RESUMO
O artigo se dedica a examinar a articulação entre dois movimentos de contestação da representação, identificados nos domínios da política e da literatura. Refiro-me aqui aos questionamentos da democracia representativa que acompanhamos na série de protestos entre 2010-2013 e à discussão sobre a legitimidade das produções artísticas para representar integrantes de minorias diversas. Esses abalos da representação serão analisados, sobretudo, como pressões por alterações na chamada partilha do sensível (Rancière). Ao buscar traçar correspondências entre esses dois movimentos de contestação, destacarei suas ligações com modificações tecnológicas e discursivas de impacto, tais como o desenvolvimento da comunicação em rede, a expansão do discurso do testemunho e de suas formas próprias de subjetivação. Por fim, discutirei o risco dessa demanda por mudança na partilha do sensível resultar não na ampliação concreta da democracia nos domínios da política e da literatura, mas na criação de bolhas digitais e culturais caracterizadas pela homogeneidade e pela intransigência.
Palavras-chave: Articulação entre representação política e literária; Partilha do sensível; Impactos da comunicação em rede; Expansão do testemunho
ABSTRACT
The article is dedicated to examining the link between two movements challenging representation, identified in the fields of politics and literature. I am referring here to the questioning of representative democracy that was part of the series of protests between 2010-2013 and the discussion about the legitimacy of artistic productions to represent members of diverse minorities. These upheavals in representation will be analyzed above all as pressures for changes in the so-called distribution of the sensible (Rancière). In seeking to trace correspondences between these two movements of contestation, I will highlight their links with impactful technological and discursive changes, such as the development of network communication, the expansion of the discourse of testimony, and its forms of subjectivation. Finally, I will discuss the risk of this demand for change in the distribution of the sensible resulting not in the concrete expansion of democracy in the realms of politics and literature, but in the creation of digital and cultural bubbles characterized by homogeneity and intransigence.
Keywords: Links betweenpolitical and literary representation; Distribution of the sensible; Impacts of network communication; Expansion of testimony
INTRODUÇÃO
Como podemos articular o abalo das representações políticas tradicionais e o questionamento da literatura. em sua legitimidade para representar integrantes de minorias diversas? Apostando que essa dupla desestabilização das instituições políticas e literárias se insere numa transformação da partilha do sensível (Rancière, 2009)1, buscarei entendê-la com base no mapeamento de mudanças tecnológicas e discursivas de impacto em produções artísticas e manifestações políticas contemporâneas, assim como a partir de seus efeitos na elaboração de formas de subjetivação em vigor. Esses processos serão examinados tanto em seu potencial de reivindicação da expansão da democracia - com o surgimento de novos atores políticos e literários - quanto em seus riscos, em especial aquele do confinamento em bolhas culturais e digitais2.
Ao tratar do questionamento da representação política, eu me restringirei à série de protestos realizados entre 2010-2013, com especial atenção às Jornadas de Junho, no Brasil. Esses protestos incluem desde reivindicações impulsionadas pelo colapso financeiro de 2008, desdobradas na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, até as manifestações da chamada Primavera Árabe. Conforme é bastante conhecido, as primeiras - como a Revolução das Panelas na Islândia, o movimento dos Indignados na Espanha, o Occupy Wall Street e as Jornadas de Junho - são críticas ao funcionamento da democracia representativa, por suas alianças diversas com o capital financeiro e pela corrupção, entre outras causas. Nem por isso, contudo, elas serão aqui desvinculadas das segundas, voltadas em sua maioria à oposição a regimes ditatoriais do Norte da África e do Oriente Médio. Afinal, como resume a socióloga Saskia Sassen ao se referir a todos esses movimentos, eles deram visibilidade às “forças antidemocráticas cada vez mais poderosas, presentes não só nas ditaduras reconhecidas, mas também no Estado neoliberal” (Sassen, 2011, tradução minha). Assim, ao incluir aqui os protestos populares da Primavera Árabe, optei por privilegiar, nas críticas à democracia representativa (praticada por estados neoliberais da Europa, dos EUA e da América Latina), sua ligação com uma demanda por democracia. Além disso, não podemos esquecer os impactos em cadeia gerados por todos esses movimentos, uns impulsionando outros, uns ecoando outros.
De que modo podemos compreender as ligações desses movimentos políticos e sociais com a contestação da representação literária de integrantes de diferentes grupos subalternizados, contestação, como se sabe, intimamente vinculada à crescente demanda pela autorrepresentação nas produções culturais contemporâneas? Tanto essas revoltas sociais quanto a recusa à criação literária tradicional partem do questionamento da representação vertical, hierárquica, entre o político e a população; entre o escritor e seu objeto. Em última instância, esse questionamento se baseia no princípio, segundo resume o sociólogo Manuel Castells ao tratar desses movimentos sociais, de que cada um só representa a si mesmo, limitando-se às próprias análises (Castells, 2013, p. 22). Não concordo nem com esse princípio nem com o otimismo expressado por Castells em relação aos protestos descritos, entendidos como tendo se desenvolvido segundo “um processo de comunicação autônoma” (Castells, 2013, p. 14) - autonomia que, mais à frente, contestarei. Contudo, devemos lembrar que o sociólogo analisou essas manifestações em meio ao calor dos acontecimentos - seu livro foi publicado originalmente em 2012 -; período atravessado por certa euforia em relação às transformações em curso e às potencialidades do uso político da rede.
Não é necessário avançar muito, no entanto, para concluir que a autorrepresentação, entendida de modo estrito (ancorada unicamente no indivíduo, numa etnia ou num grupo social minoritário) impõe limites consideráveis à arte e à política, a ponto de colocá-las em xeque. Isso não significa aceitar sem restrições que as produções literárias e as decisões políticas se desdobrem a partir de um centro de poder excludente e entendido, sob diferentes critérios, como hierarquicamente superior. Inclino-me, nesse contexto, a apostar na busca por um equilíbrio tão frágil quanto difícil, que tanto amplie o princípio da autorrepresentação quanto restrinja aquele da representação verticalizada, em busca de decisões baseadas em relações cada vez mais horizontais, igualitárias e coletivas.
NOVAS REDES DE COMUNICAÇÃO: AMPLIAÇÃO DE VOZES LITERÁRIAS E POLÍTICAS
O questionamento atual das representações política e literária não pode ser dissociado de alterações decisivas no universo da produção e da distribuição de informação e livros. De fato, temos acompanhado nas últimas duas décadas, aproximadamente, transformações na área de comunicação e editoração, propiciadas pelo desenvolvimento tecnológico, que foram fundamentais para a emergência de vozes autorais e políticas. O surgimento desses novos atores, como buscarei mostrar, se tornou possível graças a processos de descentralização que permitiram “furar” o controle de mediadores tradicionais das cenas pública e literária, tais como partidos, sindicatos, editoras e imprensa tradicionais.
Inicio a exposição com o domínio político. Já é consensual entre estudiosos da comunicação que temos passado de uma estrutura comunicacional predominantemente verticalizada, hierárquica e centralizada, como no caso da televisão e do rádio, para a comunicação interativa e descentralizada da internet. De modo similar, as campanhas eleitorais e disputas políticas no Brasil democrático do século XX também se desdobravam de forma hierárquica e centralizada, ancorando-se nas figuras de “marqueteiros” e políticos profissionais (Cruz, 2019). É possível, nesse sentido, concluir que tínhamos uma estrutura de produção de informação à distância que correspondia, grosso modo, a diferentes formas de governo representativo e a campanhas políticas de então.
Já a eclosão e o desdobramento dos movimentos sociais aqui destacados não podem ser dissociados das tecnologias da comunicação em rede, que permitiram o surgimento de novos atores políticos, conectados por meio de seus telefones móveis, blogs, vlogs, plataformas e aplicativos diversos. Esses novos atores se comunicam de modo mais horizontalizado, sem hierarquias tão rígidas, construindo protestos que recusam qualquer subordinação a partidos políticos ou sindicatos, pelo menos em seus primeiros desdobramentos.
Destacar essa correspondência não significa apostar numa hipótese determinista que tem a tecnologia como motor de mudanças irreversíveis. Nem descarta a necessidade de entendermos essas tecnologias em suas especificidades e em suas imbricações, tanto com a imprensa tradicional (Nobre, 2022) quanto com ecologias mais amplas, que incluem variáveis não tecnológicas, sociais, subjetivas etc. (Sassen, 2011).
No domínio literário, devemos lembrar o desenvolvimento tecnológico responsável por tornar o processo editorial mais acessível, ampliando a possibilidade de publicação de autores até então sem acesso às casas tradicionais. De fato, entre os anos 2000 e 2015, aproximadamente, acompanhamos um crescimento significativo de pequenas editoras no país3. Foi nesse período, por exemplo, que foi criada a Liga Brasileira de Editoras (Libre), rede formada por editoras independentes, fundada em 2002.
Não por acaso, como lembra o pesquisador Carlos Henrique Vieira em sua dissertação de mestrado (2019), parte significativa dessas novas casas editoriais tinha à sua frente autores interessados na publicação das próprias obras. Vieira cita como exemplo a Livros do Mal, criada em 2001 pelos escritores Daniel Galera e Daniel Pelizzari; a Não Editora, lançada em 2007, que publicou, entre outros, seus fundadores, Rodrigo Rosp e Samir Machado; e o coletivo Edith, lançado em 2010.
Não podem passar despercebidas, porém, uma série de outras editoras independentes criadas no mesmo período. Caracterizadas como quilombos editoriais (Oliveira, 2018), elas têm promovido a produção cultural afro-brasileira não só por meio da publicação de seus autores, mas também pelo investimento em ações de mediação cultural, como oficinas de escrita criativa e prêmios literários. Não me parece coincidência que parte significativa delas tenha sido fundada nesse início do século XXI, tais como Nandyala, voltada para a divulgação de obras de mulheres negras; a Malê, lançada em 2015, responsável pela publicação de autoras como Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis e Cristiane Sobral; e a Ogum’s Toques Negros, que funciona desde 2014 fora do eixo Rio-São Paulo, em Salvador, Bahia. Evidentemente, essas não foram as primeiras iniciativas do gênero. Destaco-as aqui por se inserirem no período abordado4.
O perfil político dessas editoras é evidente. Por meio de suas ações, elas buscam alterar a atual partilha do sensível, abrindo espaço para a leitura e a escuta de outros autores e atores políticos. Ou, segundo afirma o pesquisador em literatura afro-brasileira Luiz Henrique Silva de Oliveira, suas iniciativas têm “claro propósito de alteração das configurações do imaginário social hegemônico” (Oliveira, 2018, p. 157).
Essas não foram as únicas iniciativas desse gênero no início do século. No mesmo período, pudemos observar a criação de casas editoriais independentes centradas na literatura produzida nas periferias. Cito aqui a Literatura Marginal/Selo do Povo, criada por Ferréz em 2008; a Edições Toró, idealizada por Allan Santos da Rosa e lançada em 2005; e a Labortexto Editorial, responsável por publicar vários títulos de literatura carcerária contemporânea e pela primeira edição de Capão Pecado, de Ferréz.
Além da descentralização dos meios impressos de produção editorial, a disseminação da internet impactou as formas de publicação e divulgação literárias. De fato, desde o final dos anos 90, surgiram na cena cultural autores que se lançaram não por meio de editoras - comerciais ou independentes, de pequeno ou médio porte -, mas por suportes e veículos digitais, como blogs e mailzines (cf. Birman, 2013). As tradicionais mediações do jornal e das editoras não foram necessárias, assim, para que esses escritores formassem seu público leitor. Para citar dois exemplos, o blog brazileirapreta!, mantido entre 2001 e 2003 pela escritora Clara Averbuck, chegou a contabilizar mais de quinhentos acessos diários e cerca de seis mil semanais, nos seus períodos de atividade mais intensa (Vieira, 2019, p. 50). De acordo com Viera, o blog funcionou como uma espécie de laboratório literário e como um espaço de divulgação das primeiras obras da escritora. Já o mailzine CardosOnline (um zine enviado por e-mail, criado por André Czarnobai, Daniel Galera e Guilherme Pilla) foi publicado entre 1998 e 2001, contabilizando 278 edições no total. Inicialmente, ele começou a ser distribuído para 20 leitores e, em sua edição final, alcançou a marca de cinco mil assinantes, número mais alto que a tiragem inicial média de livros no país.
ENTRADA NA CENA DO VISÍVEL
Entendendo que tanto a política quanto a literatura (ou as práticas artísticas, de modo geral) baseiam-se na configuração do sensível - com as suas formas de visibilidade, sua ordem do dizível, sua distinção entre voz e ruído, sua determinação do que é comum e do que é repartido -, Jacques Rancière tem produzido, há mais de duas décadas, uma análise que me parece fundamental para entendermos a ligação entre o questionamento da democracia representativa e aquele da representação literária.
Parto, assim, do princípio de que a partilha atual tem sido desestabilizada tanto por manifestantes pós-2008 quanto por integrantes de grupos sociais subalternizados, em oposição à aliança do capital financeiro com os Estados (entre outros temas) e às representações literárias realizadas ao longo da história pelas elites intelectuais. Esses conflitos e essas divergências têm levado a transformações culturais, acontecimentos históricos e emergência de novos atores políticos, mas também esbarram em resistências, reações antidemocráticas, apagamentos.
Como mostrei na seção anterior, diversos novos autores e atores, políticos e literários, conseguiram furar as barreiras dos mediadores tradicionais da cena pública e da produção literária (partidos, meios de comunicação e editoras tradicionais) por meio da instauração de novos modos de visibilidade que desestabilizaram a partilha até então dada. Segundo sustenta Marcos Nobre, a compreensão da nova sociabilidade digital é indispensável para a análise da configuração das esferas públicas hoje. Nobre destaca que a crise da mídia tradicional coincide com a “crise da democracia”, revelando o papel estruturante da política que era, até então, exercido pela imprensa.
Foi nesse momento que se evidenciou o seu papel de gatekeeper da esfera pública e, em consequência, de guardião do acesso ao sistema político. A crise da mídia tradicional e mainstream coincide com o surgimento, a difusão e a consolidação das redes sociais, cuja lógica de funcionamento e apropriação por quem dela se utiliza permitiram “contornar” esses gatekeepers, possibilitando o surgimento de movimentos digitais capazes, inclusive, de decidir resultados eleitorais (Nobre, 2022, p. 91).
Precisamos, aqui, distinguir dois momentos: o das revoltas de 2010-2013 e o período pós-2016, que abordarei mais adiante. No contexto das revoltas sociais de 2010-2013, identificamos a entrada num espaço de visibilidade de uma série de atores, grupos e coletivos. Essa entrada foi propiciada, em grande parte, por meio da articulação entre ativismo na rede e ocupação de espaços públicos. Tal como descrito por Nobre, esses atores foram capazes de “contornar” os guardiões do sistema político, representados pela imprensa tradicional. Essa conclusão também é alcançada pelo psicólogo e pesquisador de tecnopolítica Javier Toret, um dos responsáveis pela criação da rede “Democracia Real Ya”, na Espanha de 2011. Toret lembra de uma coletiva de imprensa organizada pelo movimento 15-M que contou com apenas um órgão da imprensa. “As estações de TV nos ignoraram totalmente, da mesma forma que os jornais”. O desinteresse não impediu, porém, que o movimento ganhasse visibilidade. “Isso fez com que cada um fosse sua própria mídia. Também fez com que milhares de pessoas fossem seus próprios distribuidores de mídia. Por isso, esse é um movimento pós-mídia” (apud Castells, 2013, p. 94-95)5.
Como tem sido noticiado, os pesos e os usos das ferramentas digitais variaram nas diversas manifestações do período, assim como as suas imbricações com a imprensa tradicional, com o ciberativismo já atuante e, de modo mais amplo, com as diversas redes de sociabilidade envolvidas. Contrária à imagem simplista do “espontaneísmo” das Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, a socióloga Angela Alonso mostra, em amplo estudo sobre o ciclo de protestos, que seus manifestantes foram convocados sobretudo por três campos de ativismo político que começaram a crescer já nos anos Lula - os chamados neossocialistas, os autonomistas e os patriotas. A resposta a esses chamados se apoiou em grande parte em redes cívicas já existentes. Alonso (2023) cita como exemplo a pesquisa Ibope realizada em 20 de junho em oito capitais e no Distrito Federal. De acordo com o levantamento, cerca de 80% dos manifestantes participaram do protesto nesse dia em companhia de amigos e familiares, contra um pouco menos de 20% daqueles que foram sozinhos à manifestação.
A meu ver, isso não diminuiu o peso decisivo das tecnologias digitais na organização e na mobilização alcançada. De fato, segundo a mesma pesquisa Ibope citada, as redes virtuais foram responsáveis pela convocação de 61% dos manifestantes, contra 22,5% das redes presenciais e 16,5% da mídia tradicional. Além disso, o ciclo de protestos obteve uma virada importante após o 13 de junho, data em que a repressão desproporcional foi transmitida em tempo real, sem edição. “A Mídia Ninja viveu sua glória, com cobertura ao vivo, no miolo do rolo, enquanto a polícia descia o cacete. [...] Havia repórteres no ‘Brasil inteiro’. A estrutura tentacular provia material abundante e nacional. As redes cívicas proviam as conexões em cascata” (Alonso, 2023, p. 168).
Já na cena literária, o questionamento da representação cultural tradicional tem permitido o surgimento de escritores que não são apenas autores literários, mas também políticos, virtualmente capazes de abalar as fronteiras entre a voz e o ruído, o comum e o exclusivo, o visível e o invisível. Ao desejar a posição de sujeitos de sua representação, esses escritores saem do lugar ao qual foram destinados na partilha do sensível, com suas profissões diversas e subalternizadas como, por exemplo, de catadores de lixo, empregadas domésticas, assistentes sociais, auxiliares de escritório, entre outras.
Evidências dessas alterações podem ser atestadas por uma breve comparação entre os vencedores dos principais prêmios literários do país em dois períodos muito próximos: meados da primeira e meados da segunda década do século XXI. De fato, ao comentar a homogeneidade do campo literário nacional, a pesquisadora Regina Dalcastagnè (2012) lembra que a imensa maioria dos vencedores dos cinco principais prêmios literários do país entre 2006 e 2011 era formada por homens (29 escritores, contra apenas uma mulher que, mesmo assim, foi escolhida na categoria estreante)6. Já ao realizarmos comparação similar entre 2017 e 2021, o quadro não é exatamente o mesmo. Nesse período, quatro dos cinco prêmios citados por Dalcastagnè selecionaram doze homens, contra nove mulheres (sendo que uma das nove ganhou duas vezes seguidas o “Melhor livro do ano” do prêmio São Paulo de Literatura)7.
Já em relação ao perfil étnico-racial dos escritores, a minha comparação se baseará no autorreconhecimento dos próprios autores, o que nem sempre é divulgado. De toda forma, alguns lançamentos recentes atestam certa alteração nesse critério. Entre eles, destaco o imenso reconhecimento (prêmios Leya, Oceanos e Jabuti) de Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior, escritor que se reconhece como negro e recria nessa obra uma comunidade quilombola da Chapada da Diamantina, na Bahia. Outro exemplo é o recente ingresso na Academia Brasileira de Letras (ABL) da liderança indígena Ailton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo (2019). Por fim, lembro a conquista do Jabuti de duas iniciativas que tiveram sua origem em territórios periféricos: a Festa Literária das Periferias (FLUP) e o Slam Interescolar SP, vencedores na categoria Fomento à Leitura em 2020 e 2021, respectivamente.
Não afirmo com isso que alcançamos a igualdade no plano cultural. Mas é inegável que os exemplos aqui citados demonstram um processo de institucionalização da literatura produzida por integrantes de minorias até então inédito no país. Esse processo é parcialmente devedor das mudanças tecnológicas mencionadas na última seção, responsáveis, num primeiro momento (2000-2015), pela expansão de pequenas editoras e pela produção e divulgação da produção literária nas redes. Ele é indissociável ainda do fortalecimento dos movimentos identitários, ligados ou não aos projetos e autores aqui mencionados. Tudo isso certamente contribuiu para a entrada de novos escritores num espaço de visibilidade e escuta, impulsionando sua aceitação (parcial) num segundo momento (2017-2023) tanto nas instituições literárias quanto no mercado, com publicações por grandes editoras, prêmios, eleição na ABL. Lembro, porém, que, com a absorção de parte dessa produção pelo mercado, uma parcela das pequenas editoras independentes citadas na seção anterior foi fechada.
REGIMES DE VISIBILIDADE
Ao longo do artigo, relacionei as mudanças apresentadas nos domínios da política e da literatura a transformações na partilha do sensível, cuja reconfiguração abriu espaço para a leitura e a escuta de novos escritores e atores políticos. Além disso, entendo a diversificação do perfil autoral no Brasil como um dos desdobramentos possíveis do regime estético de visibilidade da arte, tal como conceitualizado por Rancière. Explico melhor essa hipótese.
O regime estético emerge gradualmente ao longo do século XVIII, em oposição ao regime representativo. Esse último é responsável pela autonomia das atividades artísticas que, ao serem separadas das outras formas de fazer, são classificadas e hierarquizadas de acordo com o princípio da representação. Mais do que expor minuciosamente esses dois sistemas, interessa-me destacar a dimensão fortemente hierárquica do regime representativo, hierarquia que não apenas o atravessa de ponta a ponta como também mantém forte relação com a ordem social externa: entre as ocupações dos indivíduos na comunidade, as camadas sociais às quais pertencem, etc. Segundo resume Rancière, nesse regime, a ordem representativa “entra numa relação de analogia global com uma hierarquia global das ocupações políticas e sociais” (2009, p. 32). Diferentemente do sistema representativo, o regime estético, porém, afirma a igualdade entre os temas e os gêneros. Nele, a arte, isenta de regras e hierarquias entre gêneros, passa a ser localizada numa fronteira sempre instável com a vida.
Contudo, não é preciso avançar muito na história da nossa literatura moderna e contemporânea para percebermos o quanto a igualdade entre temas e sujeitos é ali problemática, para afirmar o mínimo. Isso sem mencionar as distorções e os ruídos atribuídos a integrantes de grupos subalternizados quando recriados na produção literária. Em resumo, sabemos como a representação de negros, negras, indígenas e quilombolas foi marcada, de modo geral, pela invisibilidade, pela discriminação e, portanto, pela reafirmação de hierarquias sociais e culturais.
Suponho, assim, que o princípio hierárquico do regime representativo se manteve bastante atuante na ordem estética8. Nesse caso, ao se desdobrar, o regime estético teria se adaptado a princípios da ordem anterior, princípios que têm sido hoje abalados por autores que conseguiram entrar na cena do visível e do audível. E por críticos e leitores que escutaram essas vozes.
Minha hipótese, assim, é que a reivindicação e a valorização de autorrepresentações de integrantes de minorias ou a criação literária de sujeitos políticos relativamente recentes em nossa história se integra a esse movimento de afirmação da igualdade, na representação literária, próprio do regime estético. Fazem parte também dessa dinâmica processos de revisão historiográfica que, em suas releituras, dão visibilidade a obras desvalorizadas ou esquecidas, como aquelas de Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Julia Lopes de Almeida.
Esse movimento de afirmação democrática das letras é recebido, por um lado, por tensões ou mesmo contramovimentos, que abrangem recepções classificatórias, criação de nichos editoriais e vinculação do autor a um tema único. Por outro lado, ele também envolve, como mencionei, a institucionalização e absorção mercadológica de atores que até pouco tempo não tinham acesso a espaços de visibilidade e escuta. É importante entender, contudo, que a entrada em cena desses autores impulsionará efeitos de fato democráticos, na medida em que eles não restringirem sua circulação e sua recepção a bolhas de leitores homogêneas, assunto que tratarei brevemente na seção final do artigo.
Algo similar pode ser sustentado em relação aos protestos de 2013 no Brasil. Parte de seus atores entrou na cena pública e mesmo na política, da direita à esquerda, por meio tanto de discursos que se opunham às intervenções das instituições públicas quanto pela reivindicação da ampliação do espaço democrático e de avanços nas políticas públicas petistas. Esse grupo de novos atores é bastante diverso, incluindo mulheres negras da periferia, estudantes secundaristas e figuras críticas ao Estado - dependendo da visão, esse era entendido como estreitamente articulado à corrupção ou como demasiadamente interventor, na esfera econômica e no campo dos costumes (Alonso, 2023). Denominando esses últimos como patriotas, Alonso explica que eles não foram vistos nem ouvidos como opositores legítimos, o que ajuda a explicar, em parte, o desastre de 2018. “Não houve fracasso de interlocução com essa parte da rua, houve ausência”, resume a socióloga (2023, p. 268).
TESTEMUNHO
Além do desenvolvimento das tecnologias digitais, gostaria de sustentar aqui que a intensa expansão do discurso do testemunho na cultura contemporânea contribuiu não só para a divulgação da produção literária de integrantes de diferentes minorias como também para o desdobramento dos ciclos de protesto 2010-2013. O pressuposto do qual parto é o de que viveríamos hoje em culturas fortemente testemunhais nas quais esse discurso tem ocupado espaço até pouco tempo dominado pela confissão (cf. Radstone, 2006; Vaz, Santos e Andrade, 2014; Birman, 2020). Não me refiro, assim, de modo restrito, aos relatos testemunhais canónicos, vinculados sobretudo às grandes atrocidades do século XX. Incluo no horizonte desse estudo escritas e práticas orais de cunho testemunhal que circulam na cena cultural contemporânea: da literatura ficcional impressa à poesia oral, de imagens disseminadas em redes sociais a relatos publicados em microblogs, de revelações de celebridades e subcelebridades a campanhas feministas na rede.
O interesse por produções literárias que exploram a dimensão coletiva do sofrimento imposto a minorias historicamente discriminadas tende a crescer nessa cultura de valorização do testemunho. E, claro, além do interesse, cresce também o impulso para narrar a própria história de sofrimento impingido pelo outro. Nesse contexto, a literatura brasileira tem sido marcada, nas últimas décadas, por uma série de movimentos e tendências de cunho testemunhal. Essas tendências criam escritas híbridas, nas quais o romance e a autoficção se imbricam a relatos de violências como abuso sexual, violência policial, racismo. O testemunho é indissociável ainda da poesia performada dos slams, da chamada literatura marginal/periférica contemporânea e da escrita carcerária da atualidade. E parte dessa produção, vale lembrar, foi inicialmente publicada em pequenas editoras independentes, criadas na passagem do século XX para o XXI, como destacamos na seção sobre a ampliação de vozes literárias na atualidade.
Julgo pertinente destacar brevemente aqui duas diferenças fundamentais entre a confissão e o testemunho. A primeira delas se refere ao modo como o sujeito busca compreender o seu passado e o sofrimento vivido. A confissão consiste num discurso em que o sujeito se entende como implicado na sua história e na interpretação de seu passado, de modo ativo. Já no testemunho, o sujeito compreende seu trauma como provocado por um outro ou por um acontecimento externo, constituindo-se como um indivíduo inocente, a quem foi feito algo. “Na confissão literária, é a própria violência ou sexualidade do sujeito que perturba o narrador. No depoimento de uma testemunha é a violência ou sexualidade de um outro, ou o choque de um acontecimento, que perturba a testemunha”, explica Radstone (2006, p. 170, tradução minha).
A segunda distinção também diz respeito aos processos de subjetivação relativos aos dois discursos. O dispositivo da confissão requer do sujeito um exame de consciência que permite que ele simultaneamente represente e analise seus pensamentos, em busca da verdade do seu desejo e de seu eu. Por meio dessa introspecção, o sujeito que se confessa se constitui como um indivíduo que se compreende, no presente, como ligado a esse passado e aos seus desejos. No caso do testemunho, o processo de subjetivação requer a constituição de uma coletividade (determinada etnia, um grupo religioso, o conjunto de vítimas de certa empresa, etc.). O indivíduo se elabora como parte indissociável desse coletivo que sofreu uma injustiça, ainda que essa não tenha marcado todos do mesmo modo.
Poderíamos enquadrar aqui grande parte das produções literárias citadas acima, do slam à literatura carcerária. Fico com um único exemplo: a noção de escrevivência, por meio da qual a escritora Conceição Evaristo se refere a sua própria escrita literária e à escrita de outras mulheres negras, entendendo-as como uma tentativa de borrar a imagem das mães pretas e de outras mulheres escravizadas cujo ato de narrar era controlado pelos seus senhores. Ao tratar da escrevivência, Evaristo a distingue de uma série de outras narrativas focadas no sujeito isolado, individualizado, entendendo-a como uma prática na qual as autoras, mulheres negras e pobres, são marcadas pelos grupos aos quais pertencem, condição a partir da qual elas se dedicam à literatura (Evaristo, 2020)9.
Ao constituir um sujeito coletivo ao qual integra e circular no espaço público, o testemunho pode ser apropriado por outros indivíduos que, ao se reconhecerem em partes da história narrada, têm a possibilidade de reinterpretar o seu passado, subjetivando-se como vítimas de violência similar. Essa dinâmica foi examinada por Vaz, Santos e Andrade (2014) em análise sobre o blog francês “Je connais um violeur”. Esse blog não é uma exceção. De fato, é comum, após a revelação pública de uma brutalidade sofrida, o desdobramento em cadeia de testemunhos de agressão semelhante. Essa rápida circulação e proliferação de narrativas testemunhais também pode ser conferida em campanhas como #primeiroassédio, que em cinco dias alcançou a marca de mais de 30 mil relatos. Já a hashtag “Me too” foi empregada mais de 800 mil vezes em menos de uma semana. Independentemente da velocidade e da eficiência técnica envolvidas, aposto aqui, ao lado de Vaz, Santos e Andrade, numa particularidade do gênero testemunhal, em sua capacidade de replicação e disseminação.
Como sugeri, essa capacidade de replicação e disseminação do testemunho no espaço público também impulsionou, em alguma medida, protestos entre 2010-2013. Sem ter como apresentar e analisar esses discursos testemunhais em suas particularidades, assim como os diferentes impactos obtidos por eles, eu me restringirei a abordar brevemente dois exemplos.
A Primavera Árabe teve início, lembro, com a história de um mártir: o vendedor ambulante Mohammed Bouazizi, que se autoimolou em frente a um prédio do governo em dezembro de 2010, após ter produtos seus confiscados pela polícia sob a alegação de que ele não tinha autorização para vendê-los. O protesto que se formou em frente ao edifício, após ele atear fogo em si mesmo, foi filmado e publicado na internet. As imagens dessas e de outras manifestações acabaram por ganhar o mundo graças às redes sociais e à televisão por satélite.
Posteriormente, partes da narrativa sobre Bouazizi foram questionadas, abalando, em alguma medida, a sua imagem. Embora o estabelecimento dos fatos seja imprescindível, interessa-me aqui indicar os principais elementos da história contada sobre ele que foram capazes de despertar raiva, revolta e identificação da população tunisiana (em especial os jovens): opressão policial, humilhação pública (por uma policial mulher), corrupção e falta de emprego apropriado para jovens qualificados10. Esses protestos conseguiram, como vimos, alcançar visibilidade e ocupar um espaço na partilha do sensível, apesar das tentativas do governo de Ben Ali de censurá-los e lhes devolver à invisibilidade.
Outro exemplo da força do testemunho no âmbito dos protestos do período é menos extremo, mas nem por isso sem efeito. Ele pode ser extraído do Occupy Wall Street. Refiro-me aqui à página do Tumblr “Nós somos os 99%”, lançada em meados de agosto de 2011, antes dos protestos iniciados em 17 de setembro, com a marcha em direção ao Zuccotti Park. “Nós somos os 99%” demandava aos leitores que postassem fotos suas segurando cartazes nos quais eles contavam como a crise econômica tinha afetado as suas vidas. No dia 8 de setembro, a página publicou cinco posts. Poucas semanas depois, ela passou a receber mais de cem textos por dia.
Essas postagens, que empregavam em grande parte o discurso testemunhal, contribuíram para a mudança na imagem dos protestos e impulsionaram outros testemunhos, disseminando-se rapidamente na rede. Em relação à alteração na recepção das manifestações, lembro de duas observações similares. A primeira é de Kalev Leetaru, diretor adjunto para análise de textos e meios digitais da Universidade de Illinois Urbana-Champaign. De acordo com ele, a narrativa dos principais meios de comunicação sobre os protestos, focada na ideia de que eram formados por universitários e hippies, começou a ser desestabilizada na medida em que a página do Tumblr era compartilhada (cf. EMSPAK, 2011). A segunda foi feita por Graham-Felsen (2011). Para ele, “Nós somos os 99%” ajudou a alterar a percepção da imprensa tradicional, que rejeitava o movimento, vinculando-o a uma esquerda radical. Essas conclusões são reiteradas pela jornalista Ezra Klein, citada pelo próprio Graham-Felsen: “Não foram as detenções que me convenceram de que o ‘Occuppy Wall Street’ merecia uma cobertura séria. Tampouco sua estratégia de imprensa [...]. Foi um Tumblr intitulado ‘Nós somos os 99%’”, escreveu ela no Washington Post (apud Graham-Felsen, 2011, tradução minha). Assim, a página e os protestos conseguiram não só conquistar visibilidade dos meios de comunicação tradicionais como também influenciar narrativas veiculadas nesses meios.
O segundo aspecto citado se refere ao impulso ao testemunho provocado pelas postagens. Segundo sustentei mais acima, o discurso do testemunho tem a capacidade de fomentar um processo de subjetivação baseado no reconhecimento e na apropriação de partes do discurso do outro. No caso dessa página, tratam-se, sobretudo, de testemunhos de sofrimentos provocados pela crise econômica americana de 2008, a segunda maior da história do país. Nessas narrativas de desalento e decepção com o “sonho americano”, os indivíduos contam como não têm como pagar empréstimos estudantis, dívidas de cartão de crédito e tratamentos médicos, como enfrentam a redução da sua renda, o desemprego ou a necessidade de se dividir entre três trabalhos de tempo parcial. Muitos deles buscam desconstruir a tese da meritocracia, afirmando que fizeram as escolhas certas, que trabalham duro e não são preguiçosos. “Não tinha seguro de saúde nem esperança de sobreviver”, conta uma mulher que se curou de um câncer, então com 44 anos; “talvez eu nunca saiba o que é estar financeiramente seguro”, afirma um rapaz com deficiência auditiva que precisa escolher entre pagar o aluguel ou comprar um novo aparelho auditivo”; “o que aconteceu, América?”, pergunta um jovem; “sempre acreditei no sonho americano, mas o 1% me roubou isso”, resume outra mulher.
Difícil esses testemunhos não ecoarem fortemente entre os americanos, sobretudo os jovens, no então cenário de forte crescimento do endividamento estudantil (passou de US$ 80 bilhões para US$ 550 bilhões, entre 1999 e 2011), do desemprego (quase 15% entre jovens de 20 a 24 anos) e de avanço na concentração de renda. Assim, eles não apenas ecoaram, como se multiplicaram, aumentando o apoio ao movimento, sua visibilidade e sua escuta.
BOLHAS E ALGORITMOS: ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
Como todos devem lembrar, logo depois dos protestos pós-2008 acompanhamos o fortalecimento do nacionalismo e da ultradireita no mundo. O plesbicito pelo Brexit (2016), as eleições de Trump (2016) e de Bolsonaro (2018) estão entre os principais resultados desse fortalecimento que, evidentemente, já vinha se desdobrando há bem mais tempo e se vincula, de outras formas, à crise da democracia representativa.
Esse desdobramento último também não pode ser compreendido sem o reconhecimento do impulsionamento de campanhas eleitorais pelas redes sociais, porém, não de forma autônoma e livre, como se apostava ingenuamente ao longo dos protestos. De fato, acompanhamos em diversas campanhas pós-2008 o uso de mecanismos questionáveis que influenciaram os eleitores, pela falta de transparência e/ou por serem passíveis de criminalização. Entre eles: uso de algoritmo para a seleção de notícias recebidas pelo usuário (com a consequente formação de bolhas digitais), impulsionamento de determinados conteúdos (para públicos previamente segmentados ou não), produção e disseminação de notícias falsas, uso de dados privados não autorizados, emprego de perfis falsos e de bots, contratação de disparos em massa de mensagens11.
O que são esses mecanismos? São mediadores da comunicação digital atual que, desse modo, não pode ser de modo algum entendida como autônoma e livre. O mundo polarizado vivido no Brasil e em outros países é indissociável da criação dessas bolhas, nas quais as pessoas reforçam a sua visão de mundo e restringem seu acesso a informações e opiniões contraditórias. São espaços nada propícios à prática democrática. Ou pior: de maior inclinação para a adoção de posturas fascistas, de recusa à diferença.
Assim, se num primeiro momento foi constatado o surgimento de novos atores políticos que, apoiados em tecnologias digitais diversas, conseguiram “furar” o controle dos mediadores tradicionais (imprensa, partidos, sindicatos), nessa segunda etapa temos diversas outras formas de controle e, dependendo do uso, de perigosa manipulação. Se já de início considero complicado caracterizar um processo comunicacional - inserido em culturas próprias e redes de sociabilidade particulares, constituído por determinados gêneros discursivos, mediado por ferramentas tecnológicas com características específicas - como “autônomo e livre”, a partir de 2016, aproximadamente, foram identificados contramovimentos voltados especificamente para o domínio dos fluxos de comunicação, envolvendo ou não a produção e a circulação de notícias falsas. Isso não significa que a comunicação em massa voltará à sua anterior estrutura verticalizada, responsável pela difusão da mesma informação para um grande conjunto de eleitores. Nesse novo contexto, as campanhas políticas trabalham cada vez mais com públicos segmentados, cujos diferentes perfis de integrantes devem receber a mensagem considerada “a mais apropriada” para cada um deles, seja ela voltada para intensificar seus medos e suas angústias, para fomentar a rejeição a determinados políticos ou para fortalecer a imagem de candidatos antissistema.
É relevante ainda lembrar que, nesse caso, é possível reconhecer um terceiro movimento de desconfiança em relação à representação: trata-se aqui daquela direcionada aos meios e às empresas tradicionais de comunicação, ao jornalismo profissional. Muitos eleitores, nesse caso, acabaram se confinando em suas bolhas digitais, fontes de “informações” produzidas com foco exatamente no seu perfil de crenças e interesses.
De modo similar, suponho que, se a expansão de perfis de autores, de leitores e a valorização da poesia falada contribuem para a democratização literária, o efeito desta terá maior potência dependendo da capacidade dos autores, leitores e mediadores de não aprisionar essas produções em bolhas culturais. Essas bolhas podem ser comparadas, por exemplo, à imposição de nichos editoriais para certos perfis de autoria, a atos de cancelamento de artistas de quem discordamos, a linchamentos digitais e à imposição de limites ao que e a quem pode ser representado, assim como quem pode criticar qual obra.
Num caso como no outro, a demanda pela ampliação da representação e da participação nas cenas cultural e política acaba resultando na imensa restrição de quem escutamos, lemos e com quem dialogamos. Ou, se quisermos, na criação de bolhas do sensível, incomunicáveis entre elas. Para combater essa diminuição do alcance da representação, cujos efeitos se restringem à própria bolha, é preciso dar transparência aos mediadores, assim como refletir criticamente sobre a sua atuação e sobre a necessidade de criminalização de parte deles: da seleção feita pelos algoritmos à divulgação de notícias falsas; da elaboração do sujeito coletivo que busca dar voz a um grupo social ao silenciamento de outras vozes, entendidas como “sem lugar de fala”; da produção editorial que enquadra o autor num determinado nicho à circulação que restringe as possibilidades de leitura; da atuação de robôs à elaboração de perfis falsos.
Espero, assim, que as legítimas reivindicações por mudança na partilha do sensível não nos levem a uma reconfiguração desse sensível por meio da qual a hierarquia vertical venha a ser substituída por bolhas de reduzida comunicação e tolerância umas com as outras. Tal como busquei sustentar ao longo do artigo, uma série de mudanças tecnológicas e discursivas permitiu a emergência de novos atores e autores, nos domínios social e cultural, pressionando por movimentos de democratização política e literária. Se essas pressões conseguiram de fato alcançar visibilidade, torço aqui para que esse processo de descentralização se desdobre também numa ampliação concreta do horizonte de escuta e entendimento.
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1
Para Jacques Rancière, a política possui desde sempre uma dimensão estética. A partilha do sensível, que dá forma à comunidade, consiste numa organização do sensível, com suas diferentes divisões, ordens e formas, tais como a demarcação daquilo que é comum a todos e daquilo que é exclusivo, a articulação entre as ordens do visível e do dizível, a ligação entre as formas de fazer, de ser e de dizer. Segundo Rancière, a política “é estética desde o início, na medida em que é um modo de determinação do sensível, uma divisão dos espaços — reais e simbólicos — destinados a essa ou àquela ocupação, uma forma de visibilidade e de dizibilidade do que é próprio e do que é comum” (Rancière, 1995, p. 8).
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2
Desde que elaboramos o projeto de criação do grupo de pesquisa Exodus, no final de 2018, Francisco Foot Hardman e eu já considerávamos a análise das correspondências entre o abalo das representações políticas tradicionais e literárias na atualidade uma das problemáticas norteadoras dos estudos a serem desenvolvidos no novo núcleo. Esse artigo constitui o primeiro resultado do empenho dessa articulação. Agradeço, assim, ao vice-coordenador do Exodus, Francisco Foot Hardman, e aos participantes do III Colóquio Exodus e GEDLit, encontro em que apresentei a versão preliminar deste texto.
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3
Não foi possível identificar o número exato de editoras ativas no país entre 2000 e 2015 para acompanhar, assim, seu crescimento ou decréscimo. As informações obtidas por levantamentos do próprio setor editorial indicam o número de 750 casas editoriais ativas em 2009. Desse total, 498 corresponderiam ao critério empregado pela Unesco (mínimo de cinco título por ano e produção de pelo menos 5 mil exemplares/ano). Nesse cenário, calcula-se, portanto, que teríamos em 2009 um pouco mais de 30% de casas de baixa produção, a ponto de não serem enquadradas como editoras no critério apresentado. Sobre esses dados, cf. CBL, SNEL e FIPE (2011). Já de acordo com o Cadastro Central de Empresas (IBGE, [s.d.]), identificamos, por um lado, entre 2006 e 2015, o crescimento no número de editoras, e, por outro, a diminuição no número de casas cujas atividades são integradas à impressão de livros: enquanto as empresas sem gráfica passaram de 2382 (2006) a 3308 (2015), aquelas com gráfica passaram de 1625 a 927, dados que corroboram o que mencionamos sobre o crescimento de pequenas casas independentes (IBGE, [s.d.]).
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4
Ao traçar um panorama dos principais quilombos editoriais do país, Oliveira destaca, ainda no século XIX, a atuação da Tipografia Fluminense de Brito e Cia, criada em 1832 por Francisco de Paula Brito. Ela foi responsável, por exemplo, pela publicação do jornal O homem de cor, que “propunha o fim da escravidão, a inserção do negro no mercado de trabalho como assalariado, a industrialização do país e a ampliação do acesso a bens e serviços culturais a toda a população” (Oliveira, 2018, p. 160). Não sustento aqui, portanto, a emergência desses quilombos na atualidade, mas sim a fundação de um número significativo deles no período estudado. De fato, entre as oito casas destacadas por Oliveira, quatro foram criadas entre 2000 e 2015.
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5
Desde que introduzido por Félix Guattari em 1989, o conceito de pós-mídia tem sido empregado e desdobrado na discussão sobre a reconfiguração dos meios de comunicação na atualidade, incluindo seus efeitos culturais e estéticos. Segundo Guattari, a pós-mídia deve ser “entendida como uma reapropriação da mídia por uma multidão de grupos-sujeito, capazes de geri-la numa via de ressingularização” (Guattari, 1990, p. 47).
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6
Os cinco prêmios citados pela pesquisadora são os seguintes: Jabuti, São Paulo de Literatura, Machado de Assis, Portugal Telecom, Passo Fundo Zaffari & Bourbon. Como Dalcastagnè explica, foi levado em consideração apenas o primeiro lugar na categoria principal de cada prêmio. No caso do prêmio São Paulo de Literatura, foram consideradas categorias principais tanto a “livro do ano” quanto a “autor estreante”, uma vez que elas são excludentes.
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7
Apoiamo-nos aqui nos prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura, Machado de Assis e Oceanos (que substituiu o Portugal Telecom). Como a última edição do Passo Fundo Zaffari & Bourbon foi em 2013, ele foi excluído da comparação. Lembramos que, ao levantar os vencedores do prêmio São Paulo de Literatura, levamos em consideração três categorias: “livro do ano”, “autor estreante” e “autor estreante até 40 anos”, instituída em 2013.
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8
É importante entender, nesse contexto, dois pontos relativos à noção de regime de visibilidade da arte, tal como elaborada por Rancière. O primeiro é que ele não deve ser simplesmente identificado a uma determinada época. Esses regimes constituem sistemas historicamente constituídos, relacionados aos modos de visibilidade, realização e entendimento das práticas artísticas, assim como às formas de atuação dessas atividades na sociedade e suas relações com as demais ocupações sociais. Esse chão de possibilidades de produção e interpretação da atividade artística não corresponde, de modo esquemático e limitado, a um período histórico rigidamente traçado. Essa conclusão nos permite chegar ao segundo ponto a ser destacado: embora possamos situar historicamente a emergência de um novo regime e a sua progressiva hegemonia, essa emergência não deve ser compreendida como o fim dos regimes anteriores. De fato, de acordo com o filósofo argelino, elementos de distintos regimes de identificação das artes podem coexistir e se entrelaçar de formas várias. Entre vários exemplos possíveis, lembro a distinção realizada por Rancière entre os modelos de eficácia próprios aos diferentes regimes de identificação da arte. Nesse exame, ele afirma que parte significativa do que entendemos como política da arte está presa hoje a modelos já abalados pela ruptura estética, mas que ainda têm forte vigência em determinados domínios artísticos (Rancière, 2012, p. 51-81). Cf. ainda Cachopo (2013); Conde (2017); Deranty (2010).
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9
Empregado por Evaristo pela primeira vez em 1995, o termo escrevivência tem sido amplamente discutido por estudiosos dedicados à obra da autora. Cf., por exemplo, a antologia organizada por Duarte, Côrtes e Pereira (2023). Ver ainda, neste mesmo dossiê, a análise do caráter coletivo da literatura contemporânea realizada por Fan Xing (2024).
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10
Ao mencionar o questionamento de partes específicas das narrativas sobre Bouazizi, eu me refiro, em especial, a dois fatores. Em primeiro lugar, ao fato de ele ter sido muitas vezes apresentado como um jovem com diploma universitário que não encontrou emprego apropriado na sua área. Embora falsa, essa descrição é capaz de gerar forte efeito no alto número de jovens qualificados da Tunísia. Além disso, familiares e uma testemunha afirmaram que Bouazizi havia sido humilhado por uma policial que chegou a esbofeteá-lo. A humilhação pública, nesse caso, teria sido intensificada pelo fato de a agente ser uma mulher. Esse fato não foi comprovado.
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11
Sobre a eleição de 2018 no Brasil e o financiamento empresarial de disparos em massa pelo WhatsApp, cf. Mello (2020).
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DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISAOs dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.
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Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Jul 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
01 Fev 2024 -
Aceito
28 Mar 2024 -
Publicado
15 Abr 2024