EM SETEMBRO DE 2023, O III GOVERNO LULA lançou a Nova Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis), com previsão de investimentos em torno de R$ 42 bilhões, oriundos de recursos privados e públicos, até 2026. O objetivo da iniciativa é produzir localmente 70% dos medicamentos e insumos básicos utilizados no setor saúde e reduzir o déficit comercial do País. A proposta tem a participação de 11 Ministérios, coordenados pelas pastas da Saúde e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, além de nove órgãos e instituições públicas. A repercussão foi inesperadamente positiva, mesmo na imprensa avessa às políticas indutivas de governo, em razão da elevada dependência externa da oferta de insumos para o setor saúde revelada pela pandemia da Covid-191. Como sinalizado durante a campanha eleitoral, a nova coalizão governo aposta na reindustrialização da economia brasileira e a proposta do Ceis ganhou centralidade na política pública de inovação e difusão tecnológica.
Nesse cenário, é obrigatório o convite à leitura da coletânea ‘Saúde é Desenvolvimento: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde como opção estratégica nacional’, que reúne um conjunto amplo e diversificado de artigos de mais de 40 autores, majoritariamente economistas, que advogam que o Ceis dará um novo sentido à reindustrialização nacional para gerar “inclusão, acesso aos bens públicos e à defesa do meio ambiente”2(247).
O livro defende que somente o fortalecimento do Ceis pode promover a sustentação do modelo de seguridade social proposto pela Constituição Federal de 1988 (CF/1988) e a redução da vulnerabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). O Ceis também pode ser um vetor da estratégia nacional de desenvolvimento, articulando a reconstrução da economia nacional com o desenvolvimento social, a ciência, a tecnologia e a inovação, além da sustentabilidade ambiental. A política pública para o Ceis será igualmente decisiva para “a geração de empregos dignos, de qualidade e inseridos nas mudanças tecnológicas em curso no mundo do trabalho”2(29).
A publicação detalha a agenda do Ceis em cinco grandes blocos temáticos 1) Estado, território e ambiente; 2) Dinâmica competitiva e de inovação e os desafios para o acesso à saúde no Brasil; 3) Macroeconomia para o desenvolvimento do Ceis; 4) O mercado de trabalho em saúde; e 5) O Ceis como paradigma de uma nova geração de políticas públicas.
Uma das fortalezas da publicação é o tratamento da especialização regressiva, da dependência tecnológica e do papel do Estado. São destacados os problemas estruturais no campo da tecnologia, que reforçam, segundo os autores, a condição de vulnerabilidade econômica e social brasileira. Como demonstrado por várias publicações, a pandemia da Covid-19 explicitou a condição de dependência externa brasileira em relação à importação de insumos tecnológicos básicos. A perspectiva estrutural assumida pelos autores reitera que a fragilidade da base tecnológica nacional, observada naquele contexto severo, é decorrente do processo de desindustrialização e da reprimarização generalizada da economia brasileira.
Na contramão dessa tendência, a pauta do Ceis aponta para a retomada do padrão de intervenção ‘desenvolvimentista’ do Estado brasileiro. O Brasil deve seguir o exemplo das economias centrais que, por decorrência direta da pandemia, abandonaram a austeridade fiscal e trouxeram de volta as funções empreendedoras do Estado na condução e execução da inovação tecnológica e produtiva pela via do nacionalismo econômico. Seguindo esta vertente, os autores da coletânea alertam que as sociedades estão diante da rápida mudança do paradigma tecnológico, que envolve Big Data, Blockchain, Inteligência Artificial e computação em nuvem, tornando a intervenção estratégica do Estado-nação absolutamente vital.
A leitura atenta dos trabalhos da coletânea permite identificar alguns lapsos que poderão ser mitigados em nova edição. O principal diz respeito à tímida problematização do contexto institucional que condiciona e delimita a política industrial no País, na linha apontada por Suzigan & Villela3.
Nessa perspectiva, é importante ampliar a explicação sobre o papel do setor privado no arranjo institucional de saúde brasileiro, dialogando com a reflexão pioneira proposta por Hésio Cordeiro há duas décadas4. Cordeiro demonstra que é o processo de capitalização da prática médica – que articula instituições prestadoras de assistência à saúde, de formação de recursos humanos e de produção de insumos materiais (medicamentos e equipamentos) – que conforma, no Brasil, o ‘complexo econômico industrial’ setorial, desde os anos 1970. Para o autor, esse complexo define as condições estruturais do sistema de desigualdades na organização da atenção à saúde no País5. E tal sistema persiste em escala ampliada no País, a despeito da conformação do SUS5.
Ademais, o crescimento das despesas das famílias de classe média e alta, bem como o setor de planos de saúde, tornaram a esfera privada majoritária no financiamento setorial. Essa condição recomenda que seja problematizada a afirmação repetida em várias partes da publicação, de que
o Brasil conta com o maior sistema universal de saúde do mundo e possui um sistema produtivo e inovativo potente em saúde, que mobiliza cerca de 10% do PIB2,(22).
É fato, portanto, que o sistema de desigualdades na saúde não tem favorecido a inclusão e o acesso a bens públicos na escala exigida pela agenda da seguridade social esboçada na CF/1988. Pelo contrário, o processo de focalização das ações do SUS na população em situação de pobreza tem predominado em contraposição à gentrificação da clientela vinculada ao segmento de planos de saúde e ao desembolso5. Este é o desafio central que a Nova Estratégia Nacional para Desenvolvimento do Ceis terá que considerar para alcançar os adequados objetivos sociais do projeto.
É necessário assinalar, adicionalmente, que a dependência tecnológica não tem obstaculizado a capacidade de incorporação de produtos biomédicos inovadores pelo setor privado e pelo próprio SUS. Desde a década de 2000, o Brasil superou a restrição cambial que impedia a importação de pacotes tecnológicos pelo setor privado e pelo SUS. As compras governamentais e a encomenda tecnológica às empresas biomédicas líderes globais têm orientado a política de inovação de produtos para o setor público. Esse tem sido um processo essencialmente cooperativo entre o Estado nacional e as multinacionais, como demonstram o desenho das
Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP) de 2008 e o recente contrato emergencial da Fundação Oswaldo Cruz com a farmacêutica Astrazeneca para a produção local da vacina contra o novo coronavírus, por meio da transferência tecnológica onerosa6.
A opção pela licença compulsória aplicada ao caso do antirretroviral Efavirenz, celebrado por Flynn7 como o caminho brasileiro, não prosperou na relação entre as políticas de governo e as multinacionais farmacêuticas. A coletânea ganhará em robustez apontando os acertos, dilemas e fragilidades da experiência brasileira recente de incentivo à produção local de insumos farmacológicos e equipamentos com foco na atuação dos Laboratórios Públicos Oficiais, por meio da opção pela cooperação e não pelo conflito com as regras de proteção à propriedade intelectual.
Por fim, cabe lembrar que a política contemporânea do nacionalismo econômico, diante da impossibilidade de restringir por completo o intercâmbio comercial com outros países, optou pela proteção seletiva de setores essenciais por meio de crédito direto, subsídios, barreira tarifária e não tarifária8. A definição do plano conceitual dos setores essenciais para o País, no âmbito do Ceis, numa próxima edição ampliada, será de grande utilidade para a viabilidade política da renovada e bem-vinda pauta desenvolvimentista desenhada pelos autores.
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Suporte financeiro: não houve
Referências
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1 Editora Globo. Pandemia evidenciou a falta de investimento em saúde. Jornal Valor Econômico. 2023 out 11. (Editorial). [acesso em 2023 out 11]. Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/noticia/2023/10/11/pandemia-evidenciou-a-falta-de-investimento-em-saude.ghtml
» https://valor.globo.com/opiniao/noticia/2023/10/11/pandemia-evidenciou-a-falta-de-investimento-em-saude.ghtml -
2 Gadelha CAG, Gimenez DM, Cassiolato JE. Saúde é desenvolvimento: o Complexo Econômico-Industrial da Saúde como opção estratégica nacional. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; 2022. [acesso em 2024 mar 1]. Disponível em: https://mooc.campusvirtual.fiocruz.br/rea/introducao-sus/assets/docs/CEE-Fiocruz-Saude-e-desenvolvimento.pdf
» https://mooc.campusvirtual.fiocruz.br/rea/introducao-sus/assets/docs/CEE-Fiocruz-Saude-e-desenvolvimento.pdf - 3 Suzigan W, Villela AV. Industrial Policy in Brazil. Campinas: Unicamp; 1997.
- 4 Cordeiro H. A Indústria de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1980.
- 5 Costa NR, Vaitsman J. Universalization and Privatization: how policy analysis can help understand the development of Brazil’s health system. J. Comparat. Polic. Analys, Res. Pract. 2014; 45(16):441-56.
- 6 Costa NR, Raupp AC, Jatobá A. Complexo Econômico-Industrial da Saúde e a produção local de medicamentos: estudo de caso sobre sustentabilidade organizacional. Saúde debate. 2019; 43(esp7):8-21.
- 7 Flynn M. Public Production of Anti-Retroviral Medicines in Brazil, 1990-2007. Develop. Change. 2008; 39(4):513-36.
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8 Rodrik D. Nacionalismo de Maneira Certa. Jornal Valor Econômico. 2023 out 9. [acesso em 2023 out 9]. Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/nacionalismo-da-maneira-certa.ghtml
» https://valor.globo.com/opiniao/coluna/nacionalismo-da-maneira-certa.ghtml
Editado por
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Editora responsável: Maria Lucia Frizon Rizzotto
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2024
Histórico
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Recebido
13 Nov 2023 -
Aceito
17 Nov 2023