Open-access Mobilidades diferenciadas e ilegalidades institucionalizadas: tendências e contradições do trabalho na contemporaneidade

Differential mobilities and institutionalised illegalities: trends and contradictions of contemporary labour

Resumo

Neste artigo discutimos os novos reordenamentos e tendências do capital e do trabalho no que diz respeito às novas formas de organizar o capital, o trabalho, as mobilidades e o controle de ambos, as quais surgiram a partir de mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais das ultimas décadas. Argumentamos que, ao destacar as tendências e contradições da mobilidade do capital e do trabalho contemporâneo, focando nas disposições desregulatórias por um lado e regulatórias de outro, podemos evidenciar as mobilidades (e inclusões) diferenciadas e a precarização crescente da vida social contemporânea. Este artigo se baseia, empiricamente, em pesquisas realizadas com trabalhadores no Brasil e com imigrantes brasileiros na Inglaterra no âmbito do Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Profissões e Mobilidades da Universidade Federal de São Carlos.

Mobilidades; Precarização da vida; Migração; Regulação do trabalho; Ilegalidades

Abstract

This article analyses the new rearrangements and trends of capital and labour regarding the new forms of organising the capital and labour as well the mobilities and control of both, which emerged from the political, economic, social and cultural changes of the last four decades. We argue that by highlighting the contemporary trends and contradictions of capital and labour, focusing on deregulatory disposition on one hand and on regulatory disposition on the other, we can see the formation of processes of differential mobilities (and inclusions) as well a growing situation of precariousness in the contemporary social life. This article is based, empirically, on a range of studies developed at the Laboratory of Work, Professions and Mobility, at the Federal University of São Carlos, which include researches conducted on workers in Brazil as well as on Brazilian immigrants in London.

Mobilities; Precariousness of life; Migration; Labor regulation; Illegalities

Introdução

As mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais das últimas quatro décadas evidenciaram novas formas de organizar o capital, o trabalho, as mobilidades e o controle de ambos (seja por parte das empresas ou por parte dos Estados nacionais), ressignificando relações de trabalho, espaços produtivos e ordenamentos jurídicos. Com base em pesquisas realizadas com trabalhadores no Brasil e na Inglaterra, neste artigo discutimos esses reordenamentos destacando tendências e contradições da mobilidade do capital e do trabalho, disposições regulatórias por um lado e desregulatórias de outro, que evidenciam as mobilidades diferenciadas e a precarização crescente da vida social.

Para isso apresentamos, inicialmente, uma breve contextualização da reestruturação político-econômica e cultural do capital, a partir da década de 1970, focando na relocação dos tempos e espaços e na emergência de novas tecnologias, novas ocupações e novos controles (do tempo, do espaço e do trabalho). Em seguida, discutimos como tais mudanças foram acompanhadas por uma tendência de redução dos vínculos formais nas relações capital-trabalho, resultando não apenas no aumento da informalidade no trabalho, entendida em sua ilegalidade em termos regulatórios, mas também em sua ressignificação positiva como empreendedorismo, tendo o Brasil como referência.

Em um segundo momento, discutimos as contradições emergentes da mobilidade global do capital e do trabalho, através de trabalhadores imigrantes brasileiros irregulares tendo a Inglaterra como empiria. Analisamos como a formação de uma “sociedade global móvel” na realidade acompanha a criação de uma “ilegalidade institucionalizada” – o Estado estipulando quem é legal e quem é ilegal –, a qual resulta em um processo de mobilidade (e inclusão) diferencial que ajuda a produzir ainda mais situações de exploração e precariedade.

A relocação dos tempos e espaços e suas contradições

A partir da década de 1970, um novo arranjo espaço-temporal no trabalho passa a se configurar, no qual a fábrica aos poucos perde prevalência, embora continue a ser representativa da organização do trabalho no capitalismo. Esse arranjo integra a chamada reestruturação econômica ou produtiva, que engloba um conjunto de transformações em todos os níveis da sociedade: do Estado e da política; das inovações tecnológicas, destacando a revolução informacional; das relações capital-trabalho e de sua desregulamentação progressiva, abandonando a perspectiva do bem-estar social abarcada por um conjunto de direitos sociais incorporados a essas relações; de mudanças culturais que irão compor uma racionalidade própria, neoliberal (Dardot e Laval, 2016), que afeta a vida social em todos os sentidos.

Essa reestruturação responde a um contexto de crise capitalista, cujas causas, apontadas por Harvey (1994), são: política monetária frouxa, com excesso de fundos e poucas áreas produtivas para investimento, com forte inflação; crise imobiliária e financeira decorrente das tentativas de frear a inflação; crise energética desencadeada pela Opep ao aumentar os preços do petróleo e pelo embargo árabe ao Ocidente durante a guerra árabe-israelense de 1973; aumento dos insumos de energia e a busca de mudanças tecnológicas e organizacionais para reduzir custos; deflação no período 1973-1975, evidenciando forte comprometimento das finanças dos Estados, com decorrente crise fiscal e de legitimação; excesso de capacidade excedente das grandes empresas num contexto de intensificação da competição internacional; dispersão geográfica da produção para regiões com trabalho não organizado; a queda da produtividade e a impossibilidade de recuperá-la e incrementá-la; e a estagnação do consumo. Nesse contexto, novas experiências de organização da produção e do trabalho, assim como da vida política e social, deram origem a um novo regime de acumulação que o autor denomina de “flexível” (Idem, pp. 136-140).

Na organização do trabalho, o “modelo japonês”, adaptado ao Ocidente, vem propor a reorientação do controle corporal dos tempos e movimentos do taylorismo-fordismo sem, no entanto, descartá-lo. Neste, a linha de montagem é substituída pelo trabalho em equipe. A participação do trabalhador passa a ser valorizada com políticas de envolvimento e responsabilização. Reduzem-se hierarquias, e o número de trabalhadores utilizados com a plurifuncionalidade e a polivalência é mais formal do que real. Adotam-se conceitos e práticas como just-in-time, lean production, downsizing, programas de qualidade total, flexibilidade. Questionam-se os direitos acoplados à relação salarial em que tenha vigorado o Estado de bem-estar social, atribuindo-lhes aumento de custos para empresas, setores e países, com consequente perda de competitividade no mercado. Acelera-se o processo de relocalização industrial, beneficiado por incentivos fiscais de países e regiões e pelas novas tecnologias informacionais que permitem o controle em tempo real de unidades produtivas distribuídas pelo globo (Coriat, 1994; Castells, 1999; Harvey, 1994).

A grande fábrica é substituída por unidades menores por meio do processo de terceirização pelo qual a empresa foca em seu produto principal, sua atividade-fim, externalizando atividades secundárias ou de apoio. Em todo o mundo, discute-se a desregulamentação de mercados e das relações de trabalho e a privatização de empresas estatais, propostas que foram a cabo sobretudo em contextos em que a classe trabalhadora esteve fragilizada em sua capacidade organizativa e seus resultados foram catastróficos em termos de precarização do emprego.

A flexibilidade na produção e a utilização da força de trabalho vêm acompanhadas da mobilidade do capital e do trabalho. As diversas flexibilidades decorrentes juntam-se também às mobilidades, espaciais, temporais, de atividades, de permanências, de trânsitos e circularidades. Deslocamento das unidades produtivas, deslocamento dos empregos, deslocamento tendenciais dessas unidades na busca de novos territórios, deslocamento diários, sazonais, eventuais dos trabalhadores. A fragilização da ideia de carreira, de estabilidade, de passagens por postos de trabalho variados, cargos e funções, do formal e do informal, do legal, do ilegal e do ilícito, mas mantendo uma grande horizontalidade em termos de acesso.

Na produção, as redes empresariais são compostas em diversos níveis através dos processos chamados de focalização e externalização. Focalização no produto principal e externalização de atividades consideradas meio, não fim. É a retomada da subcontratação, estratégia utilizada desde sempre pela indústria através de contratos de empreitadas, de finalização de produtos como no setor do vestuário, que tendeu a ser verticalizado nas grandes empresas para o controle dos produtos. A nova subcontratação vem como terceirização, que tem no modelo da empresa enxuta japonesa, devidamente adaptado, a caracterização da empresa rede. Nesta, a empresa primeira elabora o produto, pesquisa, estabelece modelos e passa a fabricação propriamente dita para as empresas terceiras. No geral, utiliza procedimentos tecnológicos organizacionais avançados, o que não acontece necessariamente nas empresas terceiras. Ou, ainda, mesmo mantendo o controle da produção, estabelece unidade produtivas em espaços de baixa concentração industrial e inexistência de trabalho organizado. O controle das empresas terceiras é facilitado pelas tecnologias informacionais que possibilitam, em tempo real, supervisionar formas de produção e estoques (Castells, 1999; Harvey, 1994).

O desemprego nos anos de 1990 tornou-se estrutural em âmbito global, e não mais residual. As carreiras profissionais foram desestruturadas, e postos de trabalho e qualificações desapareceram. A requalificação tornou-se palavra de ordem, com um novo perfil do trabalhador desejável: ser flexível a novos aprendizados, dispondo-se a assumir diferentes posições funcionais na empresa, móvel, podendo ser deslocado espacialmente conforme as necessidades, e empreendedor, buscar soluções no interior do processo de trabalho tornando-o mais enxuto e aumentando a produtividade. Se o modelo japonês foi a referência para as inovações organizacionais no interior dos locais de trabalho, e neste a permanência numa mesma empresa até a idade da aposentadoria do trabalhador se constituía em elemento relevante (Ouchi, 1985), agora esta permanência é vista como problema, por esse trabalhador ser considerado acomodado, rígido e pouco aberto à inovação. Um novo código moral, o qual reforça a individualização e autorresponsabilidade individual (Beck et al., 2000; Putnam, 2001; Foucault, 2008), foi se firmando no mundo do trabalho visando garantir empregabilidade. Tornam-se a base de uma nova moral ou cultura do trabalho, na qual o trabalhador deve assumir o protagonismo. A redução dos níveis hierárquicos leva à diminuição do controle exercido por chefes e supervisores, instalando-se o controle no interior da própria equipe de trabalho e/ou na sua interiorização pelo trabalhador, o que se torna muito mais eficaz. No plano político e social, políticas neoliberais, com compromissos ideológicos individualizadores, foram implementadas, traduzindo problemas sociais em infortúnio individual.

As ideologias da ortodoxia neoliberal (Bourdieu, 1998), como o empreendedorismo de si, competição individual, meritocracia, inovação, flexibilização, tornaram-se características hegemônicas na luta política cognitiva. Como consequência, o Estado de bem-estar social, que cuida das pessoas, especialmente aqueles que têm menos meios para cuidar de si mesmos, passa a ser visto como desnecessário (Goldberg, 2014), mudando o foco das políticas públicas nos países ocidentais de uma lógica de “guerra contra a pobreza” para uma nova “guerra contra os pobres” (O’Brien, 2006). Desemprego, desigualdades, precariedades e pobreza passam a ser vistos não somente como questões que devem ser tratadas pelo próprio indivíduo, mas também como resultados de seu próprio “fracasso” individual. Tal lógica individualizante ajuda a legitimar desigualdades sociais ao negar sua origem social e características sistêmicas (Goldberg, 2014); em outras palavras, ela “enterra viva” desigualdades de classe, gênero e “raça”, as quais estruturam e limitam os espaços de possibilidades e ação dos sujeitos. Assim, o horizonte político da integração, que marcou o chamado Estado de bem-estar social, nos países capitalistas centrais, foi substituído por um horizonte de criminalização e repressão de problemas sociais, através da construção de diferentes configurações de “outros” que não precisam mais ser integrados, mas excluídos, presos e contidos, uma vez que passam a ser vistos como uma ameaça ao “desenvolvimento” e à segurança desses países (Wacquant, 2002).

Tal ênfase na individualização e na responsabilização é intensificado no ordenamento de políticas sociais no mesmo ritmo em que se desenvolvem os processos maciços de reestruturação produtiva e econômica que aumentam a instabilidade e precariedade no âmbito global. O fim de um ciclo de experiências desenvolvimentistas ou socialistas e a adoção de políticas neoliberais deixaram um rastro comum de ausências para as grandes massas de trabalhadores, especialmente os menos qualificados, os quais, sem emprego e sem perspectivas, enfrentam fortes barreiras à mobilidade em busca de melhores oportunidades de vida. Por um lado, nos países capitalistas ocidentais, o esgotamento do fordismo e a posterior reestruturação do mercado de trabalho significaram um declínio constante no trabalho permanente e de tempo integral, com oportunidades de avanço na carreira, segurança no emprego e benefícios. As escolas e os serviços públicos diminuíram à medida que o poder político e econômico local diminuiu, aumentando o trabalho temporário e informal para as parcelas mais pobres da população. As chamadas sweatshops, vendas de drogas, trabalho sexual e o trabalho diário pagos com heroína passaram a estar entre as novas formas de organização do trabalho em diversas cidades norte-americanas, por exemplo (O’Brien, 2006). Nos países do sul, a precariedade aumentou com o combate ao déficit público, que significou corte em despesas sociais e fortes subsídios ao capital. Privatizações de serviços públicos, como saúde, educação e transportes, agravaram o já enorme déficit social, amenizado, em alguns países, após a década de 2000, com o retorno de um certo protagonismo estatal e maior investimento em políticas sociais.

Informalidades e empreendedorismo

Na relação tempo/espaço no novo mundo do trabalho, pode-se abordar outros aspectos e dimensões. A diminuição ou supressão dos vínculos laborais entre o trabalho e o capital, como efeito da flexibilização da legislação trabalhista, tem resultado num aumento da informalidade, que, a partir dos anos de 1990, emerge como problema também em países avançados, nos quais as condições laborais até então vigentes proporcionavam aos trabalhadores segurança, perspectivas de promoção e ascensão social (Sennett, 1999).

Em todas as grandes cidades do mundo pode ser encontrado grande número de pessoas sem nenhuma formalização de sua inserção no mercado de trabalho. Podem ser trabalhadores por conta própria ou pessoas que produzem bens ou serviços para algum “empreendedor”, em geral mediador entre os trabalhadores e grandes empresas industriais e/ou intermediários em redes de comercialização. Tem sido notório o recorte étnico desses segmentos da força de trabalho, que são substituídos de acordo com a sucessão dos movimentos migratórios, originados em países estrangeiros ou no interior dos próprios países (Bonacich, 1990; Lima, 2009). As indústrias da confecção, do vestuário e de calçados são ramos produtivos em que a constatação de sweatshops e de oficinas com condições precárias de trabalho tem sido recorrente, com predomínio de situações análogas à de trabalho escravo (Lima, 2009).

Uma reinterpretação neoliberal da informalidade latino-americana, no final dos anos de 1980, analisou a informalidade como sendo empreendedorismo. Pressupunha a não intervenção do Estado na regulação econômica, entendida esta como bloqueio ao desenvolvimento capitalista e inibidora da capacidade de iniciativa e criatividade dos indivíduos (De Soto, 1987; Seráfico, 2011). O que era visto como problema de país pobre e subdesenvolvido tornou-se a solução para a redução de custos e competividade num contexto global. Políticas de apoio ao empreendedorismo a partir dos anos de 1990 tornaram-se tendência no Brasil, indicando saídas para o trabalho fora da relação salarial com direitos sociais acoplados.

Da mesma forma que se assiste globalmente o deslocamento de unidades produtivas para países com mão de obra barata e desorganizada, essa mobilidade do capital acontece paralelamente dentro das fronteiras do país, com a transferência e implantação de unidades fabris e de serviços (como call centers) em cidades do interior e em regiões como o Nordeste. Tentativas de busca do custo chinês implicaram em organização de associações e cooperativas fraudulentas como formas de subcontratação de trabalhadores. Com isso, os espaços são ressignificados, e novos contingentes de trabalhadores surgem em regiões antes sem atividade econômica significativa como o sertão nordestino (Lima, 2002; Lima e Rangel, 2015).

Mesmo com a redução da informalidade a partir da segunda metade da década de 2000, com aumento da formalização do trabalho decorrente de um crescimento econômico centrado na produção e exportação de commodities promovido por governos de centro-esquerda, a ideologia empreendedora não apenas permaneceu como perspectiva de inserção no mercado de trabalho, mas ampliou-se consideravelmente, mesmo em propostas alternativas de economia social através da figura do empreendedor social (Gaiger, 2008). Idealmente, o trabalho por conta própria torna-se a oportunidade de crescimento individual, criatividade e capacidade de iniciativa dos indivíduos. A questão da flexibilidade no uso do tempo e na determinação do espaço de trabalho torna-se valorizada como fator de exercício da autonomia. Na busca por um emprego regular, o potencial empreendedor do candidato passa a ser uma das qualidades valorizadas pelas empresas. Mesmo em propostas de gestão coletiva de unidades produtivas, ser empreendedor garante o êxito ou fracasso da experiência. Podemos elencar nas propostas políticas e políticas públicas nessa direção a constituição dos arranjos produtivos locais, buscando formalizar centros de produção informais considerados exitosos em todo o país, que sempre funcionaram nos limites entre o ilegal e o ilícito (Telles, 2006), e a proposta do microempreendedor individual (MEI), favorecendo a formalização do trabalhador informal.

Mas não apenas o trabalhador pouco qualificado entra na categoria informal que vem junto com a categoria móvel. Nessa categoria se incluem tanto profissionais altamente qualificados, que prestam serviços na elaboração de projetos, quanto trabalhadores de pouca “empregabilidade”. Aqui, podem ser incluídos vendedoras de artigos de beleza, nomeadas como consultoras de grandes empresas produtoras de cosméticos, e camelôs que comercializam variado leque de produtos, dos mais simples aos mais sofisticados. A comercialização de muitos desses produtos intensifica a mobilidade internacional e pendular de trabalhadores, ligando os polos de venda aos polos de consumo dessas mercadorias. Podemos verificar essa situação entre os camelôs que circulam nas fronteiras do Brasil, Paraguai, Bolívia, Peru, Argentina e Uruguai e que funcionam como muambeiros, atividade ilegal, mas de certa forma legitimada, através do contrabando em pequena escala que abastece pequenas e mesmo grandes lojas. Também a comercialização de produtos ilícitos, como drogas, envolve uma quantidade crescente de “trabalhadores”, não reconhecidos como tal, entre eles muitos jovens e mesmo menores e com escolaridade crescente. Podemos nos referir, por exemplo, ao contrabando de produtos mais valorizados que dependem de certo conhecimento de produtos com maior valor simbólico e, igualmente, monetário. A rede que a mantém resulta, sem dúvida, da capacidade de seus organizadores de “empreender”, movimentando enormes quantias de dinheiro, que alimentam uma economia subterrânea percebida como criminosa (Rabossi, 2008; Rangel, 2015).

Em 2002 a OIT incluiu entre os trabalhadores informais aqueles dispensados em função da reestruturação levada a efeito na década anterior e que não mais conseguiram retornar ao mercado de trabalho formal (Lima, 2013), definindo estratégias de sobrevivência na informalidade. A precariedade das condições aí existentes (tanto na ausência das garantias laborais definidas pelo assalariamento quanto as condições ambientais e de inserção e permanência do mercado de trabalho) revelam que os valores veiculados pela ideologia do empreendedorismo são uma falácia. O controle do tempo e a flexibilidade em relação ao local do exercício da atividade são, de fato, elementos de insegurança e de incertezas no presente, e não só quanto ao futuro.

Nas atividades que demandam conhecimentos altamente especializados, sobretudo aquelas vinculadas às tecnologias de informação, como o desenvolvimento de softwares, e que se articulam em redes de colaboração, à flexibilidade dos vínculos trabalhador-empresa somam-se os requisitos de inovação e criatividade, características da própria atividade, e mais disponibilidade de deslocamento, investimento próprio em qualificação e busca permanente por atualização, encontráveis particularmente numa população jovem, sem encargos de família. A vida pessoal desses trabalhadores deve subordinar-se às necessidades da empresa; eles devem ser disponíveis para estar em qualquer lugar a qualquer tempo. Assim, a propalada autonomia na administração do tempo e no descolamento de um ambiente de trabalho fixo deve ser relativizada. O mesmo ocorre em relação às oportunidades de criatividade, idealização do trabalho nessa área da nova economia. Além disso, as pequenas empresas, as startups, são celeiros de novos talentos, potencialmente recrutáveis pelas grandes corporações (Lima e Oliveira, 2017).

Ao lado dessas situações, novas ocupações surgem assim como novas formas de gerenciamento do tempo e do espaço. Um deles é o “flexitempo”, no qual o trabalhador tem liberdade para estabelecer horários de entradas e saídas, ou mesmo determinar sua jornada, desde que atenda às metas exigidas pela empresa. O espaço da empresa e, em algumas situações, mesmo da fábrica, também deixa de ser necessário, com efeitos sobre a sociabilidade dos trabalhadores.

As novas tecnologias e mudanças no perfil de ocupações tornam imprecisa a separação dos locais e tempos de trabalho, descanso e lazer. Empresas de alta tecnologia, como de desenvolvimento de softwares, por exemplo, não necessitam mais a presença de seus trabalhadores em seus escritórios. O teletrabalho se difunde aceleradamente, e atividades de distintas demandas de qualificações podem ser realizadas no domicílio do trabalhador. Mesmo se realizado no âmbito da empresa, as tecnologias informacionais permitem continuar o trabalho em casa, o chamado home office. A vigilância pelo computador possibilita verificar a rapidez do trabalho realizado, as interrupções e o tempo que ficou no computador trabalhando durante o dia (Scott, 2014). É o controle a distância, possibilitado pelas tecnologias informacionais. Sem falar das atividades plataforma nas quais as relações capital-trabalho são mediadas por aplicativos que conectam cliente e prestador de serviço, como os motoristas do Uber, entregadores de encomendas, motoristas de caminhão, entre outros.

Mesmo em atividades fabris menos qualificadas, a possibilidade do trabalho fora do espaço da empresa, em geral domiciliar, ou em pequenas oficinas, se mantém e se expande. A indústria de confecções e do vestuário, na qual esta prática é bastante usual, agora se integra a cadeias produtivas globais e a grandes redes de lojas (Sassen, 2007; Benería, 2001; Lima, 2002).

No espaço doméstico, o trabalhador, em tese, gerencia seu tempo, desde que cumpra as tarefas programadas. No local do trabalho, dependendo do tipo de empresa e produto, pode acontecer o mesmo, o que ocorre por exemplo, nas empresas de produção e acompanhamento de serviços de software.

Outra modalidade “inovadora” no gerenciamento do trabalho é o contrato por projetos. A chamada indústria “criativa” pressupõe uma mão de obra, em geral qualificada, que pode ser agregada à empresa para o desenvolvimento de um determinado produto, sendo descartada ao final. Essa modalidade implica em formas diferenciadas de vínculos ou simplesmente sua ausência, podendo a relação laboral ser estabelecida como prestação de serviços, consultorias, pessoa jurídica e outras, todas com a característica de não continuidade e sem configurar legalmente relação de assalariamento. Essa modalidade pode, muitas vezes, dispensar a contiguidade espacial da equipe de trabalho, conectada pelo computador. Com isto, segundo Bauman (2001, p. 141), “a liberdade de mobilidade do capital, em sua forma produtiva ou virtual se opõe às dificuldades e obstáculos para a circulação da força de trabalho”.

A mobilidade do trabalho: ilegalidades institucionalizadas

Caracterizando a sociedade pós-fordista, “pós-moderna”, globalizada, Urry (2013) propôs uma sociologia das mobilidades, como forma de analisar os fluxos permanentes de pessoas e coisas, de mercadorias, de capital. Tudo que é sólido se desmancha no ar, podendo ser completado com um se move por terra, mar e ar… Para ele,

A sociologia do século XX muito se baseou nos estudos acerca do trabalho, renda, mobilidade educacional e social. Esta literatura considerou a sociedade como uma superfície uniforme e não conseguiu abarcar as intersecções geográficas das regiões, cidades e lugares, com as categorias sociais de classe, gênero e etnia. Além disso, existem fluxos cruciais de pessoas dentro, e também especialmente para fora, do território de cada sociedade, os quais seriam resultado dos mais diferentes desejos, seja a busca por trabalho, habitação, lazer, religião, relações familiares, ganhos criminais, exilados e assim por diante. Outro fato que deve ser considerado é que não apenas as pessoas são móveis, mas também os objetos, imagens, informações e resíduos. Sendo assim, mobilidade deve ser entendida horizontalmente, e não em um sentido vertical, além de que, esta mobilidade se aplica a uma variedade de atuantes e não apenas aos seres humanos. (Idem, p.44)

A sociedade contemporânea, pensada em termos da flexibilidade da produção e do trabalho, em suas relações entre produtores e entre patrões e trabalhadores, é móvel por excelência, pois pressupõe um movimento/deslocamento permanente de pessoas e coisas. As fronteiras perdem eficácia e as mercadorias circulam com relativa facilidade pelos espaços, mas o mesmo não ocorre com as pessoas, pela existência de limites e constrangimentos políticos e legais.

Como parte das políticas de liberalização econômica das últimas décadas, muitos governos do norte global tornaram mais fácil para os empregadores contratar trabalhadores temporários, com baixos salários. Isso converteu empregos relativamente seguros e respeitáveis em trabalhos precários, com baixo status social, os quais os trabalhadores nativos muitas vezes evitam e apenas os migrantes aceitam fazer. Essas políticas aumentaram a demanda por migrantes do sul global nos países da Europa ocidental e Estados Unidos e mesmo na América Latina para realizarem trabalhos considerados pouco qualificados. Não é coincidência que a migração, predominantemente irregular, de mulheres que trabalham como babás e profissionais de cuidados privados é um fenômeno importante em países que possuem instalações públicas fracas para cuidados infantis e cuidados com idosos, como nos Estados Unidos e no sul da Europa (De Haas e Natter, 2015).

As crises econômicas da década de 1970 e as políticas de austeridade fiscais levaram uma dívida crescente às nações do sul. Nos programas de ajuste estrutural impostos pelo FMI que se seguiram nas décadas seguintes, os ativos do Estado foram vendidos, o emprego formal caiu e os controles de preços dos bens básicos foram diminuídos, seja na América do Sul ou na África Ocidental. Tal quadro reduziu o poder de compra e moldou o desejo de parte da população do sul global a procurar melhores condições de vida no exterior: isto é, nos países europeus, os quais foram, em grande parte, responsáveis pela debilitada situação econômica e social desses países, cujas fronteiras surgem com um sinal de “proibida a entrada” em anexo. (Andersson, 2014). Soma-se a isso o fim das experiências desenvolvimentistas e socialistas nesses países, guerras civis e outros conflitos que tornaram a imigração uma questão de sobrevivência para milhares de pessoas.

A mobilidade do trabalho, entretanto, é distinta da mobilidade global do capital, e o movimento de pessoas não se dá da mesma forma para todo mundo. A liberdade de circulação no espaço global é uma prerrogativa exclusiva do capital e das elites. Enquanto mudanças de empresas para outras regiões do país ou para outros países implicam em mobilidade de parcela dos trabalhadores, sempre os mais qualificados, para os novos territórios, intensificam-se os deslocamentos irregulares e clandestinos, cujos percursos seguem a lógica das oportunidades reais (ou supostas) e são cotidianamente expostos nos noticiários, veiculando tragédias como naufrágio de barcos ou apreensão de veículos sem condições de transporte de pessoas, amontoadas como gado, com alta taxa de letalidade.

A construção de muros nas fronteiras (Estados Unidos/México; o território espanhol de Melilla no norte da África com o Marrocos; Hungria/Croácia) busca dificultar a entrada dos tidos como “indesejáveis”, assim como também a implementação de legislação anti-imigração, formulada por governos conservadores, que, cada vez mais, não só criminalizam os imigrantes irregulares como também proíbem os nativos desses países a serem solidários com imigrantes irregulares (Andersson, 2014). Isso se dá em um contexto de crise econômica no norte global, no qual o imigrante irregular, o “ilegal”, aparece como bode expiatório (e mercadoria política) para uma crise econômica gerada pelo mercado financeiro.

Apesar de a economia globalizada dos países ocidentais produzir mais processos migratórios e suas economias dependerem de fluxo de imigração para manter sua população (idosa)1 e economia estáveis (Spickard, 2013; Long, 2014), nas capitais europeias, como também em Washington (EUA), discursos contra imigração, especialmente a irregular, se tornaram potencialmente populares e fonte de votos em tempos de crise econômica. Junta-se a isso os investimentos maciços da União Europeia (UE) e dos Estados Unidos em suas fronteiras, em tecnologias de defesa e vigilância, centros de detenção, aviões militares, helicópteros, sistema de informação avançada, barcos de patrulha, radares, polícia e patrulheiros. Mais e mais dinheiro tem sido gasto na tentativa de regular o movimento dentro de uma econômica global desregulada, enquanto pessoas continuam morrendo nos desertos e oceanos que demarcam as fronteiras nacionais, onde o aumento de controles de fronteira e mais policiamento é proporcional ao aumento de mais ilegalidades, precariedades e explorações. Dessa forma, controles de fronteiras e de imigração funcionam como uma lente particular que permite visualizar as contradições contemporâneas do capital e suas desigualdades sociais em nível global.

Imigrantes irregulares/ilegais

Fronteiras e controles de imigração são justificados pelos Estados nacionais como uma maneira de garantir empregos para trabalhadores locais, além de proteger os imigrantes de exploração. Contudo, a criação de uma “ilegalidade institucionalizada” (Anderson, 2010) – estipulando quem é legal e quem é ilegal – resultaria em um processo de “inclusão diferenciada”, a qual, ao invés de colocar de fato um fim nos trabalhos precários realizados por imigrantes, na realidade ajuda a produzir ainda mais situações de exploração e precariedade.

A figura do “migrante ilegal”, o migrante irregular, reflete as dimensões globais da desigualdade, já que muitos deixam seus países de origem preparados para trabalhar em ocupações nas quais os “locais” se recusam a fazer, dada as condições de trabalho e os baixos salários. Frequentemente, trabalham longa jornadas de trabalho sem qualquer tipo de proteção social (Piore, 1979). Falta de conhecimento da língua local, não reconhecimento de qualificações adquiridas no país de origem, discriminação e situação como “indocumentados” são fatores que influenciam diretamente na posição do imigrante no mercado de trabalho.

Estudos demonstrando a exploração sofrida por imigrantes não documentados é algo debatido na academia (Ribeiro, 1998; De Genova, 2002; Cohen, 1987; Sassen, 1988). Contudo, nem sempre esses estudos consideram a maneira pela qual os controles de imigração, através da criação de uma ilegalidade institucionalizada (o Estado instituindo quem é “legal” ou “ilegal”), ajudam a produzir mais “ilegalidades”, trabalho precário e exploração.

Imigração ilegal é definida pelo governo britânico, por exemplo, como:

[…] um termo coletivo para muitas formas de abuso das regras de imigração. Pode estar ligado com a entrada ilegal no país – tentando superar os controles que temos no exterior ou em nossas fronteiras através de entrada fraudulenta ou clandestina – ou violando as regras de imigração no Reino Unido – trabalhando em tempo integral quando tendo sido permitido somente estudar, ou ao deixar de sair do país no final da sua estadia (United Kingdom, 2007a, p. 8, tradução nossa).

Nesse sentido, como afirma Gutierrez-Garza (2013, p. 88), o termo “migrante ilegal”, para o governo britânico, constitui um sujeito que, em virtude de sua “falta” de documentação adequada para entrar, permanecer e trabalhar no país, comete uma ofensa criminal. Como consequência, dialogando com Anderson (2010, p. 306), “ilegalidade” é “enquadrada como ausência de status” migratório por parte do imigrante em si, em vez de algo que é produzido pelo próprio Estado, através de estruturas legais que constroem diferentes status de categorias de imigração, as quais dão direitos a alguns tipos de imigrantes à medida que retira direitos de outros (De Genova, 2002; 2004). Como De Genova (2002, p. 439) alega, no que chama “a produção da ilegalidade de migrantes”: “sem a [existência da] lei [em si], nada pode ser interpretado como fora da lei”. Essa produção institucionalizada da “ilegalidade”, portanto, tem consequências diretas na forma como as pessoas podem construir e viver suas vidas (De Genova, 2004), especialmente dentro de um contexto contemporâneo de aumento de controle das fronteiras nacionais e das leis de imigração.

Ao analisar o caso britânico, por exemplo, em tempos de recessão econômica – desde 2008 –, o governo britânico tem cada vez mais alterado as regras de seu controle de imigração (ver Anderson, 2010) sob o discurso de facilitar os comércios e viagens “legítimas”, garantir a segurança contra crimes/terrorismo e “ataques a base tributária”, proteger a fronteira, bem como proporcionar um ambiente de tranquilidade para o público e para os negócios em geral (United Kingdom, 2007b, p. 9). Com isso, um novo sistema de regras foi criado com o intuito de produzir diferentes categorias de status migratório, apresentadas como uma maneira de defender os empregos para a mão de obra nacional, assim como proteger os imigrantes de exploração. Porém, apesar do discurso de que essas regras protegem os imigrantes de exploração, fronteiras e controles de imigração não colocam fim de fato na chamada imigração irregular. Fronteiras, assim como as leis, são porosas e “desfocadas” (blurry) e não impedem as pessoas de entrarem e viverem no território do Estado-nação (Mezzadra e Neilson, 2012; Goldberg, 2014).

Para Goldberg (2014, pp. 140-143), as fronteiras moldam os movimentos e o comércio através de seus muitos pontos de acesso onde os bens baratos e de mão de obra a baixo custo trafegam sob o olho atento do Estado, que, por sua vez, regula, ordena e encaminha-os de forma conducente a interesses políticos e econômicos. Assim, em vez de pôr fim à “ilegalidade”, produzindo um processo unilateral de “exclusão” ou “inclusão”, fronteiras porosas produzem uma inclusão diferencial, a qual fornece distribuições diferenciais de recursos e acesso a bens e serviços, permitindo e (re)produzindo relações de dominação, exploração e sujeição – poder e resistência (Mezzadra e Neilson, 2012). No caso dos imigrantes, tal “inclusão diferenciada” acontece via diferentes tipos de status migratórios e vistos, os quais proporcionam diferentes escalas de acesso a direitos, tendo um efeito de longo prazo sobre a posição do imigrante no mercado de trabalho e na maneira pela qual eles conseguem estruturar suas vidas. O controle de imigração não somente molda e constrói as condições de entrada do imigrante no país receptor, mas também as suas condições de permanência. Em outras palavras, o controle de imigração pode ajudar a produzir “trabalhadores precários” que se aglutinam em trabalhos e segmentos do mercado através da criação de categorias de entrada, a qual resulta na imposição de relações de trabalho específicas e na construção de uma instabilidade institucionalizada (Anderson, 2010).

A situação descrita acima pode ser vista nos casos de brasileiros com documentação irregular que vivem em Londres (Martins Jr., 2014; 2017). O espaço de possibilidades (Bourdieu, 2014) para entrar no país “legalmente” é consideravelmente mais restrito para os brasileiros sem passaporte europeu e com menor capital econômico e cultural (o que os possibilitaria pagar um curso e obter um visto de estudante ou receber um visto de trabalho de alguma empresa). Baseando-se no seu capital social e na quantidade limitada de dinheiro que podem gastar, a maioria das pessoas nesse grupo tenta entrar no país fingindo ser turistas. As informações fornecidas pelas suas redes sociais – que incluem amigos, agências de viagens e websites – desempenham um papel fundamental para tornar sua entrada bem-sucedida ou malsucedida, à medida que esses contatos fornecem os recursos e as habilidades necessárias para navegar na “fronteira porosa e desfocada”. Tal porosidade não só abre espaço para as ações e a inventividade dos próprios migrantes para desenvolver táticas para navegar pelas fronteiras de acordo com seus recursos disponíveis.

Em vez disso, como observado, esta “área cinzenta” também abre espaços de negociação e rotas para migrantes e aqueles que “facilitam” suas jornadas (Ruhs e Anderson, 2008). Uma constelação de outros atores – tais como agenciadores de trabalho, agências de migração, ONGs e intermediários (incluindo amigos e/ou parentes pessoais) – trabalha ao longo das fronteiras hierarquizadas e porosas, entre “legalidade” e “ilegalidade”, lucrando, muitas vezes por meio da exploração desses sujeitos. Esses atores são importantes não só no processo de passagem de fronteira, mas também à medida que os migrantes desenvolvem e empregam estratégias de sobrevivência e tentam regularizar sua situação no país de destino estando diretamente envolvidos na produção, bem como na atenuação das múltiplas precariedades pessoais e econômicas que enfrentam.

Por falta de documentação, brasileiros irregulares tendem a realizar trabalhos considerados desqualificados e em condições precárias, os quais normalmente são realizados dentro dos setores informais e nas atividades consideradas “ilícitas” em Londres. Incapazes de obterem trabalho formal devido à falta de documentação regular e do baixo capital econômico e cultural (como a incapacidade de falar inglês), esses migrantes também precisam contar com seu capital social para encontrar trabalho informal e sobreviver. Além de ser fundamental para entrar no país, o capital social continua a desempenhar um papel crítico em suas vidas em Londres. É através de seus contatos que eles adquirem as habilidades para navegar na cidade, encontrar empregos, comprar documentos “falsos” necessários para trabalhar, abrir contas bancárias e acessar bens e serviços. No entanto, isso não resulta em uma “reciprocidade generalizada”, como diz Putnam (2000, p. 21), entre os brasileiros, na qual migrantes se ajudariam porque se veem como pertencentes ao mesmo grupo de pessoas que estão “no mesmo barco” e que precisam cooperar para “sobreviver” num ambiente estranho e muitas vezes hostil (Den Butter et al., 2007, p. 49). Muitas vezes, o acesso fornecido pelas redes sociais vem junto com exploração e precariedade.

Ser um migrante irregular coloca essas pessoas em uma “condição sem direitos” (De Genova, 2010), na qual são negados direitos humanos fundamentais e qualquer tipo de proteção estatal. Isso, portanto, permite que eles sejam facilmente explorados por outros, já que vivem sob o constante medo de serem deportados. Dessa forma, a produção institucionalizada do “imigrante ilegal” também exerce sobre esses sujeitos uma violência simbólica diária (Bourdieu, 1987). Como argumenta Willen (2007, p. 9), “a ilegalidade não só afeta a estrutura externa dos mundos dos migrantes, mas também molda sua experiência subjetiva de tempo, espaço, embodiment, socialidade e self”. Um dos principais exemplos de violência simbólica que molda a experiência subjetiva de migrantes irregulares é o medo constante de ser deportado.

O medo da deportação facilita a sujeição e a exploração, expondo migrantes irregulares a altos níveis de abuso e humilhação em diferentes áreas de suas vidas. Um migrante que está sem documentação regular tende a aceitar qualquer tipo de condições de trabalho e se queixa menos, já que a ameaça de denúncia e deportação permanece constantemente sobre suas cabeças. Portanto, devido à sua vulnerabilidade jurídica distinta, eles vivem em um estado constante de “deportabilidade” (De Genova, 2004), o que facilita sua subordinação como força de trabalho altamente explorável. Assim, o medo da denúncia, imbuído em sua condição de “deportável”, faz do migrante sem documentação regular um trabalhador dócil, além de produzir uma sensação de constante controle na vida cotidiana2. Para muitos brasileiros nessa situação em Londres, a sensação é que eles estão, em Londres, “vivendo em uma gaiola” (Martins Jr., 2017), sensação que capta vividamente uma sensação de “vulnerabilidade sempre presente” – seja no trem, no trabalho ou em casa. Essa vulnerabilidade cria uma situação de incerteza contínua. A sensação de “sair de casa sem saber se você voltará”, como muitos entrevistados relataram em nossas entrevistas, expressa não só um sentimento de controle constante, mas também um específico sentimento de temporariedade. O medo da deportação prende os migrantes em um presente vazio, cheio de ansiedade e pontos de interrogação sobre o futuro. Isso leva a uma pressão de ter que maximizar o “agora”; independentemente das oportunidades que apareçam, eles devem abraçá-las, sofrer injustiças e não reclamar.

Concluindo: a precarização do mundo

Assistimos nos últimos quarenta anos a mudanças estruturais do capitalismo que trouxeram novos reordenamentos políticos, econômicos, sociais e culturais com (contraditórias) disposições regulatórias por um lado e desregulatórias de outro. Os motivos, como discutido, são variados: desde crises de acumulação até a eliminação de alternativas à sociedade capitalista. As transformações tecnológicas provocaram um deslocamento da produção com uma velocidade nunca vista antes, dando continuidade ao que Marx tinha referenciado como internacionalização do capital. Não apenas do capital, mas também do trabalho, com a incorporação de novos territórios à lógica mercantil e uma efetiva proletarização do mundo.

A desregulamentação econômica funciona nesse processo de proletarização não como incorporação de massas de trabalhadores à riqueza social produzida pelo capitalismo, mas como uma incorporação diferenciada, marcada por formas precárias de relações e condições de trabalho. A mobilidade do capital, quase plena em todos os recantos do globo, se contrapõe, entretanto, às tendências regulatórias de controle da mobilidade dos trabalhadores em busca de melhores condições de vida. Novos muros, não apenas simbólicos, mas materiais e efetivos, surgem em vários continentes, sem provocar grande comoções.

O que Bourdieu (1998) chamou de precarização do mundo indicava que a lógica neoliberal dominante no capitalismo contemporâneo se enraizou como valor preponderante em todos os aspectos da vida social, muito além do trabalho. Assim acontece com o conceito de empreendedorismo, cada vez mais sintetizando, para o indivíduo, para o trabalhador, a ética do “vire-se” e de “tomar conta de sua própria vida”. Mesmo com um interregno na década de 2000, que indicava que o neoliberalismo tinha se esgotado, com o retorno do Estado e das políticas sociais em vários países, esse retorno e essas políticas não voltaram a uma perspectiva universalizante, como tendência vigente em parte do século XX.

O trabalho, em vez da perda da centralidade prevista, com aumento do tempo livre e de outras sociabilidades como discutido na década de 1970, termina por colonizar todos os setores da vida, eliminando as separações tempo de trabalho × tempo de lazer, lugar de trabalho × lugar da vida pessoal. Trabalha-se o tempo todo ou, parafraseando Oliveira (2017), passamos “do fim do trabalho ao trabalho sem fim”, seja pelas novas tecnologias que nos mantêm conectados permanentemente, seja na extensão das jornadas e/ou em múltiplas ocupações intermitentes que caracterizam o novo mundo do trabalho.

O crescimento da imigração, junto com as outras formas aqui discutidas como informalidades e ilegalidades diversas, marcam esse período. No caso da imigração, seus controles são frequentemente justificados pelos Estados nacionais como uma maneira de garantir empregos para trabalhadores locais, além de proteger os imigrantes de exploração. Contudo, na maioria das vezes acabam ajudando a formar, e a reproduzir, tipos de trabalhadores precários, os quais acabam aceitando qualquer tipo de trabalho dada a sua situação “de ilegalidade institucionalizada”. Em outras palavras, ao criar o que é legal e ilegal, na realidade o Estado não põe fim a esse ilegalismo, mas sim cria um processo de diferenciação interna ao grupo, o que facilita o gerenciamento, e controle, desse tipo específico de mão de obra barata e dócil. Dentro desse processo, há uma rede de pessoas e instituições que se beneficiam das trocas – marcadas e hierarquizadas por relações de poder – que ocorrem nos poros existentes entre as fronteiras do “legal” e do “ilegal”.

Assim, os reordenamentos e tendências do capital e do trabalho no que diz respeito às formas contemporâneas de organizar o capital e o trabalho, assim como as mobilidades e o controle de ambos, em nível global, acontece em meio a contradições que são expressas em práticas e discursos desregulatórios por um lado e políticas regulatórias de outro, as quais produzem mobilidades (e inclusões) diferenciadas que marcam a precarização crescente da vida social contemporânea.

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  • 1
    . Os países europeus são insuficientemente fecundos. Para manter uma população estável, sem receber imigrantes, cada país deve ter uma média de 2,1 filhos nascidos por mulher. Todas as nações europeias estão abaixo dessa média (Spickard, 2013).
  • 2
    . No Brasil, essa situação é perceptível entre trabalhadores bolivianos nas sweatshops do Brás em São Paulo. Informais e ilegais, a ameaça de deportação é utilizada como forma de exploração do trabalho (Lima e Martins Jr, 2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2017
  • Aceito
    16 Out 2017
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