Resumos
Michel Foucault publicou duas autobiografias: a de Pierre Rivière e a de Herculine Barbin. Para tentar esclarecer como as pensou e o que pretendia ao publicá-las, é tomada como chave a apresentação escrita por ele para a coleção Vies Parallèles. Vidas paralelas são aquelas que, devido às suas diferenças, são condenadas e separadas. Contudo, no exato momento em que esse movimento de separação opera, algumas delas deixam para trás rastros: suas autobiografias. Esses rastros instantâneos e fulgurantes iluminam as batalhas que logo são esquecidas sob a obscuridade do estigma, mas que constroem nossa subjetividade assujeitada.
Foucault; Autobiografias; Vidas paralelas; Subjetividade
Michel Foucault published two autobiographies: one of Pierre Rivière and the other of Herculine Barbin. In this article, I take his introduction to the collected volume Vies Parallèles as a key to explaining how he conceived the two works and what he intended by publishing them. Parallel lives are those whose differences condemn them and set them apart. Nonetheless, in the precise moment in which this movement of separation operates, some of them leave behind traces: their autobiographies. These instantaneous and glowing traces illuminate conflicts that are soon forgotten under the shadows of stigma, but that nonetheless construct our subjected subjectivity.
Foucault; Autobiographies; Parallel Lives; Subjectivity
ARTIGOS
Vidas paralelas: Foucault, Pierre Rivière e Herculine Barbin
Parallel lives: Foucault, Pierre Rivière and Herculine Barbin
Daniel Pereira Andrade
RESUMO
Michel Foucault publicou duas autobiografias: a de Pierre Rivière e a de Herculine Barbin. Para tentar esclarecer como as pensou e o que pretendia ao publicá-las, é tomada como chave a apresentação escrita por ele para a coleção Vies Parallèles. Vidas paralelas são aquelas que, devido às suas diferenças, são condenadas e separadas. Contudo, no exato momento em que esse movimento de separação opera, algumas delas deixam para trás rastros: suas autobiografias. Esses rastros instantâneos e fulgurantes iluminam as batalhas que logo são esquecidas sob a obscuridade do estigma, mas que constroem nossa subjetividade assujeitada.
Palavras-chave: Foucault; Autobiografias; Vidas paralelas; Subjetividade.
ABSTRACT
Michel Foucault published two autobiographies: one of Pierre Rivière and the other of Herculine Barbin. In this article, I take his introduction to the collected volume Vies Parallèles as a key to explaining how he conceived the two works and what he intended by publishing them. Parallel lives are those whose differences condemn them and set them apart. Nonetheless, in the precise moment in which this movement of separation operates, some of them leave behind traces: their autobiographies. These instantaneous and glowing traces illuminate conflicts that are soon forgotten under the shadows of stigma, but that nonetheless construct our subjected subjectivity.
Keywords: Foucault; Autobiographies; Parallel Lives; Subjectivity.
Pierre Rivière, um jovem camponês que matou a golpes de foice a mãe grávida, a irmã adolescente e um irmão de sete anos. Preso, escreveu um longo depoimento sobre as razões de seu ato. Herculine Barbin, uma hermafrodita obrigada a assumir seu verdadeiro sexo, antes de se suicidar, deixou suas memórias relatadas em um diário. Essas duas estranhas e selvagens autobiografias, juntamente com os dossiês médicos e jurídicos que as acompanhavam, foram trazidas à luz por Foucault. A primeira, a do "parricida dos olhos avermelhados", estava relatada nos Annales d'higiène publique et de médicine légale de 1836; foi republicada em 1973 com o dossiê e o resultado de um seminário desenvolvido no Collège de France (cf. Foucault, 1977). A segunda, a da hermafrodita suicida, apareceu em 1874, em um livro sobre A questão médico-legal da identidade, de Tardieu; foi republicada na coleção Vies Parallèles em 1978, acompanhada do dossiê, de uma novela do final do século XIX e de uma apresentação (cf. Foucault, 1982).
Por que Foucault iluminou esses escritos, essas vidas sem glória, que aguardavam, perdidos nos arquivos, a sua ocasião? Questão problemática essa se lembrarmos da crítica foucaultiana ao sujeito e ao autor, do seu diagnóstico das narrativas autobiográficas como uma forma nova de confissão, do seu ataque ao espaço normalizado da biografia e da sua recusa a propor alternativas ou soluções a serem seguidas. Levando em consideração esses aspectos, outras perguntas parecem indissociáveis da primeira: Como foram pensadas essas autobiografias tão singulares? Por que essas duas e não outras? Que lugar elas podem ter em seu pensamento? O que pretendia ao torná-las conhecidas? É o como, o por quê e o para quê dessas duas autobiografias dentro do pensamento de Foucault que serão discutidos neste trabalho.
Vidas paralelas
Dentre os textos dedicados às autobiografias, um pode ser chave para levar-nos às respostas. Trata-se da enigmática apresentação feita à coleção Vies Parallèles1, onde Foucault justifica seu título:
Os antigos gostavam de colocar em paralelo as vidas dos homens ilustres; escutava-se falar através dos séculos dessas figuras exemplares.
As paralelas, bem sei, são feitas para se reunirem no infinito. Imaginemos outras que, indefinidamente, divergem. Sem ponto de encontro, nem lugar para as recolher. Freqüentemente elas não tiveram outro eco senão o de sua condenação. Seria necessário apanhá-las na força do movimento que as separa; seria necessário redescobrir o rastro instantâneo e fulgurante que elas deixaram quando se precipitaram para uma obscuridade onde "isso já não conta" e onde todo o "renome" é perdido. Seria como o inverso de Plutarco: vidas a tal ponto paralelas que já ninguém as pode reunir (Foucault, 1994, vol. III, p. 499).
"Vidas paralelas": contrapondo-se a Plutarco e aos antigos, Foucault pretende inverter e deslocar a acepção do termo. Para os primeiros, as vidas colocadas em paralelo são as vidas ilustres, exemplares. Se são paralelas é porque, mesmo divergindo ao longo de sua duração, no infinito se encontram. E é esse ponto de encontro no infinito, esse lugar onde elas se reúnem, que permite que essas vidas ilustres se tornem exemplares. Em outras palavras, são vidas paralelas porque, a despeito de sua singularidade, há um ponto, ainda que imaginário, onde se encontram, e é esse ponto que permite que sirvam de exemplo, que sejam exemplares, mesmo em sua diferença fundamental.
Foucault quer pensar outras vidas. Vidas paralelas, sem dúvida, mas imagina essas paralelas de maneira nova. São paralelas de uma forma tal que divergem indefinidamente, sua singularidade é tão radical que elas não podem ser reunidas nem mesmo a partir de um lugar imaginário o infinito , pois nem lá se cruzam com outras vidas. São alteridades extremas. Não existindo um ponto de convergência, jamais poderiam ser exemplares: o renome se perde, mas principalmente porque, em função de sua singularidade, elas são condenadas. Essas vidas diferentes são desclassificadas e separadas, e dispostas em paralelo: são o Outro, construídas como a não-Humanidade. Suas falas são desfiguradas e negadas, e seu destino é, assim, precipitar-se para a obscuridade. São vidas esquecidas, silenciadas.
Mas, em alguns casos, no exato momento em que o "movimento que as separa" opera, elas deixam atrás de si um rastro, um "rastro instantâneo e fulgurante", uma marca tão singular quanto possível. É a última irrupção antes da desclassificação, da condenação e do silêncio; é uma fala de resistência, dos silenciados. Nesse último clarão diante da obscuridade, o que se ilumina é a arbitrariedade de tal separação, as contingências que estabelecem os limites do que somos. É assim, pois, que tais rastros se tornam desconcertantes e contrapõem-se à força desse movimento de cisão. Redescobri-los no momento em que tal força opera é redescobrir essa batalha antes que o triunfo da separação oculte-a sob a obscuridade da condenação.
Portanto, ao contrário de Plutarco, para quem o importante nas vidas que recolhe seria justamente o ponto imaginário de reunião, o ponto da exemplaridade, nas vidas paralelas de Foucault o que importa é essa última marca, essa singularidade radical que impede qualquer possibilidade de reuni-las. São outras vidas, outras paralelas.
É preciso verificar em que sentido as vidas iluminadas por Foucault são vidas paralelas, sob esse novo sentido atribuído ao termo. Primeiro, como já vimos, Foucault recolhe-as na "obscuridade", em meio à poeira dos arquivos esquecidos. Delas só resta o "eco de sua condenação" os dossiês médicos e jurídicos de cada um dos casos e um "rastro instantâneo e fulgurante" as autobiografias. São, portanto, vidas sem "renome", cujos casos não tiveram repercussão nem despertaram muito interesse em suas épocas; e também no sentido da ausência de reputação, na medida em que foram condenadas Barbin como anormal e Rivière como delinqüente, ou louco e separadas, colocadas à parte. Isso, no entanto, não basta. Afinal, muitas outras autobiografias de pessoas sem renome, difamadas por seus desvios, foram escritas e permanecem perdidas nos arquivos. O próprio Foucault deparou com muitas, mas não se preocupou em dar-lhes visibilidade2. Por que apenas essas duas? A resposta está diretamente ligada ao acontecimento revelador e desconcertante que seus rastros proporcionaram.
Autobiografias sem sujeito
As duas autobiografias foram publicadas nos anos de 1970, durante o chamado momento "genealógico" de Foucault momento que, não obstante, contém ainda diversas exposições de seu método arqueológico, desenvolvido em escritos anteriores. Desse modo, para compreender o alcance do acontecimento das duas autobiografias, Foucault as submete à sua análise arqueogenealógica. Ele busca reconstituir os elementos heterogêneos que acabaram por compor essas duas configurações históricas, essas subjetividades particulares e momentâneas cristalizadas nos discursos autobiográficos. Tanto no caso de Pierre Rivière como no de Herculine Barbin, o autor demonstra como eles se formaram pelo cruzamento, pela cooperação, choque, anulação ou articulação entre discursos, leis, instituições, enunciados científicos, proposições morais, técnicas de poder, técnicas de si, saberes sujeitados etc. Ao remeter a constituição dessas subjetividades a uma tal dispersão, Foucault rejeita o autor e o sujeito como dados inquestionáveis, como unidades previamente aceitas sem reflexões.
O autor é problematizado em seus textos como uma função da qual os discursos podem ou não ser portadores. Dentre os traços característicos que a função de autor apresenta na sociedade ocidental, um nos interessa em particular: ela não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por meio de uma série de operações específicas e complexas que constroem certo ser racional. O autor é o "princípio de agrupamento do discurso, a unidade e a origem de suas significações, o foco de sua coerência" (Foucault, 1996, p. 26). É justamente por intermédio desse traço que, sob o nome de "autor", o sujeito moderno abstrato reaparece com seu caráter absoluto e fundador.
Foucault recusa uma universalidade, uma autonomia de consciência e reflexão e uma liberdade de ação abstratas, tais como são problematizadas habitualmente no pensamento moderno. O sujeito não é um ser autônomo, individual, com uma identidade cuja continuidade atravessaria desde os fatos vividos até o seu relato. Não há uma essência última: "Nada no homem nem mesmo seu corpo é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles" (Foucault, 1999c, p. 27). Parafraseando Nietzsche, Foucault afirma que o homem "abriga em si não uma alma imortal, mas muitas almas mortais". E em cada uma delas não descobriremos "uma identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de elementos múltiplos, distintos, que nenhum poder de síntese domina" (Idem, p. 34).
Nas autobiografias que publica, Foucault procura resolver o problema da função do autor de duas maneiras. A primeira é pela seleção de autobiografias de vidas obscuras, condenadas e colocadas à parte, cuja fala é descartada de antemão não deve sequer ser ouvida. Portanto, são vidas sem importância, sem renome ou reputação. Desse modo, não se espera do produtor do texto "certo nível constante de valor", ou "uma coerência conceptual e teórica", ou "uma unidade estilística" de seus escritos. Não importando sua vida, ou seja, a biografia, a perspectiva individual, as influências e as transformações sofridas pelo escritor, também não se pode atribuir a um autor e explicar por meio dele "a presença de certos acontecimentos numa obra como suas transformações, as suas deformações, as suas modificações diversas" (Foucault, 1992, p. 69). De fato, quando se trata de desclassificados (loucos, delinqüentes, anormais etc.), não se supõe um autor-sujeito, com sua razão universal e sua autonomia de consciência. Supõe-se um autor-loucura, um autor-delinqüência, um autor-anormalidade. Não escutamos, assim, a fala do Outro, mas sintomas que o médico, o psiquiatra, o psicólogo devem dizer o que são. Desde o início essas falas são desfiguradas ou negadas, não se constituem como portadoras da função de autor, nem mesmo são tomadas como falas são apenas murmúrios surdos.
No âmbito de tal obscuridade, as autobiografias já não aparecem como propriedade e expressão derivadas de um autor anterior e exterior a elas, autor que seria supostamente portador da verdade sobre si, sobre sua vida, da qual ninguém seria mais próximo. Nem seriam derivadas de um sujeito, na medida em que ele produziu ou participou dos fatos, sentimentos etc. ali relatados. Nessa obscuridade, a relação entre vida e escrita se inverte: antes de conter a verdade de uma vida, a escrita do texto autobiográfico é um gesto dela é seu "rastro instantâneo e fulgurante". Também o sujeito não aparece como o mais próprio da experiência, mas como aquele que se constitui nessa escrita; não surge como algo transcendental, mas como algo histórico e, por que não, como fato instantaneamente constituído. Essas vidas paralelas são configurações singulares, históricas, momentâneas; configurações transitórias e descontínuas, abertas a múltiplas possibilidades de acordo com as práticas a que estão submetidas. Nas autobiografias onde se constituem, deixam apenas um rastro instantâneo do que eram, cristalizando um equilíbrio frágil e efêmero. Desses rastros não se pode captar nenhuma essência, nenhum ser. Daí, também, por que "vidas paralelas [...] que divergem indefinidamente, sem ponto de encontro" (inclusive consigo mesmas); daí a impossibilidade de reuni-las.
A segunda solução adotada por Foucault é retirar do sujeito seu papel de fundador originário, mas sem se limitar a repetir a afirmação oca de sua morte. Pois a recusa de sua transcendentalidade não é o mesmo que a recusa da existência de sujeitos concretos o que ele não nega. Contudo, em vez de partir do sujeito constituinte para desenvolver suas análises, Foucault quer dar conta da constituição histórica das subjetividades em suas múltiplas formas, o que procura fazer a partir das práticas sociais inclusive as discursivas. Trata-se, desse modo, de colocar em evidência uma multiplicidade de formas assujeitadas de subjetividade concretamente produzidas. As subjetividades são da ordem dos efeitos.
Autobiografias engajadas em práticas discursivas
É assim que Foucault procura analisar o sujeito como uma função variável e complexa do discurso, propondo a questão: "Como, segundo que condições e sob que formas algo como o sujeito pode aparecer na ordem dos discursos?" (Idem, p. 69). Essa pergunta é feita em relação ao papel desempenhado por Rivière e Barbin em suas autobiografias. Para tanto, Foucault aplica a esses escritos sua análise arqueológica, descrevendo o nível das práticas discursivas e do saber no qual se encontram engajados. Esse procedimento é bastante explícito em seu ensaio sobre o parricida, mas está sutilmente expresso no da hermafrodita3.
Referindo-se ao texto de Barbin, Foucault afirma: "É o diário, ou melhor, as memórias deixadas por um desses indivíduos a quem a medicina e a justiça do século XIX perguntavam obstinadamente qual era a verdadeira identidade sexual" (1982, pp. 4-5). Assim descrito, esse diário ou memória pode muito bem ser encaixado no discurso da confissão.
Segundo Foucault, "a confissão é um ritual em que o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado". Não há dúvida de que Herculine Barbin assume esse duplo papel. A confissão "é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, a impõe, a avalia, e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar". O parceiro virtual4 aqui são os médicos e os homens de lei, que interrogam a hermafrodita para estabelecer sua "verdadeira" identidade sexual e determinar legalmente seu estado civil. A confissão, ademais, é "um ritual no qual a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve que suprimir para poder manifestar-se". Herculine escreve suas memórias perto de seu suicídio, quando sua nova, "verdadeira" e "definitiva" identidade sexual já havia sido descoberta e estabelecida. Mas, num mundo onde é preciso possuir um único sexo, pois é isso que determina a verdade de si, Herculine sempre tem para si mesma um sexo incerto. É diante desse obstáculo e de seu suicídio que se valida sua confissão. Por fim, "é um ritual no qual a enunciação em si, independentemente de suas conseqüências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação" (Foucault, 1999b, p. 61). Nesse caso, a confissão produz a redenção, evocando um passado marcado pelo "limbo feliz de uma não-identidade", em que, protegida no internato, Herculine tinha a estranha felicidade de conhecer um único sexo (cf. Foucault, 1982, p. 5).
Ao inserir-se no discurso da confissão, é dele que Herculine Barbin recebe a definição da perspectiva legítima para o agente do conhecimento: sua verdade é garantida pelo vínculo, pela mútua implicação, essencial a esse discurso, entre aquele que fala e aquilo de que fala. É da confissão e de sua articulação com uma ciência que fala do corpo e da vida que recebe a delimitação de um campo de objetos: o sexo não somente dizer se o ato sexual foi feito e como, mas também reconstituir os pensamentos e as obsessões que o acompanham, as imagens, os desejos, as modulações e a qualidade do prazer que o contém. E é dessa mesma articulação que recebe a fixação de normas para sua elaboração: combinando a confissão com o exame, a narrativa de Barbin se desenrola como uma evocação de lembranças a partir de uma questão fundadora "qual a sua verdadeira identidade sexual?".
No caso de Pierre Rivière, ao contrário do que pode parecer, sua autobiografia não é nem uma confissão nem uma defesa. Segundo Foucault, "este relato de Rivière se reúne, ao menos por sua forma, a toda uma série de narrativas que formavam então como que uma memória popular dos crimes" (Foucault, 1977, p. 215). A função dessa espécie de discurso é mudar a escala dos fatos, transformando o cotidiano em algo digno de ser narrado. Contados nos folhetins ao lado dos grandes acontecimentos ou personagens da história, os crimes acabam por se entrecruzar com seus vizinhos. O assassinato é o que permite que esses limites sejam transpostos: ele faz a imortalidade dos guerreiros, mas também assegura o sombrio renome dos criminosos. O assassinato estabelece o equívoco entre o legítimo e o ilegal, ronda nos confins da lei, gira ao redor do poder, ora contra, ora a favor dele. Por meio da narrativa do assassinato, a infâmia toca a eternidade.
Os folhetos são compostos de duas partes. Uma é a narrativa "objetiva" dos acontecimentos, feita por uma voz anônima. A outra é a cantiga de lamento do criminoso, feita em primeira pessoa. Na lamentação, o criminoso confessa sua falta, proclama sua culpa e, retomando por conta própria a lei, pede para si o castigo que esta estabelece. Assim, marca-se o lugar, fictício certamente, de um sujeito que seria ao mesmo tempo falante e assassino, uma posição lírica definida do exterior pelos que tinham o encargo de redigir os folhetos.
Segundo Foucault, Rivière veio preencher efetivamente esse lirismo fictício, com um assassinato real cuja narrativa ele planejara com antecedência, e do qual fez, de acordo com o pedido do juiz, um relato exato. Ocupando esse lugar, o "parricida dos olhos avermelhados" foi o sujeito e o autor do memorial num duplo sentido:
Ele é aquele que se lembra de tudo impiedosamente e é aquele cuja memória chama o crime, horrível e glorioso, ao lado de tantos outros crimes. Faz, ao mesmo tempo, da maquinaria da narrativa-assassinato o projétil e o alvo; foi lançado, pelo jogo do mecanismo, no assassinato real, o que o colocou na posição fatal do condenado. Ele foi enfim num duplo sentido o autor de tudo isso: autor do crime e autor do texto (Idem, p. 220).
Rivière inseriu seu gesto e sua palavra em certo tipo de discurso e em certo campo de saber que, antes de ser a marca ou o conteúdo explicativo de seu assassinato-narrativa, é sua condição de possibilidade.
Autobiografias induzidas por mecanismos de poder
Ao se localizarem em práticas discursivas específicas, essas duas autobiografias estão sujeitas a regras. Regras que não são formuladas pelos seus participantes, que não estão disponíveis para sua consciência, mas que delimitam um campo de objetos, definem uma legítima perspectiva para o sujeito do conhecimento e fixam normas para sua elaboração. Essas regras relativamente autônomas e anônimas, por meio de suas coerções, impõem às práticas discursivas opções e limites, e lhes determinam exclusões. Elas entram assim em relações intrincadas com as técnicas e as forças do poder. De fato, há aí uma ligação circular: o saber é produzido e apoiado por sistemas de poder, e, por outro lado, como discurso verdadeiro, induz efeitos de poder que o reproduzem.
Nesse caso, é preciso submeter as autobiografias à análise genealógica e fazer duas perguntas: quais mecanismos de poder possibilitam, coagem ou incitam sua produção (sua integração estratégica)? Que efeitos de poder e saber proporcionam (sua produtividade tática)? Responderemos primeiro à questão da integração estratégica.
Como já foi dito, a narrativa de Barbin encontra seu lugar no discurso da confissão. A prática da confissão surgiu com a penitência cristã, no início do século XIII, integrada ao poder pastoral. A partir do século XVIII, a função do poder pastoral ampliou-se e multiplicou-se para fora da instituição eclesiástica. O Estado moderno apropriou-se dela, tornando-se a matriz de uma nova forma desse poder. Como técnica do poder pastoral, a confissão também se difundiu pelo corpo social. No que concerne a Barbin, vale destacar sua articulação com o discurso científico sobre o corpo e a vida. Mais especificamente, sua confissão é virtualmente solicitada para responder a uma questão médico-jurídica: "Qual sua verdadeira identidade sexual?". Desde o século XVIII, uma tese se impõe: cada indivíduo só pode possuir um único sexo, que seria sua identidade sexual primeira, profunda, determinada e determinante. Do ponto de vista médico, isso significa que, no caso dos hermafroditas, é preciso decifrar qual o verdadeiro sexo que se esconde sob aparências confusas. Da perspectiva do direito, representa a supressão da livre escolha sexual, cabendo ao perito dizer que sexo a natureza escolheu, o qual, conseqüentemente, a sociedade exigirá que ele mantenha (cf. Foucault, 1982, pp. 2-3)5.
Nos anos em que ocorre o caso de Herculine, 1860-1870, a procura da identidade na ordem sexual é praticada com maior intensidade: não só o verdadeiro sexo dos hermafroditas, mas também a identificação das diferentes perversões, sua classificação, caracterização etc.; enfim, como diz Foucault, é o problema do indivíduo e da espécie na ordem das anomalias sexuais (cf. Idem, p. 5).
Barbin havia sido criada como uma moça num meio quase exclusivamente feminino e profundamente religioso. Descoberta por dois homens, um padre e um médico, foi finalmente reconhecida como um "verdadeiro" rapaz. Desse modo, foi obrigada a trocar legalmente de sexo. Incapaz de adaptar-se à nova identidade, terminou por suicidar-se. Sua confissão foi escrita pouco antes de seu derradeiro ato, incitada por essa modalidade de poder da caça à identidade sexual.
A narrativa-crime de Rivière é um resquício remanescente de uma antiga tecnologia de poder: o suplício. No suplício, o inquérito que apurava o grau de culpa do acusado era secreto, ao passo que a punição se dava em um ato público. A justiça precisava que sua vítima autenticasse de algum modo o suplício que sofria, reconhecendo publicamente sua culpa o que era depois relatado em crônicas, fictícias ou não. O que se esperava desses folhetins era um efeito de controle ideológico daí o tom moralizante que possuíam.
Mas, mesmo operando cuidadosamente a separação entre o gesto glorioso do soldado e o vergonhoso do assassino, a existência de tais narrativas não deixava de ser ambígua. Seu sucesso entre as classes populares manifestava, por outro lado, o desejo de saber e de contar como homens puderam se levantar contra o poder, transpor a lei, expor-se à morte pela morte. Portanto, não se deve ver nesse tipo de literatura nem uma ação combinada de moralização e propaganda vinda de cima, nem tampouco uma "expressão popular" em estado puro. São textos que podem ser lidos como discursos de dupla face, um lugar em que se encontravam dois investimentos da prática penal uma espécie de frente de luta em torno do crime, de sua punição e lembrança.
Quando Rivière elaborou sua autobiografia, o inquérito já não era mais secreto. Contudo, a pena para o parricídio a morte no cadafalso era uma prática do suplício que foi incorporada à nova economia do poder que tomou lugar no século XIX6. De maneira semelhante, o gênero de discurso no qual seu escrito se encaixa pertencia a essa antiga tecnologia. Podemos dizer, assim, que a autobiografia do jovem camponês, do mesmo modo que a prática discursiva à qual ela pertence, foram incitadas por essa modalidade de poder. Foi o suplício que as induziu. Mas foi o fato de essa modalidade de poder possuir um grau de racionalização pouco elaborado que permitiu a Rivière confrontar o poder, ligando seu assassinato à história, tomando-o como um ato glorioso.
Tanto no caso de Herculine Barbin como no de Pierre Rivière, as autobiografias e as práticas discursivas às quais pertencem foram incitadas e tornadas possíveis por diferentes mecanismos de poder (seja por meio de tais mecanismos ou contra eles). Não se deve pensar, portanto, que nessa escrita de si se revelaria uma verdade que só não havia emergido ainda em função de um poder que a conteria à força, que a obrigaria a silenciar-se. Nem a verdade é livre por natureza, nem o erro é servo. A produção da verdade é inteiramente infiltrada pelas relações de poder. Nessa produção da verdade de si não há uma exclusão do poder, mas, ao contrário, uma sujeição dos homens (cf. Foucault, 1999b, p.60).
Autobiografias como resistências
Passamos agora à segunda questão: a da produtividade tática dessas autobiografias. É aí onde de fato se encontra o interesse de Foucault.
Como a autobiografia de Barbin é uma confissão, ela vai criar efeitos de saber e poder sobre quem fala e sabe, e não sobre quem interroga e ignora. Mas isso não quer dizer que a verdade está inteiramente no sujeito, que a revelaria pronta e acabada. Pelo fato de sua confissão estar articulada a um saber científico, a verdade completa-se por meio da interpretação médica.
No caso específico de Barbin, a verdade referida diz respeito ao seu "verdadeiro sexo". Quando os médicos definem que ela é um rapaz, ligam-na a uma identidade determinada e definitiva, estabelecendo sua verdade. E, ao descobrir-se um homem, é como um que deveria falar. Seu passado seria considerado um engano a ser dissipado, ou melhor: quando tentasse relembrar as sensações e a vida de quando ainda não era "ele mesmo", era como homem que o tinha que fazer. Sua confissão deveria possibilitar aos médicos observar seu desvio da normalidade (individualização) e restabelecê-la por essa via terapêutica (normalização).
Portanto, há a tentativa de impor a Barbin uma verdade, que ela deve reconhecer e que os outros devem reconhecer nela. Uma tentativa de ligá-la à sua própria identidade conhecida e determinada de uma vez por todas. A partir dessa nova identidade, sua identidade normal, ela deveria medir os seus desvios e corrigi-los. Dá-se aí uma forma de poder que faz de Barbin sujeito no duplo sentido da palavra: sujeito aos médicos, pelo controle e dependência; e sujeito à sua própria identidade, por uma consciência ou autoconhecimento. De qualquer forma, um poder que a subjuga e a sujeita.
Contudo, não é exatamente isso que acontece. Barbin não escreve suas memórias do ponto de vista desse sexo enfim encontrado ou reencontrado. Também não o faz como uma mulher que experimentava suas aproximações com outras garotas como um desvio homossexual. Tampouco como um bissexual que, sentindo mal-estar com sua identidade, pretende passar para o outro lado. Sua narrativa escapa a todas as capturas possíveis de identificação.
No meio feminino em que vivia, ninguém jogava o duro jogo que os médicos impuseram mais tarde à incerteza de sua anatomia. O fascínio que seu estranho corpo causava não dava lugar a nenhuma curiosidade. A identidade dos parceiros, inclusive a de Barbin, não tinha a menor importância no meio daqueles calorosos contatos. Desse modo, quando redige suas memórias, Barbin tem para si um sexo sempre incerto, e está privada das delícias que experimentava quando não tinha esse sexo, ou não totalmente o mesmo sexo daquelas com as quais vivia, que amava e desejava tanto. O que evoca de seu passado, então, é o limbo feliz de uma não-identidade, protegida pela vida dentro daquelas sociedades fechadas, onde se tem a estranha felicidade, ao mesmo tempo obrigatória e interdita, de conhecer um único sexo.
Escapando a uma identidade, Barbin escapa desse saber-poder subjetivador, que a ligaria definitivamente à masculinidade. Já não está submetida a essa verdade que define o que ela é, subjugando-a. Já não está presa à sua própria identidade. E à pergunta dos médicos e juízes: "Qual seu verdadeiro sexo?", Barbin responde virtualmente com outra: "Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?". Resposta-pergunta que não é somente uma resistência, mas também uma transgressão: ela desarticula a questão central do dispositivo da sexualidade, aquela que pergunta pela verdade do sexo e pela nossa verdade no sexo. Com isso, a autobiografia de Barbin torna-se impossível de ser capturada e objetivada, instaurando a cada passagem um desafio, confrontando irremediavelmente os saberes-poderes dominantes. Desarranjando e alterando o campo de forças, Barbin obriga os médicos a se calarem a seu respeito.
Para compreender o efeito de poder que o discurso de Rivière produziu é preciso reconstituir rapidamente o jogo bem diverso que sua autobiografia encontrou na instituição penal. Como Foucault observa, nesse novo espaço o estatuto dos sujeitos falantes, os acontecimentos que os discursos constituíam e os efeitos que produziam não eram iguais aos do saber popular em que o parricida encaixava sua narrativa-crime. Em relação ao seu memorial, fazia-se agora uma tríplice questão de verdade. Primeira, verdade de fato: tratava-se de determinar se o acusado era realmente o autor do crime. Segunda, verdade de opinião: o tribunal do júri, desde 1832, tinha o direito de conceder circunstâncias atenuantes tratava-se pois de formar uma opinião sobre ele, de acordo com o que havia feito, com o que havia dito, a maneira como vivera, a educação que recebera etc. Terceira, verdade de ciência: como objeto de um exame médico, tratava-se de saber se sua ação e seu discurso correspondiam aos critérios de um quadro nosográfico. De certa forma, Rivière, por meio de seu discurso, responde à questão de fato, mas desloca as outras duas.
Essas duas questões estavam ligadas às tecnologias disciplinares que, ao adentrar nas penalidades, não procuravam mais castigar os indivíduos, mas corrigi-los. Para realizar essa transformação é preciso a constituição de um saber específico e de uma determinada técnica. O condenado torna-se indivíduo a conhecer e manipular. Com isso, o sistema penitenciário efetua uma substituição de seu objeto: se recebe da justiça um infrator condenado, ele o transforma, por sua tecnologia corretiva, em delinqüente. Em relação a ele, não interessa tanto o ato que realizou quanto a vida que o caracteriza. Mediante essa introdução do biográfico na penalidade, o criminoso passa a existir antes e fora do crime. Para mostrar como o indivíduo já se parecia com seu ato antes de o ter cometido, reconstitui-se toda uma série de faltas sem infração ou de defeitos sem ilegalidade. Por meio dessas séries, a presença do sujeito é inscrita na forma do desejo o exame mostra como o sujeito está efetivamente presente na forma de seu crime. Seu desejo é o desejo eterno do crime, e é fundamentalmente mau (cf. Foucault, 2002b, pp. 24-27).
Procura-se uma causalidade psicológica que amarra o infrator ao seu delito por meio de um feixe de fios complexos: instintos, pulsões, tendências, temperamentos, caráter. Com isso, os discursos penal e psiquiátrico cruzam suas fronteiras. Os juízes solicitam aos peritos que, ao refazerem a causalidade psicológica do crime na escala de uma vida inteira, determinem o grau de responsabilidade jurídica que o agente teve em seu ato. Mas os psiquiatras, ao realizarem seu exame, constatam que esse desejo de crime é correlato sempre a uma falha, a uma ruptura, a uma fraqueza, a uma incapacidade do sujeito. Desse modo, ao traçar a série na qual se lê o ilegalismo do desejo e a deficiência do sujeito, eles não respondem a questão da responsabilidade colocada pelo direito. Cria-se em torno do autor do crime uma região de indiscernibilidade jurídica: no fim das contas, o sujeito é responsável por tudo e responsável por nada. Ele deixa de ser um sujeito jurídico para se tornar objeto de uma tecnologia normalizadora; ele é transportado da problemática do legal e ilegal, do responsável e não responsável, para a do normal e patológico.
Surge, a partir daí, uma nova questão: é preciso definir se esse desvio patológico do criminoso é algo inerente a seu caráter, existindo desde sempre em sua vida, ou se é uma patologia que teve seu início em um determinado momento. No primeiro caso, ele seria tomado como delinqüente, considerado objeto da criminologia e se tornaria imputável de culpa. No segundo, poderia ser tratado como louco, sendo objeto da psiquiatria e, assim, não imputável. Trava-se uma batalha jurídico-psiquiátrica em torno da maldade infantil: é ela que decidirá o futuro do réu. Era comum, assim, que se pedisse ao criminoso que fornecesse um relato completo e minucioso de toda sua vida7.
Mas o caso de Rivière possui algo de singular. Seu discurso não foi preparado após o crime, nem após a solicitação dos médicos ou magistrados. Seu relato precede ou entrelaça-se a seu ato. É uma maquinaria assassinato-narrativa que se constitui no nível de um saber popular, e os próprios contemporâneos de Rivière aceitaram esse jogo, ao não considerarem a narrativa do crime como externa ou acima dele, o que devia permitir compreender suas razões. Para eles, o fato de matar e o fato de escrever, os gestos consumados e as coisas contadas entrecruzavam-se como ações da mesma natureza. Percebendo isso, o magistrado pediu a Rivière que escrevesse, que terminasse de alguma forma o que havia começado. O memorial não foi tomado como uma confissão ou como uma justificativa ou defesa, mas como uma peça do processo.
Porém, mesmo admitindo que gesto e discurso eram consubstanciais, procurou-se insistentemente avaliar um em relação ao outro como prova de loucura ou de lucidez. Ao discurso-ato de Rivière, um discurso profundamente engajado nas regras de um saber popular, aplicava-se um saber nascido alhures e gerido por outros, um saber que procurou recobri-lo e classificá-lo como discurso de um louco ou de um delinqüente.
Apesar desses esforços, o discurso de Rivière constantemente demonstrava, e seus contemporâneos o compreenderam, que ele matou por ocupar a dupla posição de sujeito e de autor prescrita pelos folhetins, e não porque algo dentro dele o levou inelutavelmente àqueles atos. As razões de seu crime não devem, portanto, ser procuradas em uma patologia interna, em desejos ou instintos maus. "Instinto" é justamente o conceito que permite à psiquiatria converter a transgressão da norma em característica psicológica do sujeito. Portanto, é um conceito central nos mecanismos disciplinares, por meio do qual se subjetiva e patologiza a resistência e a diferença, reforçando e levando adiante o processo normalizador.
A autobiografia de Rivière recusa, com isso, as individualidades de delinqüente e de louco impostas pelos dois saberes-poderes que se combatiam: o jurídico e o médico-psiquiátrico. Mais do que isso, ela dá visibilidade a essas lutas e às relações de poder subjetivadoras que tentavam consumar. O parricida, assim, desconcerta os saberes dominantes, fazendo-os calar. Sua vida precipita-se para o silêncio, deixando como rastro seu memorial, sua marca nos saberes médicos e jurídicos, e, por fim, coroando a glória que procurava, um folheto com a narrativa já deformada do seu crime e de sua morte.
Tanto no caso de Barbin como no de Rivière, os efeitos de poder esperados de seus discursos (respectivamente, a ligação a uma identidade conhecida e determinada de uma vez por todas, e a individualização de acordo com as exigências do poder) não se realizaram. Devido a singularidades que compuseram suas configurações, elas não só promoveram resistências, como também desnudaram os mecanismos de poder e desconcertaram os saberes dominantes, fazendo-os calar. Com isso, precipitaram-se para a obscuridade, uma obscuridade não apenas de infâmia e condenação, mas também de um esquecimento estrategicamente produzido justamente num tempo em que as descrições individuais e os relatos biográficos se estendiam a todos, objetivando, individualizando, sujeitando (cf. Foucault, 1999d, pp. 159-161). Por que trazer à luz essas vidas sem glória? Porque são vidas paralelas, que em suas singularidades radicais não se encontram com nenhuma outra vida, e, precisamente por isso, seus rastros tornam-se tão reveladores.
Autobiografias: Como? Por quê? Para quê?
Para finalizarmos, talvez seja importante retomar as questões que guiam este trabalho e as respostas até aqui ensaiadas. Primeiro, como essas autobiografias estão sendo pensadas? Certamente não são propriedade e expressão de um sujeito soberano que, em sua escrita, revelaria a verdade sobre si. Ao contrário, é o sujeito que é constituído nos discursos, aparecendo como uma função variável e complexa destes. As autobiografias são pensadas a partir da análise arqueológica, descrevendo o nível das práticas discursivas e dos saberes em que se encontram engajadas. Séries de práticas discursivas que delimitam um campo de objetos, que definem uma perspectiva legítima para o agente do conhecimento e que fixam normas para sua elaboração. Ou seja: que possuem um sistema de regras que designam exclusões e opções, regras que não são formuladas pelos seus participantes, que não estão disponíveis para sua consciência. Desse modo, ao encontrar seu lugar em determinada série de práticas discursivas, as autobiografias de Herculine Barbin e de Pierre Rivière são relativamente autônomas e anônimas.
Relativamente, pois a formação e a modificação dessas regras não podem ser completamente explicadas por uma perspectiva interna ao seu desenvolvimento. Ao constituírem-se por meio de múltiplas coerções que lhes impõem opções, limites e exclusões, as práticas discursivas e os saberes estabelecem relações intrincadas com técnicas e forças do poder. Estão circularmente ligados: o saber é produzido e apoiado por sistemas de poder, e, por outro lado, como discurso verdadeiro, induz efeitos de poder que o reproduzem. As autobiografias devem ser submetidas à análise genealógica. Elas, portanto, não podem ser pensadas como a revelação de uma verdade sobre si que estaria fora do poder e que até então havia sido silenciada por ele. De fato, essa produção da verdade de si está inteiramente infiltrada pelo poder e é ele que a torna possível (seja por meio de tais mecanismos de poder, graças a eles ou contra eles). E, também, elas induzem efeitos de poder, seja sobre quem sabe e fala (ligando-o a uma identidade, a uma subjetividade e/ou a uma individualidade), seja sobre quem escuta e interpreta (resistindo, desconcertando e expondo os saberes e poderes que lhes investem).
Segunda questão: Por que trazer à luz essas vidas sem glória e esquecidas nos arquivos Herculine e Rivière? É preciso deixar claro o que se entende aqui por "Herculine Barbin" e por "Pierre Rivière". Não é o recolhimento de toda sua existência, não é seu relato biográfico completo. Está-se longe dos procedimentos biográficos, normalizadores e individualizantes promovidos pelas técnicas disciplinares. Como o próprio Foucault indica, o indivíduo não é um a priori sobre o qual o poder pesaria, mas, ao contrário, é o efeito de uma determinada modalidade de poder. Nesse sentido, "Herculine Barbin" e "Pierre Rivière" são essas configurações históricas e singulares que se tentou reconstituir aqui. Configurações formadas pelo cruzamento, pela cooperação, choque, anulação ou articulação entre discursos, leis, instituições, enunciados científicos, proposições morais, técnicas de poder, técnicas de si, saberes sujeitados etc. Enfim, é esse feixe de forças ou de relações que se constituiu por meio de, graças a ou contra todo um campo diversificado de batalhas, cujo frágil equilíbrio se cristalizou em seus discursos autobiográficos.
Se isso esclarece, no entanto não responde completamente a questão. Resta saber por que, então, foram essas as vidas escolhidas, e não outras. A resposta, evidentemente, não diz respeito à repercussão dos casos: ambos parecem não ter despertado muito interesse em suas épocas. Talvez Foucault os tivesse selecionado devido à sua beleza ou ao espanto que causaram. Mas esse não era um motivo suficiente para se fazer um livro. A resposta tem que passar por outro lugar, possivelmente este: devido a peculiaridades muito singulares que compuseram suas configurações (Herculine era uma hermafrodita que se regozijava na não-identidade sexual; Rivière era um parricida que promoveu a insurreição de um saber popular com seu discurso-ato), em ambos os casos resistiu-se aos poderes que lhes investiam e desconcertou-se os saberes com os quais procuravam recobri-los. Desse modo, os efeitos de poder esperados de seus discursos (respectivamente, a ligação a uma identidade conhecida e determinada de uma vez por todas, e a individualização de acordo com as exigências do poder) não apenas não se realizaram, como se transformaram num contra-efeito desconcertante de desnudamento desses poderes-saberes, silenciando-os. Com isso, podemos dizer que essas vidas foram iluminadas porque eram vidas paralelas: em suas singularidades radicais não se encontram com nenhuma outra vida, mas, justamente por isso, seus rastros tornam-se reveladores e o silêncio se faz ao seu redor, precipitando-as na obscuridade. De certa forma, são os "rastros fulgurantes e instantâneos" dessas vidas que são redescobertos, reconstituídos, e não sua individualidade.
Resta ainda a terceira questão, com a qual fechamos este texto: para que iluminar esses rastros? O que se pretende com essas vidas paralelas?
Certamente não para que sirvam de exemplos a serem seguidos. Foucault não acredita ser possível encontrar a solução de um problema na solução de outro levantado em um momento diverso e por outras pessoas (cf. Foucault, 1995b, p. 256). Não procura, assim, oferecer uma "alternativa", um programa a ser seguido. Ele não pretende ocupar o lugar de porta-voz de uma teoria da libertação ou da reivindicação de direitos recusa-se a representar ou a pensar no lugar dos sujeitados. Inversamente, quer devolver a eles seu direito à fala. Além disso, pela forma como Foucault pensa as relações de poder8, as resistências só podem ser tomadas em sua multiplicidade e como casos únicos, e não como "um lugar da grande Recusa alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário" (Foucault, 1999b, p. 91). É por isso que as vidas paralelas não podem ser imitadas elas são radicalmente singulares, não há um ponto em que possam se cruzar com outras vidas.
Portanto, diferentemente de Plutarco, Foucault não quer colocar em evidência aquilo que nelas permitiria reuni-las a outras existências: seu ponto de exemplaridade. Ao contrário, é precisamente o que possuem de mais singular que é realçado. É em sua diferença fundamental que elas ganham seu valor, pois é justamente essa diferença que lhes permitiu resistir, desnudar e desarticular os mecanismos de poder e saber que tentavam sujeitá-las. Explodindo antes de serem desfiguradas, suas falas rompem o silêncio, produzem-se a partir da "exclusão o lugar mais fundo da sujeição", onde o Outro é construído como não-Humanidade (cf. Bruni, 1989, p. 201). Desse modo, ao redescobrirmos seus rastros e darmos ouvidos a esses discursos, adotando suas perspectivas particulares, experimentamos uma nova forma de olhar, em que os limites do que somos ganham uma visibilidade insuportável. E com isso podemos desconstruir sua evidência, descobrindo em seu lugar não uma natureza ou uma necessidade antropológica, mas a multiplicidade dos acasos, das escolhas arbitrárias, e outras tantas contingências advindas das "relações de interação entre os indivíduos e os grupos" (Foucault, 2000, p. 187). Assim, tal como Bruni escreve a respeito de Foucault, podemos afirmar sobre essas vidas que "sua transgressão nos leva ao limite, ao ponto em que todas as formas instituídas de sentir, de pensar e agir são como viradas do avesso, deixando escapar suas garras ocultas, constituídas por uma contingência irredutível" (Bruni, 1989, p. 204).
Porém, ainda assim, podemos não ter chegado à resposta, já que os poderes e os saberes revelados são historicamente localizados no século XIX. Pode-se dizer, por exemplo, que hoje não se fala mais em monomania (caso de Rivière), nem em "pseudo-hermafroditas" (caso de Herculine). De certo modo, saberes e poderes se transformaram.
Contudo, os episódios de Pierre Rivière e de Herculine Barbin ainda levantam questões importantes para nossa atualidade. Assim, 150 anos depois, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas ainda se calam diante do memorial de Rivière (cf. Foucault, 1994, vol. III, pp. 97-98) e experimentam embaraço diante do diário de Herculine. Isso porque seus saberes-poderes continuam perguntando o que, nos desejos, nos instintos e nas paixões, leva alguém a cometer um crime, e permanecem procurando as relações obscuras, complexas e essenciais entre sexo e verdade. Ainda não se aceita a idéia de que possam existir pessoas totalmente amorais que andam pelas ruas e são absolutamente capazes de cometer homicídios ou de infligir mutilações sem provar qualquer sentimento de culpa ou escrúpulo de consciência (cf. Idem, vol. III, p. 677). Ainda se acredita que não devemos nos enganar a respeito de nosso sexo e que ele esconde o que há de mais verdadeiro em nós (cf. Foucault, 1982, pp. 3-4).
Em nossos dias, psiquiatria, psicologia, psicanálise e outros "psis" continuam ligados a uma forma de poder que "categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele" (Foucault, 1995a, p. 235).
Pierre Rivière, ao engajar-se em um saber popular, resiste e desnuda saberes-poderes que procuravam individualizá-lo de acordo com suas exigências. Herculine Barbin, ao regozijar-se na não-identidade, expõe e contrapõe-se a um saber-poder que tentava ligá-la a uma identidade conhecida e determinada de uma vez por todas. O que se ilumina com a fulgurância desses rastros instantâneos são as batalhas que travaram no exato momento de sua separação e que logo foram esquecidas sob a condenação e o estigma, sob a obscuridade e o silêncio. Batalhas que prosseguem constituindo nossa subjetividade assujeitada. Por meio dessas autobiografias podemos tomar distanciamento de tal subjetividade, contornar sua evidência familiar, analisar o contexto teórico e prático ao qual está associada. Elas são luzes que nos permitem descobrir a nós mesmos para recusarmos isso que somos. São armas nas batalhas que os sujeitos concretos travam cotidianamente contra as formas de sujeição.
Foucault estava engajado nas lutas contemporâneas contra esse tipo de poder que sujeita, contra formas de subjetivação e submissão, contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, desse modo, aos outros (cf. Idem, p. 235). Em sua luta, recorreu à diferença e à variação dessas vidas paralelas.
Texto recebido em 5/10/2004 e aprovado em 16/2/2005.
Daniel Pereira Andrade é doutorando do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). E-mail:dpaaa@hotmail.com.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Jan 2008 -
Data do Fascículo
Nov 2007
Histórico
-
Aceito
16 Fev 2005 -
Recebido
05 Out 2004