Open-access Potencialidades do método regressivo-progressivo: pensar a cidade, pensar a história

The potentialities of the regressive-progressive method: thinking the town, thinking history

Resumos

Sabendo que o método regressivo-progressivo de Henri Lefebvre foi explicitado pela primeira vez em dois artigos voltados a pensar a realidade social do mundo rural, meu objetivo, neste estudo, é explorar, à luz do exemplo paulistano de fins do século XIX, as potencialidades teórico-metodológicas do instrumento para uma reflexão sobre a historicidade dos processos sociais em um contexto urbano. Do ponto de vista teórico, o método permite uma compreensão mais abrangente de como o desencontro de temporalidades ligadas ao tradicional e ao moderno concorre para a dinâmica de urbanização que engolfou cidades como São Paulo no último quartel do XIX. E isso porque, em termos metodológicos, a perspectiva lefebvriana conduz, em relação ao contexto paulistano, a uma sistematização da documentação histórica que ressalta a coexistência, no tempo, de representações historicamente contraditórias sobre o dia-a-dia vivenciado no espaço da rua em meio ao processo histórico então em curso.

historicidade; urbanização; método regressivo-progressivo; Henri Lefebvre; São Paulo; rua; transeunte


Taking into account that Henri Lefebvre's regressive-progressive method was exposed for the first time in two articles dealing with the social reality of the urban world, the aim of this paper is to analyze, in the light of the Paulistano example of the end of the 19th century, the theoretical-methodological potentialities of the instrument to reflect on the historicity of an urban context. From the theoretical point of view, the method allows for a wider understanding of how the temporalities connected to the traditional and to the modern do not meet, and how this contributes to the urbanization dynamics that engulfed towns such as São Paulo in the last quarter of the 19th century. This is due, in methodological terms, to the fact that the Lefebvrian perspective, in the context of São Paulo, leads to the systematization of the historical documentation that emphasizes the co-existence, in time, of historically contradicting representations on the daily life taking place on the streets in the midst of a historical process in course.

historicity; urbanization; regressive-progressive method; Henri Lefebvre; São Paulo; street; transient


ARTIGO

Potencialidades do método regressivo–progressivo: pensar a cidade, pensar a história

The potentialities of the regressive–progressive method: thinking the town, thinking history

Fraya Frehse

Doutoranda em antropologia social pela FFLCH–USP

RESUMO

Sabendo que o método regressivo–progressivo de Henri Lefebvre foi explicitado pela primeira vez em dois artigos voltados a pensar a realidade social do mundo rural, meu objetivo, neste estudo, é explorar, à luz do exemplo paulistano de fins do século XIX, as potencialidades teórico–metodológicas do instrumento para uma reflexão sobre a historicidade dos processos sociais em um contexto urbano. Do ponto de vista teórico, o método permite uma compreensão mais abrangente de como o desencontro de temporalidades ligadas ao tradicional e ao moderno concorre para a dinâmica de urbanização que engolfou cidades como São Paulo no último quartel do XIX. E isso porque, em termos metodológicos, a perspectiva lefebvriana conduz, em relação ao contexto paulistano, a uma sistematização da documentação histórica que ressalta a coexistência, no tempo, de representações historicamente contraditórias sobre o dia–a–dia vivenciado no espaço da rua em meio ao processo histórico então em curso.

Palavras–chave: historicidade, urbanização, método regressivo–progressivo, Henri Lefebvre, São Paulo, rua, transeunte.

ABSTRACT

Taking into account that Henri Lefebvre's regressive–progressive method was exposed for the first time in two articles dealing with the social reality of the urban world, the aim of this paper is to analyze, in the light of the Paulistano example of the end of the 19th century, the theoretical–methodological potentialities of the instrument to reflect on the historicity of an urban context. From the theoretical point of view, the method allows for a wider understanding of how the temporalities connected to the traditional and to the modern do not meet, and how this contributes to the urbanization dynamics that engulfed towns such as São Paulo in the last quarter of the 19th century. This is due, in methodological terms, to the fact that the Lefebvrian perspective, in the context of São Paulo, leads to the systematization of the historical documentation that emphasizes the co–existence, in time, of historically contradicting representations on the daily life taking place on the streets in the midst of a historical process in course.

Key words: historicity, urbanization, regressive–progressive method, Henri Lefebvre, São Paulo, street, transient.

Este texto é produto de uma inquietação teórica mais ampla em relação à urbanização paulistana da virada do séc. XX. Essa preocupação gira em torno da historicidade dos processos sociais em contextos urbanos submetidos a intensas — até então ímpares — transformações de cunho socioeconômico, demográfico, urbanístico, físico, como é a São Paulo de fins do Oitocentos.

Meu objetivo aqui é demonstrar como as reflexões metodológicas de Henri Lefebvre sobre as "temporalidades da história" (Martins, 1996) me ajudaram, num trabalho específico (Frehse, 1999), a desenvolver uma leitura antropológica daquilo que seria a historicidade dos processos sociais na São Paulo da segunda metade do XIX — concepções específicas que as diversas sociedades têm do devir em meio à vigência de relações de dependência, de "modos de socialidade", também peculiares (Lefort, [1951]* 1979, p. 48). Precisamente, discorrerei sobre como o método regressivo–progressivo, explicitado por Lefebvre pela primeira vez em dois artigos voltados a pensar a realidade social do mundo rural (Lefebvre, [1949] 1981b; [1953] 1981a), me forneceu uma perspectiva de compreensão do mundo urbano paulistano da época; em particular, como a sociedade paulistana de então percebeu, no âmbito local, da vida de todo dia, o processo histórico que vivenciou — e ajudou a consolidar — na cidade naquelas décadas.

Nesse momento, e em especial a partir da década de 1870, a cidade passa a conviver com intensas mudanças socioeconômicas, demográficas e urbanísticas, em meio à prosperidade crescente das exportações cafeeiras do chamado "Oeste" paulista, à implantação da ferrovia e à crise final da escravidão no país. Esse conjunto de fatores conflui para caracterizar a urbanização paulistana de fins do XIX. Ela implica uma alteração das funções dos espaços da cidade em favor de um maior controle e racionalização, de modo a assegurar para São Paulo o status de entreposto comercial e financeiro privilegiado para as relações entre a lavoura cafeeira paulista e o capital internacional.

Frente a essa conjuntura, uma problemática que se coloca é: E as pessoas, nesse universo urbano fortemente pautado por concepções socioculturais escravistas e rurais? Como percebem esse momento histórico? Relações de sociabilidade hierarquizadas, que davam sentido a um dia–a–dia cujo eixo central de referências era a casa patriarcal, começam a conviver, de maneira cada vez mais intensa, com outras, de caráter contratual e pautadas na racionalidade do capital. Estas se difundem na cidade mediadas, em boa parte, pelas novas mercadorias e equipamentos de infra–estrutura modernos introduzidos no espaço urbano; pelas novas ruas e bairros que vão sendo rasgados por um território definitivamente alcançado pela especulação imobiliária.

Levando–se em consideração que as duas décadas finais do Império representam, nesse contexto, um momento em que essa nova ordem urbana se insinua, ao mesmo tempo em que as antigas relações e concepções patriarcais e escravistas, fadadas à desagregação, ainda se fazem bastantes presentes, concentrei–me nesse período. Entender como a sociedade paulistana lida com essa realidade histórica, como percebe as mudanças que vai ajudando a consolidar, é disso que se trata especificamente. Enfim, o que está em jogo é a compreensão do tempo em que se altera a própria história, nesse espaço em transformação que é a cidade de São Paulo nas duas décadas finais do Império.

Para tanto, foi fundamental assumir como ponto de reparo a história local e cotidiana, escala de tempo dos fatos imediatos e particulares, percebidos como únicos pelas pessoas dia a dia. O mundo que os indivíduos criam nesse âmbito, ao mesmo tempo em que, sem saber, são por ele criados, é prenhe de história — de uma história da qual a história cotidiana não é reflexo, e sim mediação (cf. Martins, 1992, p. 3). Das tensões e contradições implícitas nessa relação emerge um solo riquíssimo para a compreensão do ritmo da história nas diversas sociedades; no universo paulistano de fins do XIX.

Com esse pressuposto teórico–metodológico em mente, debrucei–me sobre uma série de documentos históricos nos quais é possível encontrar considerações de contemporâneos sobre o dia–a–dia vivenciado na cidade engolfada pela dinâmica de urbanização da segunda metade do XIX. Concentrar–me–ei, neste texto, basicamente nos dados fornecidos por três jornais diários paulistanos da época1. O lidar com essa documentação trouxe à tona um escopo absolutamente variegado de observações sobre as vicissitudes da rotina de uma gama difusa de indivíduos — autores e/ou pares dos autores dos relatos contemplados — na cidade. Trata–se de setores mais ou menos anônimos da população, que integram a nascente "opinião pública" paulistana — e que nessa dinâmica a constituem historicamente, a partir de meados do século XIX (cf. Morse, [1954] 1970, p. 174). Leitores apenas, ou jornalistas empregados nos diversos órgãos de imprensa, esses grupos justificam o suposto caráter "público" de suas opiniões — cujo escopo de abrangência seria a sociedade como um todo — tematizando, entre outros, as atividades sociais vigentes no espaço urbano, que avaliam positiva e negativamente. Assim, por exemplo, convivem nos jornais num mesmo ano elogios rasgados e depreciações enfáticas a equipamentos urbanos então absolutamente novidadeiros, quanto os bondes a burro, cuja primeira linha foi inaugurada em outubro de 1972:

A gente senta–se no carro no pateo do Carmo, do Collegio, ou onde nos dá no nariz, e em poucos minutos chega–se na estação, livre dos abalos com que nos revolvião as tripas os srs. cocheiros, parecendo querer fural–as, não lembrando–se que podia extravasar–se o conteúdo2.

Carris de ferro de S. Paulo — Chama–se a attenção do sr. dr. chefe de policia e dos srs. directores da respectiva companhia para o modo irregular e indigno de uma capital como esta, pelo qual é feito o serviço de bonds...3

A mesma coexistência de ovação e crítica faz–se presente quando o tema são costumes dos mais tradicionais: os coloniais entrudos, por exemplo, rituais carnavalescos de origem ibérica que prevêem molhar com bolas de cera cheias de água os foliões nas ruas durante as festividades. Não raro a ambigüidade perpassa uma mesma fala. Esse é o caso, por exemplo, de uma personagem da crônica jornalística célebre na época, o "sr. Segismundo", caipira do interior que, de passagem pela cidade, comenta em extensas cartas a um suposto "compadre" de Itu o que vê. À primeira vista, a figura critica o velho costume...

Estamos no mez do entrudo, compadre, e aqui a rapaziada está esquentada de uma vez. Dizem que não há mais bólas (...) E é bem bom isso, compadre. Pois é graça ir um proximo a negócio, escorrendo de suor; e de repente — zás — uma bóla no pello da camisa delle!4.

Porém, um parágrafo adiante parece mudar de posição:

Mas, compadre, eu já vi bóla por ahi algures; [...] eu não lhe digo que não pegarei em bóla (e em quantas não tenho pegado?). o [sic] ponto é ser preciso me vingar de algum malvino ou malvina que venha me aggravar minhas perévas, meu romantismo5.

Discursos como esses, assumidos, em seu conjunto, como corpus documental, configuram uma complicada equação que justapõe um mesmo momento histórico, um mesmo espaço urbano e uma absoluta diversidade de concepções a respeito de acontecimentos vigentes nesse tempo e nesse espaço. Essa característica faz com que esses registros se assemelhem demais à imagem evocada por Lefebvre para sintetizar, em seu artigo programático sobre o método regressivo–progressivo, a complexidade do mundo rural: "um emaranhado de fatos, que apenas uma boa metodologia pode desembaraçar" (Lefebvre, 1981a, p. 166). E isso sobretudo se o objetivo é pensar, a partir desses discursos variados, percepções sociais mais amplas sobre o tempo histórico.

Reconhecendo como desafio interpretativo contido na documentação, entender a lógica sociocultural que perpassa o modo como se articulam, num contexto urbano em mutação — São Paulo — e num mesmo período — vinte anos —, discursos e práticas gestadas em tempos históricos diversos, foi inevitável recorrer a Henri Lefebvre. Por enfrentar a relação tensa e difícil existente entre tempo histórico, espaço e vida cotidiana, o método regressivo–progressivo do autor pôde me oferecer uma instigante perspectiva para a seleção, sistematização e análise do corpus documental.

I

Resultado fundamental do reencontro, em Karl Marx, da noção de "formação econômico–social", o método aparece, na reflexão de Lefebvre, como contraponto ao tratamento teórico ao qual é submetida a tese central marxiana sobre o processo histórico. Com efeito, explorando as potencialidades interpretativas contidas na categoria de "formação econômico–social" em relação a um objeto bem específico, a comunidade rural francesa, o sociólogo chegou a alguns desdobramentos da "lei do desenvolvimento desigual" — referida ao processo histórico como um todo e, em particular, a um segmento dele, a formação econômico–social capitalista: a desigualdade de ritmos históricos nos quais avançam as forças produtivas; o âmbito espacial dos processos históricos; e a coexistência, na vida social, de tempos históricos diversos (passado, presente e futuro) (cf. Martins, 1996, p. 17–19). Em termos metodológicos, essas constatações teóricas se traduzem num conjunto de procedimentos voltados a explorar especificamente a "dupla complexidade" da realidade camponesa com a qual Lefebvre se depara na França dos anos quarenta e cinqüenta do século XX: complexidade horizontal, "diferenças essenciais" existentes "nas formações e estruturas agrárias da mesma época histórica"; e complexidade vertical, "a coexistência de formações de épocas e datas diferentes" (Lefebvre, 1981a, p. 165–166). Esses procedimentos correspondem, na verdade, a três momentos da pesquisa num "local" definido pelo pesquisador. Depois de descrever, por meio da "observação participante", este "local", cabe ao sociólogo "datar" a realidade descrita, a fim de, num terceiro momento, apreender as "modificações desta ou daquela estrutura previamente datada, causadas pelo desenvolvimento ulterior (interno ou externo) e por sua subordinação às estruturas de conjunto" (Lefebvre, 1981a, p. 173).

Entretanto, o que justificaria a aplicação do método a um universo social como a São Paulo de fins do Império, tão profundamente diferente, em termos sociológicos, espaciais e temporais, da "comunidade rural atual" que inspirou Lefebvre? Afinal, a Imperial Cidade é, diferentemente do mundo rural focalizado pelo nosso autor, um universo urbano — mesmo que se trate de um urbano ruralizado, conforme atesta a intensa presença, nos espaços centrais da cidade nos anos que aqui interessam, de atividades sociais estreitamente vinculadas ao mundo rural, como a criação e o comércio de cabras, porcos e muares6.

A fim de responder a questão, nada melhor do que retomar, mesmo que brevemente, as condições de produção do próprio método lefebvriano. O seu diálogo transcorre, em primeira instância, com os sociólogos rurais, então pouco afeitos a enxergar no mundo rural mais do que uma "confusa mescla acidental de homens, de animais e de coisas" desprovida de um passado. O passado, no campo, permaneceria tão atual e vivo que chegaria a se confundir com o presente, de forma a suscitar a impressão de que não é passado (Lefebvre, 1981b, p. 144–146). Diferentemente, o mundo urbano atestaria de maneira mais explícita a presença do passado como passado: "Numa rua de Paris, um hotel da idade média [sic] afasta–se, por si próprio, da 'modernidade' ao redor e guarda, em si mesmo, sua distância no tempo. Os edifícios justapostos, das ruínas romanas aos bancos, reproduzem no espaço, as idades da história, a sucessão de suas épocas" (Lefebvre, 1981b, p. 145). Tal como no mundo rural abordado por Lefebvre, na São Paulo da segunda metade do XIX o passado está tão presente que com este se confunde. No entanto, diferentemente dos Pireneus dos anos quarenta, a partir desse momento a presença do passado começa a ser identificada com uma realidade que, por seu caráter mesmo de passado, passa a ser combatida política e materialmente. Advém dessa ambigüidade — e da enorme dramaticidade que ela encerra para a vida de todo dia das pessoas na cidade — a riqueza analítica que o contexto paulistano oitocentista oferece ao observador.

Minha opção foi submeter o corpus de discursos sobre o cotidiano na cidade de fins do XIX aos três procedimentos lefebvrianos. Trilhando essa trajetória foi possível compreender como o desencontro de temporalidades ligadas ao tradicional e ao moderno concorre para a dinâmica de urbanização que caracteriza cidades como São Paulo no último quartel do XIX.

II

Se, como afirma Lefebvre, a "lei de desenvolvimento desigual de formas análogas e de interação dessas formas parece ser uma das grandes leis da história", isso implica que num mesmo espaço, "local de pesquisa", convivam essas relações sociais e concepções historicamente diversas. A fim de aplicar concretamente o método, a dúvida fica sendo, portanto, definir o "local" cujas realidade fenomênica será descrita, datada, histórico–geneticamente analisada. Isso se torna mais complexo ainda no caso de um universo de dimensões ao mesmo tempo amplas e indefinidas como a São Paulo das duas décadas finais do Império, cuja cifra populacional ascensional — a cidade de 26.040 habitantes em 1872 chega a 1886 com 47.715 moradores7 — insinua uma expansão física de lógica dificilmente apreensível.

Para tanto, é fundamental considerar que ruas, becos, largos e várzeas compõem um cenário que reflete de maneira privilegiada o processo histórico mais abrangente em curso. Como aponta Lefebvre em relação à sociedade francesa dos anos 1970, o espaço da rua sintetiza o cotidiano por seu caráter mesmo de mero "lugar de passagem, de interferências, de circulação e de comunicação"(Lefebvre, [1960] 1970). Ora, essas categorias começam a se fazer mais e mais presentes no contexto e na consciência sociais aqui contemplados. Até a década de 1870, as ruas paulistanas eram um espaço em que, a despeito da paulatina ampliação do setor de serviços e de manufatura, se mantinham relevantes sobretudo as atividades de criação de animais e de distribuição de gêneros de primeira necessidade. Eram as ruas também que, nos dias santos, abrigavam as grandes procissões e festas, congregando grande parte da população. No entanto, na esteira das transformações socioeconômicas em curso, o cenário urbano paulistano é levado a conviver com toda uma política, cada vez mais ostensiva, de racionalização dos usos sociais das ruas, implementada pelo poder público. Ela obedece aos moldes daquela que vem sendo efetivada pelo Estado nas grandes cidades européias já desde no mínimo meados do XIX (Beguin, [1977] 1991, Weber, [1986] 1990), implicando, entre outros, medidas punitivas e impostos, projetos urbanísticos, a implantação de equipamentos de infra–estrutura urbana até então nunca vistos na cidade.

Percebe–se, por essas considerações mesmo que breves, que a rua paulistana de fins do XIX se encontra submetida a mudanças históricas que visam transformá–la no cenário primordial do cotidiano descrito por Lefebvre: lugar de passagem, de circulação e de comunicação propriamente moderno. E isso tudo ao mesmo tempo em que o velho insiste em se fazer presente. Está montado o cenário para contradições sociais que, remetidas a desencontros de temporalidades históricas, não devem ser analisadas como se as relações que delas decorrem fossem relações de mesma data e, portanto, contemporâneas (cf. Martins, 1996, p. 17).

Com base nessa orientação teórico–metodológica, os discursos jornalísticos variados sobre o cotidiano vivenciado na cidade começam a apresentar uma lógica antes insuspeitada. O corpus documental passa a cristalizar–se como conjunto de observações da opinião pública a respeito da rotina diária vivenciada por essas pessoas e/ou seus pares nas ruas da cidade. Sua característica distintiva é que esses indivíduos justificam, na documentação, o seu status de porta–vozes de toda a sociedade — de um "público" mais amplo — recorrendo, direta ou indiretamente, à noção de transeunte, utilizada para designar aquela que seria a personagem que os representa nas ruas; o suposto porta–voz primordial da opinião pública:

Ruas — Pede–se aos fiscaes da camara municipal o favor de passarem pelo becco chamado das Minas. Hontem, os despejos de materiaes fecaes ali forão feitos como sempre. Os transeuntes ao passarem por elle, voltavão a cara para outro lado, dizendo 'malditos fecaes!8.

Aos srs. fiscaes — Pedem–nos a publicação do seguinte:

"Srs. redactores — Rogamos a vv. ss. o obsequio de chamar attenção da autoridade competente para o abuso de collocar–se sobre as calçadas couros de cargueiros, cangalhas, animaes, etc. Nos dias chuvosos em que certas ruas se tornam intransitaveis pela grande lama, que as tormenta, vem semelhante cousa a ser muitissimo inconveniente para os transeuntes, que são obrigados a emporcalhar–se com prejuiso [sic] da algibeira e da saude. Cumpra–se com as posturas, pelo amor de Deus!"...9

A importância desse aspecto é, em primeira instância, metodológica. Recorrendo à figura do transeunte, os autores dos relatos abordam direta ou indiretamente atividades sociais realizadas na rua nos vinte anos finais do Império. De forma sintética, é possível descrever o material como conjunto de falas elogiosas ou depreciativas sobre o já imemorial comércio ambulante, sobre o depósito de lixo nos logradouros públicos, sobre as festas populares, a presença dos animais nas ruas, entre outros. A esses comentários se justapõem outros, também positivos ou negativos, referentes ao consumo dos modernos serviços de infra–estrutura urbana, às festas que celebram a inauguração dessas novidades da técnica; discorrem sobre as empresas e os funcionários destas.

Porém, o que essa divisão temática "diz" em termos teóricos? É fundamental ter em mente as teses de Lefebvre de que a cada uma das atividades correspondem realidades sociais com temporalidades diferentes, e que podem ser apreendidas analiticamente por meio de uma datação prévia. Esse procedimento, uma vez aplicado às práticas sociais tematizadas respectivamente pelas fontes documentais, transforma o material em série de comentários a respeito de atividades então consideradas ou antigas ou modernas e que só no espaço da rua podem ocorrer10:


Contemplar a sistematização temática da documentação à luz da datação empreendida, deixa entrever que os jornais paulistanos, em seu conjunto, se caracterizam por um conjunto de discursos que aludem, num mesmo momento histórico — uma semana, um mês, um ano, os vinte anos aqui considerados —, a comentários elogiosos e a depreciações em relação a atividades sociais que dizem respeito tanto ao que então se anunciava historicamente como "novo", "moderno" na cidade, quanto ao que naquele momento era considerado "velho", "antigo".

Resta o mais importante: compreender a lógica dessa convivência tensa. Para tanto, é relevante passar ao terceiro momento do método lefebvriano, ou seja, voltar "à superfície fenomênica da realidade social" (Martins, 1996, p. 22). Essa volta permite historicizar a problemática analisada, já que prevê que o pesquisador relacione as "estruturas previamente datadas" com o "desenvolvimento ulterior" e as "estruturas de conjunto".

III

A referência ao espaço da rua por parte dos "transeuntes" não é casual. A ela subjazem representações simbólicas historicamente específicas sobre ele. Como bem assinala toda uma bibliografia antropológica clássica, as atividades sociais que ocorrem no espaço remetem a representações, concepções socioculturais acerca desse mesmo espaço (cf. Durkheim, [1921] 1937, p. 18–22; Evans–Pritchard, [1940] 1993, p. 115).

Nesse sentido, eventuais argumentos que fundamentam, nos jornais, a queixa contra uma determinada atividade social, indicam a percepção de que algo não ocorre onde deveria ocorrer. E vice–versa. O elogio ao entrudo, por exemplo, não pode ser compreendido sem se levar em conta todo um modo de conceber a rua no bojo do qual faz sentido jogar bolas com água nos passantes em determinados dias do ano.

Contemplar as falas dos "transeuntes" aqui focalizados sob essa perspectiva permite pressupor que aos argumentos por eles mencionados na imprensa correspondam concepções de espaço definidas, às quais se contrapõem ou correspondem outras, socialmente compartilhadas. Assim, adentramos a seara do embate entre representações simbólicas sobre a rua, condição fundamental para a compreensão da lógica que envolve a percepção do tempo histórico no contexto paulistano do ocaso monárquico. Afinal, falar de noções de espaço significa automaticamente tratar das concepções sociais sobre a passagem do tempo — e vice–versa (DaMatta, [1984] 1997, p. 34).

Realizar, inspirada por Lefebvre, a análise histórico–genética das falas elogiosas ou depreciativas forjadas em torno das inúmeras atividades sociais acima elencadas deixa entrever, em relação a cada uma destas, historicamente antigas ou modernas, o conflito entre no mínimo duas concepções antagônicas sobre o espaço da rua que, para fins analíticos, vale aqui retomar de maneira sintética. Os despejos e o pó colocam na pauta dos jornais o dilema, de certa forma vigente socialmente, entre uma rua a ser higienizada, em contraposição a uma rua percebida e vivenciada como residual, e que, por isso mesmo, não merece mais do que despejos e pó. Os banhos nos logradouros públicos, por sua vez, remetem o pesquisador à questão da moralidade e da amoralidade socialmente construída em relação a esses locais; os animais, ao contraste "rural–urbano"; o comércio ambulante, a uma rua passível de ser notada ou como locus no qual se fica ou como lugar pelo qual apenas se circula — e se faz circular pessoas e mercadorias. As tradicionais festas populares, por sua vez, permitem pensar o embate entre a irreverência e a compenetração, como marca desse espaço.

Isso no que se refere ao conjunto que chamei de antigas atividades sociais. Simultaneamente há, entretanto, outras categorias em pauta. Nesses casos, as representações sobre a rua são mediadas por concepções variadas sobre o modo como intervêm e operam no espaço as mercadorias e equipamentos modernos, as empresas e os funcionários responsáveis por esses objetos e serviços. Em relação às várias atividades sociais relacionadas a esse novo mundo, percebe–se um misto de fascínio e de estranhamento — e o espaço de vivência e percepção de tudo isso é a rua. Esta é, por um lado, vista como palco primordial para a implementação de regras impessoais, norteadas pela frieza do contrato e do lucro. É contemplada, por outro lado, como extensão espacial do código de pessoalidade, exclusividade e deferência vigente nos círculos restritos da sociabilidade entre pares, predominante numa sociedade escravocrata de fortes traços estamentais.

Diante desse quadro, cabe indagar sobre a coexistência dessa complexidade de representações sobre o espaço da rua. Levando–se em consideração que as representações produzem de maneira dinâmica o contexto de práticas que as produz (cf. Schwarcz, 1987, p. 252), não é difícil imaginar que a visão de mundo dessas personagens se nutra das contradições que marcam o contexto particular. Advém daí a originalidade desse feixe de representações.

Mas quais os termos dessa originalidade? Entendê–los não se faz sem destrinchar o sentido antropológico das contradições presentes nessas concepções sobre o espaço. A elas subjazem princípios classificatórios específicos, que, intrínsecos a toda representação, tornam "compreensivas, inteligíveis" as relações sociais (Durkheim & Mauss, [1902–1903] 1988, p. 197).

Para tanto, cabe aqui retomar, a título de exemplo, as concepções, aparentemente ambíguas, produzidas sobre a higiene das ruas paulistanas. Quando o que está em pauta são os despejos nos becos e várzeas e o pó levantado pelos varredores de rua, só o que os "transeuntes" fazem é afirmar que na rua deve reinar a "limpeza".

Varredura das ruas — Em vez de se proceder á limpeza das ruas na madrugada dos domingos, quando ainda os habitantes se acham recolhidos, costuma ser feito o serviço aos sabbados ás 8 horas da noite, justamente quando se precisa sahir de casa para o hygienico passeio (...)11.

Contudo, em favor desta mesma "limpeza", só que aplicada ao "quarto de dormir" de "nossas casas", justifica–se que a rua volte a ser o que a caracteriza historicamente: depósito dos resíduos (no caso, o pó) da casa.

Acerca do quarto de dormir

É bom lembrarmos que uma Terça parti quasi de nossa vida inteira se passa no somno; por isso é de summa importancia e consideração olharmos pela natureza do ar que respiramos durante esse tempo e de como os quartos de dormir se devam tornar em habitações saudaveis. (...)

Depois de varrido o quarto, todos os seus moveis devem ser limpos da poeira; e será bom aqui lembrar que o 'bater' em qualquer objecto com um panno só faz que a poeira vôe de um lugar para outro.

Note–se tambem que as palavras 'passar o panno', que tantas vezes tenho ouvido empregar para descrever essa operação, não são bem acolhidas.

Para bem limpar é preciso esfregar com um movimento de mão firme, rapido e regular, usando de um panno molle e bastante grande e ter o cuidado de o sacudir senão fóra da janella ou da porta, afim de que a mesma poeira não torne a pousar sobre os moveis (...)12

Esse exemplo demonstra que opiniões críticas sobre as ações de outros indivíduos coexistem com a aceitação e mesmo com o elogio daquilo que se faz dia a dia nas ruas da cidade. Em suma: há um "eles" e um "nós" em jogo todo o tempo. O "eles" engloba os infelizes "varredores" que levantam o pó ao exercerem precisamente a atividade que visa aboli–lo. O "nós", por sua vez, abarca o consciencioso articulista da Revista Commercial Agricola e o leitor do Correio Paulistano, que contam, ambos, com todo o aval para livrar–se do mesmo pó jogando–o para fora da janela — e, portanto, na rua.

A díade "nós"–"eles" denuncia as fortes clivagens sociais que marcam o contexto brasileiro nesses anos de crise final da escravidão. Essas assimetrias, aliás, se fazem presentes no próprio modo como é utilizada, na documentação, a categoria "transeunte". Se com freqüência a expressão aparece desprovida de qualquer caracterização mais precisa a respeito de quem se trate especificamente, em outros momentos, é complementada por atributos éticos (o "respeito", a "dignidade", a "distinção") e estéticos (insinuados por meio de alusões à "roupa preta", ao "chapéu alto de pello de seda", à "bengala" e aos "sapatos Clark ou Kauer"). O que importa, para além dos atributos que definem quem é ou não "transeunte", é que quem os possui é "transeunte", em contraposição a todas as outras personagens que circulam pelas ruas paulistanas, sejam elas quitandeiras, tropeiros, "molleques" ou cocheiros. Estes não são reconhecidos, na documentação, como "transeuntes".

A existência dessas assimetrias permite concluir que, mais do que a respectiva atividade social — antiga ou moderna —, o que está em questão, na produção das várias noções de espaço nesse contexto, são as relações sociais fortemente hierarquizadas das quais as atividades são mediações. Essas assimetrias fazem com que essas atividades sejam avaliadas por meio de concepções normativas específicas a respeito do que "nós" podemos e "eles" não podem fazer nas ruas.

Nesse momento, é importante relembrar a dimensão sociocultural do processo de urbanização paulistano já ressaltada por autores clássicos como Gilberto Freyre (1936), Sérgio Buarque de Holanda ([1936] 1984, p. 41–60; 101–12), Florestan Fernandes (1955a, 1955b, 1960). Em jogo está o vigor com o qual as relações sociais escravistas e patriarcais atuam sobre a vida social nas cidades brasileiras, ao longo de todo o Oitocentos. E a questão que resta em aberto, em relação à documentação aqui analisada, é como essas clivagens sociais se fazem presentes nas representações desses "transeuntes" sobre a rua.

Para tanto, nada como recuperar um segundo exemplo, também marcado por esse tipo de contradição. Só que agora interessam não as antigas atividades sociais, e sim, os "tempos modernos" que o bonde a burros anuncia para São Paulo. Uma das falas mais emblemáticas nesse sentido é a de um "Um apreciador dos bonds".

Carris de ferro de S. Paulo — Chama–se a attenção do sr. dr. chefe de policia e dos srs. directores da respectiva companhia para o modo irregular e indigno de uma capital como esta, pelo qual é feito o serviço de bonds. As familias que entram nos bonds estão sugeitas a ouvirem palavras indecorosas e serem desrespeitadas como ainda hontem aconteceu no bond das 6 ½ horas da tarde. Além de muitos outros inconvenientes e irregularidades que tem o serviço, comparado com o da côrte, nota–se:

1º A admissão de maior numero de pessoas do que as da lotação dos carros, chegando a conduzir quarenta e mais pessoas, quando a lotação é de vinte e poucas.

2º O não trazerem os carros o competente cobrador, vendo–se os passageiros obrigados a estar por muito tempo parados, esperando que o conductor faça o troco ao passageiro que entra.

3º Não trazerem os bonds da noite a competente luz, ficando por isso sugeitos a multa, como acontece com os carros da praça. (...) Não tenham os srs. directores tanta sêde de dinheiro, moralisem o serviço da linha e fiquem certos de que terão lucro. Esperamos, obter da policia meios energicos que façam cessar semelhante procedimento, prevenindo desde já qualquer futuro desastre ou desaguisado entre os passageiros, que tem educação e não queiram ver suas familias desrespeitadas. Se a companhia não tomar ao serio o que fica exposto asseguramo–lhes que esse enthusiasmo manifestado nestes ultimos dias desapparecerá, sendo substituido pela nenhuma animação do publico sensato. (...)

4º O inconveniente de permittir–se a grande vozeria pelas ruas, desrespeitando–se até as pessoas que por ellas transitam13.

Ao mesmo tempo em que o autor preconiza o caráter moderno de uma rua agitada por bondes, recupera, em sua fala, dimensões antigas deste espaço: o distanciamento entre os estratos sociais; a deferênciadaqueles que servem (no caso, cocheiros e condutores) perante quem é servido; a independência que marca o transitar pela rua quando não se está sujeito às vicissitudes da técnica e do capital.

Novamente, é possível diferenciar entre "nós" e "eles". "Nós" são os passageiros; "eles" são a companhia de bondes enquanto instituição, os seus empregados, a população e os cocheiros que causam "grande vozeria" pelas ruas. A relação é tensa porque essas "modernas atividades sociais" colocam em xeque precisamente as clivagens que fomentam esta mesma relação. Qual o lugar das antigas distâncias sociais num espaço restrito como o bonde, em que todos são levados a conviver de forma tão próxima? Para onde ficam relegadas as velhas hierarquias, se os cocheiros e condutores obedecem a uma lógica outra, alheia àquela que fundamenta as relações entre senhores e serviçais? Como depender de indivíduos e objetos sobre os quais se exerce pouca ou nenhuma influência pessoal?

Ao abrir espaço para a formulação desses questionamentos, a carta de "Um apreciador dos bonds" traz para o primeiro plano a dinâmica que acaba por fazer com que as velhas clivagens sociais paulistanas (e brasileiras) se façam presentes, de alguma forma, nas representações sobre o espaço utilizado, percebido e representado pela opinião pública nos jornais. Diante de uma situação cotidiana regida por uma lógica diversa, que o "nós" não domina, ganha sentido recuperar antigas noções de espaço, todas elas referidas às relações sociais fortemente hierarquizadas que marcam o universo escravocrata e patriarcal paulistano (e brasileiro) da época.

E eis que, seguindo a trilha metodológica aberta por Lefebvre, acabei por me aproximar de uma certa lógica que envolve os discursos contidos nas fontes. A originalidade das representações dos "transeuntes" sobre a rua deve muito às convenções e marcas do passado paulistano. Nesse sentido, é possível falar numa dinâmica sociocultural moldada pela continuidade. No entanto, é fundamental ainda ressaltar uma segunda dimensão dessa mentalidade. Os relatos acima, mas também todos os outros contidos na documentação, deixam entrever que, se a clivagem social é o eixo básico que norteia as concepções sobre o espaço, essa faceta vai assumindo diferentes formas em dependência das circunstâncias cotidianas vinculadas às várias atividades sociais.

Aí entra em cena o tempo. Confrontada com situações em que percebe como incômoda a moderna racionalidade do capital, a opinião pública paulistana recorre a todo um universo que recupera, com renovado vigor, as hierarquias sociais do passado que animam a sociedade daquele momento.

Frente às antigas atividades sociais, a decisão fica mais difícil. Os sonhos de "progresso" coexistem com circunstâncias em que o que vale é elogiar o passado, ainda tão presente. É nesses momentos que a matriz pautada nas assimetrias sociais atua com todo o seu vigor, definindo o tempo histórico a ser afirmado por meio do elogio e/ou da crítica.

E a experiência não se restringe aos "transeuntes" aqui analisados. É nova para todos: tanto para aqueles indivíduos aos quais o espaço da rua já pertencia quanto para os indivíduos que querem — ou estão fadados a — conquistá–lo. Inseridos nesse contexto e munidos, portanto, desses referenciais culturais, mesmo grupos sociais em princípio não reconhecidos na documentação como "transeuntes" têm de aprender a lidar com um mundo — e com hierarquias — em transição.

Percebe–se, portanto, que longe de obedecer a uma lógica que visa abolir o passado em nome do moderno ou vice–versa, o que se tem é uma complexa dinâmica que submete as categorias culturais, fortemente pautadas nas hierarquias sociais, a novas situações cotidianas, oferecidas pelo próprio processo histórico em curso na cidade. No que se refere à percepção social do tempo histórico, o resultado dessa dinâmica não é uma resposta: o passado ou o presente, o rural ou o urbano, a continuidade ou a ruptura. A originalidade advém precisamente da coexistência desses termos todos, se contemplados numa escala de tempo peculiar — da vida de todo dia — durante um intervalo de tempo específico — vinte anos — num espaço também definido: a rua.

Tendo–se em mente a reflexão lefebvriana sobre o tempo histórico, é possível afirmar inclusive que é essa originalidade que dá a tônica da urbanização paulistana de fins do Império — aliás, também a da urbanização brasileira de (e desde) então? O desencontro de tempos que caracteriza o processo de transformações urbanas está na cabeça de tantos que a implementam e vivenciam, que fazem a sua História.

Esse desencontro media uma práxis que está longe de se ligar a qualquer tipo de revolta social de alcance histórico, como o quiseram tantos estudiosos. Trata–se, antes, de uma práxis que — se, exatamente por ser práxis, é permeada, como constata Lefebvre, pela tensão entre o repetitivo, o mimético e o inovador (cf. Martins, 1996, p. 23) — se define, no contexto paulistano de fins do XIX, por uma especificidade sociocultural e histórica definida. A especificidade gira em torno do modo como essa práxis incorpora o novo sem deixar morrer o velho; ou para não deixá–lo morrer (cf. Martins, 1994, p. 14–15).

A especificidade diz respeito ao estranho conservadorismo dessa práxis, que é conservadora sem parecer ser. E que, por isso mesmo, acaba por deixar de sê–lo, de alguma forma. Ao mesmo tempo.

Recebido para publicação em agosto/2001

Comunicação apresentada na Sessão Livre "Estudos Lefebvrianos", no 9º Encontro Nacional da ANPUR, realizado na cidade do Rio de Janeiro entre 28 de maio e 1 de junho de 2001.

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  • *
    A data entre colchetes refere–se à edição original da obra. Ela é indicada na 1ª vez que a obra é citada. Nas demais, indica–se somente a edição utilizada pelo autor (N.E.).
  • 1
    Refiro–me aos jornais
    Correio Paulistano (
    CP), fundado em 1854;
    Diário de São Paulo (
    DSP), de meados dos anos 1860; e
    A Província de São Paulo (
    PSP), lançado pela primeira vez em 1875.
  • 2
    Beraldo da Purificação, "Illm. sr. compadre",
    DSP, 8 de outubro de 1872. Mantenho, nas citações das fontes primárias, a grafia original da época e indico, por meio de [sic], incorreções a esta referidas.
  • 3
    Um apreciador dos bonds, "Carris de ferro de S. Paulo",
    CP, 6 de outubro de 1872.
  • 4
    O sr. Segismundo, "O sr. Segismundo",
    DSP, 9 de fevereiro de 1872. Essa personagem é, aparentemente, uma recriação do "Segismundo José das Flores" idealizado pelo jornalista e político Pedro Taques de Almeida Alvim, morto em 1870 (cf. Frehse, 2000).
  • 5
    O sr. Segismundo, "O sr. Segismundo",
    DSP, 9 de fevereiro de 1872.
  • 6
    Sobre a economia no contexto urbano paulistano até a década de 1870 cf., entre outros, Marcílio (1973), Dias ([1984] 1994); Wissenbach (1998).
  • 7
    Recenseamento Demográfico, Escolar e Agrícola–Zootécnico de São Paulo (20 de setembro de 1934), citado em Paula (1954, p. 174).
  • 8
    Não assinado (N/a), "Ruas",
    DSP, 10 de março de 1871; grifo meu.
  • 9
    N/a, "Aos srs. fiscaes",
    PSP, 10 de abril de 1875; grifo meu.
  • 10
    O seguinte quadro só tem função didática. Não ignoro que não se pode diferenciar tão dicotomicamente entre "antigas" e "modernas" atividades sociais. Um bom exemplo são as festas de inauguração dos diferentes serviços urbanos. Obviamente já as havia muito antes de 1870. Nesse sentido, a fim de construir uma amostrade dados de pesquisa, restrinjo–me, neste estudo, às festas que ocorrem "durante o período" estudado.
  • 11
    N/a, "Varredura das ruas",
    CP, 5 de setembro de 1875.
  • 12
    N/a, "Acerca do quarto de dormir".
    CP, 10 de abril de 1877.
  • 13
    Um apreciador de bonds, "Carris de ferro de S. Paulo",
    CP, 6 de outubro de 1872.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2001

    Histórico

    • Aceito
      Ago 2001
    • Recebido
      Ago 2001
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