Resumo
Objetivo
Analisar as vivências e significados dos relacionamentos afetivo-amorosos vivenciados por mulheres em tratamento devido ao consumo de drogas.
Método
Pesquisa qualitativa, descritiva e transversal desenvolvida com a participação de 21 mulheres atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial do interior paulista. As entrevistas foram submetidas à análise temática reflexiva e organizam-se em três eixos.
Resultados
As mulheres relataram vulnerabilidades sociais ao longo da vida e fragilidades nas redes de apoio que culminaram em sofrimentos, desamparo e uso precoce de drogas. Tornar-se esposa foi construído como esperança para um novo modo de vida, porém de forma idealizada e engendrada. As relações afetivas mostraram-se centrais, tanto para experiências de aumento como de diminuição do consumo de drogas. O uso aumentou por necessidade de agradar o parceiro, cumprir o papel de esposa ou diante das violências. A diminuição ocorreu em situações de apoio do companheiro, auxílio para acessar o tratamento ou quando cônjuge restringiu sua liberdade. Esses relacionamentos se somaram às vulnerabilidades vividas produzindo demandas aos equipamentos de saúde e sociais.
Conclusão
O tratamento deve incluir intervenções sobre os relacionamentos amorosos das mulheres, assim como problematizar os papéis de gênero e interpor-se intersetorialmente entre os demais determinantes sociais.
Palavras-chave
Gender; Marriage; Mental health services; Substance-related disorders
Abstract
Objective
To analyze the experiences and meanings of intimate relationships experienced by women in treatment due to drug consumption.
Method
This was a qualitative, descriptive and cross-sectional study developed with the participation of 21 women attended at a Psychosocial Care Center in the state of São Paulo, Brazil. The interviews were submitted to reflective thematic analysis and organized into three axes.
Results
The women reported lifelong social vulnerabilities and weaknesses in support networks that led to suffering, helplessness, and early drug use. Becoming a wife was constructed as a hope for a new way of life, though in an idealized and contrived manner. Intimate relationships proved to be central, both for experiences of increased and decreased drug use. Drug use escalated due to the need to please the partner, fulfill the role of a wife, or when faced with violence. Decreases occurred in situations where the partner provided support, assistance in accessing treatment, or when the spouse restricted their freedom. These relationships added to the vulnerabilities experienced, creating demands on healthcare and social systems.
Conclusion
Treatment should include interventions regarding women’s intimate relationships, as well as addressing gender roles and intervening intersectorially in other social determinants.
Keywords
Gender; Marriage; Mental health services; Substance-related disorders
O aumento do consumo de drogas por mulheres é um fenômeno em ascendência. Há evidências na literatura de que as mulheres iniciam o envolvimento abusivo e problemático com substâncias psicoativas em razão de experiências relacionadas a vulnerabilidades nos seus contextos psicossociais ao longo do desenvolvimento vital. Esses apontamentos foram ratificados em um estudo sobre o consumo de crack por mulheres no Brasil, o qual mostrou o uso da droga também associado a vulnerabilidades sociais como baixa escolaridade, a não ter uma fonte de renda, desemprego, prostituição, preconceito social e assim por diante (Limberger et al. 2016Limberger, J., Nascimento, R., Schneider, J., & Andretta, I. (2016). Women users of crack: systematic review of Brazilian literature. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 65(1), 82-88. https://doi.org/10.1590/0047-2085000000107
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). Outros autores, por sua vez, adicionalmente ressaltam o empobrecimento das redes de apoio, as pressões pelos pares para o consumo e o fato de terem pais e/ou parceiros também usuários como influências para o início e a manutenção do uso abusivo de drogas (Albuquerque & Nóbrega, 2016Albuquerque, C. S., & Nóbrega, M. P. S. S. (2016). Barreiras e facilidades encontradas por mulheres usuárias de substâncias psicoativas na busca por tratamento especializado. SMAD Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, 12(1), 22-29. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i1p22-29
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; Alves & Rosa, 2016Alves, T. M., & Rosa, L. C. S. (2016). Usos de substâncias psicoativas por mulheres: a importância de uma perspectiva de gênero. Revista Estudos Feministas, 24(2), 443-462. https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n2p443
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). Assim, há uma relevante consideração a ser feita sobre as conjunturas sociais e relacionais vividas pelas mulheres e nas quais elas estão inseridas para se compreender o consumo das substâncias psicoativas, delimitadas majoritariamente por relações de gênero.
Nesse contexto, as relações de gênero são construídas historicamente com influências da cultura, o que pode induzir e perpetuar essas posições e vivências que conduzem as mulheres a maiores vulnerabilidades. Sobre essa temática, a categoria gênero não se refere apenas às ideias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas cotidianas e a tudo aquilo que constitui as relações sociais, bem como às relações de poder baseadas nas diferenças percebidas entre gêneros (Moraes et al., 2018Moraes, M. E. F., Roso, A., & Lara, M. P. (2018). Gênero como uma categoria de análise nos estudos brasileiros sobre mulheres e consumo de crack. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 11(1), 11-25. https://dx.doi.org/10.36298/gerais2019110103
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). Essas normas, papéis e relações de gênero podem resultar em sofrimentos e influenciar no acesso a serviços, uma vez que as mulheres estão envoltas em contextos de desigualdade e dominação nos escopos históricos, sociais e econômicos.
No leque de papéis e simbolismos culturais que a sociedade transmite e prevê quando se refere à mulher, as estruturas de assimetria de gênero também reincidem sobre aquelas que fazem uso de drogas, deflagrando um terreno minado por representações depreciativas acerca da mulher usuária de drogas, culminando na expressão de atitudes preconceituosas e de exclusão social. Elas, em se tratando dos abusos de drogas, são reposicionadas frente ao escopo social, passando a ser identificadas e estigmatizadas como mulheres vinculadas à culpabilidade e à periculosidade. Com isso, o uso de drogas é internalizado enquanto um comportamento desviante, além de muitas vezes impossibilitar o cumprimento de papéis de gênero como esposa, mãe e cuidadora da família. Assim, as usuárias tendem a consumir a droga no âmbito privado, consequentemente ocasionando receio de procurar ajuda e tratamento (Alves & Rosa, 2016Alves, T. M., & Rosa, L. C. S. (2016). Usos de substâncias psicoativas por mulheres: a importância de uma perspectiva de gênero. Revista Estudos Feministas, 24(2), 443-462. https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n2p443
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).
Nesse complexo cenário, as redes de relacionamentos são frequentemente apontadas como fatores de risco em potencial e/ou de proteção para o consumo (Siepmann Soccol et al., 2020Siepmann Soccol, K., Terra, M., Ribeiro, D., de Siqueira, D., Bisso Lacchini, A., & Canabarro, J. (2020). Motivos da recaída ao uso de drogas por mulheres na perspectiva da Fenomenologia Social. Enfermagem em Foco, 10(5), e2540. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2019.v10.n5.2540
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). Os estudos vêm sugerindo o papel especial dos familiares, assim como de outros componentes da rede social, a exemplo dos relacionamentos afetivos e amorosos, na aproximação inicial das mulheres com as substâncias, exercendo forte influência para que elas se tornem usuárias abusivas de drogas e se envolvam em situações de violência (Cugler & Figueiredo, 2021Cugler, P. S., & Figueiredo, W. S. (2021). Gênero e necessidades de saúde: a perspectiva das mulheres atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 13(37), 161-181. https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/80665
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). Silva et al. (2021)Silva, P. C. O., Souza, C. M., & Peres, S. O. (2021). Uso de drogas sob a perspectiva de gênero: uma análise das histórias de vida de jovens das camadas médias no Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade. 30(3), e200665. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200665
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verificaram que as usuárias de substâncias psicoativas possuem maior probabilidade de combinar seus padrões de consumo com os de seus parceiros, e até aumentar. Logo, os abusos de drogas estão associados às relações que frequentemente revelam expectativas de gênero e perpetuam situações de risco e vulnerabilidade, impactando nas subjetividades e na saúde mental da mulher usuária (Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris.).
Quanto ao cenário internacional, pesquisas como a de Leukefeld et al. (2017)Leukefeld, C., Webster, J. M., & Oser, C. B. (2017). Partner relationships and injection sharing practices among rural appalachian women. Women’s Health Issues, 27(6), 652-659. https://doi.org/10.1016/j.whi.2017.07.005
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também encontraram resultados nessa direção ao apontar que a iniciação, a manutenção e a recaída das mulheres no uso de drogas foram associadas aos seus relacionamentos. Destarte, a influência das redes sobre o consumo é uma condição que pode se perpetuar ao longo da vida por meio das relações matrimoniais, e ressalta-se que, nesses contextos, as mulheres vivem em relações de poder capazes de influenciar na escolha de se envolverem em comportamentos de alto risco – vide as construções sociais de gênero que produzem desequilíbrios e dominações (Leukefeld et al., 2017Leukefeld, C., Webster, J. M., & Oser, C. B. (2017). Partner relationships and injection sharing practices among rural appalachian women. Women’s Health Issues, 27(6), 652-659. https://doi.org/10.1016/j.whi.2017.07.005
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). Ademais, Gilchrist et al. (2019)Gilchrist, G., Dennis, F., Radcliffe, P., Henderson, J., Howard, L. M., & Gadd, D. (2019). The interplay between substance use and intimate partner violence perpetration: a meta-ethnography. The International Journal on Drug Policy, 65, 8-23. https://doi.org/10.1016/j.drugpo.2018.12.009
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indicam a existência de dinâmicas complicadoras nos relacionamentos nos quais ambos os parceiros usam substâncias psicoativas, tornando particularmente difícil para as mulheres os abandonarem, principalmente diante das vivências de violência psicológica e física. Assim, entre as participantes, a necessidade de abrigo, a falta de apoio financeiro, o medo de retaliação e o não querer interferir no bem-estar de seus filhos foram relatados como razões adicionais para não abandonarem relacionamentos, mesmo os violentos.
Defronte essas questões, Stanesby et al. (2018)Stanesby, O., Callinan, S., Graham, K., Wilson, I. M., Greenfield, T. K., Wilsnack, S. C., Laslett, A. M. (2018). Harm from known others’ drinking by relationship proximity to the harmful drinker and gender: a meta-analysis across 10 countries. Alcoholism, Clinical and Experimental Research, 42(9), 1693-1703. https://doi.org/10.1111/acer.13828
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direcionam a discussão para trabalhos de prevenção com as mulheres em que o foco principal também deve recair sobre os parceiros e as dinâmicas que envolvem aqueles com quem elas estão em relacionamento afetivo, os possíveis papéis de gênero e as relações vítima-agressor quando existentes, visto que o consumo de drogas em altos níveis pode ter consequências adversas no relacionamento conjugal. Nessa vertente, há indícios de que casais com consumo problemático sofrem perturbações em suas tarefas diárias e experimentam conflitos crescentes entre si, apresentando baixa possibilidade de apoio social e afetivo mútuo. Adicionalmente, Radcliffe et al. (2019)Radcliffe, P., Gadd, D., Henderson, J., Love, B., Stephens-Lewis, D., Johnson, A., Gilchrist, G. (2019). What role does substance use play in intimate partner violence? A narrative analysis of in-depth interviews with men in substance use treatment and their current or former female partner. Journal of Interpersonal Violence, 36(21-22), 10285-10313. https://doi.org/10.1177/0886260519879259
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apontam a necessidade de que os parceiros também sejam ajudados a reconhecer que o que eles veem como incidentes isolados no uso de substâncias pelas mulheres é, na realidade, parte de uma história mais preocupante da perspectiva delas, as quais se sentem intimidadas, dependentes e envergonhadas. Esse é um desafio particular para as pesquisas e os serviços de tratamento na prática, posto que se faz necessária uma intervenção nesses homens com o objetivo de que eles se apropriem das complexas interconexões entre gênero, violência e o uso de substâncias.
No tocante às mulheres, os serviços, apesar de não serem necessariamente equipados para lidar com a complexidade dos relacionamentos que envolvem o uso de álcool, bem como abarcar as vivências entre os parceiros, devem direcionar suas atividades para uma compreensão de como o consumo de drogas e as dinâmicas conjugais competem entre si (Wilson et al., 2020Wilson, I. M., Graham, K., Laslett, A. M., & Taft, A. (2020). Relationship trajectories of women experiencing alcohol-related intimate partner violence: a grounded-theory analysis of women’s voices. Social Science & Medicine, 264, e113307. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2020.113307
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). Com isso, dentro das políticas públicas brasileiras existem normativas que estruturam redes de atenção à saúde dos consumidores de substâncias psicoativas nocivas, com o intuito de oferecer atendimento ao segmento através de atividades terapêuticas, sociais e preventivas. Acerca dessas ações, destaca-se a Portaria do Ministério da Saúde nº 336 de 2002, a qual preconiza o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-ad), serviço especializado em saúde mental, de base comunitária, cujo objetivo também contempla a compreensão da história de vida do sujeito e de seus determinantes sociais como gênero, situações de vulnerabilidade e os âmbitos das redes sociais e afetivas (Borges et al., 2017Borges, C. D., OMoré, C. L. O. O., Krenkel S., & Schneider, D. R. (2017). Família, redes sociais e o uso de drogas: tensionamento entre o risco e a proteção. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 12(2), 405-421. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ppp/v12n2/12.pdf
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; Ministério da Saúde, 2002Ministério da Saúde (Brasil). (2002). Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre os Centros de Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html
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).
Questões relativas ao gênero estão entre os desafios dos equipamentos que fornecem cuidado, uma vez que as especificidades dessa temática não são mencionadas nos documentos oficiais e nas práticas dos serviços (Alves & Rosa, 2016Alves, T. M., & Rosa, L. C. S. (2016). Usos de substâncias psicoativas por mulheres: a importância de uma perspectiva de gênero. Revista Estudos Feministas, 24(2), 443-462. https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n2p443
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). Em grande parte deles, observa-se a inexistência de oferta de atividades e programas que contemplem as necessidades do público feminino, sendo que os oferecidos são majoritariamente masculinizados (Rasch et al., 2015Rasch, S. S., Andrade, A. N., Avellar, L. Z., & Ribeiro, N. P. M. (2015). Projeto Terapêutico Singular no atendimento de mulheres em um CAPS AD III. Psicologia em Pesquisa, 9(2), 105-115. https://dx.doi.org/10.5327/Z1982-1247201500020011
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). Adicionalmente, no tratamento do usuário de drogas é fundamental compreender e incluir os relacionamentos conjugais, pois, por meio deles, obtêm-se dados consideráveis acerca do suporte real e potencial oferecido, bem como sobre as escolhas e as possibilidades vivenciais das mulheres. Tudo isso auxilia na elaboração de ações em saúde de acordo com as necessidades e realidades individuais (Borges et al., 2017Borges, C. D., OMoré, C. L. O. O., Krenkel S., & Schneider, D. R. (2017). Família, redes sociais e o uso de drogas: tensionamento entre o risco e a proteção. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 12(2), 405-421. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ppp/v12n2/12.pdf
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).
Em âmbito nacional, há lacunas no conhecimento a respeito dos relacionamentos conjugais de mulheres que fazem uso problemático de drogas e que estejam em tratamento nos serviços públicos como o CAPS-ad, principalmente na perspectiva das relações de gênero (Alves & Rosa, 2016Alves, T. M., & Rosa, L. C. S. (2016). Usos de substâncias psicoativas por mulheres: a importância de uma perspectiva de gênero. Revista Estudos Feministas, 24(2), 443-462. https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n2p443
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). Nesse contexto, o objetivo deste artigo, então, é analisar as vivências e os significados dos relacionamentos amorosos vivenciados por mulheres em tratamento devido ao consumo de drogas.
Método
Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e transversal realizado em um CAPS-ad do interior paulista, o qual possui, nas suas práticas assistenciais, grupos e abordagens de tratamento voltados para o gênero feminino e suas necessidades (como, por exemplo, o grupo de mulheres e o grupo de mães e avós). O delineamento como qualitativo justifica-se pela possibilidade de esse tipo de pesquisa oferecer conhecimentos ricos e detalhados sobre as experiências de seus participantes, e, no campo da saúde, essas podem preencher lacunas deixadas pelos métodos quantitativos ao trazer as perspectivas de usuários e profissionais para a compreensão de fenômenos e significados que as pessoas dão ao adoecimento e à vida (Day et al., 2018Day, C. A., Coupland, H., Moensted, M., & Burns, L. (2018). The need for more research and considered debate regarding women-only treatment services: a comment on Neale et al. Addiction, 113, 1750-1752. https://doi.org/10.1111/add.14364
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). Assim, os resultados encontrados pelas pesquisas de escopo qualitativo podem auxiliar na construção de diretrizes em saúde, ajudar a definir estratégias de intervenção mais efetivas e a melhorar a qualidade da assistência prestada pelos profissionais à comunidade (Thorne, 2020Thorne, S. (2020). Beyond theming: making qualitative studies matter. Nursing Inquiry, 27, e12343. https://doi.org/10.1111/nin.12343
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).
Participantes
Utilizou-se uma amostra por conveniência, dada a facilidade e oportunidade de abordar, no serviço CAPS-ad, mulheres que fazem uso problemático de drogas. Participaram 21 usuárias em tratamento contra o consumo abusivo de substâncias psicoativas. Os critérios de inclusão foram: ser maior de 18 anos e estar inserida nas atividades voltadas para esse público dentro da instituição, independentemente do tempo de tratamento. As mulheres foram convidadas para participar a despeito do estado civil delas à época, pois foram estimuladas a relatar aspectos sobre os seus relacionamentos afetivo-amorosos tanto passados quanto presentes. Assim, foram incluídas na amostra participantes solteiras, casadas, viúvas, amasiadas etc. Todas relataram vivências sobre relacionamentos heterossexuais. A coleta de dados foi interrompida quando os relatos atingiram, na avaliação das pesquisadoras, a saturação teórica – conforme postulado por Glaser e Strauss (1967)Glaser, B. G., & Strauss, A. L. (1967). The Discovery of Grounded Theory. Strategies for Qualitative Research. Aldine Publishing.; nesse ensejo, o tamanho amostral se definiu quando as informações se mostraram redundantes ou repetitivas.
A Tabela 1 apresenta algumas características sociodemográficas das participantes. Os nomes foram suprimidos para que as identidades fossem preservadas, sendo as participantes representadas pela letra “M” junto ao número indicativo de cada entrevista. Cabe destacar a heterogeneidade das substâncias psicoativas consumidas pelas participantes, sendo o álcool a droga lícita mais consumida e as ilícitas, cocaína e crack. Oito participantes eram multiusuárias, sete consumiam apenas álcool e as outras seis apenas cocaína/crack.
Características sociodemográficas das participantes provenientes da cidade de Ribeirão Preto, SP, Brasil
Instrumento
Utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada, cuja primeira parte correspondeu ao questionamento a respeito dos dados sociodemográficos e das drogas de preferência. A segunda parte continha perguntas cujo objetivo era conhecer os relacionamentos amorosos e sexuais das mulheres ao longo da vida, as dinâmicas conjugais e o consumo de substâncias dentro desses contextos, assim como os impactos da conjugalidade percebidos nas suas trajetórias pelos serviços e instituições. As perguntas e a condução das entrevistas tiveram como perspectiva os estudos de gênero e de investigação feministas, que partilham de princípios epistemológicos com as pesquisas qualitativas. Ambas se baseiam em recolher e representar as perspectivas próprias de cada mulher, favorecendo sua voz e experiências de sentido. Valorizou-se a troca e a interatividade entre pesquisador e participantes com o objetivo de resgatar a experiência feminina, colocando-as como especialistas das suas vivências e eliminando possíveis relações de poder. Assim, ter-se-á uma complexa e compreensiva gama de narrativas subjetivas que mostrarão os seus enlaces ao escopo político e social e que poderão ser analisadas pelo pesquisador (Neves, 2012Neves, S. (2012). Investigação feminista qualitativa e histórias de vida. In M. J. Magalhães, I. Cruz, & R. Nunes (Orgs.), Pelo fio se vai à meada: percursos de investigação em histórias de vida (pp. 69-81). Ela por Ela.). Questionamentos como “Quando você olha para a sua vida e pensa nos relacionamentos, o que te vem?” ou “Como você já esteve ou gostaria de estar nos relacionamentos?” são exemplos de perguntas que tentaram se orientar pelas epistemologias acima citadas.
Procedimentos
As entrevistas foram realizadas por duas pesquisadoras, ambas psicólogas. A coleta aconteceu no período de setembro a outubro de 2019. As falas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra, totalizando uma média de duração de 23 minutos. As participantes foram convidadas para integrar o estudo enquanto estavam em atividades no CAPS-ad, sendo normalmente abordadas antes do grupo de mulheres e/ou mães e avós. Durante a condução da coleta preliminar de dados, elas eram conduzidas a uma sala vazia do serviço, onde foram explicados mais detalhadamente os objetivos da pesquisa e como a entrevista se desenvolveria. Em caso de aceite, as participantes assinavam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ao final, as pesquisadoras se disponibilizavam para esclarecer dúvidas e/ou para conversas relacionadas ao escopo do projeto. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (CAAE nº 14968319.0.0000.5407).
Para avaliação dos dados, as entrevistas foram submetidas à análise temática reflexiva, conforme proposto por Braun e Clarke (2019)Braun, V., & Clarke, V. (2019). Reflecting on reflexive thematic analysis. Qualitative Research in Sport, Exercise and Health, 11(4), 589-597. https://doi.org/10.1080/2159676X.2019.1628806
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. Trata-se de um método que prevê a construção de temas como resultado de um trabalho analítico e criativo feito pelo pesquisador, que se debruçará em um processo de decodificação e busca por padrões de significados compartilhados. Os temas são unidos por um conceito central, refletem as perguntas da coleta de dados e contam histórias. O processo de análise temática reflexiva é composto pelas seguintes etapas: 1) familiarização com os dados por meio do contato e da imersão nos materiais produzidos; 2) confecção de códigos iniciais (que identificam um aspecto latente ou semântico dos conteúdos, de forma a congregar significados potenciais); 3) organização e combinação dos códigos iniciais em temas e subtemas; 4) refinamento e revisão dos temas; 5) nomeação dos temas sobre os quais foram construídas as narrativas e também onde foram observadas as intersecções e proximidades, além de análises de cada um deles; 6) redação do relato final e seleção de extratos e falas que ilustram os temas. Cabe esclarecer que na apresentação das falas foram utilizados parênteses “(...)” quando foi necessário ocultar algum aspecto dos resultados, mas sem comprometimento das categorias, e colchetes “[ ]” foram acrescentados para explicar algo nas citações.
Resultados
A análise permitiu a construção de três temas principais retratados nas vivências e significados dos relacionamentos conjugais das mulheres que buscaram tratamento no CAPS-ad: 1) tornar-se esposa: a busca por esperança e o (re)encontro com o desamparo; 2) dinâmicas conjugais e seus efeitos sobre o uso de drogas; 3) entre o acolhimento e o estigma: quando as instituições “metem a colher” na vida do marido e da usuária mulher.
Tornar-se esposa: a busca por esperança e o (re)encontro com o desamparo
As mulheres trouxeram histórias de vidas marcadas por diversas vulnerabilidades, em que se tornar esposa se mostrou uma oportunidade de transformação afetiva e social diante das várias fragilidades vividas. Contudo, no decorrer das relações, elas se viram (de volta) aos desamparos. Relataram vivências de silenciamentos durante o desenvolvimento infanto-juvenil, abusos, falta de suporte familiar e discriminação. Também contaram sobre aspectos concernentes à classe social a qual pertenciam, em que, dada a baixa escolaridade e a necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar, passaram por empregos com pouca perspectiva de mudança e ascensão, além de baixos salários; tiveram passagens por trabalhos em roças como domésticas, faxineiras e até prostituição.
Dados esses contextos, as participantes sentiram-se desamparadas e apresentaram sofrimentos notórios durante a vida, manifestados também por meio de oscilações de humor e sentimento de tristeza. A precocidade no uso de drogas como resposta a essas vivências apresentou-se, em alguns relatos, como uma forma de lidar com os desamparos sociais e afetivos. Nesse cenário, o consumo de substâncias caminhou conjuntamente às manifestações emocionais, ocasionando prejuízos nas atividades diárias. Verificou-se que diagnósticos e tratamentos por comorbidades psiquiátricas, a exemplo do transtorno afetivo bipolar e da depressão, foram citados, assim como históricos de internações em saúde mental. Diante disso, as possibilidades das relações conjugais se configuraram como uma alternativa frente ao desamparo primário, ao uso precoce de drogas, às dificuldades cotidianas e aos sofrimentos de tristeza e manias que podiam acabar em institucionalizações.
Os relacionamentos passaram a ser vistos por elas como uma chance de se sentirem percebidas, protegidas, terem afeto, além de obterem acesso a recursos materiais outrora impossíveis dentro das suas realidades, destilando esperança na conjugalidade. Nesses relacionamentos, criaram-se idealizações e expectativas de transformação, seja da mulher enquanto objeto de amor e/ou tornando-se esposa. Mesmo novas relações afetivas carregavam consigo esses desejos, reatualizados.
M14: Ele é um relacionamento que eu comecei. Eu era casada, ele é casado. É aquela história, né? Começou numa brincadeira, porém meu casamento já tinha terminado, mas eu estava insistindo, daí eu quis me separar. Ele pagou minha separação e sempre me deu suporte. Eu acreditei que um dia ele pudesse largar da mulher dele para ficar comigo (...) Deixei de tomar remédio porque eu queria engravidar dele. Quando eu falei que queria engravidar dele, não tinha mais jeito [risada]. (...) Mas era ele, quando eu mais precisei, que conversava, me escutava, me ajudava.
Tornar-se objeto de amor e esposa foi vivido com intensidade e investimento pelas mulheres. Elas apostaram em ideais relacionais que as tirariam das condições vividas anteriormente, provocando escolhas e a vivência de um cotidiano que se delineava pelos desejos e possibilidades dos maridos. Mesmo diante das suas vontades, essas mulheres viviam a relação conjugal circunscrita pelo rumo dos homens e iam se moldando com esvaziamento de outras possibilidades de papéis ocupacionais. Nesse sentido, a dependência financeira dos cônjuges era uma máxima para essas mulheres, visto que a maioria não detinha outras fontes de renda, por isso necessitavam dos parceiros para sustento em todos os aspectos – o que foi interpretado por elas como “ajuda”. M4: “(...) ele me ajuda. Absorvente, produtos de higiene. Alimentação tem lá, mas (...) quando eu estou com fome, é só falar para ele: ‘Estou com fome!’’’.
Outrossim, quando dentro da relação, muitas das participantes da pesquisa endereçaram demandas e necessidades de reconhecimento, respeito e carinho que muitas vezes não foram correspondidas pelos homens, gerando desconfortos na relação conjugal e no posicionamento da mulher enquanto esposa. Houve assimetrias nos afetos e nos tratamentos demonstrados entre os casais. Mudanças na afetividade e na amorosidade dos companheiros também decorreram da gravidez e/ou do nascimento dos filhos. Sobre isso, as mulheres trouxeram a perspectiva de que os olhares outrora destinados a elas foram passados aos filhos, situação geradora de novas configurações relacionais, uma vez que se rompeu a díade do casal. Na tentativa de estarem mais próximas dos companheiros e de reconquistarem seus investimentos, houve momentos em que elas optaram por ficar com os homens em vez de com os filhos, deixando os descendentes com a família extensa ou expondo-os a contextos de vulnerabilidade. Por outro lado, em outras situações, os companheiros não se apresentaram como suporte frente à possibilidade da paternidade.
M17: [O casamento trouxe tristeza]. Trouxe e, assim, ele é uma pessoa muito boa, mas desta parte eu sinto muita falta, de ele chegar em mim e dar um abraço, aquele abraço gostoso que eu sentia, aquele amor lá no fundo do coração, aquele amor assim que vinha lá de dentro. Eu nunca tive essa pessoa. Até hoje eu vejo aquelas pessoas abraçando, beijando, com aquele carinho, e eu penso ‘Ah, e se fosse assim também?’. Depois de um ano que eu casei, ganhei o primeiro filho, daí ainda falei para ele: ‘engraçado, quando nós estávamos namorando, você tinha aquela coisa comigo, me dava mais carinho, agora depois que eu ganhei meu primeiro filho, você dividiu o amor que você tinha comigo com ele’. (...) ele passou a gostar mais do menino do que de mim. Não é que eu tive ciúmes, mas eu me senti isolada, ele não estava me tratando bem, não estava me dando aquele carinho.
Conforme as vivências se desenvolveram dentro das relações, algumas dificuldades, como as supracitadas, apresentaram-se e provocaram quebras nas expectativas enquanto esposas e enquanto mulheres, formuladas tanto nos âmbitos relacionais quanto nos subjetivos. Com base nisso, as participantes relataram que se encontraram novamente em desamparo afetivo e social e que se viram “flertando” com a separação, porém rechaçaram essa ideia em virtude do ideal de “casamento eterno” e da possível consequência da separação sobre os filhos. Por fim, conformaram-se com esses contextos e, muitas vezes, passaram a utilizar (mais) drogas para suportá-los.
M14: A minha depressão aconteceu por conta do meu casamento, mas eu não me separava porque eu tinha meu filho pequeno, e achava que eu ia ter que voltar para casa dos meus pais, e a criação foi casar e até morrer junto, porém, conheci a droga porque eu tinha problema de coluna e, ela anestesiou a minha coluna. Então eu experimentei, gostei, e meu experimento me levava a não sair de casa [e a não separar do marido].
Dinâmicas conjugais e seus efeitos sobre o uso de drogas
Manter-se em uma relação conjugal e no papel de esposa tem impactos sobre o uso de drogas feito pelas mulheres. Para aquelas que já consumiam drogas anteriormente, continuar com esse uso as auxiliou no cumprimento do papel de esposa, cuidadora do lar e do marido, além de apaziguar os sofrimentos decorrentes desse papel.
M3: Eu vi que a droga me deixou bem, eu voltei a ser quem eu era. A droga me tirou da depressão. Então eu voltei a fazer meu serviço da casa, voltei a lavar roupa, fazer comida, cuidar da casa. Aquela droga estava me alimentando e me sustentando em casa.
Nos questionários, notou-se que, dentro das dinâmicas conjugais, o parceiro também se apresentou como possibilidade para experimentação e consumo de diferentes tipos de drogas. Algumas participantes, como a M6, viram-se incumbidas de acompanhar e agradar os parceiros através do uso compartilhado de drogas, visto que a recusa à substância poderia significar uma recusa à relação. M6: “A minha droga de preferência era o crack mesmo, mas eu comecei com a maconha por curiosidade, porque meu namorado fumava, então para não ficar para trás, para não perder ele, eu comecei a fumar [maconha]”.
Subsequentemente, as mulheres, quando sob efeito das drogas ou diante do consumo intenso, relataram conflitos com os cônjuges, que se desagradaram dos comportamentos de consumo delas. Esse cenário de descontentamento, desqualificações verbais e agressões físicas fizeram, por vezes, com que os companheiros respondessem ao uso das esposas fornecendo mais drogas para silenciá-las ou para que cessassem as ofensivas. Tratava-se de intervenções realizadas por eles ante o uso abusivo, porém que geravam mais cenários de vulnerabilidades.
M3: No dia que eu conheci essa droga, eu abandonei meu tratamento com a medicação e comecei a usar só a droga. Meu marido, no começo, me dava o dinheiro para eu comprar a droga, porque eu queria, eu deixava ele maluco, mas quando ele viu que o barco estava afundando, parou de me dar dinheiro, e eu comecei a roubar dentro de casa (...). [Com o tempo], ele me abandonou, me deixou sozinha, meus filhos me abandonaram também.
Nota-se que houve consequências para a relação, como o distanciamento afetivo, o abandono, o aumento dos sofrimentos para as mulheres e a ausência de suporte devido à situação. A junção, então, do uso de drogas, da conjugalidade e das violências (de ambas as partes) mostrou-se como dificultadora na relação e de notório impacto para a vida dessas usuárias.
M5: Mas eu não consigo [parar de beber]. Eu brigo com meu marido. Às vezes, eu até bato nele porque eu quero bebida. Eu começo a quebrar as coisas dentro de casa. Aí para não acontecer coisa errada, ele vai e compra mais. Só que o pior é que eu não bebo só [um pouco], eu bebo [e] quero mais e mais (...). É quando eu fico alegre. Eu não fico para baixo igual eu estou, triste, vontade de me matar, essas coisas.
Assim, rupturas, conflitos, decepções e abandonos em relação aos cônjuges foram sentidos pelas mulheres como quebras das suas expectativas e dos papéis de esposa, sendo disparadores para recaídas ou até mesmo intensificação do uso (e outros sofrimentos). Esse contexto, em alguns relatos, as expôs a vulnerabilidades relacionadas à integridade física e ao território. Aquilo que foi sentido no âmbito subjetivo transbordou para o meio externo via uso de substâncias e/ou através da sujeição aos riscos.
Já a relação afetiva conjugal também pode ser um propulsor para mudanças na vida, inclusive no que diz respeito ao uso de drogas. Foram relatados períodos de abstinência e de redução de danos quando os homens se posicionaram, para elas, amorosamente na interação e se dispuseram a ofertar-lhes suporte material, carinho, companhia, muitas vezes correspondendo aos ideais românticos e de esperança delas, conforme dito pela M6.
M6: Com 18 anos, eu parei [de usar drogas] porque eu namorei, e ele não usava. Eu achei que a minha vida estava maravilhosa, pois eu terminei o curso. Fui a melhor aluna da escola profissionalizante, eu estava com um menino muito bom que era professor de lá. Ele me dava tudo que eu queria, ele me amava, ele era muito carinhoso, me dava flores, fazia declaração de amor (...) serenata, chocolates caros [risada]. Ele era muito bonzinho, me dava joias (...) e não só pelos bens materiais, sabe? Pelo fato dele me tratar como uma princesa.
Outras participantes relataram vivências mais realistas e menos idealizadas com seus companheiros, a exemplo da participante M4, mas que também proporcionaram mudança no consumo de drogas.
M4: O que me ajuda é eu querer mudar de vida, né? Eu quero levar a sério esse meu namorado, quero pegar meus filhos, quero ter uma vida normal, em sobriedade (...). Nesse relacionamento em que eu estou, ele me trata bem, ele me entende. Ele vê em mim coisas que, talvez muita gente, como minha mãe e minha irmã, sempre fala que eu não tenho jeito. Ele não! Ele está botando [a maior] fé em mim, sabe? Ele está apostando em mim. Então isso faz com que eu queira mudança.
Intervenções menos violentas diante do consumo intenso também foram direcionadas pelos companheiros, principalmente quando esses se posicionaram como suporte diante do uso de drogas feito pelas mulheres. Os companheiros acionaram e estimularam o acesso aos serviços de tratamento para cuidarem da questão (como os CAPS-ad e/ou internações), modificando o cenário relacional no qual as mulheres se encontravam. As participantes sustentaram as apostas de cuidado mesmo diante de adversidades, diminuíram o uso e aderiram às propostas terapêuticas, deflagrando contextos de afeto com os cônjuges em que as mulheres se sentiram desejosas de responderem com reciprocidade.
M13: Foi ele quem me apoiou em tudo. Foi ele quem me internou, não deixou faltar nada depois disso. Ele foi me ajudando e eu fui [para a internação]. Ele gastou muito, muito comigo. Houve uma vez em que ele me internou, mas não pode me visitar porque ficou doente. Na hora em que ele mais precisou, eu não estava, eu estava lá [internada]. Então, hoje eu vejo tudo o que ele fez por mim. Hoje, eu ajudo ele que tem problema no joelho, e eu que tenho que ficar fazendo curativo, levar ele no hospital às vezes para fazer curativo. Para mim está sendo muito melhor [sem beber]. Tanto para mim quanto para o meu marido (...) e eu não quero mais ficar mais longe dele.
Cabe ressaltar também que algumas participantes experimentaram modificações e diminuições no consumo de drogas quando estiveram em restrição de liberdade (imposta pelos companheiros) ou em situação de impossibilidade de aquisição da substância em decorrência da não geração de renda.
M11: Eu não bebo mais porque eu não tenho dinheiro, eu estou trancada, estou há um mês e meio sem beber (...) Eu não tenho um serviço. Se eu tivesse um serviço, o meu dinheiro, a minha independência, eu teria como comprar o que eu queria, entendeu?
Entre o acolhimento e o estigma: quando as instituições “metem a colher” na vida do marido e da usuária mulher
Os relacionamentos afetivos sexuais imprimem marcas nas histórias das mulheres, estejam elas dentro ou fora de uma relação. Ser a “esposa de um homem” e a “esposa usuária de drogas”, diante dos contextos relatados de raça, escolaridade, renda e das interações, produziram caminhos limitados e, por vezes, estigmatizados, os quais foram descritos pelas participantes principalmente a respeito de quando não estavam mais com os companheiros. Diferentes marcas e necessidades se apresentaram que, dadas as vulnerabilidades nas quais as mulheres estavam inseridas, geraram demandas para o Estado e para as políticas públicas acolherem.
Uma primeira marca de vulnerabilidade apresentou-se diante da opção pelo término da relação, que foi acompanhada de sentimentos de (retorno do) desamparo e medo. A separação, para parte das participantes, deflagrou-se após vivências de violências diversas ao longo do tempo, que foram relatadas como gatilhos para a concretização do fim, considerando-se todo o sofrimento gerado. Ao se separarem, algumas mulheres, já empobrecidas de outras redes de apoio, perderam as possibilidades de moradia e ficaram em situação de rua. As participantes se sentiram fragilizadas pelas ações dos ex-companheiros, que, por vezes, continuaram a perpetuar violências mesmo após a separação. Diante desses cenários, uma intensificação do uso de drogas se desencadeou, para algumas, com o objetivo de lidarem com os sentimentos decorrentes tanto da separação em si, quanto dos atos praticados pelos homens. Mediante as várias circunstâncias de vulnerabilidades sociais e afetivas, além das expressões de desamparo aliadas ao uso abusivo de drogas, houve a necessidade de que essas demandas fossem absorvidas e cuidadas pelos serviços de abordagem, acolhimento/abrigamento da assistência social. Assim, muitas mulheres apresentaram inserções institucionais também demarcadas e influenciadas pelas relações conjugais e amorosas.
M16: Eu fugi de um relacionamento que eu tinha porque ele me batia muito. Ele usava drogas e [imaginava] que eu estava me jogando para outro homem. Então, em algum momento, você pensa o que você quer para você mesma. Continuar três anos vivendo desse jeito? Então eu me afastei, me despedi e saí andando (...) Nunca mais o vi. Tenho medo de sair na rua e encontrá-lo. Violência. Me deu um pânico, medo de sair do portão do abrigo. Não tenho ninguém aqui por mim. Hoje eu durmo na casa de apoio, no abrigo, só que, antes de tudo isso, eu passei por muitos problemas (...). Foi a abordagem [da assistência social] que me pegou na rua, e a moça que me dava comida que me chamou porque eu fugi do meu marido e fiquei uns 14 dias fugindo dele. Tinha que dormir debaixo de árvores e em terrenos, sabe? Me escondendo para ele não me achar.
O exercício da maternidade foi outro aspecto comprometido em muitas das participantes, que sofreu interferência da justiça e em benefício dos homens. Algumas participantes afirmaram que estavam separadas dos filhos porque eles residiam com os ex-companheiros, e algumas perderam a guarda dos filhos para os pais mesmo quando esses eram usuários (até abusivos) de drogas. Relataram a prevalência do estigma relacionado à mulher usuária de drogas e mãe, inclusive pela lei – concepção também fortemente internalizada por elas. As participantes se desqualificaram quanto à possibilidade de exercício da maternidade, e, em decorrência das separações, poucas mantinham contato com os filhos, concretizando os receios provenientes da separação conforme explicitado na primeira temática deste estudo.
M8: Eles [os filhos] ficam com o pai deles, que tem a guarda provisória (...) O pai é maravilhoso, uma pessoa muito boa, trabalhador, nunca mexeu com droga. O único vício dele é a bebida. Não quero que meus filhos passem por isso, me vejam mais nesse estado. Por isso que é melhor eles ficarem com o pai deles do que comigo. Não é bom. Não desejo isso para ninguém [o crack], nem para o meu pior inimigo.
Dessa forma, as relações conjugais das esposas usuárias de drogas expuseram direcionamentos e impactos às mulheres em suas trajetórias institucionais. Nos diferentes serviços, revelaram-se todas as complexidades experienciadas pelas mulheres, que foram acolhidas seja pela via do acesso aos direitos, seja pela manutenção do estigma.
Vale destacar que as participantes relataram um importante papel da saúde (e do CAPS-ad) para que suas vulnerabilidades fossem trabalhadas e se tornassem alvo de transformação, incluindo as relações amorosas. Após a inserção e seguimento das mulheres no CAPS-ad, houve o reconhecimento da importância da escuta e do acolhimento, e o apelo para que o serviço fosse um intermediador das participantes com os seus cônjuges. As mulheres depositaram esperança no dispositivo e na equipe para que certas negociações fossem feitas e elas pudessem ter acesso aos seus desejos, visto que não conseguiam fazê-las por si mesmas e na interação conjugal. Nesse sentido, vê-se que o CAPS-ad se configurou, então, como uma possibilidade de resgate da autonomia, do autocuidado, dos sonhos e das formas relacionais (principalmente com os homens) menos prejudiciais e limitadoras.
M5: Se [O CAPS-ad] puder encher o saco [sic] do meu marido para eu voltar a estudar, pelo menos (...). Só que toda vez que eu vou para a escola, ele fala que estou atrás de homem. Isso que desanima a gente, porque eu parei na sexta série, mas eu não sei fazer quase nada. De que adianta eu não fazer quase nada?
Discussão
O objetivo deste artigo foi analisar as vivências e os significados dos relacionamentos amorosos para mulheres em tratamento no CAPS-ad. Nesse contexto, observa-se a situação econômica e social de pobreza das participantes, indo ao encontro dos indicativos de que questões como miséria, falta de recursos financeiros e de habitação encontram-se intrinsecamente relacionadas ao consumo de drogas no Brasil (Limberger et al., 2016Limberger, J., Nascimento, R., Schneider, J., & Andretta, I. (2016). Women users of crack: systematic review of Brazilian literature. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 65(1), 82-88. https://doi.org/10.1590/0047-2085000000107
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). Hogana et al. (2018)Hogana, V. K., Araujo, M., Caldwell, E. L., Gonzalez-Nahm, S. N., & Blacke, K. Z. (2018). “We black women have to kill a lion everyday”: an intersectional analysis of racism and social determinants of health in Brazil. Social Science & Medicine, 199, 96-105. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2017.07.008
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analisaram que, em mulheres, as categorias de raça e classe se somam para produzir contextos sociais de vulnerabilidade. Assim, olhar para a conjuntura das mulheres usuárias de drogas acena para a necessidade de se pensar o gênero na articulação com outros marcadores sociais, como raça, classe, geração, entre outros, compreendidos e organizados em meio a relações de poder (Leukefeld et al., 2017Leukefeld, C., Webster, J. M., & Oser, C. B. (2017). Partner relationships and injection sharing practices among rural appalachian women. Women’s Health Issues, 27(6), 652-659. https://doi.org/10.1016/j.whi.2017.07.005
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).
Por sua vez, Souza (2016)Souza, J. (2016). Crack e a exclusão social. Ministério da Justiça e Cidadania. https://cepad.ufes.br/sites/cepad.ufes.br/files/field/anexo/Livro%20Crack%20e%20exclus%C3%A3o%20social_Digital_WEB.pdf
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defende que esse cenário conduz à construção de subjetividades específicas e à adoção de comportamentos que são influenciados pelos determinantes sociais, resvalando principalmente em formas de socialização primária e familiar que produzem diferentes respostas emocionais, cognitivas e relacionais ao longo da vida do sujeito. As participantes relataram vivências de violências e desamparo durante o desenvolvimento, que se configuram como um fenômeno recorrente nas relações familiares, vide o primeiro tema. Quanto a esse cenário, Cugler e Figueiredo (2021)Cugler, P. S., & Figueiredo, W. S. (2021). Gênero e necessidades de saúde: a perspectiva das mulheres atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 13(37), 161-181. https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/80665
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sugeriram em seus resultados que a violência nas tenras idades pode ser precursora do consumo abusivo de substâncias e da manutenção das vivências violentas na vida adulta.
Pesquisas apontam muitas diferenças entre usuários do gênero masculino e feminino que fazem uso abusivos de substâncias, principalmente com relação a comorbidades psiquiátricas. Assim, as violências físicas, sexual e psicológica têm sido associadas a diversos problemas psiquiátricos em usuários do gênero feminino, como: depressão, ansiedade, fobias, tentativa de suicídio, abuso de álcool e drogas, problemas alimentares, depressão pós-parto, transtorno bipolar, entre outros; correlações verbalizadas no discurso das mulheres participantes deste estudo (Albuquerque & Nóbrega, 2016; Alves & Rosa, 2016Alves, T. M., & Rosa, L. C. S. (2016). Usos de substâncias psicoativas por mulheres: a importância de uma perspectiva de gênero. Revista Estudos Feministas, 24(2), 443-462. https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n2p443
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). Todavia, deve-se atentar para o fato de que as categorias psiquiátricas são engendradas, na sua constituição, com atribuição de alguns comportamentos e formas de expressão do sofrimento, como correlação com o gênero feminino (a exemplo do choro como análogo à depressão), em que as mulheres expressam sofrimentos e são categorizadas principalmente em virtude das dificuldades em atividades concernentes aos papéis de gênero e ao cuidado (materno e interpessoal) (Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris.).
Quanto à construção das suas subjetividades, vê-se, no primeiro tema, o quanto as partícipes estão imersas no discurso do amor romântico, que posiciona a mulher como dependente do amor do homem para se subjetivar. A partir disso, as mulheres crescem em sociedades nas quais prevalecem discursos que as constroem como frágeis, à espera de um homem que as salvará de todos os males (Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris.). Esper et al. (2013)Esper, L. H., Corradi-Webster, C. M., Carvalho, A. M. P., & Furtado, E. F. (2013). Mulheres em tratamento ambulatorial por abuso de álcool: características sociodemográficas e clínicas. Revista Gaúcha de Enfermagem, 34, 95-101. https://doi.org/10.1590/S1983-14472013000200012
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verificaram que a principal motivação para a diminuição no consumo de drogas das mulheres em atendimento (em 68,2% dos casos) foi no intuito de desempenhar os papéis sociais de gênero de modo esperado pela sociedade (esposa, dona de casa e mãe). O fato de não terem renda própria também fragilizou essas mulheres, pois, quando dependem financeiramente dos parceiros ou dos ex-parceiros, podem estar sujeitas a violências e infelicidades por não poderem ter uma vida autônoma, empobrecendo as possibilidades de outros papéis sociais e ocupacionais (Corradi-Webster, 2020Corradi-Webster, C. M. (2020). Recursos que colaboram no processo de recovery de mulheres com necessidades relacionadas ao uso de drogas [Tese de doutorado não-publicada]. Universidade de São Paulo.).
Ademais, a necessidade de abrigo, a falta de apoio financeiro, o medo de retaliação e o não querer interferir no bem-estar de seus filhos foram relatados por participantes desta e de outras pesquisas como razões adicionais para não abandonar os relacionamentos, mesmo quando esses são violentos (Gilchrist et al., 2019Gilchrist, G., Dennis, F., Radcliffe, P., Henderson, J., Howard, L. M., & Gadd, D. (2019). The interplay between substance use and intimate partner violence perpetration: a meta-ethnography. The International Journal on Drug Policy, 65, 8-23. https://doi.org/10.1016/j.drugpo.2018.12.009
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). Isso posto, observa-se o quanto as redes de apoio dessas mulheres, para além dos cônjuges, são frágeis e as levam a se sentirem sozinhas. Assim, o uso de drogas que essas mulheres fazem são ocasionados por trajetórias de exclusão e de abandono afetivo e social, que aprisionam o indivíduo muito mais que a substância (Souza, 2016Souza, J. (2016). Crack e a exclusão social. Ministério da Justiça e Cidadania. https://cepad.ufes.br/sites/cepad.ufes.br/files/field/anexo/Livro%20Crack%20e%20exclus%C3%A3o%20social_Digital_WEB.pdf
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).
Defronte à inserção dessas mulheres em contextos de vulnerabilidades individuais e sociais, essas histórias de fragilização não permitem, em alguns casos, que o uso de drogas se dê de maneira mais controlada e segura por elas mesmas (Corradi-Webster, 2020Corradi-Webster, C. M. (2020). Recursos que colaboram no processo de recovery de mulheres com necessidades relacionadas ao uso de drogas [Tese de doutorado não-publicada]. Universidade de São Paulo.). Assim, os companheiros adentram nessa díade relacional mulher-droga e se tornam influentes na manutenção, no aumento ou na diminuição do consumo, provocando mudanças e interferências no padrão de consumo, como visto no segundo tema. Por conseguinte, nas relações marcadas por conflitos e violências entre os cônjuges, a possibilidade de abandono ou diminuição do uso das drogas se torna particularmente difícil, e as mulheres transitam de possíveis vítimas para violentas (Lucchese et al., 2017Lucchese, R., Caixeta F. C., Silva Y. V., Vera, I., Felipe, R. L., & Castro, P. A. (2017). Histórico de violência contra a mulher que vivencia o abuso de álcool e drogas. Revista de Enfermagem da UFPE, 11(9), 3623-3631. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i9a234505p3623-3631-2017
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; Siepmann Soccol et al., 2020Siepmann Soccol, K., Terra, M., Ribeiro, D., de Siqueira, D., Bisso Lacchini, A., & Canabarro, J. (2020). Motivos da recaída ao uso de drogas por mulheres na perspectiva da Fenomenologia Social. Enfermagem em Foco, 10(5), e2540. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2019.v10.n5.2540
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). Nessa vertente, há estudos que também corroboram os resultados desta pesquisa, apontando o suporte do relacionamento como um aspecto eficaz na redução do uso, como também sinalizado no segundo tema (Stanesby et al., 2018Stanesby, O., Callinan, S., Graham, K., Wilson, I. M., Greenfield, T. K., Wilsnack, S. C., Laslett, A. M. (2018). Harm from known others’ drinking by relationship proximity to the harmful drinker and gender: a meta-analysis across 10 countries. Alcoholism, Clinical and Experimental Research, 42(9), 1693-1703. https://doi.org/10.1111/acer.13828
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). As influências sobre o consumo de drogas estão atravessadas pelas percepções (ou ausências) de amparo, confiança, afetividade e suporte material sentidos pelas mulheres em relação aos seus cônjuges, fazendo com que elas se mantenham nesse ciclo de uso-abuso-não-consumo na tentativa de manter o vínculo com os companheiros.
Assim, a presença do companheiro em si não pode ser tomada diretamente como um aspecto que aumenta ou diminui o uso de drogas, pois também estão em jogo as vivências subjetivas, relacionais e contextuais dessas mulheres em relação aos homens, que foram verbalizadas neste estudo por discursos dominantes de gênero, mesmo para aquelas que se sentiram amparadas pelos companheiros – resultado que ecoa na direção do estudo de Silva et al. (2021)Silva, P. C. O., Souza, C. M., & Peres, S. O. (2021). Uso de drogas sob a perspectiva de gênero: uma análise das histórias de vida de jovens das camadas médias no Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade. 30(3), e200665. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200665
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. Os relacionamentos amorosos sexuais também se tornam influentes quando, por exemplo, figuram como fontes estressantes e/ou que favorecem o uso de drogas, resultando em dificuldades na adesão ao cuidado nos serviços. Por outro lado, o suporte dos companheiros pode garantir um primeiro acesso ao tratamento nos dispositivos de saúde, dados também encontrados por esta pesquisa (Stanesby et al., 2018Stanesby, O., Callinan, S., Graham, K., Wilson, I. M., Greenfield, T. K., Wilsnack, S. C., Laslett, A. M. (2018). Harm from known others’ drinking by relationship proximity to the harmful drinker and gender: a meta-analysis across 10 countries. Alcoholism, Clinical and Experimental Research, 42(9), 1693-1703. https://doi.org/10.1111/acer.13828
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).
Assim, observa-se que os relacionamentos podem deixar marcas nas trajetórias dessas mulheres em níveis de estigmatização, culpabilização e retorno do desamparo. Elas passam a ser referenciadas e julgadas em relação ao companheiro, recaindo sobre elas o fracasso da relação e seus desdobramentos, exacerbando as relações de poder díspares entre os gêneros (Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris.). O fato de as mulheres terem perdido a guarda dos filhos com a justificativa de serem usuárias de drogas tem efeito deletério para elas, algo não visto tão recorrentemente entre mulheres usuárias de drogas de classe média ou alta. Em razão disso, há preconcepções sobre a maternidade no contexto do uso de drogas, pois paira fortemente a noção de que essas mulheres são incapazes de cuidarem de si e do outro (Corradi-Webster, 2020Corradi-Webster, C. M. (2020). Recursos que colaboram no processo de recovery de mulheres com necessidades relacionadas ao uso de drogas [Tese de doutorado não-publicada]. Universidade de São Paulo.). Zanello (2018)Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris. denomina essa construção social como “dispositivo materno”, que dita emocionalidades e expectativas direcionadas ao gênero feminino quanto ao exercício do papel de mãe, muitas vezes também internalizado pelas mulheres, pelo escopo social e até pelos profissionais de saúde dos CAPS-ad, conforme encontrado na investigação de Silva et al. (2018)Silva, E. B. O., Pereira, A. L. F., & Penna, L. H. G. (2018). Estereótipos de gênero no cuidado psicossocial das usuárias de cocaína e crack. Cadernos de Saúde Pública, 34(5), e00110317. https://doi.org/10.1590/0102-311X00110317
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.
Parte desses trabalhadores do CAPS-ad apresentam fortes estereótipos da mulher usuária de drogas como aquela responsável pelo cuidado materno e familiar, e que elas devem buscar a abstinência para exercer devidamente esse papel. Adicionalmente, concebem as mulheres como provenientes de uma natureza frágil e dependente das relações afetivas, verbalizações que vão na contramão do acolhimento e da produção de cuidado que deveriam ser preconizados por esse dispositivo.
Diante das situações de fragilidades e vulnerabilidades nas quais essas mulheres estão inseridas, suas redes sociais e de apoio ao longo da vida se colocam como obstáculos relacionais, subjetivos e societários. Assim, observa-se a dependência de algumas delas dos serviços públicos de saúde e de assistência social, para onde direcionam seus apelos e necessidades de tratamento, gerando trajetórias de inserção e acompanhamentos institucionais. Inicialmente os dados apontam para um primeiro acesso aos dispositivos pela situação de vulnerabilidade social e uso de drogas, mas, ao longo do tempo, acrescenta-se, também, no escopo do cuidado, toda uma conjuntura de rompimentos e dificuldades, inclusive com os relacionamentos amorosos, que culminam em demandas para as políticas públicas. Conclui-se, assim, que o tratamento e as instituições devem auxiliar na reconstrução de diferentes esferas da vida, por meio, preferencialmente, de intervenções intersetoriais e baseando-se na análise de como as condições sociais influenciam nos comportamentos e cuidados em saúde. O cuidado e a atenção à saúde em relação ao álcool e a outras drogas deve priorizar o fortalecimento de possíveis vínculos da rede de apoio da usuária, restabelecendo relações fragilizadas e/ou possibilitando a construção de novos vínculos saudáveis (Cugler & Figueiredo, 2021Cugler, P. S., & Figueiredo, W. S. (2021). Gênero e necessidades de saúde: a perspectiva das mulheres atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 13(37), 161-181. https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/80665
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Day et al. (2018)Day, C. A., Coupland, H., Moensted, M., & Burns, L. (2018). The need for more research and considered debate regarding women-only treatment services: a comment on Neale et al. Addiction, 113, 1750-1752. https://doi.org/10.1111/add.14364
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, por sua vez, apontam que devem ser abordadas questões como estigma, maternidade e relações com parceiros/as e com familiares a fim de proporcionar maior adesão e singularidade às demandas femininas. Esses espaços aumentariam a chance de as mulheres refletirem sobre estratégias e, possivelmente, ressignificarem o padrão de consumo. Nessa seara, as vulnerabilidades e os papéis de esposa também devem ser discutidos e cuidados nos serviços, tanto no sentido de aproximar os parceiros do tratamento, para que eles possam colaborar e se corresponsabilizar, como para incentivar as mulheres a desenvolverem recursos para vislumbrarem uma trajetória de tratamento e de vida para além dos relacionamentos amorosos (Radcliffe et al., 2019Radcliffe, P., Gadd, D., Henderson, J., Love, B., Stephens-Lewis, D., Johnson, A., Gilchrist, G. (2019). What role does substance use play in intimate partner violence? A narrative analysis of in-depth interviews with men in substance use treatment and their current or former female partner. Journal of Interpersonal Violence, 36(21-22), 10285-10313. https://doi.org/10.1177/0886260519879259
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).
Assim, sugere-se, a partir deste estudo, que estratégias como atendimentos ao casal (psicoeducação, psicoterapia de orientação, acolhimento, entre outros) sejam possibilidades interventivas em projetos terapêuticos mais específicos para as mulheres e para as relações de gênero, vide as construções e consequências que essas relações amorosas têm na vida delas e nos padrões de uso de drogas. Quanto aos aspectos interventivos direcionados às mulheres, os projetos devem ser capazes de reposicioná-las frente às suas histórias de vida e de sofrimento psíquico, além de incentivarem ações que as estimulem ao empoderamento, à autonomia e independência financeira; além de oferecer orientações, abordagens e nomeações das situações de violência, amparo no exercício da maternidade, entre outros.
Cumpre destacar que este estudo apresentou alguns limites. Um deles foi a opção pela metodologia qualitativa, que não permite generalização dos resultados para a população de mulheres usuárias de drogas. Adicionalmente, a inclusão de participantes em tratamento no CAPS-ad que eram provenientes de uma classe social específica mostrou-se outro fator limitante, uma vez que usuárias de drogas dos demais estratos socioeconômicos podem apresentar outras características relacionadas às vivências das relações amorosas. Além disso, o mesmo poderia acontecer no caso de mulheres que buscam acompanhamento em outros tipos de instituições, em outras modalidades de tratamento, com relação a padrões de uso para além do consumo abusivo. Sugere-se, também, que as pesquisas possam considerar os relatos dos homens acerca da experiência deles nos relacionamentos conjugais, assim como a abrangência de outras relações para além da conjugação heterossexual.
Conclusão
Mulheres usuárias de drogas em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial apresentam diversas histórias de vulnerabilidades sociais durante a vida, onde as relações afetivo-amorosas se construíram como esperança de transformação frente aos desamparos vividos. Tornaram-se esposas dentro de um ideal romântico e engendrado. Além disso, sinalizaram precocidade no uso de drogas, condição influenciada e impactada pelas dinâmicas relacionais. Houve aumento do consumo conforme a necessidade de cumprimento do papel de esposa e de agradar ao parceiro, assim como em situações de conflitos e violências. Já a diminuição foi relatada quando se sentiram amparadas pelos cônjuges e esses as incentivaram ao tratamento, ou mesmo em conjuntura de restrição da liberdade. Assim, a manutenção (ou não) do consumo se deu na tentativa de manter o vínculo com os companheiros em um modelo de conjugalidade tradicional engendrado. Viu-se que os relacionamentos amorosos, por consequência, são demarcadores nas trajetórias dessas participantes envoltas em tantas vulnerabilidades, provocando demandas por acolhimento pelas políticas públicas. Houve repercussão e intervenção dos serviços da assistência social, saúde e justiça, culminando em vivências ora de estigmatização, ora de acolhimento. Assim, urge a necessidade de que serviços como o CAPS-ad sejam sensíveis às questões de gênero presentes também nos relacionamentos afetivo-amorosos e ofereçam propostas terapêuticas nessa perspectiva.
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Como citar esse artigo: Pinto, A. L. L., & Corradi-Webster, C. M. (2023). Mulheres, relações afetivo-amorosas e uso de drogas: vivências e significados. Estudos de Psicologia (Campinas), 40, e220130. https://doi.org/10.1590/1982-0275202340e220130
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Apoio
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processonº 316074/2021-7).
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Editor responsável
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
11 Nov 2022 -
Revisado
05 Abr 2023 -
Aceito
28 Set 2023