Open-access Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade

RESENHAS

Márcio Macedo

Mestre em sociologia pela FFLCH – USP

Jeferson Bacelar, Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade. Rio de Janeiro, Pallas, 2006, 295 pp.

Eles são baianos, negros e atores. Atuaram juntos em 1995 numa montagem da peça Zumbi está vivo, realizada pelo grupo Bando de Teatro Olodum nas ruas de Salvador. Um deles interpretava Zumbi e o mais velho, Ganga Zumba. Mais do que uma simples coincidência, há uma longa linha de continuidade entre Mário Gusmão (1928-1996) e o ator "global"1 Lázaro Ramos. Gusmão foi o precursor do caminho a ser percorrido por Ramos, mas sua carreira, cheia de altos e baixos, só teve o reconhecimento tardio, não garantiu o seu sustento e levou à posterior morte na miséria. Fruto de uma tese de doutorado em antropologia social, o livro Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade, de autoria de Jeferson Bacelar, reconstrói a trajetória desse ator que, apesar de seu grande talento, era pouco conhecido fora do circuito teatral e do movimento negro da capital baiana.

Um primeiro ponto a ser ressaltado é a opção pelo formato de biografia. Estudos com esse formato vêm ganhando espaço cada vez maior entre as dissertações e as teses elaboradas na academia brasileira, além de o mercado editorial voltado para esse tipo de produção também ter crescido. Para as ciências sociais, o grande desafio que se apresenta nesse tipo de investigação é dar conta da tensão existente entre as estruturas sociais e a trajetória singular de cada indivíduo sem cair na subordinação da última à primeira ou na exacerbação da singularidade de uma trajetória que não leve em conta as coerções exercidas pelas estruturas sob a liberdade individual. Por outro lado, o historiador italiano Giovanni Levi fornece a medida exata das vantagens em se apostar nessa ferramenta metodológica ao afirmar que "a biografia [quando bem feita] constitui [...] a modalidade ideal para verificar o caráter intersticial – entretanto importante – da liberdade de que dispõem os agentes, [assim] como para observar a maneira pela qual, funcionam concretamente sistemas normativos jamais isentos de contradições" (Levi apud Le Goff, 1999, p. 24).

Seguindo essa observação, o trabalho já clássico de Norbert Elias sobre Mozart tem dado o tom das pesquisas atuais (cf. Elias, 1995). No seu livro, o sociólogo alemão procura mostrar como o músico do século XVIII torna-se um outsider na sociedade de sua época devido à sua formação musical excepcional e prematura, às relações com a família e às aspirações como músico que não se ajustavam ao padrão esperado e cultuado na sociedade de corte. No caso de Gusmão, Bacelar explora como central a noção de assimilação e seus limites para estabelecer a chave explicativa da trajetória do ator baiano. Assimilação é aqui entendida como o "branqueamento social" ou "genético" a que negros e outros grupos étnicos e raciais estiveram submetidos na sociedade brasileira até a primeira metade do século XX e que se constituía em uma estratégia de mobilidade social ascendente na qual os indivíduos se afastavam dos símbolos étnicos e religiosos, dos padrões de comportamento e estruturas psicológicas dos grupos de origem e incorporavam os valores eurocêntricos da sociedade dominante2.

A crença na assimilação como algo que possibilitaria a ascensão social e econômica é algo marcante na vida de Gusmão. Nascido negro retinto e pobre em Cachoeira, cidade do interior da Bahia, a família desde cedo apostou as fichas no garoto que ainda criança mostrava mais gosto pelos estudos do que os outros irmãos. Por conta dos contatos da mãe com as famílias ricas da cidade, Gusmão vai estudar num colégio particular da pequena cidade. A continuidade dos estudos se dá ao se mudar para Salvador já adolescente e ficar mais próximo do pai, que era tido na família como homem bem-sucedido pela estabilidade econômica obtida como funcionário público, por valorizar a educação e ser casado com uma mulher branca. A posição do pai e as relações dele com o mundo dos brancos foram preponderantes para conseguir um trabalho para Mário na administração pública. Dentro de pouco tempo o filho de Elói Gusmão estava trabalhando na mesma penitenciária que o pai. O futuro de Mário parecia mais promissor ainda após ele aprender inglês e passar a trabalhar como tradutor de engenheiros estrangeiros numa empresa norte-americana que nos anos de 1950 cuidava da montagem das torres de energia da hidroelétrica de Paulo Afonso. Dotado de mais um símbolo de distinção social ao dominar o idioma anglo-saxão, Gusmão ia pouco a pouco traçando o caminho de ascensão social tão desejado pela família. Contudo, ao acabar o trabalho de tradutor, Gusmão volta a seu antigo posto na penitenciária e certa angústia começa a pairar sobre ele por não conseguir alcançar a ascensão definitiva.

Como mostra Bacelar, os anos de 1950 se configuraram numa época de grandes transformações econômicas, culturais e políticas na Bahia. Essa onda de inovações possibilitou o surgimento da Escola de Teatro vinculada à Universidade Federal da Bahia. Por essa época, Mário encontrava-se distante da vida cultural e boêmia soteropolitana, e seu contato com a linguagem teatral realizou-se de maneira casual. Uma amiga de Mário Lobão, funcionário da penitenciária e pessoa envolvida com teatro amador, resolveu montar uma peça num colégio e, devido à ausência de um ator, Gusmão, por indicação de Lobão, acabou por substituí-lo. Pouco tempo depois, Mário Gusmão estaria na segunda turma da Escola de Teatro que tinha iniciado suas atividades em fins dos anos de 1950. De acordo com seu analista, ele vislumbrou no teatro a possibilidade tão desejada de promoção social e "projetaria a sua ascensão, com o devido reconhecimento social no mundo dos brancos, mas no mundo utópico dos artistas" (p. 69). Outra razão apontada pelo biógrafo, que aumentaria o deslumbramento de Gusmão pelo teatro, era a possibilidade de vivenciar sua homossexualidade de forma mais tranqüila devido a uma maior tolerância no meio artístico por comportamentos taxados pelo restante da sociedade de patológicos e que eram, conseqüentemente, estigmatizados.

Nessa altura da obra, com o objetivo de lançar luz sobre o processo de renovação do teatro baiano, Bacelar o contrapõe aos projetos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), nos anos de 1940, e da Escola de Arte Dramática (EAD), nos anos de 1950, ambos sediados na capital paulista. Em minha opinião, aqui se localiza o único deslize da análise do autor, já que uma contextualização da cena teatral do Rio de Janeiro dos anos de 1940 seria muito mais proveitosa para o trabalho em questão. Isso porque, de acordo com Pereira (1988) e Magaldi (1999), é na montagem de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, que nasce a moderna dramaturgia brasileira, na qual a figura do diretor passa a ter destaque e centralidade. Campedelli (1995) afirma que o processo de modernização do teatro teria seu início com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, o que faria com que vários profissionais do ramo, sintonizados com as técnicas de montagem mais contemporâneas, aportassem no Brasil, fugindo do conflito e do nazismo no chamado Velho Mundo. Alguns exemplos são os de Giani Ratto, Adolfo Celi e Maurice Vaneau. A importância do Distrito Federal naquela época deve-se à circulação, apontada por Bacelar, de diretores como Ratto, Domitila do Amaral e Martin Gonçalves entre Rio de Janeiro e Salvador. Outro fato a ser ressaltado é que o tipo de teatro cultuado por esses autores concentrava grande poder nas mãos do diretor, algo que explica a existência de figuras como a de Martin Gonçalves e os constantes conflitos que surgiram ocasionados por seu autoritarismo na condução da Escola de Teatro, também apontados por Bacelar.

Entre 1961 e 1974, Mário Gusmão viveu o melhor momento de sua carreira. Foi incorporado ao Teatro dos Novos, grupo que renovou o teatro soteropolitano, e atuou em mais de vinte peças. Também teve participações na televisão e no cinema, com destaque para a projeção internacional do filme de Glauber Rocha, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), cujo título dá nome ao livro aqui resenhado. De acordo com Bacelar, "Mário Gusmão, embora um coadjuvante, tem um grande desempenho no filme. No papel de Antão, proporciona uma das mais belas cenas do cinema brasileiro, quando, a cavalo, vestido com as roupas de Oxossi, mata com uma lança o fazendeiro" (p. 111).

É interessante notar como a opção de traçar sua carreira por meio da transformação de seu pertencimento étnico em capital simbólico não se impunha para Gusmão. O Teatro Experimental do Negro (TEN) havia surgido em 1944 no Rio de Janeiro pelas mãos de Abdias do Nascimento, em contato com outros grupos teatrais, estabelecendo aquilo que alguns autores têm chamado de "modernidade negra"3, ou seja, uma auto-representação positiva das populações negras que se deu por meio da arte e dos movimentos políticos. A expressão máxima disso seria a elaboração por parte de Nascimento de Sortilégio, peça de 1951 que esteticamente propõe uma "valorização do enegrecimento" e a tomada de consciência de si por parte dos negros, a partir da incorporação e da manipulação de elementos culturais visando a uma possível etnicização. Mesmo que tenha entrado em contato com a problemática do negro por meio das peças por ele encenadas, para Gusmão a incorporação da negritude como estratégia de inserção ainda não era uma opção viável, o que demonstra o descompasso entre uma proposta vanguardista e o cotidiano das relações sociais como um todo.

Negro, ator e homossexual, circulando por um meio branco, intelectualizado e de classe média e alta da capital baiana, Gusmão vivia o auge da sua carreira e sentia que no espaço social no qual estava inserido poderia ter acesso a todas as experiências possíveis. A contracultura vivenciada por alguns grupos desse meio, cuja experiência passava necessariamente pelo contato com as drogas, fez literalmente a cabeça do ator. Buscando cada vez mais a opção de uma "sociedade alternativa", fazendo uso do termo popularizado pelo cantor também baiano Raul Seixas, Gusmão começa a se afastar gradativamente das atividades teatrais. Foi justamente nesse período que os limites da assimilação de um negro no mundo dos brancos se mostraram para o ator. Num incidente ocorrido na casa de Gusmão, a polícia apreendeu uma grande porção de drogas, e o ator, juntamente com outros amigos, foi preso. Contudo, apenas Gusmão ficou encarcerado por mais tempo e respondeu a um processo por tráfico de drogas, mesmo não sendo dono dos entorpecentes. A rede social e familiar que existia por trás dos amigos de Gusmão, ao não auxiliar o ator nesse momento difícil, explicitava os limites do que era um comportamento aceitável para um negro no mundo dos brancos.

Após sair da prisão com o auxílio de poucos amigos do meio teatral e acadêmico, Gusmão enfrentaria as dificuldades de se inserir novamente na sociedade e no meio teatral carregando o estigma de ex-presidiário e usuário de drogas. Sua carreira nunca mais deslanchou, restando-lhe apenas os pequenos papéis. Os tempos eram outros e o teatro era outro, e Gusmão era uma referência do antigo teatro baiano. Por outro lado, com a emergência do movimento negro contemporâneo na Bahia, ao reboque de uma estética negra impulsionada, por exemplo, pelo surgimento dos blocos afro nos anos de 1970, Gusmão aparece como símbolo da negritude baiana. Seguem-se trabalhos culturais em Salvador e outras cidades baianas que possibilitam sua sobrevivência financeira. Nos anos de 1980, ele era tido como referência entre as lideranças negras que então emergiam, mas isso não garantia o sustento de um homem que chegava aos 60 anos. Essa situação se manteve até sua morte, em 1996, num mítico 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra e aniversário da morte de Zumbi dos Palmares. Gusmão contava então 68 anos e buscava desesperadamente sua aposentadoria.

O livro de Jeferson Bacelar deve ser lido com carinho e atenção, pois, ao acompanhar a trajetória de um ator negro, intelectualizado, pobre e homossexual na sua tentativa de ascensão social por meio da assimilação, o autor explora a experiência e os dilemas que se colocavam para boa parte da população negra até meados dos anos de 1970. Hoje os tempos são outros e, por conta da expansão dos movimentos negro e gay, nos anos de 1980 e 1990, a junção das identidades que compunham Mário Gusmão é vista muitas vezes como algo moderno e descolado, sendo, em conseqüência, transformado em capital social. Obviamente se deve guardar as especificidades dos espaços sociais aos quais nos referimos e de cada movimento; contudo, paulatinamente ser negro(a) e homossexual deixam de ser lugares de exclusão e estigma para se tornar apenas mais uma forma de os indivíduos viverem sua individualidade e humanidade. O grande debate de hoje é: até que ponto a essencialização dessas identidades é positiva ou negativa?

Notas

Referências Bibliográficas

CAMPEDELLI, Samira. (1995), O teatro brasileiro no século XX. São Paulo, Scipione.

ELIAS, Norbert. (1995), Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

FRY, Peter. (2005), A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. (2003), "A modernidade negra". Teoria e Pesquisa, 42 e 43, jan./jul. São Carlos, Departamento de Ciências Sociais – CECH, Universidade Federal de São Carlos.

LE GOFF, Jacques. (1999), "Introdução" e "Nota da introdução". In: _____. São Luís: biografia. Rio de Janeiro, Record.

LEVI, Giovanni. (2000), "Usos da biografia". In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaina (orgs.), Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro, Editora FGV.

MACEDO, Márcio. (2006), Abdias do Nascimento: a trajetória de um negro revoltado (1914-1968). São Paulo. Dissertação de mestrado em Sociologia. FFLCH/USP.

MAGALDI, Sábato. (1999), Panorama do teatro brasileiro. São Paulo, Global.

NASCIMENTO, Abdias. (1959), Sortilégio (mistério negro). Rio de Janeiro, Serviço Nacional do Teatro.

PEREIRA, Victor Hugo Adler. (1988), "O TEN e a modernidade". In: MÜLLER, Ricardo Gaspar (org.), Dionysos especial teatro experimental do negro. Rio de Janeiro, Minc/Fundacem, n. 28.

SPITZER, Leo. (2001), Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental 1780-1945. Rio de Janeiro, Editora da Uerj.

  • 1
    . Termo que no Brasil indica os atores contratados e com vínculos de exclusividade com a Rede Globo de Televisão.
  • 2
    . Um trabalho que aqui serve de inspiração é o de Spitzer (2001), que analisa a trajetória das famílias Zweig-Brettauer (Áustria), May (África Ocidental) e Rebouças (Brasil) sob as políticas e os processos de assimilação e marginalização implementados em cada uma dessas localidades. Spitzer justifica sua opção pela biografia afirmando que "as trajetórias de vida são, de fato, moldadas, direcionadas e freqüentemente modificadas pela interação entre os indivíduos e seu meio coletivo social e histórico", e haveria, nesse sentido, aquilo que Sartre chamou de "internalização do externo" (Spitzer, 2001, p. 21).
  • 3
    . Antonio Sérgio Guimarães denomina modernidade negra o processo de "incorporação dos negros ao Ocidente enquanto ocidentais civilizados [que] acontece em dois tempos que às vezes coincidem, às vezes não: um primeiro, em que muda a representação dos negros pelos ocidentais, principalmente através da arte, fruto intelectual do mal-estar provocado pelas guerras e pelas lutas de classe na Europa; o segundo se inicia com a representação positiva de si, feita por negros para si e para os ocidentais" (2003, p. 42). Movimentos como a Imprensa Negra Paulista, a Frente Negra Brasileira e o TEN, no Brasil, o Harlem Renaissance nos Estados Unidos e a Négritude francesa são, de acordo com o autor, manifestações da "modernidade negra".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2006
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