carga viral indetectável não transmite (embora tenham suas ressalvas em relação a isso), mas elas não partilham essa informação com os usuários. A gente entende que democratizar essa informação é totalmente necessário para que a pessoa possa acessar sua identidade de intransmissível, ressignificar sua condição de pessoa vivendo com HIV, lidar melhor com o estigma e, no fim, ter uma vida melhor. O que você pensa disso?
Richard - Eu acho que você tem toda razão sobre a falta de conhecimento do TcP no serviço. É uma das áreas menos pesquisadas neste momento. Durante o último ano, eu e mais quatro colegas de diferentes países fizemos um levantamento sobre prevenção biomédica para um livro que estamos organizando sobre o assunto. Queríamos incluir PrEP, TcP, I=I (Indetectável = Intransmissível), e procuramos no mundo inteiro pessoas para contribuir. Encontramos muitas pesquisas interessantes sobre PrEP, mas não conseguimos quase nada sobre TcP, sobre como o TcP está sendo vivido pelas pessoas no serviço. Também não encontramos muitas pesquisas sobre I=I. É preciso conhecer melhor essas dinâmicas e mostrar como e por que ocorre essa falta de comunicação, de diálogo, esses desencontros entre os pacientes e os profissionais, não apenas os médicos, mas toda a equipe dos serviços de saúde. Documentar o que está acontecendo é fundamental para pensar melhor como trabalhar com o TcP.
Vagner- Eu faço parte de muitas redes de jovens, e todo dia tem essa pergunta: "meu parceiro está indetectável, posso transar sem camisinha?". Por mais que você explique isso tecnicamente, que você encaminhe material escrito, as pessoas ainda têm uma imensa desconfiança. Se dentro do próprio meio tem desconfiança, quanto mais entre as equipes nos serviços, que não estão inseridas em redes que tratem desse assunto! A decisão de não usar camisinha passa por outros lugares, passa pelo amor, pela paixão, pelo momento. Na hora de transar, você até pode saber dos riscos, mas você arrisca. A reflexão vem depois, e nessa hora, cadê a informação para ir procurar uma PEP, por exemplo?
Richard - No Rio e em muitos outros lugares, o que estamos assistindo é que o sistema que foi criado para lidar com o HIV está sendo desmantelado de uma forma trágica em todos os níveis: municipal, estadual e federal. Às vezes, naquele lugar onde existia um serviço já não tem mais. Esta é a outra realidade do nosso tempo: temos mais ferramentas hoje em dia do que em qualquer outro momento da epidemia que poderiam ser usadas para enfrentar o HIV de forma eficaz, mas, ao mesmo tempo, há um conservadorismo terrível, muitas vezes vinculado a valores religiosos que nos levam de volta aos anos 1980, e um desmonte das políticas e dos serviços voltados ao HIV e à Aids. O bem-sucedido Programa Nacional de Aids agora faz parte de um departamento de doenças crônicas. Essa é uma situação bastante grave que mostra como as questões de sexualidade, de gênero, Aids, saúde sexual se veem afetadas por conjunturas políticas macro, que precisamos enfrentar para preservar o que foi construído ao longo de 30 anos. O mais terrível disso tudo é que é preciso muito tempo para construir, mas é muito fácil e rápido desmontar o que foi construído. Estou falando de um desmonte que começou no governo Dilma, foi aprofundado no governo Temer e hoje, no governo Bolsonaro, está avançando de maneira mais rápida e intensa. E o que fazer com isso? Esse é um dilema para o qual nenhum de nós tem a solução. Entendemos que a situação atual é muito ruim, sabemos que temos pela frente uma longa luta de resistência e que precisamos eleger novos governos que tentem reconstruir o que foi destruído.
Marcos – Vocês falaram da resistência, e isso me lembrou que, nos anos 1980, um mote muito importante para a mobilização social em torno da Aids foi o apelo à solidariedade. Fiquei pensando: qual o papel da solidariedade hoje?
Richard – Eu acho que a solidariedade hoje tem um papel absolutamente fundamental. O ponto de partida para a solidariedade é a nossa capacidade de compreender a dor e o sofrimento das outras pessoas. Nesse sentido, nosso progresso moral depende da nossa capacidade de estender essa compreensão para os outros e para as violências que lhes afetam. A solidariedade implica nos comprometermos com a obrigação de lutar contra essas violências, mesmo que elas não nos afetem diretamente. Na história da Aids, a solidariedade surgiu em um momento em que não havia nenhum recurso técnico a oferecer, não havia medicamentos, nada que a medicina pudesse dar. Diante disso, a solidariedade emergiu de uma maneira muito forte no pensamento de pessoas como Herbert Daniel e Betinho. Inclusive, o Betinho falava da solidariedade como a única vacina disponível ante o HIV, e eu penso que essa analogia ainda vale para os dias de hoje. Atualmente, temos mais recursos técnicos do que tínhamos, mas a opressão não tem remédio técnico, tem remédio ético-político. Se entendemos os determinantes políticos, sociais, econômicos e culturais da opressão, entendemos também que são os princípios ético-políticos que possibilitam avançar. Nesse sentido, a solidariedade foi o ponto de partida diante da epidemia desde o começo, e eu penso que ainda continua sendo. Sem solidariedade, a gente não vai para lugar nenhum; e eu acho que o nosso dilema no momento é justamente que as nossas lideranças políticas, não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos e outros países, têm o menor grau de solidariedade da história da epidemia. Isso é trágico. A falta de solidariedade é o nosso maior inimigo. É muito mais perigosa do que a epidemia.
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Suporte financeiro: não houve
Referências
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1 Associação Brasileira Interdisciplinar de Políticas de Aids. Sobre nós. Rio de Janeiro: ABIA; [s.d.]. [acesso em 2022 mar 24]. Disponível em: https://abiaids.org.br/sobre.
» https://abiaids.org.br/sobre. - 2 Parker RG. Within four walls: the cultural construction of sexual meanings in contemporary Brazil. [tese]. Berkeley: University of California System; 1988. 596 p.
- 3 Parker RG, Bastos C, Galvão J, et al., organizadores. A AIDS no Brasil (1982-1992). Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1994.
- 4 Parker RG, Galvão J. Quebrando o silêncio: mulheres e AIDS no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1996.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
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Recebido
10 Maio 2022 -
Aceito
24 Ago 2022