Open-access Ferraz OLM. Health as a human right: The politics and judicialisation of health in Brazil

O LIVRO ‘HEALTH AS A HUMAN RIGHT: The politics and judicialisation of health in Brazil’1, de Octávio Luiz M. Ferraz,apresenta o tema do direito à saúde sob a perspectiva da judicialização no Brasil e problematiza os desafios da implantação do sistema de acesso universal por meio da inscrição do direito à saúde na Constituição Federal2. O enfoque central da obra é abordar o direito à saúde no Brasil como um “direito humano fundamental”1(5). Segundo o autor, a amplitude dessa conceituação constitucional favoreceu a intervenção do Judiciário na imposição da ‘política do direito à saúde’.

Para explicar a experiência brasileira, Ferraz realiza uma abrangente e perspicaz revisão da produção intelectual e dos resultados da judicialização do direito à saúde ao longo de duas décadas. O projeto do livro é, paradoxalmente, demonstrar os efeitos negativos da judicialização: grande parte dos litígios em saúde ocorre em bolhas sociais apoiadas em advogados privados e na disponibilidade territorial da defensoria pública, com a demanda concentrada na assistência hospitalar e nos medicamentos de alto custo. O privilegiamento dos estratos sociais de maior renda e da pauta biomédica autoriza o autor a afirmar que a litigação do direito à saúde distorce a política pública setorial e amplia as desigualdades, produzindo mais malefício do que benefício social.

Nesse sentido, um dos pontos a serem destacados no livro é o questionamento da atuação do Poder Judiciário como ator político no campo social e na saúde pública. O autor considera que, na experiência brasileira, observa-se a “justiciabilidade”1(277) dos direitos sociais, ou seja, a concessão pelo poder judiciário do “direito a tudo”1(19) que é pedido. Dessa forma, ao Judiciário instituir o padrão de deferimento indiscriminado, o princípio da equidade é lesado especialmente pelo fato de que apenas o segmento socialmente privilegiado tem acesso à justiça no País. Para Ferraz, a interpretação do direito à saúde como um direito absoluto é responsável pelo crescimento significativo do contencioso de saúde no Brasil e pelas altíssimas taxas de sucesso em tais litígios, obrigando o Estado a fornecer virtualmente qualquer benefício de saúde que os litigantes reivindiquem. O autor qualifica as decisões do Judiciário como descaso com as políticas de saúde por obscurecer a natureza das obrigações constitucionais no direito à saúde, tomando-as como obrigações absolutas e precisas quando são, de fato, vagas.

Para o autor, o reconhecimento da saúde (e outros bens complexos similares) como direito constitucional gera um dilema para o processo decisório: se a saúde é um direito constitucional, os tribunais devem responsabilizar os poderes políticos quando não o respeitam, protegem e cumprem; no entanto, como o conteúdo preciso do direito à saúde não é claramente estabelecido pela Constituição, os tribunais não têm um padrão constitucional claro para responsabilizar o Estado e pouca competência técnica para desenvolver tais padrões. Nesse cenário, ao Judiciário assumir a tarefa de correção da falha de governo, ele usurpa as competências do Executivo e do Legislativo e viola o princípio da separação de poderes. Ferraz afirma, ademais, que os tribunais não estão dispostos nem são capazes de incitar o Estado brasileiro para melhorar o núcleo mínimo do direito à saúde.

As duríssimas conclusões da publicação são apoiadas em dados de múltiplas pesquisas sobre os litígios em saúde no Brasil, que não autorizam a narrativa da revolução dos direitos: segundo o autor, poucas ações judiciais contemplaram as prioridades de saúde mais prementes dos pobres, como o acesso à atenção primária. A maioria da demanda judicial esteve muito longe de qualquer concepção plausível de um núcleo mínimo de direitos prioritários para o Sistema Único de Saúde (SUS). Ademais, os custos das decisões judiciais têm sido igualmente crescentes, alcançando 3% do orçamento agregado do setor público de saúde do País.

O autor defende, assim, que as formas menos interferentes do Judiciário podem ser mais atraentes do que as proativas. Se o desenho da política do SUS não é tão ruim, argumenta que não cabe ao Judiciário usurpar o poder decisório do Executivo. Nas palavras do autor, o direito à saúde contribuiu, de fato, para melhorias significativas no bem-estar da população brasileira; no entanto, o principal impulsionador de tais melhorias não foi o litígio, e seus principais atores não foram advogados e juízes.

Em resumo, os interessados em melhorar ainda mais o direito à saúde, no Brasil e em outros lugares onde existam condições semelhantes, devem desviar o olhar dos tribunais e concentrar os recursos na esfera política. Com essa conclusão, o livro ‘Health as a human right’ abre a porta para a necessária compreensão da complexidade dos processos de formação das políticas públicas que envolvem a interação, em contextos nacionais, dos interesses organizados em arenas decisórias e a pactuação social3. Apesar dessa abertura à complexidade do processo de formação das políticas, Ferraz acredita, ainda assim, na possibilidade de aprimoramento dos direitos sociais e de saúde pela ação do Judiciário ao defender a abordagem do ‘núcleo mínimo’ (minimum core) de direitos. Além disso, afirma que as diretrizes constitucionais devem dispor de orientações específicas sobre o que os Estados nacionais devem fazer no campo social.

A indeterminação dos deveres estatais promove o fenômeno da justiciabilidade observado no Brasil. Já a definição de um núcleo mínimo forneceria um patamar intuitivo para a solução do problema do ativismo judicial. Se for possível, argumenta, esculpir um subconjunto preciso de direitos sociais, os Estados estariam sob um dever de respeitá-lo, protegê-lo e cumpri-lo, permitindo aos tribunais nacionais (assim como os internacionais de direitos humanos) maior legitimidade e responsabilidade no exercício da judicialização.

No campo da saúde, a implantação de um pacote básico de serviços foi incentivada, sem sucesso, pelo Banco Mundial nas décadas de 1980 e 1990. A proposta controversa reduzia as funções do setor público de saúde no Brasil à provisão de atenção primária e de ações essenciais de saúde pública aos pobres4. Sabe-se que as necessidades de saúde, em todos os estratos sociais, demandam a disponibilidade de intervenções hospitalares e acesso a medicamentos de alto custo que sofrem um processo de inovação acelerado. Por isso, estabelecer por regra constitucional o núcleo mínimo de direitos em saúde tem sido insustentável em sociedade democrática.

Um olhar menos severo sobre a constitucionalização do direito à saúde no Brasil pode reconhecer que ela faz a diferença na vida de milhões de pessoas ainda que o País permaneça como um dos campeões de iniquidade no setor em razão do subfinanciamento público e da desigualdade territorial. No cenário brasileiro, a judicialização pode estar assumindo a função de instância de alerta para as barreiras de acesso que o atual arranjo do SUS não consegue superar, exigindo um novo impulso reformista das funções da esfera pública. De resto, cabe saudar o notável esforço intelectual do Octávio Ferraz e recomendar a publicação aos profissionais e estudantes da saúde coletiva e do direito.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1 Ferraz OLM. Health as a human right: The politics and judicialisation of health in Brazil. New York: Cambridge University Press; 2020.
  • 2 Costa NR. Austeridade, predominância privada e falha de governo na saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2017; 22(4):1065-1074.
  • 3 Pierson P. Politics in Time. History, Institutions, and Social Analysis. New Jersey: Princeton; 2004.
  • 4 World Bank. Adult Health in Brazil: Adjusting to New Challenges. Washington: World Bank; 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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