Embora seja uma especialidade recente (Sapiro, 2014), a sociologia da literatura, principalmente a de matriz bourdieusiana, tende a concordar com um pressuposto implícito de que, ao longo do século XX, o capital econômico, ou o polo de grande produção (comercial), definido nos escritos de Bourdieu (1996, 1999) principalmente pela sua adesão às lógicas de ganhos de curto prazo, fidelidade aos índices de venda e à maximização dos lucros, estaria se sobrepondo às lógicas internas da produção literária e submetendo-a a critérios alheios ao primado da estética.
Esse processo em um primeiro momento, porém, teria na verdade sido benéfico para os escritores, pois quando surgiu e se fortaleceu o componente mercantil do mundo editorial, os autores puderam se ver livres de relações de dependência estreitas com mecenas, autoridades do Estado e/ou religiosas e editores (Sapiro, 2019). Assim, em um primeiro momento, o mercado editorial fortalecido e a possibilidade de viver da própria pena, graças ao consumo por um público leitor ampliado, representam um ganho de autonomia da atividade literária em relação a antigos fatores de dependência, notadamente, a política e a religião. Todavia, não demoraria para que, de provedor de autonomia, o mercado editorial se tornasse um elemento de heteronomia e constrição (Bourdieu, 1999; Thompson, 2013).
Durante algum tempo a produção em sociologia da literatura, notadamente aquela preocupada em buscar os sentidos de uma obra não só em seus elementos internos e intrínsecos, mas levando em consideração, os mediadores que imprimem os livros, preparam, criticam e os fazem circular, bem como as diversas instituições que participam desse processo seja na produção, circulação, tradução, recepção e consagração etc., levou a afirmação do domínio das lógicas econômicas como um dado inquestionável ou irrefletido, característico da contemporaneidade.
Ocorre que recentemente, estudos coletivos e individuais de pesquisadores especializados na subárea e de outras disciplinas têm chamado a atenção para os diversos matizes que o domínio econômico comporta e trazendo de volta para a cena um agente central, que talvez nunca tenha deixado o palco, o Estado e o campo político.
A coletânea de textos organizada pelas professoras Maria Carmen Villarino Pardo (Universidade de Santiago de Compostela), Iolanda Galanes Santos e Ana Luna Alonso (ambas da Universidade de Vigo), Promoción cultural y tradución: Ferias Internacionales del libro e invitados de honor, apesar de não formular isso diretamente, na prática traz de volta à cena todo um ecossistema de agências, funcionários e órgãos estatais, que junto com agentes de mercado têm feito de feiras e festivais literários internacionais, espaços privilegiados para circulação, recepção, tradução e consagração de autores e livros.
Antes de abordar a obra em si, alguns elementos paraliterários destacam essa característica presente nos 14 capítulos que compõem o livro. Na contracapa, podemos notar os símbolos impressos do Ministério da Ciência e Inovação Espanhol que patrocina o livro e também do Fundo Europeu de Desenvolvimento regional, ambas instituições que apoiam o projeto coletivo intitulado “Nuevas estratégias de promoción cultural. Las ferias Internacionales del libro y la condición de invitado de honor”, ou, Culturfil.
Outro ponto que chama atenção na mesma direção, é o livro fazer parte de uma coleção da editora Peter Lang, intitulada “Relações literárias no âmbito hispânico: tradução, literatura e cultura”, que com o volume analisado aqui, soma 16 títulos publicados, entre eles volumes que tematizam: tradução e autotradução nas literaturas ibéricas, interações entre as literaturas ibéricas, relações das literaturas ibéricas com as literaturas estrangeiras etc. Essa abundância de trabalhos e interesse do Ministério de Inovação e Ciência Espanhol não são estranhos, se atentarmos ao fato de que, desde os anos 1990, o Estado espanhol decidiu reformular toda a sua estrutura burocrática na área cultural, criando entre outras instituições, o Instituto Cervantes que tem como missão promover a língua espanhola fora da Espanha, através do fomento a cursos, exposições e manifestações culturais vinculadas ao idioma, bem como, oferecer o ensino do espanhol como língua estrangeira etc. (Cassiano, 2013)
Por isso não é de se espantar que o mesmo país promova estudos críticos, mas também com um viés prático, para medir, afinal, que relevância tem participar de diversas feiras literárias pelo mundo como país de destaque? Vale mesmo a pena para o Estado nacional, subsidiar autores, editores, agentes, tradutores, scouts e burocratas para participar nesses eventos? Após uma participação como protagonista em uma Feira, de fato, autores e editores nacionais passam a ser mais traduzidos, divulgados e reconhecidos em outros territórios e línguas?
Apesar das questões colocadas pelo livro não estarem formuladas dessa maneira, são perguntas que do ponto de vista de uma razão burocrática estatal fazem todo sentido. Embora não se trate apenas de uma avaliação de custos e benefícios e envolva também uma reflexão sobre diplomacia cultural e inserção estratégica de um país e uma língua no mundo, não há como escapar e olhar para o fato de que garantir a participação de uma nação em uma feira, mesmo que não seja convidada de honra e protagonista, envolve um grande investimento por parte do Estado, como pudemos exemplificar através do caso brasileiro (Stella, 2020).
Aqui reside, provavelmente, o maior ponto de tensão não abordado no livro, a saber, a própria obra é resultado de um interesse direto do Estado, ou da política, sobre um tipo de evento até então considerado puramente ou ao menos privilegiadamente econômico. Acontece que quando vão realizar seus trabalhos de campo e etnografia nas feiras literárias, de México (Guadalajara), Espanha (Liber), Alemanha (Frankfurt), Itália (Bolonha), os pesquisadores não se cansam de ver stands patrocinados por governos e ministérios, agências e órgãos estatais de apoio à tradução etc.
É verdade que olhando a obra como um todo, podemos identificar diversas virtudes ligadas aos conteúdos e pesquisas empíricas realizadas por seus autores. Nesse sentido, temos artigos que tematizam novos métodos de investigação para entender melhor as feiras (prosopografia, etnografia etc.), além de reflexões importantes sobre os efeitos de participação de uma nação em um dado evento literário como convidada de honra e como isso impactou ou não a trajetória de determinados autores e livros promovidos no evento. Há ainda discussões relevantes sobre a sociogênese de algumas feiras como a de Bolonha e a estratégia de idiomas minoritários para se destacarem em grandes eventos como a Feira do Livro de Frankfurt.
Todavia, gostaríamos de destacar o capítulo de Gustavo Sorá sobre o diretor da Feira de Frankfurt Peter Weidhaas, intitulado “Peter Weidhass y América Latina”. Nascido em Berlim, em 1942, Weidhaas era filho de um pai engenheiro, que havia sido membro do Partido Nacional Socialista, e sua mãe, dona de casa, não tinha uma ligação estreita com o filho. A perda de uma irmã com câncer e a vergonha do pai nazista geraram nele uma tendência a querer se afastar de sua cultura, procurando outras referências para se apoiar, e um dos primeiros lugares de encontro com outras mentalidades se deu através da literatura e depois pelas viagens que empreendeu, especialmente uma pela América Latina que o marcou, nos anos 1960.
Weidhaas foi a Frankfurt nos anos 1960 e conseguiu um trabalho vinculado à promoção da cultura alemã no exterior, sendo uma de suas primeiras missões em 1968, ano em que foi à Argentina promover exposições, livros e autores alemães naquele país e em todo Cone Sul. Dessa viagem o jovem alemão voltaria não apenas apaixonado pela cultura latino-americana, como casado com uma argentina e também muito alinhado à pauta anti-imperialista, temática em voga nos setores de oposição latino-americanos (Sorá, 2021). Ao retornar à Alemanha nos 1970, quando assume a direção da Feira de Frankfurt, Weidhaas vai aos poucos trazendo elementos que dão a Frankfurt um caráter mais politizado, como a escolha de países e regiões convidados de honra de partes mais desfavorecidas e dominadas do globo, como América Latina e África. Paralelamente, criou uma Sociedade para a promoção das literaturas de Ásia, África e América Latina que, entre outras atividades, garantia algumas bolsas para que editores dessas regiões pudessem ir à feira, o que depois se tornou um programa oficial do evento, chamado Invitation Programme. O Programa estimulou e tornou um item obrigatório para a participação de um país como convidado de honra na Feira, a criação de iniciativas de apoio e promoção à tradução estatal (Santos, 2022).
O capítulo de Sorá é, a nosso ver, especialmente eloquente para o argumento que estamos tecendo, pois mostra a centralidade da política, na figura de seu diretor, mesmo em uma Feira considerada como uma das mais marcadamente econômicas do mundo. Segundo o antropólogo:
Si algo parece haber cumplido el neoliberalismo, es la desaparición de políticos internacionalistas de la edición. Pero sus miradas, proyectos y anhelos dejaron huella em los temas focales, em las naciones invitadas de honor, en el fomento de políticas de traducción, em la ineludible presencia del Estado, no como editor, sino como vector de control de los desequilibrios capitalistas del mercado del libro (Sorá, 2021, p. 56).
Talvez a aposta não explicitada da coletânea de Pardo, Santos e Alonso, seja essa mesma de Weidhaas, interpretado por Sorá, a de acreditar no Estado como um vetor de controle de desequilíbrios do sistema capitalista na edição (e talvez em outros domínios). Seria esse realmente o papel cumprido pelos Estados nacionais nos últimos tempos? Sapiro (2019) parece ir na mesma direção ao sugerir que as políticas estatais de apoios e subsídios à tradução, aos escritores e aos editores têm procurado contrabalançar o domínio das lógicas econômicas e salvaguardar gêneros literários pouco lucrativos, como teatro e poesia. Pesquisas recentes, como a de Santos (2022), mostram que a relação dos Estados e governos com suas políticas de apoio à tradução, podem ser mais complexas e intrincadas, revelando outras facetas menos antimercado. Outras coletâneas são bem-vindas para explorar essa senda.
Referências Bibliográficas
- Bourdieu, Pierre. (1996), As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário São Paulo: Companhia das Letras.
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Bourdieu, Pierre. (1999), “Une révolution conservatrice dans l’édition”. Actes de La Recherche En Sciences Sociales”. Paris, 1(126): 3-28. https://doi.org/10.3406/arss.1999.3278.
» https://doi.org/10.3406/arss.1999.3278 - Cassiano, Cristina C. de F. (2013), O Mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na educação nacional São Paulo: Editora Unesp.
- Santos, Júlio César Bernardes. (2022), Estado e Tradução: Uma Análise Sociológica do Programa de Tradução da Fundação Biblioteca Nacional 207 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2022.
- Sapiro, Gisèle. (2014), La Sociologie de la Littérature Paris: La Découverte.
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Sapiro, Gisèle. (2019). “A noção de campo de uma perspectiva transnacional: a teoria da diferenciação social sob o prisma da história global”. Plural, 26(1): 233-265. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159917
» https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159917 - Sorá, Gustavo. (2021), “Peter Weidhass y América Latina”. In: Pardo, Maria Carmen Villarino et al Promoción cultural y tradución: Ferias Internacionales del libro e invitados de honor Berna: Peter Lang.
- Stella, Marcello Giovanni Pocai. (2020), “A Literatura Brasileira foi a Frankfurt: o Brasil como Homenageado da Frankfurter Buchmesse (1994 e 2013)”. Revista Mediações (UEl), 25: 161-187.
- Thompson, Jonh B. (2013), Mercadores de cultura: o mercado editorial no século XXI São Paulo: Editora Unesp .
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jun 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
30 Jul 2022 -
Aceito
05 Jan 2023