Open-access A gestão da carreira dominante de Oscar Niemeyer

Managing Oscar Niemeyer's dominant career

Resumos

Oscar Niemeyer desfruta de consagração máxima na arquitetura brasileira, fundada no carisma da criação estética. A gestão de sua posição hegemônica assumiu, ao longo de muitas décadas, contornos bastante nítidos. Este artigo decompõe os elementos da estratégia adotada, mostrando os dispositivos da cultura erudita que a retórica da celebração mobiliza. Chama a atenção para impasses que tão prolongado status de excepcionalidade provoca no circuito da comunidade de pares e do campo cultural inclusivo. São questões que dizem respeito à proteção ao patrimônio cultural, à legislação de concorrências públicas, à política urbana, à atribuição de autoria, à relação entre arte e política ideológica e até mesmo à coerência esperada entre a arquitetura praticada e as exigências do quadro teórico que a legitima.

Oscar Niemeyer (1907-2012); Arquitetura moderna; Profissão e carreira; Teoria; Mecenato público


The name of Oscar Niemeyer is enshrined in Brazilian architecture, founded on the charisma associated with aesthetic creation. The management of his hegemonic position has taken on fairly clear outlines over the course of many decades. This article breaks down the elements of the strategy adopted, showing the elements of erudite culture mobilized by the rhetoric of celebration. It draws attention to impasses provoked by such a prolonged status of exceptionality within his circle of peers and the wider cultural field. The issues raised in the process include the protection of cultural heritage, legislation relating to public tenders, urban policy, the attribution of authorship, the relation between art and ideological policy, and even the coherence expected between the architecture practiced and the demands of the theoretical framework legitimizing it.

Oscar Niemeyer (1907-2012); Modern architecture; Profession and career; Theory; Public patronage


ARTIGOS

A gestão da carreira dominante de Oscar Niemeyer

Managing Oscar Niemeyer's dominant career

José Carlos DurandI; Elena SalvatoriII

IProfessor no programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades/USP. E-mail: jcgdurand@gmail.com

IIIntegrante do grupo de pesquisa Arquitetura: Formação e Profissão, Faculdade de Arquitetura/UFRGS. E-mail: elena.salvatori@ufrgs.br

RESUMO

Oscar Niemeyer desfruta de consagração máxima na arquitetura brasileira, fundada no carisma da criação estética. A gestão de sua posição hegemônica assumiu, ao longo de muitas décadas, contornos bastante nítidos. Este artigo decompõe os elementos da estratégia adotada, mostrando os dispositivos da cultura erudita que a retórica da celebração mobiliza. Chama a atenção para impasses que tão prolongado status de excepcionalidade provoca no circuito da comunidade de pares e do campo cultural inclusivo. São questões que dizem respeito à proteção ao patrimônio cultural, à legislação de concorrências públicas, à política urbana, à atribuição de autoria, à relação entre arte e política ideológica e até mesmo à coerência esperada entre a arquitetura praticada e as exigências do quadro teórico que a legitima.

Palavras-chaves: Oscar Niemeyer (1907-2012); Arquitetura moderna; Profissão e carreira; Teoria; Mecenato público.

ABSTRACT

The name of Oscar Niemeyer is enshrined in Brazilian architecture, founded on the charisma associated with aesthetic creation. The management of his hegemonic position has taken on fairly clear outlines over the course of many decades. This article breaks down the elements of the strategy adopted, showing the elements of erudite culture mobilized by the rhetoric of celebration. It draws attention to impasses provoked by such a prolonged status of exceptionality within his circle of peers and the wider cultural field. The issues raised in the process include the protection of cultural heritage, legislation relating to public tenders, urban policy, the attribution of authorship, the relation between art and ideological policy, and even the coherence expected between the architecture practiced and the demands of the theoretical framework legitimizing it.

Keywords: Oscar Niemeyer (1907-2012), Modern architecture; Profession and career; Theory; Public patronage.

Introdução

Controlar o contexto da exposição de si é prerrogativa dos dominantes em qualquer campo, e com o cultural não há por que ser diferente. Como a posição de domínio do arquiteto Oscar Niemeyer em relação aos pares concorrentes é tão vasta e antiga, sua fala acerca de si e de sua arquitetura saía de seus lábios quase como uma récita complacente e confortadora. Ela vinha acompanhada pela agilidade no domínio do giz ou da hidrográfica, repetindo com graça e entusiasmo, quase de cor, os principais traços dos principais projetos (ou do último projeto) diante do público, multiplicando ad infinitum o gesto da concepção inicial – prática que reforçava o carisma da criação e a pregnância da forma e tendia a liquidar dúvidas quanto ao reconhecimento de autoria.

Um controle nesse grau define tacitamente o que é ou não perguntável, que divergências se podem ou não aceitar, que dimensões da vida profissional ou pessoal podem ser abordadas e em que profundidade, com quais outros arquitetos ele pode ser comparado, sem risco de melindre ou disparate. Em suma, um grau elevado de controle produz um efeito imperceptível de censura que, no limite, pode tolher o aprofundamento da informação.

Certamente, daí deriva o efeito de mesmice que terminava ricocheteando e aborrecendo o próprio entrevistado. Isso aparece, com clareza, ao fim de um longo documentário cinematográfico dedicado a Niemeyer (cf. Marcel, 2007); ao ser perguntado o que achava das questões que lhe costumavam fazer em entrevistas e depoimentos, respondeu: "São sempre as mesmas!". A tal desalento seguiu-se um desabafo sobre o cansaço que lhe provocava discutir arquitetura quando há tanta coisa na vida importante a fazer, como curtir os amigos e denunciar injustiças sociais – um fecho costumeiro de suas falas.

Idade avançada, filmagem cansativa, excesso de entrevistas, qualquer razão de ordem prática pode ter seu quinhão nesse estado de ânimo. Mas resta a questão de saber se as entrevistas e documentários acerca de Niemeyer comportam de fato questionamentos, isto é, a colocação de questões reais que cobrem respostas reais, combinando informação, reflexão e polêmica. Ou se, ao contrário, suas aparições na mídia obedeciam a um roteiro já bem interiorizado por ele e pelos que o entrevistavam a respeito do que sejam sua arquitetura, seus princípios éticos, sua ideologia e seu estilo de vida.

Este artigo pretende sair desse clima de censura, mobilizando material de natureza e de procedência diversas, aproveitando autores e fontes que ajudam a ver o que fica na sombra ou, ao menos, fora de foco, quando o dizer sobre Niemeyer se confina às suas próprias palavras e às daqueles muitos que o cercam de verdadeira veneração ou incondicional amizade.

Para atingir esse objetivo, agregam-se aqui várias dimensões, começando por submeter a imagem que sua biografia projeta às categorias da análise sociológica, para a qual a atividade estética, como qualquer outra atividade humana, se processa dentro de relações sociais que precisam e podem ser conhecidas. Apontam-se, em seguida, os paradoxos e as insatisfações que desabrocham quando alguém se toma e é tomado como hors concours em um espaço no qual a vitória em concurso público é considerada o único critério democrático de acesso à grande encomenda governamental. Alerta-se, então, para os riscos que um modo carismático de fazer arquitetura (ênfase no esboço inicial e no reconhecimento de sua autoria) produz em programas de custo econômico elevado, nos quais – entre o risco do arquiteto e os passos subsequentes, até se chegar ao projeto completo, ou mesmo ao prédio construído – intervêm muitos agentes, com interesses que não são criar beleza. Invocam-se os princípios que regem a política de patrimônio histórico e cultural no Brasil e os requisitos necessários para que um prédio possa ser tombado, mostrando como o prestígio de Niemeyer tem levado por vezes a tentativas (nem sempre bem-sucedidas) de colocar o poder do carisma acima do que é estabelecido em lei. Aproveita reflexões de teóricos da arquitetura ativos no espaço acadêmico brasileiro (teses, livros e artigos) para examinar, em bases mais seguras, se a arquitetura de Niemeyer é ou não, afinal de contas, um processo incessante de invenção de formas completamente novas. Admite-se, por fim, que se a arquitetura aspira à invenção, a pesquisa em arquitetura também deve ambicioná-la. Este artigo deve ser lido, portanto, como um convite à renovação da pesquisa acerca de Oscar Niemeyer.

Construção e gestão de uma posição dominante

Todos conhecem a alentadíssima biografia profissional de Niemeyer, apoiada em uma rara longevidade e acompanhada de notável higidez física e mental. Sua longa carreira foi celebrada desde o início pela comunidade de pares, por grande parte da intelectualidade brasileira, por abundante número de políticos e demais segmentos da classe dirigente, sem contar toda a atenção que tem recebido em outros países, em particular de líderes políticos ligados ou simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Cada mídia a seu tempo, Niemeyer ganhou as páginas de jornais e revistas e as câmeras de TV e cinema. Por sete décadas foi chamado, a breves intervalos, para comentar a inauguração de mais um prédio monumental1 que, fosse no Brasil ou no estrangeiro, sempre trazia a clara marca de seu autor.

Assim, analisar Niemeyer é analisar – para além de sua arquitetura – seu discurso sobre sua arquitetura. É, enfim, revisitar o repertório de recursos de que ele lançava mão, de forma consciente e inconsciente, para reforçar a aura de sua obra e de si mesmo. Sua carreira, iniciada ainda muito jovem, foi impulsionada por tamanhas circunstâncias favoráveis que, por volta de seus cinquenta anos (quando a grande mídia, no Brasil e no exterior, o consagra pelos palácios de Brasília), o puseram definitivamente muito acima de qualquer outro arquiteto brasileiro em termos de visibilidade pública e prestígio profissional.

Entre tais circunstâncias, as duas mais importantes parecem ser: primeiro, ter pertencido ao círculo de artistas e intelectuais protegidos de Gustavo Capanema, ministro da educação e saúde durante o Estado Novo (1934-1945), grupo que, além de se tornar referência de legitimidade artística no Brasil do século XX, representa o momento em que mais diretamente intelectuais e artistas puderam definir a política cultural no país. Referindo-se a esse grupo e a esse momento, Miceli (1996, p. 24) admite que "talvez [seja] um dos únicos momentos da história brasileira contemporânea em que se consegue discernir um projeto cultural inteiramente formulado e implementado pelos quadros intelectuais e artísticos da classe dirigente". Segundo, ter associado sua carreira à de Juscelino Kubitschek, um filho de viúva pobre do interior mineiro que chegou a presidente da República, e que por mais de treze anos2 chefiou executivos com poder de encomendar arquitetura. Um político inquestionavelmente reconhecido como grande líder democrático, tolerante e visionário. Seu mandato de presidente, prensado entre dois prolongados regimes autoritários, estará registrado para todo o sempre na memória de muitos brasileiros como um oásis de democracia, de forte crescimento econômico e de modernização acelerada. Enfim, jk se mostrou disposto a contornar ou atropelar quase tudo o que fosse preciso para ter Niemeyer a seu lado, de Pampulha a Brasília, e com ele trabalhar contra o tempo, com tudo o que de épico aí fica impregnado. Ambas as circunstâncias, em suma, colocaram-no em uma posição social de inequívoca excepcionalidade.

A tese aqui é a de que Oscar Niemeyer, tendo há bastante tempo atingido tal patamar de excepcionalidade, conseguiu administrar com facilidade sua posição dominante, mobilizando com coerência, bom senso e constância um conjunto de dispositivos da cultura erudita.

Para entender como ele fez isso é preciso lançar mão de alguns pressupostos que têm se mostrado heurísticos para o conhecimento social do mundo artístico3. É com base nesse repertório que se enunciam algumas particularidades da arquitetura como campo cultural e se esboça a estratégia de dominação de Niemeyer, e o subsequente modo de administrar esse posicionamento.

Tomando elementos recolhidos da farta documentação e bibliografia existente, pode-se dizer que Niemeyer é:

  • Um

    artista produto exclusivo de sua obra. Isso significa contar com um respaldo de legitimidade que é central no modelo de êxito imposto pelos movimentos de vanguarda da segunda metade do século XIX e até hoje não superado. Raciocinando ao inverso, Niemeyer não deve o que é, por exemplo, a uma formação escolar, a uma academia. Ele frequentou a Escola Nacional de Belas Artes, mas quando ela já era decadente, e o curso de arquitetura, inexpressivo. Não deve também a um arquiteto de prestígio com quem tenha vivido a clássica etapa mestre-pupilo. Lúcio Costa, ao que tudo indica, não preencheu nem jamais pretendeu preencher o papel de mestre de Niemeyer

    4. A posição que Lúcio Costa construiu para si foi a de autoridade em arquitetura (colonial e moderna), sendo a construção dessa posição praticamente simultânea à de Niemeyer, havendo muito pequena diferença de idade entre ambos

    5. Niemeyer também nada deve à origem familiar, visto que não houve precedentes de arquitetos ou artistas plásticos em sua família de origem ou em seu círculo imediato, nem utilizou dinheiro de família para uma viagem de iniciação na qual fosse aprender no estrangeiro o que não se ensinava no Brasil; também não consta que tenha usado patrimônio imobiliário familiar para financiar a construção de seus primeiros projetos, como é comum entre arquitetos bem-nascidos em início de carreira. Ou seja, não recebeu de forma significativa capital cultural, econômico ou de relações sociais para o deslanche de sua trajetória. Seus antecedentes sociais – como ser neto por parte de mãe de um ministro do Supremo Tribunal Federal – são mencionados apenas como pretexto para insinuar sua precoce intolerância para com os privilégios das elites no Brasil. A posição do avô quase sempre surge no registro nostálgico de cenas de infância em que Niemeyer ressaltava o seu inconformismo quanto à rudeza das relações quase escravistas de seus familiares com os empregados domésticos. As menções à profissão do pai (dono de uma modesta tipografia no Rio de Janeiro) em nada alteram esse quadro.

  • Um

    artista que não faz concessões ao dinheiro. De tão central, esse princípio chega a estruturar o campo artístico. Niemeyer mencionava reiteradamente em seu discurso que teria chegado a arriscar o sustento da própria família quando decidiu absorver a boa arquitetura e trabalhar por idealismo com Lúcio Costa, no início da carreira (embora não se precise o tempo em que viveu essa condição); que teria empregado dinheiro de seu bolso para evitar que projetos seus fossem desfigurados por falta de recursos (como exemplo mais conhecido, a

    Obra do Berço, de 1937); que costumava oferecer de forma gratuita seus serviços quando uma causa maior ou a lealdade a um amigo assim o recomendasse; que vivia uma "vida simples", sem luxo nem extravagâncias.

  • Um

    artista que subordina os "valores da arte" a valores humanos mais relevantes (virtudes do coração e do caráter, acima das conjunturas e das competições)

    6. Um artista que não alimentava intrigas com concorrentes nem mesquinharia; que silenciava, em geral, a respeito da obra de outros arquitetos; que não lia o que outros escreviam a seu respeito

    7 e, nas apresentações públicas, preferia o depoimento de artistas celebrados de outros campos com os quais tinha afinidade ideológica

    8; que abre seus projetos à colaboração de pintores, escultores, paisagistas, como gesto generoso de solidariedade e integração das artes

    9. Tais valores incluíam seus ideais políticos, e Niemeyer era capaz de dispor os interesses do partido a que esteve ligado aos seus próprios interesses profissionais. O exemplo mais lembrado a esse respeito é ter acolhido em seu escritório, em 1945, o secretário do Partido Comunista Brasileiro (pcb), Luis Carlos Prestes, mais uma quinzena de militantes, facilitando-lhes condições para organizar um Comitê Metropolitano num momento de legalização do partido e de liberdade para Prestes. Niemeyer também mencionava uma vez que saíra à rua para fazer panfletagem, quando teria sido admoestado por outros militantes por fazer algo que não estava à sua altura

    10.

Como não há estudo que focalize a atuação de Niemeyer como membro do pcb, e sabendo-se que arquitetura é um gênero que não se presta ao proselitismo político, como a ficção literária, as artes cênicas, o cinema e mesmo a pintura, é lícito supor que ele não tenha passado pelos constrangimentos e pelas angústias que sofreram outros artistas para conciliar as cobranças que o partido fazia com as aspirações a um reconhecimento propriamente estético – casos de Jorge Amado, como analisou Berno de Almeida (1979), e do grupo de pintores franceses ligados ao pc francês (cf. Verdès-Leroux, 1979). Muito ao contrário, Niemeyer esteve sempre tão à vontade diante dos colegas do pcb sobre o que fazia ou deixava de fazer que rechaçou soberbamente reconhecer a importância da arquitetura soviética, como lhe foi cobrado em uma de suas visitas à União Soviética, segundo o documentário A vida é um sopro (Marcel, 2006).

Foi com uma frase muito eloquente que Niemeyer sumarizou a fácil convivência pacífica que mantinha com a maioria dos políticos, no Brasil: "Nunca escondi minha posição de comunista. Os governantes compreensivos, que me convocam como arquiteto, sabem da minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu deles penso a mesma coisa" (Niemeyer, 1999, p. 149). Quanto ao alcance social de sua arquitetura, ele se perguntava, algo ingênuo: "Não sei por que minha arquitetura esteve sempre na área dos grandes edifícios públicos." E então respondeu, um parágrafo adiante, com a simplicidade de quem concilia a liberdade de criação com o politicamente justo: "E, como eles [os edifícios públicos] nem sempre correspondem a razões sociais justas, tento fazê-los belos, espetaculares. Com isso os mais pobres param ao vê-los, com espanto e entusiasmo. É o que, como arquiteto, lhes posso oferecer" (Idem, p. 248).

A perspectiva de uma política profissional cidadã

A arquitetura moderna brasileira se estabelece como tal na repercussão dos eventos que marcaram a construção do edifício do Ministério de Educação e Saúde Pública (mesp), no Rio de Janeiro, em 1936. Foi apenas a primeira de uma série de iniciativas oficiais que lhe dariam ampla e duradoura visibilidade, constituindo um marco histórico no desenvolvimento da profissão de arquiteto no país.

A anulação de um concurso público de projetos já com vencedor definido, solicitada por Lúcio Costa ao ministro Capanema, abriu a possibilidade legal e institucional para que o Ministério convidasse Le Corbusier para desenvolver um novo projeto, junto com Lúcio Costa e sua equipe. A tarefa de projetar o novo edifício foi assim redirecionada para um grupo de jovens arquitetos mais diretamente identificado com as vanguardas arquitetônicas europeias, o que simbolizou a vitória tática do "moderno" sobre o "anacrônico" no campo profissional. Tal vitória tem sido celebrada desde o primeiro momento como expressão do senso de oportunidade, da habilidade política e da clarividência de Lúcio Costa.

Um ato como o da anulação do concurso do mesp foi, na verdade, um episódio de violência institucional. Ocorreu sob um clima político em que praticamente tudo se justificava em nome da necessidade de uma renovação profunda das estruturas sociais vigentes, precedendo, emblematicamente, a instituição da duradoura ditadura do Estado Novo.

Não se deve esquecer que a exigência de concurso público para projetos era considerada, pela categoria profissional, instrumento privilegiado para a afirmação da profissão e para a consolidação da cultura arquitetônica, tendo sido defendida pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (iab) desde sua criação, em 1921. Os arquitetos vinham pressionando o governo para que abrisse concursos públicos para todas as edificações de certa relevância, e obtiveram vitória parcial com a Lei 125/1935, que restringia esses concursos aos "profissionais legalmente habilitados". O levantamento dos concursos oficiais de projeto mostra que, no período Vargas, foi atingida uma situação bastante favorável aos arquitetos. Em uma só década, de 1930 a 1939, foram abertos 44 concursos, ou seja, muito mais do que os trinta dos três decênios anteriores, de 1900 a 1929 (Flynn, 1987). Além do edifício do mesp, a segunda metade da década de 1930 assistiu aos concursos de projetos da Associação Brasileira de Imprensa, do Aeroporto Santos Dumont, da Estação de Hidroaviões e do Pavilhão Brasileiro da Feira Internacional de Nova York.

Para os arquitetos, a necessidade de concursos públicos justificava-se plenamente pela oportunidade de fazer emergir novos valores e ligava-se à elaboração de uma ética normalizadora de procedimentos profissionais. É reveladora a atitude de Lúcio Costa no concurso para o Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Nova York, de 1939, quando ele renuncia ao primeiro lugar e declara que o projeto do segundo colocado, Niemeyer, é o melhor, dando provas do compromisso com ética e com o avanço da arquitetura moderna11. Em 1943, em Porto Alegre, o Instituto de Previdência do Estado anulou a proposta vencedora do concurso de 1936, de Fernando Corona e Egon Weindörfer, contratando Oscar Niemeyer para projetar seu edifício-sede. Outro episódio, menos conhecido, mas igualmente importante para entender a solidariedade entre arquitetos modernos, foi o do concurso para o Centro Técnico da Aeronáutica de São José dos Campos, em 1947. Vencido por Niemeyer, o concurso foi anulado por entenderem os militares, autores da encomenda, que não deveriam confiar a tarefa a um integrante do Partido Comunista. Foram contratados os irmãos Roberto12, a segunda colocação, que decidiram repassar de imediato o projeto ao colega a princípio vitorioso. Desde esse episódio, aparentemente, Niemeyer deixou de participar de concursos públicos.

Mas continuaram sendo anulados resultados de concursos públicos em favor da sua contratação hors concours em etapas posteriores, nas quais todos os concorrentes já partilhavam um mesmo repertório de base e não mais havia o risco de discriminação político-ideológica. É claro que, sob tais condições, a anulação de concursos não podia mais ter o efeito de combater o anacrônico ou de restabelecer justiça. Por exemplo, o concurso do Paço Municipal de São Paulo, em 1952, anulado sem julgamento e substituído por um projeto de Oscar Niemeyer, teve forte repercussão negativa no campo profissional. A menção do jornalista e crítico de arte Geraldo Ferraz, ferrenho crítico do arquiteto, ao que chamou de dupla falha ética (a anulação do concurso e o oferecimento do projeto sem custo para a prefeitura) valeu-lhe, oito anos depois uma agressão física por parte de Niemeyer (cf. Ferraz, 1982, pp. 168-169).

Ainda segundo Ferraz, a construção de Brasília teria sido também precedida de eventos que repercutiram mal entre os arquitetos brasileiros. As minutas dos editais de concursos para o projeto urbano da nova cidade e para os projetos de suas edificações públicas foram elaboradas pelo iab. Niemeyer, que assumira a coordenação dos trabalhos da recém-criada Novacap, eliminaria os projetos arquitetônicos do edital definitivo, sendo que diversos deles, como a Praça dos Três Poderes, já estariam em andamento, o que teria suscitado uma forte reação da entidade. Para Ferraz, o grupo de arquitetos mais diretamente ligados a Niemeyer teria se organizado para tomar a presidência do iab e neutralizar a crítica, em um episódio turbulento, que incluiria uma eleição fraudada e depois anulada13.

Mais recentemente, a anulação de outros concursos públicos suscita reações. É o caso do Teatro Municipal de Uberlândia, em 1997, da Estação Integrada da Pampulha, em 2003, e da substituição da competição pela contratação hors concours do arquiteto, como no Centro Administrativo de Minas Gerais14, ainda em 2003. O Ministério Público também vinha se manifestando contra a contratação sem concurso de Niemeyer, como ocorreu com a Escola de Teatro Bolshoi, em Joinville, projeto de 2003. Também contestou a legitimidade da contratação continuada de Niemeyer para novos projetos em Brasília.

Os riscos da arquitetura do rabisco

A biografia do arquiteto é repleta de alusões a projetos que teriam sido gentilmente oferecidos a instituições, como os de alguns memoriais e monumentos, a amigos e clientes, especialmente os residenciais15: de projetos não construídos, como as residências de João Cavalcanti (1940) e Gustavo Capanema (1947), a construídos parcialmente conforme a proposta original, como o do Centro de Estudos e Convenções da Associação Médica do Rio Grande do Sul (1973), em Porto Alegre. A contratação de projetos institucionais e empresariais poderia incluir, quase como regra, um projeto residencial oferecido de forma gratuita ao contratante. Assim foi com a residência de fim de semana na Pampulha projetada para Juscelino Kubitschek, em 1943; com a residência de Nara Mondadori, em Cap-Ferrat, em 1968; com a "casa de fazenda" de Orestes Quércia em Pedregulho, em 199016.

A imagem divulgada pelo próprio arquiteto inclui a facilidade com que projetava, em "momentos de prazer"17, capaz também de responder ao imediatismo dos objetivos administrativos e políticos que deram origem a alguns de seus projetos, como o Cassino da Pampulha (1940), concebido em uma noite, ou o Teatro Nacional de Brasília (1958), desenvolvido em três dias. Suas obras nasciam de esboços a mão livre de pequena escala, trabalho que realizava individualmente, passando para outros escritórios, arquitetos ou calculistas a tarefa de tornar factível a forma proposta.

Alguns desses rabiscos, provavelmente realizados sem contratação formal, deram origem a uma série de obras que lhe são imputadas, ainda que não reconhecidas na biografia oficial do arquiteto. Entram aí o projeto de urbanização da Praia do Forte, em Jurerê/Florianópolis, e o do Lagoa Iate Club, construídos na mesma ilha entre 1957 e 1959, descritos por Martins (2004).

Nos últimos anos, o interesse crescente em torno de suas realizações e o aumento de seu prestígio nacional e internacional foram responsáveis por outros projetos atribuídos a Niemeyer. A prefeitura de Caratinga (mg) tombou, em 2002, um coreto que teria sido projetado em 1980, a pedido do cartunista caratinguense Ziraldo Alves Pinto. Em Teresópolis (rj), foi também tombada a Escola Estadual Ginda Bloch, obra que se presume de sua autoria, datada de 1966.

Outras obras que não constam de sua biografia, porém, parecem ter tido origem na falta de controle sobre as etapas posteriores de projeto, cujo resultado teria desagradado ao arquiteto. É o caso de uma série de edifícios de São Paulo, que constituiriam uma verdadeira "fase renegada" na vida profissional do arquiteto (cf. Leal, 2003).

Ou seja, o arquiteto teria omitido de sua autobiografia obras julgadas indignas ou irrelevantes em seu currículo e outras que ele mesmo admitiu não corresponderem, de alguma forma, à proposta original, como o caso dos Anexos i e ii do Tribunal de Contas da União, em Brasília, de 1994 a 1998.

A falta de controle sobre os desdobramentos dos projetos pode ter como consequência o custo adicional na execução das obras, representado pela necessidade de detalhamento dos esboços originais e o cumprimento das estritas metas formais a que seus projetos tendem a se reduzir. É sabido que as obras institucionais têm patamar de custos superior ao das construções correntes; no caso das obras idealizadas por Niemeyer, os custos parecem extrapolar qualquer previsão, e seu método de trabalho pode servir inclusive de justificativa para atrasos e aumento dos custos originais, por parte das empreiteiras. Como na construção da sede do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, inaugurada em 1995 ao custo de R$ 171 milhões, acusada de superfaturamento pelo Ministério Público Federal. O projeto arquitetônico "arrojado e majestático", tal como definido na época, sequer chegou a ser localizado pela Procuradoria. Em sua defesa, a construtora responsável alegou que o orçamento fora elaborado "a partir de um esboço, sobre o qual foram feitos os cálculos estimativos, pois é assim que o renomado artista trabalha, detalhando o projeto ao longo da execução", conforme publicado pela Folha de S. Paulo (Vasconcelos, 2006). Outros projetos institucionais feitos pelo arquiteto têm repetido o modelo: em abril de 2007, o governo federal anunciou a contratação da construção da nova sede do Tribunal Superior Eleitoral (tse), em Brasília – até então, a obra mais cara do Judiciário, ao custo de cerca de R$ 335 milhões.

A questão dos custos finais das obras poderia, inclusive, justificar o grande número de projetos não edificados, que é próximo de dois terços do total desenvolvido por Niemeyer no período pós-Brasília (até 2005). A preeminência da forma sobre as demais questões de projeto acarreta, por outro lado, a utilização antieconômica dos materiais – a esse respeito, já se sabe que algumas de suas obras, na verdade, no lugar de concreto armado, constituiriam maciças estruturas metálicas recobertas. Em suma: dispêndio desnecessário e falta de respeito à veracidade esperada da arquitetura.

O centenário de Niemeyer, em 2007, ensejou uma série de comemorações que receberam ampla repercussão na mídia. Observou-se que, à medida que o tom de celebração aumentava, ocorria o fenômeno do uso da mídia na divulgação de intenções de contratação de projetos, antes mesmo que fossem do conhecimento do arquiteto.

A obra de Niemeyer como Patrimônio Cultural

Juscelino Kubitschek utilizou o instrumento de tombamento de uma forma inédita no Brasil, preservando preventivamente construções significativas de Brasília, o que evidenciava seu desejo de fazer história e marcar sua contribuição ao país. A edificação de madeira chamada de "Catetinho", residência oficial em suas visitas ao canteiro de obras e onde residiu Niemeyer durante a construção da cidade, foi tombada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) já em 1959, atendendo a um pedido pessoal do presidente. Esse princípio de precaução esteve presente ainda no tombamento da Catedral de Brasília, em 1967.

Outros edifícios de Brasília projetados por Niemeyer foram tombados pelo governo do Distrito Federal (gdf) em 1982, como o conjunto da Esplanada dos Ministérios, do qual fazem parte o Congresso Nacional, o Palácio da Alvorada, a Capela Nossa Senhora de Fátima e o Museu da Fundação de Brasília. Entre os bens tombados pelo gdf nessa época estão outras construções de autoria imprecisa, constando apenas como projetadas pelo Departamento de Arquitetura da Novacap ou pelas construtoras da Capital, as quais geralmente eram resíduos de implantação ou, ainda, antigas fazendas locais.

O desejo de elevar Brasília à qualidade de Patrimônio Cultural da Humanidade fez o governador José Aparecido promulgar o Decreto de Tombamento do Plano Piloto de Brasília (Decreto 10.829/1987), primeiro procedimento para solicitação do título na Unesco, obtido no mesmo ano. O Decreto, que mantinha as quatro escalas urbanísticas da proposta de Lúcio Costa18, condicionava a aprovação de projetos de construção nas áreas non-aedificandi à apreciação do órgão local que naquela época era o Conselho de Arquitetura Urbanismo e Meio Ambiente (Cauma) – § 2º do artigo 10.

Em 1992, concluído o processo de tombamento, o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (ibpc)19 editou a Portaria 314/1992, que estabelece que

[...] excepcionalmente, e como disposição naturalmente temporária, serão permitidas, quando aprovadas pelas instâncias legalmente competentes, as propostas para novas edificações encaminhadas pelos autores de Brasília – arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer – como complementações necessárias ao Plano Piloto original e, portanto, implícitas na Lei Santiago Dantas (3.751/1960)20 e no Decreto 10.829/1987 do gdf que a regulamenta e respalda a inscrição da cidade no Patrimônio Cultural da Humanidade (§ 3º do artigo 9º).

Essa disposição tem sido contestada repetidas vezes. Em 1999, o procurador Ulysses Jacoby classificou de favorecimento ilícito a contratação de Niemeyer para o projeto do complexo cultural da Esplanada dos Ministérios21, parte do qual foi inaugurado em 15 de dezembro de 2006, dando início às comemorações do centenário do arquiteto: "Não há por que existir uma reserva de mercado para Niemeyer, por mais genial que seja sua obra". Em resposta, o consultor jurídico do gdf, citando o inciso iii do artigo 25 da Lei de Licitações, que prevê sua dispensa no caso de notória especialização, argumentava que "não há ninguém mais competente para concluir uma obra que seu próprio autor. E ela é muito singular, pois vai ser feita na área mais nobre de uma Capital que é singular por ser Patrimônio Histórico"22. A mesma matéria jornalística revelava que o gdf se encontrava bastante seguro juridicamente inclusive para contratar Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa, falecido no ano anterior, "para iniciar o projeto de revitalização da W3 sul e norte, seguindo as diretrizes traçadas por Niemeyer". O gdf inauguraria, assim, a figura da hereditariedade nas disposições do § 3º do artigo 9º da Portaria IBPC 314/1992. Em 2004, a Procuradoria do Meio Ambiente, Patrimônio Urbanístico e Imobiliário do df, questionaria a constitucionalidade dessa mesma portaria, em essência apenas instrumento regulador interno, sem poder de anular um decreto do Poder Executivo23.

O caso do projeto do auditório do conjunto arquitetônico do Parque Ibirapuera, por outro lado, traduz o embate travado entre diversos agentes no campo das políticas públicas de preservação. Essa edificação, mesmo prevista no plano original de 1951, foi a princípio proibida por encontrar-se em área tombada (o Parque fora tombado pela prefeitura municipal em 1992 e o conjunto arquitetônico de autoria de Niemeyer, pelo Iphan, em 2002). Depois, sua aprovação ficou assim condicionada pelo Departamento do Patrimônio Histórico: "deverá ser respeitada integralmente a configuração da marquise atual, que é tombada e não poderá sofrer nenhuma forma de mutilação" (apud Camargo, 2005). Sendo uma intervenção inédita de um autor sobre sua própria obra depois de mais de cinquenta anos, as discussões se deram em torno da autoridade do mesmo em ferir disposições legais que visavam proteger essa mesma obra tal como havia sido apropriada como patrimônio cultural da cidade. Apesar das críticas de Niemeyer (e algumas ameaças, como a de não assinar o projeto ou de nunca mais pôr os pés em São Paulo), o auditório foi inaugurado em 2004, sem que a antiga marquise sofresse a supressão parcial proposta por ele.

A legitimidade cultural de Niemeyer pôde ser utilizada, entretanto, para angariar vantagens indevidas; é caso exemplificado pelo projeto da Universidade Salgado Oliveira, em Brasília, pertencente ao senador Wellington Salgado – também patrocinador do Memorial Niterói do Caminho Niemeyer. A aprovação do projeto do novo campus, contratado em 2004, continuava impedida ainda em maio de 2007 por ferir o Plano Piloto de Lúcio Costa no quesito altura dos edifícios; ou seja, contrariava o próprio Decreto de Tombamento de 198724. Além disso, a área escolhida pelo empreendimento estaria fora da abrangência de linhas de transporte público e careceria de vias adequadas ao fluxo futuro de veículos. Não seria a primeira vez que o arquiteto pretendeu julgar a pertinência e permanência de valores urbanísticos da cidade, tentando agir com independência em relação a eles. Já em 1996 receberia uma reprimenda pública de Lúcio Costa, referindo-se a duas torres então projetadas por Niemeyer atrás da Praça dos Três Poderes: "É uma brutalidade!"25.

Gabriela Izar dos Santos considera que o comportamento de Niemeyer, no caso de Brasília, pode ser até classificado de autofágico:

Contraditoriamente, está a desenhar linhas, retângulos e curvas de modo incontinenti e a rabiscar a jovem Capital com formas em concreto que não se podem denominar arquitetura. À frente dos próprios monumentos instala formas, oculta-nos as obras antigas para falar à força suas "novidades". Repete com nosso maior cartão postal (a Esplanada dos Ministérios) o que fez na bucólica região do lago, ao instalar volumes de concreto, de vidros espelhados, a convite de governadores, ministros e outras autoridades. Niemeyer é o arquiteto autofágico, o que devora sua própria obra, o que devora sua própria história (Santos, 2005).

Há, porém, um novo fenômeno em curso, que contrasta com um possível descaso do arquiteto pelos conceitos instituídos de patrimônio: o tratamento antecipado dos projetos construídos de Niemeyer como bens patrimoniais. Mesmo que a maior parte das iniciativas de tombamento ainda tenha origem em instituições como o Iphan e órgãos estaduais e municipais de preservação, nesse caso consagra-se a obra antes mesmo de sua implementação e de confirmar-se o valor social agregado pelo tempo e pelo uso. Caso do Caminho Niemeyer, em Niterói, cuja comissão encarregada expressou intenção de pleitear sua precoce diplomação como Patrimônio Cultural de Humanidade junto à Unesco26.

A obra de Niemeyer na análise arquitetônica

Há elementos mais do que suficientes para o estudo sistemático da obra de Niemeyer em termos da teoria arquitetônica, proporcionados por sua extensão e repercussão. Ainda que seu autor propugnasse por um método de trabalho baseado em constante invenção, outros concluem pela evidência de utilização de um repertório limitado de estratégias compositivas e de elementos de composição.

O arquiteto Edson Mahfuz (2001), após submeter a obra de Niemeyer a uma análise tipológica, morfológica e compositiva, chegou à conclusão de que ele teria transformado o esquema corbusiano Dom-ino27 num recurso adaptável a programas arquitetônicos de diferentes escalas. Ou seja, conceberia primeiro um "sistema estrutural regular, racional e homogêneo" ao qual, a seguir, contraporia um "sistema de espaços caracterizados como volumes independentes dentro desta grelha estrutural", recurso que, por outro lado, permitiria inserir formas não ortogonais, linhas fluidas e/ou paredes curvas, definindo uma relação hierárquica entre elas e os espaços ou elementos secundários e repetitivos.

Niemeyer emprega um método que consiste na aplicação de um número limitado de estratégias compositivas e elementos de composição a todos os tipos de programa, escolhendo dentro do universo finito do seu repertório as estratégias e elementos que lhe pareçam mais apropriados a cada caso. Este método implica a desvinculação entre forma e função, o que o afasta radicalmente do funcionalismo ortodoxo – que preconiza a função como geradora da forma – e nos permite estabelecer uma inesperada conexão entre seu método de trabalho e o método compositivo de um arquiteto aparentemente tão distante de Niemeyer como Aldo Rossi (Mahfuz, 2001, p. 130).

Essas estratégias modificam o esquema Dom-ino e definem três partidos básicos. O primeiro, que Mahfuz chama de monolítico ou compacto, "determina que todos os elementos sejam abrigados por um volume elementar, ou que tenda, na sua forma geral, à forma de um sólido regular tal qual um cubo, cilindro etc.". Os outros dois estão baseados na mesma estratégia compositiva elementar, na qual um volume separado e perfeitamente definido corresponde a cada função. O partido que seria o "instrumental projetual predominante na obra de Oscar Niemeyer" relaciona esses volumes por interpenetração ou proximidade e caracteriza um único objeto final composto. O último, utilizado em programas de grande escala, define volumes prismáticos regulares para as funções hierárquicas menos importantes e formas mais complexas para as funções especiais, "em geral envolvendo o uso de curvas em planta e corte", em composições em que as distâncias entre os elementos, ou partes do projeto, também são maiores.

Quanto a essas partes, o repertório de Niemeyer também pode ser classificado de limitado, ainda segundo Mahfuz, consistindo basicamente em oito elementos, utilizados na maioria de seus projetos. São eles (ver figuras nas páginas seguintes)28:

(1) Barra horizontal, ou seja, um volume no qual a dimensão longitudinal predomina.

(2) Torre.

(3) Prédio-viga, ou seja, uma estrutura exterior na qual o edifício é suspenso

(4) Edifício circular de baixa altura.

(5) Marquise orgânica, na qual as formas curvas predominam.

(6) Plataforma, ao nível do solo ou definindo pavimentos inferiores, que integra diferentes elementos da composição.

(7) "Cascas" de forma livre, desdobradas a partir da Capela da Pampulha

(8) Calotas.

Os projetos maiores, que abrigam programas extensos, poderiam, inclusive, apresentar-se como um "verdadeiro 'catálogo', em que a maioria dos componentes é utilizada". Tal previsibilidade seria "uma característica inevitável do trabalho artístico que se baseia em um sistema de formas e princípios organizativos [...]. O que, num primeiro momento, é invenção (como nas formas criadas na Pampulha), logo adiante se torna convenção e passa a ser parte de um repertório" (Mahfuz, 2001, p. 133, grifos nossos). Para Mahfuz, os programas compostos por diversos volumes individualizados apresentam implicações urbanísticas, gerando recorrentemente espaços abertos residuais de características indefinidas ou insuficientes para a constituição de lugares significativos, problema que se agrava quanto maior a escala tratada por Niemeyer.

Carlos Eduardo Comas (1986) apontou precocemente essa questão, consequência de decisões equivocadas do arquiteto, cujas dificuldades estavam claras já na concepção arquitetônica dos edifícios de Brasília, nos quais a abstração crescente o levara a

[...] confundir arquitetura com escultura, sacrificando a lógica interna à plástica exterior – compreensível talvez no Palácio do Congresso, mas não justificável de todo; tendência a descurar a caracterização e a formalização do espaço aberto em torno ao edifício [...]. E daí resulta um espaço aberto de maquete, perceptivamente desolador, conceitualmente passivo, experiencialmente inóspito (Comas, 1986, pp. 91-92).

O arquiteto voltaria a reincidir sem justificativa no paradigma modernista de 1933, quando foram esboçados os princípios do zoneamento/segregação funcionais e padronização tipológica dos edifícios da Carta de Atenas, ignorando as evidências de sua inadequação à dinâmica urbana contemporânea29.

Mahfuz (2001) e Comas (1986), como outros teóricos profundamente implicados na formação de arquitetos, dedicam-se a examinar a obra de Niemeyer por meio de categorias analíticas instrumentais próprias da arquitetura, não se deixando seduzir pelo caráter intuitivo com que o arquiteto pretendia justificar seus desenhos. Eis um equívoco que, por retirar o processo criativo do campo das metodologias controláveis, deixa de oferecer lições úteis ao desenvolvimento do campo e abre mão da prerrogativa de fazer discípulos e de produzir exemplares paradigmáticos para o campo da arquitetura. Cria-se, assim, uma circularidade de raciocínio que levará sempre à reafirmação da originalidade de sua obra, justificando indefinidamente, ao que tudo indica, a condição de notório saber atribuída a Niemeyer e que, no limite, bloqueia a ascensão de novos valores.

A falta de discípulos é um lado pouco auspicioso de sua trajetória, do qual se pode ter uma melhor compreensão lembrando que os arquitetos "maiores", aqueles cuja grandeza é reconhecida historicamente no campo da arquitetura, têm, em média, um conjunto de dezesseis pupilos, cinco dos quais também se tornam, em algum momento, arquitetos "maiores" (cf. Stevens, 2003)30. No caso de Niemeyer, como a autoria é sempre reivindicada de forma individual, as referências a outros arquitetos participantes de algum de seus projetos são sempre esparsas e em geral imprecisas, sendo raros os casos de coautoria reconhecida explicitamente31, o que torna a comparação difícil, se não impossível.

Outros autores (Queiroz, 2003; Borda, 2003) concluem também que Niemeyer empregava uma metodologia de projeto fundada na manipulação de um vocabulário formal restrito, ou evidenciam o valor icônico das formas geométricas simples utilizadas pelo arquiteto, cujo caráter autorreferente e escultural se aprofunda a partir de Brasília:

Niemeyer selecionou, especialmente, a representação dos símbolos de poder e a liberdade plástica, em detrimento dos "pequenos detalhes", conforme enfatizou em seu texto de apresentação do Memorial da América Latina. [...] A boa gestalt de sua arquitetura é bastante apreciada nos meios de comunicação visual: a catedral de Brasília tornou-se o ícone da Capital Federal, a Fiat lançou mão das colunas do Alvorada para identificar um de seus produtos, o Ibracon elege a Pampulha como símbolo de seu congresso anual. A pregnância das formas puras de Niemeyer conquistou um caráter histórico semelhante aos templos gregos ou à arte de Piet Mondrian (Carranza e Carranza, 2005, pp. 1-2).

Niemeyer recusava-se a discutir sua arquitetura de outro ponto de vista que não o da expressão plástica, acusando de "falta de assunto" qualquer insistência nesse sentido32. Mas seria bom iluminar os "pequenos detalhes" desprezados pelo arquiteto e adotar uma perspectiva analítica que contemplasse, para além da análise estético-formal, valores arquitetônicos distintos. Por exemplo, condicionantes técnicos ambientais, aspectos tectônicos e padrões desejáveis de habitabilidade e sustentabilidade. E – por que não? – a própria questão da funcionalidade dos espaços projetados.

Consagração ou invenção?

Se arquitetura é invenção, por que pesquisa em arquitetura não o seria? Se a arquitetura joga com cheios e vazios, a pesquisa social joga com discursos e silêncios, sobretudo quando se trata de arquitetos de prestígio que controlam o que se diz a seu respeito.

O cultivo da história da arquitetura, feito em geral dentro das universidades e por diplomados em arquitetura, tende a obedecer a um formato mais geral de reconstituição da biografia de grandes vultos. Ainda que se chame a isso de historiografia (melhor seria "hagiografia") e não de história, é algo também visto em outros ramos da cultura erudita, incluindo as artes e as ciências puras e as profissões liberais.

É por se dedicar a esse trabalho sem fim de "resgate" que as universidades (e também as academias artísticas e científicas) foram chamadas por Bourdieu de "instâncias de conservação e consagração" da cultura erudita. Em termos dinâmicos, elas trabalhariam na contramão da contestação exercida pelos artistas insatisfeitos com o status quo, ou seja, os que são percebidos como – ou se denominam – vanguarda (cf. Bourdieu, 1992). Portanto, a historiografia acadêmica tende a ser simultaneamente respeitosa e meticulosa em seu ofício de conservar consagrando ou de consagrar conservando. Não por acaso, algumas das teses mais questionadoras a respeito de Niemeyer – como se pode constatar nas referências bibliográficas a seguir – foram escritas como mestrados e doutorados em artes, filosofia (estética) e ciências humanas, isto é, fora do espaço restrito do ensino de arquitetura.

Cabe, então, estimular pesquisadores, em particular os da história da arquitetura, a trabalhar criativamente. Parafraseando termos que a concepção corbusiana consagrou, cabe estimulá-los a ver a pesquisa como uma venturosa promenade. Só assim será possível renovar questões e aumentar os vãos livres, ou as boas hipóteses e seus apoios teóricos, e provocar as surpresas que acompanham o trabalho científico digno desse nome. Só assim será possível entender melhor o sentido, as implicações e as consequências de uma trajetória tão longa e tão rica como a de Oscar Niemeyer.

Enfim, vê-la em perspectivas que a insiram em contextos inevitáveis de especialização, como a da legislação e da prática da arquitetura; a da conservação física e simbólica do patrimônio histórico; a dos direitos autorais, suas responsabilidades e condições de transferência a herdeiros e sucessores; a da administração pública diante das exigências contemporâneas de agilidade, equidade e prestação de contas (accountability); a das relações entre o espaço construído, o ambiente natural e a vivência humana; a dos conflitos entre o fazer profissional e a atuação política.

Esta é melhor mensagem para homenagear quem, por tanto tempo e com tanta eloquência, exaltou o valor da invenção e o desconforto da mesmice.

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  • 1
    . Prédio monumental é uma categoria específica. Segundo a definição de Garry Stevens (2003, p. 104) são "edifícios do poder, edifícios do Estado, edifícios de reverência, edifícios para respeitar e impressionar".
  • 2
    . Kubitschek foi prefeito de Belo Horizonte de 1940 a 1945, governador de Minas Gerais de 1951 a 1955 e presidente da República de 1956 a 1960.
  • 3
    . Esses pressupostos são aqueles que descrevem o espaço da cultura erudita no conjunto das relações de classe e em relação a outros domínios da cultura, tal como desenvolvidos por Pierre Bourdieu (1992) em sua vasta obra, inclusive no artigo "O mercado de bens simbólicos".
  • 4
    . A importância da relação mestre-pupilo (ou sistema de ateliê) é caracterizada por Stevens (2003).
  • 5
    . Nos cálculos de Stevens, a diferença média de idade entre um arquiteto mestre e um pupilo é de 22 anos, enquanto Lúcio Costa era apenas cinco anos mais velho do que Niemeyer: "No processo de inculcação ao qual o protegido é submetido, ele ou ela estará recebendo um
    habitus gerado há vinte anos, durante o treinamento do próprio mestre. A mentalidade do pupilo incorpora assim o estado do campo intelectual como havia sido duas décadas antes e terá predisposições e gostos apropriados àquela época (Stevens, 2003, p. 183).
  • 6
    . Essa terminologia é empregada pelo historiador Nelson Werneck Sodré (1978, pp. 8-9), segundo o qual as virtudes de Niemeyer, na ordem de importância, seriam: virtudes do coração – bondade, generosidade, solidariedade; do espírito – amor à beleza, inventividade artística, juventude de ideias; do caráter – simplicidade, dignidade, fidelidade.
  • 7
    . "[...] não leio nada do que escrevem sobre mim, embora existam 30 ou 40 livros" disse Niemeyer em entrevista à revista
    Época, 3 mar. 2003, declarando preferir ler Simenon. Para melhor entender essa atitude: "As estratégias de competição cultural podem ser de conservação ou de subversão. Entre as de conservação está a estratégia do silêncio, não tanto de defesa de sua ortodoxia como de reafirmação de sua autoevidência" (Stevens, 2003, p. 118). Quando se observam nos seus livros as tantas passagens de menção de elogios que teria recebido, sempre nomeando com cuidado seu autor e as circunstâncias do elogio, fica um pouco difícil aceitar a sinceridade daquela afirmação de Niemeyer.
  • 8
    . No documentário
    A vida é um sopro, depõem Carlos Heitor Cony (escritor), Ferreira Goulart (crítico de arte e poeta), Chico Buarque (compositor, cantor e romancista), Eric Hobsbawn (historiador inglês), José Saramago (romancista português), todos bem maduros, ligados ou simpatizantes ao Partido Comunista e reconhecidos em seus campos de atividade. A essa técnica Stevens (2003, p. 123) chama de "cooptar aliados por meio de uma homologia estrutural". Aliás, o grupo de arquitetos modernistas usou tal técnica em seu início, aliando-se aos vanguardistas da literatura, da pintura etc. Niemeyer continuou a usá-la depois de celebrado, substituindo obviamente jovens iniciantes por consagrados maduros.
  • 9
    . "Sou, sem falsa modéstia, o arquiteto que maior número de obras de arte incluiu na arquitetura" (Niemeyer, 1999, p. 218).
  • 10
    . No dizer de Nelson Werneck Sodré (1978, p. 10), Niemeyer mostra "fidelidade a princípios jamais trincada por dúvidas, interpretações, recuos, ainda quando das derrotas".
  • 11
    . Todavia, uma observa ção mais aguda mostra como Costa, assim fazendo, se posicionou acima do próprio júri, com isso reforçando a posição em que toda a vida procurou situar-se: a de autoridade em arquitetura, antes do que propriamente um "criador" (cf. Durand, 1991).
  • 12
    . Os irm ãos Marcelo (1908-1964), Milton (1914-1953) e Maurício Roberto (1924-1996) foram titulares de um escritório ativo no Rio de Janeiro e participaram de vários concursos com propostas na linguagem moderna (cf. Izaga, 2005).
  • 13
    . "Burle Marx confirmou-me que Oscar Niemeyer estava com alguns projetos já definidos, o que levara o grande paisagista a recusar sua participação nos trabalhos já iniciados. [...] Na segunda-feira seguinte, sabíamos da reunião convocada com urgência pelo iab, a fim de protestar contra a deturpação do edital que fora ali redigido. Foi logo a seguir que houve eleições no iab [...]. Amigos do arquiteto Oscar Niemeyer haviam apresentado uma chapa e quase tomaram conta do Instituto. Houve, porém, cédulas demais nesta urna. [...] houve um alarma geral e uma outra maioria, quase a totalidade dos associados do Instituto, deu ganho à chapa que continuaria com a tradição isenta do Instituto" (Ferraz, 1982, p. 159).
  • 14
    . Sobre esse assunto, ver a carta aberta de Sylvio de Podest á a Oscar Niemeyer (Podestá, 2003).
  • 15
    . "Amigos mais chegados comentam entre si: metade do que Oscar faz não cobra. E o que cobra sai pela metade do preço" (Greenhalgh, 2003).
  • 16
    . E tamb ém com o Teatro Estadual de Araras, projetado por Niemeyer por solicitação de Orestes Quércia para atender a um pedido de sua sogra. Tanto na notícia desse teatro, popularmente chamado de o "Teatro da Sogra", quanto na notícia acerca da "casa de fazenda", ironizam-se os favores prestados por Niemeyer a um político que na ocasião deixava o governo estadual sob forte acusação de corrupção. Perguntado sobre os honorários que cobrou por esses projetos, desconversou, irritado, dizendo: "Eu cobro ou não pelo que faço para meus amigos e não tenho que falar sobre isso". Talvez seja essa relação ambivalente com "o cliente" que tenha feito Niemeyer desenhar uma casa de fazenda na qual seu estilo é irreconhecível, tratando-se de "uma residência térrea, avarandada, como as mais tradicionais casas de fazenda" (cf. Granato, 1993).
  • 17
    . Frase do arquiteto sobre os projetos reunidos na mostra comemorativa dos seus 90 anos, no document ário
    Oscar Niemeyer: un architecte engagé dans le siècle, de Marc-Henry Wajnberg (2000).
  • 18
    . "[...] é o jogo de três escalas que vai caracterizar e dar sentido a Brasília [...] a escala residencial ou quotidiana [...] a dita escala monumental, em que o homem adquire dimensão coletiva; a expressão urbanística desse novo conceito de nobreza [...]. Finalmente a escala gregária, onde as dimensões e o espaço são deliberadamente reduzidos e concentrados a fim de criar clima propício ao agrupamento [...]. Poderemos ainda acrescentar mais uma quarta escala, a escala bucólica das áreas abertas destinadas a fins de semana lacustres ou campestres" diz Lucio Costa, no Memorial Descritivo do projeto apresentado para o Concurso de Brasília. Segundo El-Dahdah, "em termos de preservação, portanto, existe em Brasília uma condição sem precedentes, onde qualquer edifício pode teoricamente ser destruído desde que sua escala seja mantida na reconstrução (à exceção de construções fisicamente protegidas como a Catedral e o Catetinho). Mais que a cidade, é o projeto que sobrevive. O que as leis buscam preservar não é a Brasília construída, é sua gramática urbana [...]" (El-Dahdah, 2009).
  • 19
    . Originalmente Servi ço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan); hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
  • 20
    . A chamada Lei Santiago Dantas (3.751/1960) protegia o Plano Piloto em seu desenho, sem defini-lo em termos f ísico-territoriais, ou seja, sem explicitar que características do plano deveriam preservar-se nem delimitar a área de abrangência do instrumento de proteção.
  • 21
    . Em 15 de dezembro de 2006, dia do 99 º aniversário do arquiteto, foram inaugurados a Biblioteca Nacional Leonel de Moura Brizola e o Museu Nacional Honestino Guimarães, constituindo o Centro Cultural da República: "Permanecem no papel um centro musical, um conjunto de cinemas e lojas, do outro lado do Eixo, junto ao Teatro Nacional. [...] no projeto original, não se colocava ênfase numa instituição desse gênero. O projeto urbano de Costa incluía um 'Centro de Entretenimento' que, nas palavras de Lúcio, 'trazia em si alguma coisa de Piccadilly Circus, Times Square e dos Champs Elysées', conta Valerie Fraser, pesquisadora da Universidade de Essex, na Inglaterra" (Haag, 2006, p. 46).
  • 22
    .
    Correio Braziliense, Brasília, 7 maio 1999. Cidades, p. 3.
  • 23
    . Artigo publicado no DO-DF de 21 de julho de 2004, "A preservação de Brasília e do Estado democrático de direito", firmado por Casimiro Marques de Oliveira, procurador-chefe da Procuradoria do Meio Ambiente, Patrimônio Urbanístico e Imobiliário (Promai-DF).
  • 24
    . "Jeitinho brasileiro. O senador Wellington Salgado (psdb-mg) tenta aprovar a construção da sua Universidade Salgado Filho [
    sic] em Brasília. O projeto fere o tombamento da Capital; tem um andar além do permitido. Poderia mudar a planta, mas insiste com as autoridades locais" (Studart, 2007, p. 27).
  • 25
    . "O urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer divergem sobre obra na cidade que criaram, Brasília. Niemeyer projetou duas torres, de 38 e 48 metros de altura, atrás da Praça dos Três Poderes. 'É uma brutalidade', diz Costa" (Godinho, 1996).
  • 26
    . "Alvorada à beira-mar: com dez construções do renomado arquiteto, o caminho Niemeyer promete revolucionar a orla marítima de Niterói. [...] Ainda não é oficial, mas a Embratur faz gestões na Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) para que o corredor arquitetônico seja tombado e transformado em patrimônio histórico da humanidade. Em caso afirmativo, Niterói será a 18ª cidade-monumento tombada no País. O prefeito Godofredo Pinto (pt) não se mostra ansioso. 'Com ou sem o tombamento oficial, já é um patrimônio da História', orgulha-se" (Melo, 2004).
  • 27
    . "[...] o Dom-ino pode ser definido como sistema construtivo constituído por lajes planas, pilares e fundações em concreto armado, que propõe uma ordem racional entre seus elementos e sua construção, através da aplicação de subsistemas de organização, visando dotar os edifícios que a empregam de atributos formais modernos, concretos (pisos em balanço, planta e fachadas livres, pilotis etc.) e abstratos (como economia de meios, rapidez, rigor e precisão na construção, universalidade)" (Palermo, 2006, p. 7).
  • 28
    . Ilustra ções de Julia Miranda Aloise, acadêmica do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS.
  • 29
    . A Carta de Atenas foi elaborada dentro do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1933 e publicada por Le Corbusier em 1941. Esse documento estabelece normas e princ ípios gerais para o urbanismo moderno: segregação funcional (a cidade organizada em zonas de produção, descanso, lazer e circulação), concentração das construções e amplos espaços abertos entre elas.
  • 30
    . A fonte de Stevens é a
    Macmillan Encyclopaedia of Architects (editada por A. Placzek, Nova York, Macmillan, 1982), a qual inclui 2.600 biografias de arquitetos famosos do mundo todo. O critério para distinguir um arquiteto "maior" é a extensão do verbete, tanto maior quanto maior a obra e o reconhecimento do biografado.
  • 31
    . É preciso ler matérias de jornal e livros de memórias para se obter referências de Niemeyer a arquitetos colaboradores, como, na fase mais recente, seriam Jair Valera, Ana Elisa Niemeyer Attademo e Cecília Scarlach.
  • 32
    . "E, perguntado sobre a possível ênfase plástica de seus trabalhos, respondeu: 'Na falta de outro assunto, o problema da funcionalidade surge sempre por aí'" (
    Caros Amigos, n. 74, maio 2003
    apud Grunow, 2007).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Nov 2013
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