Open-access O papel das(os) residentes em saúde para a resiliência da Atenção Básica no contexto da Covid-19

The role of health residents for the resilience of Primary Care in the context of COVID-19

RESUMO

As residências em saúde da família demonstram avanços para o trabalho, sobretudo na Atenção Básica, que no contexto da pandemia da Covid-19 permanece como porta de entrada na rede de saúde. A resiliência de um sistema de saúde se refere à sua capacidade de absorver, adaptar, transformar e se manter funcionante quando submetido a uma crise. Objetivou-se analisar o papel dos residentes em saúde para a resiliência da Atenção Básica no contexto da Covid-19. O estudo, de caráter qualitativo e quantitativo, por meio de questionário on-line autoaplicável, contemplou como sujeitos as(os) residentes em saúde que atuaram na Atenção Básica durante a pandemia. Os dados observaram o perfil das(os) participantes e aspectos relativos à resiliência destas(es). Utilizaram-se o programa Epi Info e a análise temática de conteúdo para a análise dos dados. Participaram 289 residentes, a maioria mulheres, cisgênero, brancas. Identificaram-se as categorias analíticas: Contribuição para a continuidade das ações na Atenção Básica; Capacidade de resposta às necessidades da pandemia; e Inovações assistenciais e educativas. As(os) residentes parecem ter contribuído para a resiliência dos serviços de saúde na Atenção Básica durante a pandemia apesar das suas atividades não terem sido desenvolvidas integralmente, haja vista as limitações estruturais, financeiras, políticas e teórico-práticas.

PALAVRAS-CHAVES Internato e residência; Capacitação de recursos humanos em saúde; Sistemas de saúde; Atenção Básica; Covid-19

ABSTRACT

Family health residencies show advances for work, especially in Primary Care, which in the context of the COVID-19 pandemic remains as a gateway to the health network. The resilience of a health system refers to its ability to absorb, adapt, transform, and remain functional when subjected to a crisis. The objective was to analyze the role of health residents for the resilience of Primary Care in the context of COVID-19. The study, of a qualitative and quantitative nature, through a self-administered online questionnaire, included health residents who worked in Primary Care during the pandemic as subjects. The data observed the profile of the participants and aspects related to their resilience. The Epi Info program and thematic content analysis were used for data analysis. 289 residents participated, mostly women, cisgender, white. The analytical categories were identified: Contribution to the continuity of actions in Primary Care; Responsiveness to the needs of the pandemic; and Assistance and educational innovations. The residents seem to have contributed to the resilience of health services in Primary Care during the pandemic, despite their activities not being fully developed, given the structural, financial, political, and theoretical-practical limitations.

KEYWORDS: Internship and residency; Health human resource training; Health systems; COVID-19

Introdução

As residências em saúde são programas de pós-graduação caracterizados pela educação em serviço a partir da centralidade do trabalho para a formação profissional. Compreender o trabalho como princípio educativo significa realçar seu caráter formativo, destacando a capacidade de produção de meios de vida materiais e simbólicos, de conhecimento e de sociabilidade1.

No Brasil, as primeiras experiências de residência em saúde foram programas de Residência Médica, implementados na década de 1940 sob os moldes norte-americanos, em afinidade com a matriz conceitual do Relatório Flexner. Residências multiprofissionais e/ ou integradas foram pontuais ao longo das décadas de 1970 a 1990, com experiências especialmente nos contextos da medicina preventiva e social, da saúde comunitária e da saúde mental2.

Somente no final dos anos 1990, com o desafio de implementar o Programa de Saúde da Família (PSF), as Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) entraram novamente no debate político. Nesse contexto, elas foram apresentadas como estratégia de contribuição na reorientação do modelo de atenção à saúde3. No entanto, somente a partir de 2002, foram criados os primeiros 19 programas de Residências Multiprofissionais em Saúde da Família (RMSF), a partir de uma articulação entre o Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde (MS) e algumas(ns) articuladoras(es) do movimento sanitário. Porém, a regulamentação das RMS, nas quais se insere a RMSF, só ocorreu a partir da promulgação da Lei Federal nº 11.129/20054, em que se instituiu a Residência em Área Profissional da Saúde como modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu, destinada às categorias profissionais que integram a área de saúde, excetuada a médica5,6.

Segundo Ferreira e Olschowsky7, as propostas das RMS estavam circunscritas na valorização do trabalho multiprofissional, com ampliação do cuidado em rede, superando a centralidade do cuidado biomédico. Nesse sentido, elas têm papel fundamental na formação e na qualificação da(o) profissional da saúde, pois assumem a integralidade do cuidado como ponto-chave e propiciam mudanças no modelo técnico-assistencial, aprofundando o debate teórico-prático no âmbito da saúde coletiva8.

No que diz respeito à RMSF, Flor et al.5, em revisão, identificaram que a construção de um perfil de competências para orientar a formação, a Educação Permanente em Saúde (EPS) e a Educação Interprofissional (EIP) – que se materializa por meio da Colaboração Interprofissional (CIP) – são estratégias visualizadas nessa modalidade de formação.

No contexto da Covid-19, estudos9,10,11 demonstraram mudanças significativas no modelo de organização e regime de funcionamento dos serviços e equipes de saúde. Foram observados aumento da responsabilidade, controle do trabalho e do tempo, jornada laboral alterada, com intensificação da sobrecarga e condições precarizadas de assistência. Além disso, foi identificado que o trabalho durante a pandemia gerou às(ao)s profissionais repercussões emocionais diante das incertezas do momento e medo da contaminação, observando-se uma ameaça à saúde mental da força de trabalho, incluindo residentes.

Apesar dos entraves, principalmente nos momentos iniciais da pandemia, a Atenção Básica permaneceu como a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que se encontra capilarizada pelos territórios e conta com atuação multiprofissional para a assistência, desde a prevenção até o cuidado dos casos suspeitos e confirmados de Covid-19. Nesse contexto, as(os) residentes compunham as equipes de saúde, atuando na resolutividade de casos sintomáticos leves e encaminhamento adequado dos casos graves para assistência em alta complexidade.

Nessa perspectiva, os programas foram importantes parceiros para qualificar, inovar e permitir uma ação resiliente do SUS no enfrentamento da Covid-198.

Sobre a resiliência relacionada com os sistemas de saúde, Blanchet et al.12(432) se referem

À capacidade de absorver, adaptar-se e transformar-se quando submetido a um choque, como uma pandemia, desastre natural ou confito armado e ainda assim manter o mesmo controle em suas estruturas e funções.

A capacidade de absorção diz respeito à competência de um sistema de saúde em proteger a população e ofertar o mesmo nível, em quantidade, qualidade e equidade, de serviços de saúde anteriores ao choque. A capacidade adaptativa refere-se à característica de os sujeitos que compõem o sistema de saúde – profissionais e gestoras(es) – fornecerem serviços de saúde de qualidade e quantidade adequadas com menos e/ou recursos diferentes. A capacidade transformadora, por sua vez, trata da aptidão dessas(es) em transformar suas funções e as dos serviços, bem como as estruturas físicas, organizacionais, financeiras, entre outras do sistema de saúde, para responder às mudanças. De forma geral, a resiliência dos sistemas de saúde é fundamental para garantir a continuidade da saúde das populações, especialmente as pobres e vulnerabilizadas12. Assim, no cenário pandêmico, demonstra-se essencial para a estrutura e o funcionamento da atenção à saúde.

Nas análises sobre a resiliência dos sistemas de saúde, a força de trabalho em saúde é um componente fundamental. Aspectos como planejamento, formação e organização dessa força devem ser observados em momentos de crise do sistema de saúde, devendo ser desenvolvidas estratégias de financiamento e governança. Contudo, ainda é necessária a ampliação de estudos que destaquem o papel da força de trabalho para obtenção da resiliência dos sistemas13.

A Atenção Básica tem lugar fundamental para a resiliência dos sistemas de saúde devido ao gerenciamento de riscos e ao desenvolvimento de ações mitigatórias em nível local, com governança que também articule a participação das comunidades no enfrentamento das situações14.

Este estudo apresenta, portanto, uma análise da contribuição da força de trabalho para a resiliência dos sistemas de saúde. As residências em saúde, enquanto estratégia de formação e provimento profissional, devem ser analisadas em sua contribuição na resposta do SUS à pandemia.

Material e métodos

Este estudo contou com abordagens qualitativa e quantitativa e integrou uma pesquisa exploratória intitulada ‘Condições de saúde e práticas de cuidado dos residentes em área profissional da saúde no contexto da pandemia da Covid-19’. O percurso metodológico abarcou uma coleta de dados realizada de forma on-line por Web Surveys, por meio de um questionário autoaplicável na plataforma Google Forms, que continha 50 perguntas – sendo 33 fechadas de múltipla escolha e 17 abertas, que exigiam resposta textual pela/o residente. O público-alvo da pesquisa foram residentes que estavam vinculadas(os) a algum programa de residência (médica, uni ou multiprofissional) no período de março de 2020 a 30 de abril de 2021. Participaram da pesquisa citada acima 791 residentes.

Entre as perguntas fechadas do formulário, neste estudo, foi feito um recorte a partir da questão que interrogava o principal serviço de atuação da(o) residente. Este conta com as respostas daquelas(es) que indicaram ter a ‘Atenção Básica’ (289) como principal serviço de atuação. Esse número não pretendeu ser estatisticamente representativo do universo dos programas de residência em Atenção Básica do Brasil, mas conta com respondentes de todas as regiões do País.

Os dados analisados se referem ao perfil de participantes e aos aspectos relacionados com a resiliência das(os) residentes no contexto da pandemia da Covid-19. O perfil foi composto por perguntas de múltipla escolha (Pergunta 1- categoria profissional; Pergunta 2- identidade de gênero; Pergunta 3- raça/cor; Pergunta 4- idade; Pergunta 8- renda familiar; Pergunta 9- modalidade de programa de residência; Pergunta 14- região do programa; Pergunta 27- sintomas clínicos; e Pergunta 28- diagnóstico para a Covid-19). Os aspectos relativos à resiliência das(os) residentes no contexto da pandemia da Covid-19 são oriundos das perguntas abertas textuais (Pergunta 32 e 32.1-contribuição dos programas de residência para os serviços de saúde no contexto da pandemia; Pergunta 33 e 33.1- inovações que foram implantadas nos programas de residência a partir do contexto da pandemia; Pergunta 38 e 38.1- avaliação da capacidade de resposta das(os) residentes às necessidades de saúde da população colocadas pela pandemia).

Tendo em vista que o questionário abarcou diferentes dados (quanti e qualitativos), os dados quantitativos foram analisados de forma descritiva por meio de frequências e percentuais gerados no programa Epi Info versão 7.2.4.0. Já os dados qualitativos, das questões abertas, foram analisados por intermédio da técnica de análise temática de conteúdo, visto que utilização de temas propicia perceber e aprofundar os diferentes significados das respostas15.

Para a análise do conteúdo, feita manualmente, foram realizados a leitura das respostas às questões abertas, a identificação das temáticas abordadas pelos residentes e o agrupamento das temáticas em categorias analíticas. Essas foram: Contribuição para a continuidade das ações na Atenção Básica; Capacidade de resposta às necessidades da pandemia; e Inovações assistenciais e educativas.

Foram respeitados os princípios éticos conforme as Resoluções nº 466, de 12 de dezembro de 2012, e nº 510, de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde; e as orientações para pesquisas mediante ambiente virtual contidas na Carta Circular nº 1/2021-Conep/ SECNS/MS. As(os) participantes tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), anexado ao formulário on-line, que exigia leitura prévia e marcação obrigatória de consentimento para que as questões fossem exibidas. O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz) sob parecer nº 4.561.066. A pesquisa foi financiada pela Fiocruz-Proep/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Resultados e discussão

Os resultados e a discussão da pesquisa serão apresentados em dois eixos: a) perfil das(os) residentes em saúde da Atenção Básica, oriundos dos dados quantitativos; e b) atuação das(os) residentes em saúde como dispositivos de fortalecimento da resiliência na Atenção Básica, eixo que contempla os dados qualitativos que compuseram as categorias temáticas.

Perfl das(os) residentes em saúde da Atenção Básica

Conhecer quem são e como se identificam as(os) residentes da Atenção Básica, neste estudo, colabora para conhecer, de forma geral, as(os) residentes do País e o potencial de ação desse grupo de profissionais no SUS. Contribui também para a compreensão dos marcadores sociais das(os) residentes. Ademais, fomenta a importância de construir estratégias e políticas de diminuição da desigualdade de acesso aos programas de residência.

O perfil das(os) participantes é apresentado na tabela 1, por meio das principais variáveis relacionadas.

Tabela 1
Perfil dos residentes em saúde participantes da pesquisa segundo categoria profissional, identidade de gênero, raça/cor, idade, renda familiar, modalidade de programa de residência, região do programa, sintomas e diagnóstico para a Covid-19

Observou-se que 74,39% (215) das(os) residentes se identificaram como mulher cisgênero, com faixa etária entre 25 e 39 anos (71,62%, 207), e 50,86% (147) se autodeclararam como brancas(os) no quesito raça/cor. Em relação à renda familiar mensal, 50,86% (147) das(os) participantes indicaram ser de 2 a 4 salários mínimos (considerando R$ 1.087,84 como valor base). Dentre as categorias profissionais da saúde, destacou-se a categoria de enfermagem com 23,53% (68) das(os) participantes. De maneira geral, o perfil encontrado se assemelha aos encontrados em outros estudos no campo das residências em saúde, com destaque para os programas multiprofissionais16,17,18.

É importante mencionar a feminização das profissões de saúde, dentre as quais se destaca a de enfermagem, que historicamente tem sido relacionada com o papel de cuidar, servir e educar atribuído socialmente às mulheres. Tal cenário faz parte do que se pode chamar de divisão sexual do trabalho, na qual as categorias trabalho produtivo e reprodutivo, gênero, validade e poder se intercruzam19.

A faixa etária predominante das(os) participantes, assim como em outros estudos, reflete uma jovialidade desse recorte da força de trabalho em saúde por, em grande parte, representar uma continuidade da formação após a graduação, bem como a busca do aperfeiçoamento e/ou especialização teórico-prática, representando, com isso, o início da carreira profissional20.

Os dados no quesito raça/cor – com 50,86% (147) se autodeclarando brancas(os) – corroboram a literatura21,22. No entanto, quando ocorre a condensação de parda(o) e preta(o), equivale a 46,01% (133) das(os) respondentes. O menor percentual de residentes pretas(os) e pardas(os) pode representar um reflexo do menor acesso da população negra ao ensino de graduação e pós-graduação, situação acrescida quando se refere ao acesso a programas de especialização22, nível de ensino no qual pouco se identificam cotas raciais para acesso.

Outro ponto analisado foi o acometimento por sintomas da Covid-19. Apesar de 65,74% (190) apontarem que apresentaram sintomas compatíveis com quadro da Covid-19, a maioria não teve diagnóstico confirmado. Esses dados podem subsidiar a reflexão sobre a grande lacuna, ocorrida no primeiro ano da pandemia, da testagem de profissionais de saúde, sobretudo as(os) atuantes na Atenção Básica. Naquele momento, quando não havia testes largamente disponíveis e autotestes, a ausência do diagnóstico da doença foi situação comum que reduziu o número de casos notificados e que provavelmente aumentou a transmissão. A baixa oferta de testes prejudicava, naquele período, as ações de vigilância em saúde e a oferta de cuidado às(aos) profissionais e usuárias(os). Atualmente, o acesso aos testes foi ampliado, inclusive, com venda de autotestes em farmácias.

Atuação das(os) residentes em saúde como dispositivo de fortalecimento da resiliência na Atenção Básica

A partir da relação entre o trabalho das(os) residentes durante o período pesquisado e as categorias utilizadas por Blanchet et al.12 para avaliar a resiliência dos sistemas de saúde – capacidade de absorção, capacidade de adaptação e capacidade de transformação –, neste estudo, foram identificadas as seguintes categorias analíticas: Contribuição das(os) residentes em saúde para a continuidade das ações da Atenção Básica; Capacidade de resposta às necessidades da pandemia; e Inovações assistenciais e educativas.

A primeira categoria, ‘Contribuição das(os) residentes em saúde para a continuidade das ações da Atenção Básica’, faz analogia ‘à capacidade de absorção’, como definido por Blanchet et al.12, ou seja, à capacidade de continuar a oferecer o mesmo nível de serviços apesar do choque sofrido.

Sobre a contribuição do programa de residência para os serviços da Atenção Básica no contexto da pandemia, 85,12% (246) das(os) residentes em saúde da família alegaram identificar contribuições no período analisado, 7,27% (21) não identificaram contribuições e 7,61% (22) preferiram não responder. Dentre as(os) que responderam afirmativamente, destacaram-se os seguintes aspectos: residentes em saúde como reforço da força de trabalho; continuidade do cuidado aos grupos populacionais prioritários da Atenção Básica; reorganização do processo de trabalho para a continuidade do cuidado.

No que se refere às(aos) residentes como reforço da força de trabalho, parte das(os) participantes destacou sua importância para que os serviços da rede de saúde pudessem se manter cuidando da população, bem como ampliar as ações diante da sobrecarga de trabalho causada pela pandemia, conforme as falas abaixo:

Nós fomos de suma importância para nosso campo de trabalho e para nossas equipes. Fomos suporte, assumimos funções que outros profissionais precisaram se afastar, e a demanda de trabalho aumentou muito com a pandemia. (Residente 1).

Nós éramos as principais responsáveis pelo funcionamento do serviço. (Residente 2).

Nesse cenário, algumas(ns) residentes destacaram a sua contribuição profissional em territórios historicamente precários em termos de assistência à saúde, tais como populações ribeirinhas e do campo.

Trabalho em uma UBS rural com apenas uma equipe mínima de saúde da família, que com a pandemia teve atestados e afastamentos constantes dos profissionais concursados. Eu como residente de enfermagem frequentemente assumi parte ou totalmente o atendimento, e meus colegas residentes não enfermeiros contribuíram pro fluxo da unidade (acolhimento, organização da farmácia etc.). Além disso, a presença de profissionais residentes que antes não existiam na UBS (psicólogo, farmacêutico, nutricionista, assistente social, dentista) possibilitaram o atendimento de novas demandas na atenção básica. (Residente 3).

Auxiliando no atendimento aos pacientes na APS. Fomos treinados para coletar RT-PCR e realizar testes rápidos para diagnóstico de Covid-19 das populações ribeirinhas quando viajamos na Navio-hospital-escola [nome do navio]. Auxiliamos nas atividades da Central de Abastecimento Farmacêutica, Farma [universidade e laboratório]. Eu tive a oportunidade de atuar na secretaria estadual de saúde inserindo dados no Sivep gripe, no sistema de monitoramento e no banco de dados local. Também fui tutora de um curso sobre o processo de trabalho na APS em tempos de Covid-19. (Residente 4).

A partir das falas apresentadas, identificou-se que as(os) residentes ofereceram reforço à força de trabalho na Atenção Básica, estando inseridas(os) em diversos cenários de prática. Sobre a presença das(os) residentes em territórios rurais e ribeirinhos, a presença delas(es) pode ter contribuído para amenizar a má distribuição de profissionais nas regiões do País durante a pandemia.

Sabe-se que a capacidade de resiliência dos sistemas de saúde para responder às situações de crises sanitárias é influenciada pelas condições estruturais anteriores ao cenário de crise. Vale salientar que a pandemia da Covid-19 agravou o quadro crônico de sobrecarga dos serviços da Atenção Básica23, na qual se vivencia um desmonte das equipes multiprofissionais dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família (Nasf )24 – aliado ao subfinanciamento estrutural e à intensificação de medidas de austeridade fiscal que precarizam cada vez mais o cuidado em saúde e as condições de trabalho das(os) profissionais.

Em contrapartida, as RMSF têm possibilitado a inserção de profissionais de diversas categorias na Atenção Básica, o que possibilita a renovação das práticas assistenciais e a sustentabilidade do cuidado desde os princípios do SUS. A insuficiência prévia do número de profissionais nos serviços pode ser ilustrada na fala a seguir.

Bem, durante a pandemia, [nome de um município] contava com 40% das USFs sem médicos/ outros profissionais. Nós residentes fomos e somos forças indispensáveis para o combate à pandemia. (Residente 5).

Nesse sentido, estudos têm destacado a relevância dos programas de residência como estratégia de provimento de força de trabalho em saúde no País diante do enfrentamento da pandemia25,26. Em contrapartida, a despeito da relevância das(os) residentes nesse reforço, as residências também podem ser analisadas como manifestação da precarização do trabalho em saúde. As(os) residentes foram submetidas a extensas jornadas de trabalho, sob pressão e insegurança. Em algumas situações, como indicado em falas de residentes, assumiram atividades sozinhas(os), sem preceptoras(es) e sentiram-se ‘tapando buracos’ diante da insuficiência do número de trabalhadoras(es)27.

Mão de obra barata, que não pode tirar atestado sem pagar as horas depois. Em alguns serviços, isso ajudou a não ter um déficit grande de profissionais, dado que muitos tiraram licenças ou ficaram de atestado por grandes períodos, e o residente, devido à sua condição subalternizada, cobria esse déficit de certa forma. (Residente 6).

Outra temática identificada na análise fala da reorganização do processo de trabalho para continuidade do cuidado. Profissionais residentes de saúde da família relataram ter sido deslocadas(os) dos seus principais campos de prática e inseridas(os) em outros dispositivos da rede. Indicaram ter sido alocadas(os) nas barreiras sanitárias, vigilância epidemiológica, drive-thru de testagem, call center/teleatendimento, entre outros.

Durante boa parte do ano passado, os residentes do programa de Medicina e do programa Multi foram direcionados para ajudar no call center do município. Não tenho dúvidas em dizer que essa ajuda foi essencial pro funcionamento do call center e pela criação/iniciativa de algumas mudanças que contribuíram pra fluidez e resolutividade no trabalho. Além disso, diante da grande quantidade de profissionais do grupo de risco que foram afastados de suas unidades, o trabalho dos residentes nas unidades foi de extrema importância. (Residente 7).

A maioria dos residentes foi realocada de forma a contribuir nesse momento de pandemia, eu estou lotada 3x na semana em uma unidade sentinela (uma UBS reorganizada para atender apenas casos de Covid) e 2x na semana fico na UBS atuando em equipe Nasf. (Residente 8).

A mudança da organização da atenção à saúde é uma das estratégias para a resiliência dos sistemas de saúde. Pode compreender o deslocamento de profissionais para novas áreas de atuação, a criação de novos serviços na rede, ou mesmo a reorganização de estruturas já existentes13. No Brasil, perceberam-se processos de reorganização dos processos de trabalho e das redes de atenção à saúde, contudo, estudos indicaram uma frágil coordenação do MS nesse processo, particularmente referente à Atenção Básica. As produções do órgão priorizaram as estratégias de detecção e notificação dos casos, deixando em segundo plano o apoio técnico das equipes, a difusão de informações preventivas corretas, o combate às fake news, a conscientização da população ou o estabelecimento de fluxos de informação com outros pontos da rede28.

No caso das(os) residentes, os movimentos de reorganização do processo de trabalho denotam a necessidade de flexibilidade e adaptação dos programas às demandas de saúde. No primeiro ano de pandemia, havia necessidades urgentes em determinados contextos, que demandaram deslocamento massivo de profissionais para outras funções prioritárias. Isso leva a refletir sobre a linha tênue entre o desvio de função da(o) residente e a alocação de recursos humanos diante da necessidade. Cabia aos programas desenhar estratégias para que essas novas atividades fossem realizadas pelas(os) residentes com apoio pedagógico e que se alinhassem ao princípio da educação pelo trabalho, sem perder de vista o caráter formativo das residências, devido ao risco de se utilizar das(os) residentes como forma de tamponar lacunas e precariedades da rede de saúde.

Por fim, a última temática dessa categoria analítica tratou da continuidade do cuidado aos grupos populacionais prioritários da Atenção Básica. As(Os) residentes trouxeram as estratégias utilizadas para não serem descontinuados os cuidados aos grupos populacionais que apresentam condições crônicas de saúde ou em ciclos de vida específicos, conforme ilustrado a seguir:

Mantivemos o serviço da atenção básica totalmente ativo durante toda a pandemia para demandas agudas e crônicas! (Residente 9).

Prestando cuidado aos idosos com doenças crônicas que estão impossibilitados de irem até os serviços de saúde. Testagens para Covid, orientação dos usuários quanto às formas de contágio e prevenção, permaneceu com o atendimento de gestantes, puericultura, acolhimento aos usuários com outras demandas. (Residente 10).

Estudos têm indicado redução do uso da Atenção Básica durante a pandemia. Os efeitos de tal quadro são visíveis a partir da queda no número de procedimentos, rastreios, diagnósticos e consultas médicas, que caíram 42,5%, 28,9% e 41,2% respectivamente. Assim, quando na fala das(os) residentes são identificados os esforços para a continuidade do cuidado aos grupos prioritários, é possível perceber um compromisso com os cuidados primários à saúde.

Quanto à categoria ‘Capacidade de resposta às necessidades de saúde da população’, 8,65% (25) das(os) residentes avaliaram como muito boa; 23,18% (67), como boa; 16,6% (48), satisfatória; 34,95% (101), satisfatória, mas poderia melhorar em alguns aspectos; 14,18% (41) acharam que foi insatisfatória e que poderiam melhorar em alguns aspectos; e 2,42% (7) preferiram não responder.

Em relação às respostas positivas, as(os) residentes apresentaram as seguintes temáticas: a capacidade de reorganização para responder às necessidades de saúde da pandemia; o desenvolvimento de novas habilidades e conhecimentos; a realização de ações preventivas e de educação em saúde e vacinação; a articulação de ações de vigilância da Covid-19 no território e monitoramento dos casos suspeitos e confirmados; e as ações de EPS (atualização das(os) profissionais sobre a pandemia e construção de fluxos e protocolos).

As(os) residentes destacaram a capacidade de reorganização dos serviços de saúde para garantir o cuidado diante das necessidades de saúde na Covid-19 apesar da insuficiência de recursos e estrutura. Destacaram também que a atuação profissional durante a pandemia possibilitou o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos de maneira a garantir um cuidado integral em cenários de prática diversos, conforme a fala abaixo:

Aprendemos a lidar com uma situação extremamente atípica, entramos já com muito mais responsabilidades do que seria em uma situação normal. Tivemos uma experiência muito importante na vigilância em saúde antes das atividades na APS, o que desde o início nos tornou referências ao entrar nas unidades. As aulas, mesmo que remotas, possibilitaram trazer pautas para além do covid, mas também que conversavam com o tema, trazendo uma visão bastante ampla a ser aplicada neste momento. (Residente 11).

Referente à prevenção e à educação em saúde, as(os) residentes indicaram ações voltadas para a disseminação de informações sobre o vírus, sua transmissão e medidas de prevenção, além de produção de material de comunicação em linguagem acessível e de desvinculação de fake news e orientações quanto aos direitos sociais como, por exemplo, o auxílio emergencial.

Realizando ações de educação em saúde buscando produzir saúde a partir da difusão de informações de fonte segura e linguagem acessível a realidade dos territórios (Projeto Campo/Quilombo Comunica), articulações políticas nos territórios para garantia de testes para a zona rural, participando de ações de testagem e monitoramento de casos, ações de educação permanente com as Equipes de Saúde da Família onde também desenvolvemos o espaço ‘Cuidando do cuidador’ na tentativa de contribuir com os profissionais de saúde no seu próprio cuidando diante desse contexto tão difícil, atendimentos e elaboração de projetos interprofissionais para cuidado principalmente em saúde mental, elaboração junto a secretaria de saúde e lideranças locais o plano de vacinação para as comunidades Quilombolas. (Residente 12).

A vigilância e o monitoramento da Covid-19 nos territórios foram realizados pelas(os) residentes por meio da busca ativa às pessoas com sintomas respiratórios, do monitoramento dos casos suspeitos e confirmados, da realização de testagem e da sistematização dos dados epidemiológicos.

Tivemos bastante experiência em atender casos suspeitos e confirmados, tendo conhecimento do fluxo e protocolos de encaminhamentos. (Residente 13).

As estratégias de educação e vigilância em saúde na Atenção Básica se mostraram fundamentais para a formulação de respostas à pandemia de Covid-19. A base territorial e a inserção comunitária desse nível de atenção permitiram uma melhor análise e interpretação dos riscos e vulnerabilidades das pessoas e comunidades. Destaca-se, na literatura, a relevância da produção de informações contextualizadas com o cenário sanitário e articuladas aos diversos dispositivos sociais presentes nos territórios28.

É importante destacar as atividades de EPS dentre as contribuições indicadas pelas(os) residentes, como: ações voltadas para atualização e compartilhamento de informações às(aos) profissionais das equipes de saúde sobre a Covid-19 e os seus mecanismos de transmissão, bem como uso correto dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI).

Rodas de conversa acerca de EPIs, protocolos... ajustes de logística e organização de departamentos separados entre demandas diversas e covid. Manejos em vários casos. (Residente 14).

Organização do fluxo do serviço de saúde pelo programa de residência. Orientação aos servidores, organização do processo de testagem e execução. (Residente 15).

No que se refere à capacidade de impactar nos processos de trabalho das equipes de saúde, os achados desta pesquisa convergem com estudos anteriores que ressaltam que a presença da residência aumentou a capacidade da equipe de resolver e/ou enfrentar os problemas de saúde das(os) usuárias(os)29. Também foi apontada como um avanço no trabalho em equipe multiprofissional, tanto pela inserção de profissionais de diferentes áreas quanto pela sua prática nas unidades de saúde.

Outro aspecto relacionado com a EPS diz respeito às ações para reorganização do processo de trabalho das equipes. A pandemia da Covid-19 exigiu dos serviços a implantação de novos protocolos e fluxos assistenciais, e as(os) residentes indicaram ter participado da formulação e implantação desses. No entanto, ao destacarem tais ações, as(os) residentes apontaram pouco direcionamento das gestões locais e nacional nesse processo, requerendo esforços solitários das equipes de saúde na revisão e adaptação de seus processos de trabalho.

Entre as(os) residentes que indicaram que poderiam ter tido uma capacidade de resposta melhor e as(os) que indicaram uma capacidade de resposta insatisfatória, foram apresentadas como limitações: a suspensão, em alguns serviços, do atendimento às(aos) usuárias(os) com problemas crônicos de saúde, bem como ações de promoção à saúde como a atividade física; a fragilidade de ações de cuidado em saúde mental para a população e profissionais; e a insuficiências de recursos humanos e materiais. Também foram apresentadas críticas à condução das ações voltadas pela Covid-19 pelo governo federal, o que dificultou o direcionamento na organização da rede de saúde, a exemplo das seguintes falas:

Os próprios serviços não dialogam sobre um monitoramento da população desejado, não fomenta espaços de controle social ou há uma abertura para se falar de saúde mental, assim como outras consequências associadas à pandemia. (Residente 16).

Precisa de melhorias a nível nacional, mais investimento em pesquisa, acesso a vacinas e campanhas de conscientização e não antivacina. (Residente 17).

Enfatizou-se a fragilidade de respostas pela Atenção Básica no que se refere aos impactos sociais e econômicos decorrentes da pandemia na população, tais como desemprego, fome, violência doméstica. A interrupção, em alguns casos, de serviços de proteção social dificultou a capacidade de articulação intersetorial das equipes de saúde da família.

Para o serviço social, o desafio foi duplo: lidar com a demanda que já era nossa na saúde e com demandas que não estavam sendo atendidas nas outras unidades da rede, em especial na política de assistência social, pois os Cras e Creas estavam fechados. Ainda assim, conseguimos nos organizar para realizar atendimentos que fugiam do nosso leque de intervenções, visando prestar melhor assistência à população nesse período onde há poucos lugares onde se possa recorrer. (Residente 18).

Vê-se, portanto, que as(os) residentes foram capazes de contribuir positivamente, desenvolvendo ações diversas com ênfase na assistência, na prevenção e na vigilância, além de suporte às(ao) profissionais das equipes de saúde. Todavia, tais ações enfrentaram desafios relacionados com os níveis local e nacional.

Na terceira categoria analítica, ‘Inovações nos programas de residência diante da pandemia’, as(os) residentes foram questionadas(os) se ocorreram inovações nos seus programas, em que 40,83% (118) das(os) residentes avaliaram que elas não ocorreram; 12,11% (35) preferiram não responder; e 47,05% (136) identificaram que existiram. Destas(es) últimas(os), foram identificados temas relacionados com: alterações nas atividades educativas/pedagógicas dos programas, uso de tecnologias digitais para a assistência, ações de educação e comunicação em saúde, reorganização de protocolos de fluxos assistenciais e novos campos de atuação profissional.

Inovações nas atividades educativas/pedagógicas, por sua vez, foram especialmente vinculadas à implementação da modalidade da educação a distância e o uso da tecnologia como ferramenta de aprendizagem. Houve adaptação de aulas teóricas e reuniões para o modelo remoto e o aprofundamento do uso de redes sociais para a comunicação entre residentes, preceptoras(es) e tutoras(es). Assim como em todos os níveis de formação, o processo pedagógico dos programas de residências precisou se adaptar a formatos de ensino até então pouco utilizados, o que, para a maioria das(os) participantes, representou um avanço. Nessa mesma compreensão, no estudo de Oliveira et al.30, a maioria das(os) residentes considerou positivo o remanejamento da carga horária prática para atividades em estudo autodirigido visto que permite repensar suas práticas, realizar cursos para qualificação, dedicar-se ainda mais aos estudos, desenvolver pesquisas, diminuir a transmissão do vírus e o risco de contaminação devido à diminuição da exposição nos espaços presenciais, entre outros. No entanto, Costa31 refere que, apesar da necessidade, uma formação qualificada e o desenvolvimento de habilidades requerem atividades práticas, representando, portanto, uma lacuna na formação.

Nessa mesma perspectiva, os serviços precisaram construir novos fluxos assistenciais e reorganizar os seus processos de trabalho de acordo com as realidades locais. Para algumas(ns) residentes do estudo, sua participação foi essencial e indutora de alguns desses processos de mudança, demonstrando, com isso, o papel transformador da residência. Dentre tais alterações assistenciais e de fluxo, destacaram-se o atendimento e o acompanhamento das(os) usuárias(os) na modalidade a distância, por meio do teleatendimento e dos grupos em redes sociais. Esses movimentos apontam o aspecto positivo da incorporação de tecnologias no cuidado em saúde, e a reorganização dos processos de trabalho é uma das dimensões necessárias à resiliência de um sistema de saúde32. Uma fala exemplifica essa compreensão:

Rodas de núcleo e de campo telepresenciais, tele-monitoramento de pacientes crônicos e gestantes foi uma excelente ferramenta, acho que pode ser mantida em casos específicos. (Residente 19).

Ações de educação e comunicação em saúde também apareceram como inovações, executadas por meio de capacitações, grupos online, combate às fake news, bem como citaram aproximação com as(os) usuárias(os) por meio de tecnologia.

Sobre a questão, Lopes et al.33, em revisão, apontam que o telemonitoramento contribuiu de maneira ímpar para a garantia de assistência e a oferta de informação com maior segurança e eficácia, com engajamento positivo do teleatendimento na Atenção Básica para o rastreamento e o monitoramento dos casos sintomáticos. Por outro lado, um estudo realizado com médicas(os) residentes de Nova York levantou a falta de treinamento adequado para uso dessas ferramentas de assistência, resultando em maior insegurança, em especial nos momentos iniciais da pandemia34.

Outra lacuna foi o acesso à internet e a aparelhos telefônicos compatíveis com a demanda de uso. Apesar da ampla utilização das redes sociais e da internet pela sociedade, não se pode atribuir como verdade que todas(os) têm acesso garantido à tecnologia, principalmente quando se fala de pessoas mais velhas e em situação de vulnerabilidade econômica. Segundo a pesquisa TIC Domicílios 201935, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, três a cada quatro brasileiras(os) utilizam a internet; porém, 20 milhões de domicílios (28%) não possuem conexão, realidade que afeta especialmente famílias com renda de até um salário mínimo (45%). Dessa forma, apesar do importante papel da telemedicina no cuidado em saúde, especialmente em cenários de isolamento social, a relação presencial profissional-usuário(a) não pode ser totalmente substituída, seja por questões econômicas, sociais e/ou afetivas.

Ademais, acerca dos novos campos de atuação dentro do próprio serviço, para Santos et al.11, apesar de a atividade núcleo de cada categoria ser essencial, a alocação para outras atividades permitiu uma maior interação entre a equipe, induziu a construção de novos saberes e a renovação do fazer em saúde. Nesse mesmo sentido, Cavalcante et al.8 observaram o aumento da coesão dentro da equipe, com o desenvolvimento de novas práticas a partir do diálogo entre as profissões, técnicas(os) e gestoras(es), potencializando o trabalho inter-profissional. Isso que revela a necessidade de diálogos permanentes no cotidiano do serviço, que se fortaleceram no curso da pandemia. No entanto, também foi identificada a resistência de algumas(ns) residentes que mudaram suas funções para a gestão dos casos, de monitoramento e vigilância epidemiológica, pois esse deslocamento desencadeou um distanciamento das atividades de contato direto com as(os) usuárias(os) e suas rotinas, levando a um estranhamento e sensação de não pertencimento. Por isso, como apontam as(os) autoras(es), tal processo de mudança necessita ser acompanhado pelas(os) preceptoras(es) e tutoras(es) e ser reflexivo para que não interfira negativamente no processo formativo e de cuidado.

Diante desses aspectos, as inovações reconhecidas pelas(os) residentes fomentaram novos conhecimentos, desenvolvimento de habilidades e ressignificação da experiência na residência. Tais elementos são fundamentais tanto ao processo de trabalho e formação quanto à resiliência do SUS, a fim de garantir o cuidado em saúde de forma qualificada e contextualizada com situações de emergência em saúde.

Considerações finais

A partir dos conteúdos trazidos pelas(os) residentes, foi identificado que elas(es) contribuíram positivamente para a continuidade das ações de Atenção Básica, diminuindo a interrupção dos cuidados ofertados, elemento relacionado com a capacidade de absorção dos sistemas de saúde. A principal contribuição indicada foi o reforço ao quantitativo da força de trabalho pelas(os) residentes, tendo possibilitado um menor déficit de profissionais durante a pandemia.

Quanto à capacidade de resposta, pôde-se observar que as(os) residentes, de forma geral, integraram-se aos serviços enquanto força de trabalho para responder às necessidades de saúde apontadas no contexto específico da pandemia, a exemplo de ações de educação em saúde, de vigilância em saúde, de EPS. Outrossim, vivenciaram particularidades nos diferentes cenários de prática quanto às ações desenvolvidas.

Em relação aos aspectos formativos e de EPS, identificou-se que a reorganização das ações para responder às necessidades fomentou o desenvolvimento de novas habilidades e conhecimentos pelas(os) profissionais, o que também se articula à capacidade de adaptação dos sistemas de saúde.

Em relação às inovações ocorridas diante da pandemia, que dialogam com a capacidade de transformação de um sistema de saúde, foi observado que as(os) residentes consideram a incorporação de tecnologias digitais, tanto nas atividades pedagógicas quanto nas assistenciais, como uma inovação positiva. O uso das tecnologias no contexto da saúde tem se expandido, e as(os) residentes visualizaram uma potência nisso, bem como vislumbram que algumas dessas incorporações deveriam ser mantidas a longo prazo.

Além disso, também foram contempladas experiências inovadoras, como atuação em serviços, setores e atividades diferentes, o que produziu novos conhecimentos e ressignificação da experiência da residência no cenário pandêmico.

Diante do exposto, os elementos supracitados refletem como a atuação das(os) residentes foi importante para a resiliência da Atenção Básica diante da pandemia e reafirmou o papel estratégico das residências em saúde no SUS, pois essas, significativamente, contribuíram para qualificar e inovar a capacidade de resposta na prevenção e no tratamento da Covid-19. Ademais, este estudo teve importância para compreender o desenvolvimento dos programas na pandemia, os desafios e potencialidades encontrados, bem como possibilitou espaço de registro da memória desse fenômeno.

Vale destacar a necessidade de seguir investindo em pesquisas acerca das residências e dar visibilidade à realidade vivida pelas(os) residentes, como forma de ampliar o debate, fortalecer a política de residências e garantir processos educativos socialmente referenciados, em condições dignas de trabalho e com saúde para as(os) residentes e demais segmentos envolvidos.

O desenho metodológico do estudo, questionário on-line autoaplicável, tem como limitações não permitir o aprofundamento das respostas às perguntas abertas, bem como a participação voluntária dos residentes.

Como apontamentos para estudos posteriores, indica-se continuar a investigação sobre o cotidiano de trabalho e a formação dos residentes, com o objetivo de fortalecer e aprimorar as ações relacionadas com a contribuição da força de trabalho para resiliência do Sistema de Saúde, enfocando, por exemplo, outros atores envolvidos, preceptores, gestores, tutores e população.

  • Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – financiamento da pesquisa Observatório das Residências Multiprofissionais da Saúde do estado de Pernambuco: estratégia de avaliação dos programas na perspectiva da Educação Permanente. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – por meio do financiamento de bolsas de mestrado e doutorado
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2022
  • Aceito
    28 Fev 2023
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