Resumo
Objetivo: Analisar as repercussões da pandemia da COVID-19 em mães-crianças com síndrome congênita do vírus Zika.
Métodos: Estudo misto sequencial exploratório (QUAL->QUAN), realizado com 44 mães de crianças com SCZ respondentes de questionário online aplicado entre abril e maio de 2020. Os dados qualitativos foram submetidos à análise de conteúdo temática e os quantitativos à estatística descritiva, com aplicação do teste t de Student emparelhado. A integração dos dados foi realizada de acordo com a técnica joint display .
Resultados: O distanciamento físico reconfigura a rotina da mãe-criança, limita a desenvolver atividades no ambiente doméstico, altera hábitos, aumenta a sobrecarga da cuidadora (p<0,05), implica em alteração do padrão do sono e gera sinais de estresse e ansiedade. As mães se preocupam com a diminuição da renda familiar e se esforçam para realizar exercícios de estimulação e atividades escolares no ambiente doméstico após a interrupção dos cuidados profissionais de reabilitação e o fechamento das escolas.
Conclusão: A pandemia da COVID-19 repercutiu no incremento de novas tarefas de cuidado com a criança e ambiente doméstico, bem como elevou os níveis de sobrecarga de cuidado das mães, o que pode resultar em alterações importantes na saúde física e mental delas.
Descritores COVID-19; Crianças com deficiência; Cuidado da criança; Infecções por coronavirus; Pandemias; Relações mãe-filho; Zika vírus
Resumen
Objetivo: Analizar las repercusiones de la pandemia de COVID-19 en madres-niños con síndrome congénito del virus del Zika.
Métodos: Estudio mixto secuencial exploratorio (CUAL->CUAN), realizado con 44 madres de niños con SCZ que respondieron un cuestionario digital aplicado entre abril y mayo de 2020. Los datos cualitativos fueron sometidos al análisis de contenido temático y los cuantitativos a la estadística descriptiva, con aplicación del test-T de Student pareado. La integración de los datos se realizó de acuerdo con la técnica joint display .
Resultados: El distanciamiento físico reconfigura la rutina de la madre-niño, limita el desarrollo de actividades en el ambiente doméstico, altera hábitos, aumenta la sobrecarga de la cuidadora (p>0,05), implica la alteración del patrón de sueño y genera señales de estrés y ansiedad. Las madres se preocupan por la reducción de los ingresos familiares y se esfuerzan para realizar ejercicios de estimulación y actividades escolares en el ambiente doméstico luego de la interrupción de los cuidados profesionales de rehabilitación y del cierre de escuelas.
Conclusión: La pandemia de COVID-19 repercutió en el aumento de nuevas tareas de cuidado del niño en ambiente doméstico, así como también elevó los niveles de sobrecarga de cuidado de las madres, lo que puede dar como resultado alteraciones importantes de su salud física y mental.
Descriptores COVID-19; Cuidado del niño; Infecciones por coronavirus; Niños con discapacidad; Pandemias; Relaciones madre-hijo; Virus zika
Abstract
Objective: To analyze the repercussions of the COVID-19 pandemic in mothers-children with Congenital Zika Syndrome.
Methods: This is a mixed exploratory sequential study (QUAL-> QUAN), carried out with 44 mothers of children with Congenital Zika Syndrome who answered an online questionnaire applied between April and May 2020. Qualitative data were subjected to thematic content analysis and quantitative data to statistics descriptive, with application of paired Student’s t test. Data integration was performed according to the joint display technique.
Results: Physical distancing reconfigures the mother-child routine, limits the development of activities in the domestic environment, changes habits, increases caregivers’ burden (p<0.05), implies changes in sleep patterns and generates signs of stress and anxiety. Mothers are concerned about the decrease in family income and strive to perform stimulation exercises and school activities in the domestic environment after the interruption of professional rehabilitation care and the closing of schools.
Conclusion: The COVID-19 pandemic had an impact on the increase in new tasks of caring for the child and the home environment, as well as raising the levels of care burden for mothers, which can result in important changes in their physical and mental health.
Keywords COVID-19; Child car; Coronavirus infections; Disabled children; Mother-child relations; Pandemics; Zika virus
Introdução
A notícia que o mundo convivia com a pandemia da COVID-19 foi emitida pouco mais de quatro anos após a epidemia global do vírus Zika e suas consequências como Síndrome Congênita do vírus Zika (SCZ). Até 30 de setembro de 2020 o Brasil respondia por 28% dos casos confirmados e 55% dos óbitos por COVID-19 na região das Américas,(1) com taxa de letalidade de 3,0%.(2) O Brasil também se destaca como o país com maior prevalência da SCZ, mantendo a ocorrência de casos até os dias atuais, totalizando 3.534 crianças com SCZ desde 2015, dentre os quais, 13 foram confirmados de janeiro a maio de 2020.(3)
As medidas sanitárias de controle da transmissão do vírus da COVID-19, provocaram impactos negativos na saúde mental da população,(4) assim como a descoberta da SCZ gerou sentimentos e emoções desagradáveis para as mães.(5) A definição de SCZ engloba o conjunto de alterações neurológicas causadas pelo vírus Zika através de transmissão congênita, causando desproporção craniofacial e outras anomalias cerebrais.(6)
Mãe e criança constroem, sustentam e compartilham de uma relação intimista regulada por aspectos biológico, social e psicológico cultivados em prol do desenvolvimento da criança,(7) por isso esse estudo adota o termo díade mãe-criança com SCZ.
As crianças dependem total e quase exclusivamente das mães,(8) utilizam medicamentos diariamente a fim de amenizar os episódios de espasmos, rigidez muscular e, principalmente, convulsões.(9) Por sua vez as mães percorrem itinerários terapêuticos desgastantes em prol do desenvolvimento infantil,(5) convivem com níveis elevados de depressão e ansiedade, além de diminuição na qualidade de vida no primeiro ano de vida da criança.(9) Elas vivenciam uma rotina cansativa, com sobrecarga de atividades domésticas e de cuidado,(10) pouco suporte por parte da rede de apoio social e baixa renda,(11) contudo não há, até o momento, evidências científicas de como a pandemia da COVID-19 repercutiu no cotidiano de mães-crianças com SCZ
Desse modo, esse estudo busca responder a seguinte questão: quais as repercussões da pandemia da COVID-19 em mães-crianças com SCZ? A fim de alcançar o objetivo de analisar as repercussões da pandemia da COVID-19 em mães-crianças com SCZ.
Métodos
Estudo misto sequencial exploratório (QUAL->QUAN),(12) apresentado conforme critérios do Mixed Methods Appraisal Tool (versão 2018) para avaliação do rigor metodológico de pesquisas mistas.(13)
As participantes foram recrutadas inicialmente nos grupos de WhatsApp da Associação de Pais de Anjos da Bahia (APAB), fundada em 2017, e da Associação aBRAÇO a Microcefalia (aBRAÇO) fundada em 2016, ambas com sede em Salvador, Bahia, Brasil. Destaca-se que os (as) pesquisadores (as) não integram os referidos grupos, tampouco entraram em contato com as participantes, visto que tal ação foi realizada por voluntários vinculadas as associações. O contato inicial com as associações foi realizado através do canal de teleatendimento oficial mediante conversa no aplicativo WhatsApp .
Em seguida, utilizando a técnica Respondent Driven Sampling (RDS),(14) as mães que primeiro participaram da pesquisa foram instadas a compartilhar o convite e instrumento de coleta de dados com outras mães, por esse motivo mães dos estados do Amazonas e Paraíba também responderam ao questionário da pesquisa. Essa técnica é recomendada para estudar grupos de pessoas de difícil acesso,(14) o que se justifica pelo distanciamento físico vivido no Brasil durante a pandemia.
A coleta de dados ocorreu entre os meses de abril e maio de 2020. Participaram do estudo 44 mães de crianças com SCZ que respeitaram os seguintes critérios de inclusão: ser mãe de criança com SCZ e ter 18 anos de idade ou mais. Não houve critério de exclusão.
O número de participantes foi definido por saturação teórica-empírica ao se esgotar toda possibilidade de novas discussões a partir dos dados coletados. O alcance da saturação ocorreu a medida que os núcleos de sentidos surgiam após o julgamento individual e confidencial de três pesquisadoras (es). Quando ocorreu convergência entre dois pesquisadores (as) foi encerrado o questionário online. A equipe em questão foi composta por duas pesquisadoras com qualificação de pós-doutorado e um doutorando.
Como técnica de coleta de dados utilizou-se questionário online, elaborado pelos (as) pesquisadores (as) através do Google Forms e compartilhado por meio do link < https://forms.gle/Ztuu8x1gHgXeC38K6 > nos grupos de WhatsApp . O questionário era composto por questões fechadas relativas a caracterização socioeconômica das participantes e as atividades cotidianas realizadas antes e durante a pandemia, além das questões abertas sobre as modificações do dia-a-dia causadas pela pandemia. As respostas das participantes foram enviadas automaticamente para o e-mail sindromecongenitaz@gmail.com, administrado pelo primeiro autor.
A análise temática reflexiva foi realizada em seis etapas: leitura e releitura dos dados; criação de códigos para temas importantes (06 códigos); agrupamento dos códigos (02 grupos); construção de mapa mental identificando relações entre as temáticas; nomeação dos temas e; produção da síntese da análise.(15)
A análise qualitativa revelou a necessidade de comparar os níveis de sobrecarga da mãe antes e durante a pandemia. Para isso foi realizada a técnica de equivalência entre posições das respostas qualitativas de acordo com a escala de sobrecarga do cuidador de Zarit,(16) que mede o nível de sobrecarga do cuidador a partir de quatro domínios: “impacto na prestação de cuidado”, destinado a tratar da percepção do cuidador sobre seus sentimentos, responsabilidades e cotidiano a partir do adoecimento; “relação interpessoal”, que inclui questões relacionadas a vida social do cuidador, dependência total da criança, autocuidado e despesas financeiras; “expectativas do cuidar”, abrange a percepção da mãe sobre a qualidade do cuidado que ela realiza e; “percepção de autoeficácia”, constituído de duas questões: você acha que poderia cuidar melhor da criança com SCZ? E, quanto você se sente sobrecarregada?
A escala de sobrecarga do cuidador é do tipo Likert, possui 22 itens direcionados ao bem-estar psicológico e socioeconômico do cuidador e sua relação com a pessoa a ser cuidada. Cada item possui cinco alternativas de resposta de acordo com a frequência que ocorrem: 0 (nunca); 1 (raramente); 2 (às vezes); 3 (frequentemente) e; 4 (sempre). Quanto maior a pontuação, maior a sobrecarga.(16)
O procedimento de equivalência entre posições foi realizado entre a escala de sobrecarga do cuidador de Zarit e as respostas qualitativas coletadas a partir dos questionários online com pareamento em 18 itens da escala, seguindo as pontuações disponíveis para cada item, conforme aporte metodológico evidenciado em estudo.(17) A primeira etapa consistiu no agrupamento das respostas referentes ao cotidiano das mães-crianças antes e durante a pandemia, mantendo a individualidade das respostas. A segunda se configurou na organização das respostas de cada mãe em temáticas afins dos domínios da escala de Zarit. Ao ler as respostas organizadas por domínio os autores relacionaram trechos delas com cada item daquele domínio, a fim de atribuir respostas para cada item. Feito isso, o próximo passo foi atribuir pontuação de cada resposta de acordo com a escala likert , conforme o sistema de pontuação apresentado no quadro 1 .
A estatística descritiva foi utilizada para caracterizar os aspectos sociodemográficos e econômicos da díade mãe-criança com a utilização de frequências absolutas e relativas. O teste t de Student pareado para amostras com distribuição normal foi utilizado para verificar a variação das médias dos domínios da sobrecarga do cuidador em variáveis numéricas. A significância estatística foi dada pelo valor de p<0,05. A análise estatística foi processada pelo software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 20.0. Para apresentar os dados QUAL e QUAN integrados foi utilizada a técnica joint display , uma única figura que dispõe os principais resultados QUAL e QUAN e as inferências elaboradas a partir da integração dos dados (meta-inferência).(18) O estudo foi aprovado pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa. As participantes escolheram pseudônimos para manter o anonimato, respeitando as Resoluções n° 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) estava disponível na primeira página do questionário online, aquelas que aceitaram participar da pesquisa indicaram entre contato por WhatsApp ou email como o melhor meio para receberem o TCLE assinado pelo pesquisador responsável e pesquisadora orientadora, sendo assim feito. Para aquelas que não aceitaram participar da pesquisa o questionário foi encerrado imediatamente.
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas éticas nacionais de publicação e recebeu o número do parecer do comitê de ética 3.990.246 (CAAE 30757920.6.0000.0053).
Resultados
A tabela 1 apresenta as características sociodemográficas e econômicas das mães e crianças.
Caracterização sociodemográficas e econômicas das mães-crianças com SCZ do Amazonas, Bahia e Paraíba (n=44)
Em seguida, tem-se as categorias dos resultados: “Mudanças das atividades realizadas pela díade mãe-criança e seus efeitos” e “Repercussões da pandemia da COVID-19 nos níveis de sobrecarga do cuidador em mães de crianças com SCZ”.
Mudanças das atividades realizadas pela díade mãe-criança e seus efeitos
A figura 1 ilustra o joint display que apresenta a modificação das atividades da mãe-criança e outras repercussões como problemas no sono, abdicação de projetos pessoais e impossibilidade de compartilhamento do cuidado da criança com pessoas da rede de apoio.
Repercussões da pandemia da COVID-19 nos níveis de sobrecarga do cuidador em mães de crianças com SCZ
Os resultados QUAL e QUAN corroboram para elevação dos níveis de sobrecarga das mães durante a pandemia, observado pelo aumento dos valores médios em cada grupo (antes versus durante) e pelos depoimentos das mães apresentados no joint display a seguir ( Quadro 2 ). Cabe destacar que em todos os pares de comparação verificou-se significância estatística (p<0,05), evidenciando que houve diferença na variação dos escores de sobrecarga do cuidador em mães intragrupos e intergrupos antes e durante a pandemia.
Domínios da escala de sobrecarga do cuidador, antes e durante a pandemia da COVID-19, em mães de crianças com SCZ do Amazonas, Bahia e Paraíba (n=44)
O escore global da sobrecarga do cuidador, representado pela soma dos quatro domínios, apresentou média maior durante a pandemia, com diferença entre as médias de 7,66 (antes=44,38±10,47 e durante=52,04±9,12)(t* ( p-value )†= -12,629 (0,000)), justificado por dificuldades financeiras e de acesso a alimentos; rompimento das relações interpessoais; perda do controle sobre a situação de saúde da criança; desesperança; e realização dos cuidados de reabilitação e atividades escolares das crianças no ambiente doméstico, a fim de mitigar o retrocesso ou estagnação do desenvolvimento cognitivo e intelectual.
Discussão
Por conta do distanciamento físico não foi possível utilizar outras técnicas de coleta de dados, condição que impossibilitou a condução da coleta de dados pelos pesquisadores, configurando-a como limitação do estudo.
Pela dependência total da criança com SCZ à mãe, é possível considerar a mãe como a pessoa com maior possibilidade de transmissão da COVID-19 à criança. Este aspecto justifica a prestação de serviço laboral remoto pela mãe e prioridade aos cuidados de prevenção para preservar a integridade da díade mãe-criança com SCZ em situações pandêmicas.
Os resultados apontam para a implementação de Planos de Cuidados de Enfermagem que diminuam a sobrecarga de cuidado materno, auxiliem na reorganização da rotina diária, estimulem o compartilhamento de tarefas entre familiares e rede de apoio social, beneficiem a qualidade do sono e fomentem ações de sociabilidade da criança. Cabe sugerir que estudos científicos investiguem as atividades que sobrecarregam a mãe nesse período, assim como as prováveis consequências sobre desenvolvimento motor, intelectual e social da criança, resultantes da descontinuidade da assistência decorridas da pandemia.
O perfil socioeconômico das participantes confirma achados de estudos(15,19) que evidenciaram a exposição do Zika vírus em grupos com maior vulnerabilidade, a exemplo da população negra e que vivem com baixos níveis de IDH. São pessoas que residem em áreas com condições sanitárias precárias, nas quais se registra ausência de rede de água potável, escassez no abastecimento diário de água, sem cobertura de rede de esgoto, sem remoção regular de resíduos, dentre outras condições que expõe mais as pessoas ao novo coronavírus.(9)
Com a COVID-19 a preocupação das mães reside, primeiramente, na possibilidade do contágio da criança, de si e outros moradores do domicílio, de modo que resulte no óbito do seu filho(a) ou restrinja seu cuidado com a criança que é totalmente dependente dela.(20) Portanto, uma provável contaminação das mães por COVID-19 significa também o contágio direto da criança, a interrupção da reabilitação domiciliar, única terapêutica voltada ao desenvolvimento da criança que permanece durante a pandemia, ruptura das atitudes cuidativas como higienizar, nutrir, ninar e brincar, pois elas conhecem, praticam e coordenam esses cuidados cotidianamente, além da desestruturação de outros cuidados domésticos que também estão sob sua responsabilidade.(9)
Desse modo, pressupõe-se que a mãe deve ser considerada como a pessoa com maior possibilidade de transmitir a COVID-19 à criança, entendendo que o contágio dela culmina no contágio do (a) filho (a). Nessa condição, elas podem, por exemplo, serem priorizadas nos atendimentos dos serviços de saúde, além de negociar a flexibilidade da sua função e carga horária de trabalho com o empregador, conforme as recomendações de distanciamento físico, diminuindo o risco de contágio da criança. Nesse estudo, supõe-se que 25,4% das mães realizam suas atividades laborais em ambiente extra doméstico, com necessidade de negociar o distanciamento físico com o empregador. Por outro lado, 67,6% dedicam-se às tarefas domésticas e 7% podem trabalhar no domicílio, o que torna-se complexa e exaustiva a construção de uma rotina que englobe atividades laborais, educacionais, recreativas, domésticas, de sono e repouso, cuidado familiar e pessoal.(20)
Concomitante ao medo do óbito da criança, com a suspensão do tratamento de reabilitação, as mães acreditam na estagnação ou retrocesso do desenvolvimento da criança, mesmo realizando a reabilitação no ambiente doméstico conforme exercícios aprendidos junto aos profissionais de saúde.(10) As mães se esforçam para preencher a lacuna causada pela interrupção dos serviços de reabilitação, mesmo não conhecendo o nível de eficiência dos procedimentos de reabilitação realizados por familiares. Portanto, parece existir lacuna do conhecimento entre os níveis de eficiência da reabilitação profissional e doméstica, quando prováveis resultados poderiam ofertar confiança e segurança às mães para cuidar.
É frequente que profissionais de saúde demonstrem procedimentos aos cuidadores e os incentivem a realizarem estimulações no domicílio. Contudo, essa única estimulação realizada pela mãe gera apreensão e insegurança quando dessas manobras de forma solo, devido ao pouco conhecimento e domínio para avaliar os estímulos e o desenvolvimento neuropsicomotor da criança.
As possibilidades de interação por meio remoto entre terapeutas, educadores e familiares podem auxiliar as mães em sua jornada domiciliar, bem como oferecer suporte para a realização das atividades escolares, já que 88,6% das crianças desse estudo encontram-se em idade escolar. Contudo, infere-se que tal acompanhamento pode encontrar limites para ser executado pela mãe-criança devido ao acesso limitado a aparelhos eletrônicos e internet, visto que 88,7% delas apresentam renda familiar menor que R$ 1.500,99 reais e podem conviver com dificuldades para prover acesso virtual.
Além disso, recomenda-se que crianças mantenham contato com colegas da escola, educadores e amigos, seja por via virtual, ou envio de cartas, desenhos e pinturas, para manter a sociabilidade e o vínculo afetivo.(21) Do contrário, o isolamento prolongado das crianças através da suspensão das atividades escolares e confinamento domiciliar podem resultar em prejuízos na saúde física e mental delas.(19) Visto que a sociabilidade se configura como processo essencial para o desenvolvimento infantil, a pouca interação face a face pode repercutir em limitações na formação da consciência, pois através das múltiplas interações sociais as crianças se constituem sujeitos.
Mães de criança com SCZ, antes mesmo da pandemia, já conviviam com rotina exaustiva e sobrecarga do cuidado,(10) resultando em elevados níveis de depressão,(19) ansiedade,(22) sofrimento mental,(20) fadiga e níveis diminuídos de satisfação com a vida.(23) Assim, a intensificação dos cuidados de higiene, a exigência da realização dos cuidados de reabilitação e a realização das atividades escolares desenvolvidas em domicílio, sem apoio da rede social, tende a intensificar o sofrimento físico e psicoemocional dessas mulheres durante a pandemia.
Essas repercussões e adaptações no cotidiano das mães são agravadas pelo volume dos noticiários sobre o número de casos e óbitos, circulação de notícias falsas,(24) além da escassez de informações sobre a COVID-19 e o cuidado da criança com deficiência, conjuntura que dificulta a escolha de condutas a serem assumidas pela mãe,(23) deixando-a insegura. Do contrário, sabe-se que receber informações precisas sobre as formas de transmissão e prevenção do contágio da COVID-19 está associada a menores níveis de ansiedade, depressão e estresse.(25,26)
Estudo indica que, durante a pandemia, as mulheres com problemas de saúde prévios pertencem ao grupo de pessoas com níveis significantes de ansiedade, depressão e estresse, resultando em sofrimento psíquico,(27) portanto, acredita-se que as participantes deste estudo podem conviver com tais problemas de saúde. Ademais, elas perdem o modo de interação social face a face,(26) veem sua renda familiar diminuir e a rotina ser ajustada.(27) Outro estudo também aponta para a relação diretamente proporcional entre níveis de depressão e sobrecarga de cuidados em mães de crianças com déficit no desenvolvimento, além de relação inversamente proporcional com a qualidade do sono.(28) Portanto, com o aumento da sobrecarga de cuidados durante a pandemia, as mães de crianças com SCZ podem sofrer com sintomas depressivos e má qualidade do sono.
A análise das médias dos domínios da escala de sobrecarga do cuidador evidenciou aumento durante a pandemia, apontando para a elevação da sobrecarga da mãe. Os itens do domínio “impacto na prestação de cuidado” indicam elevação da ansiedade, receio pelo futuro e restrição da privacidade das mães. O segundo domínio “relação interpessoal” sugere isolamento da mãe-criança devido às dificuldades para acionar pessoas que compõem sua rede de apoio social, além da redução da renda familiar. No terceiro domínio, o principal item que pode elevar as expectativas do cuidar é a perda do controle da própria vida pela cuidadora. No quarto domínio, denominado de “percepção da autoeficácia”, notou-se que o aumento da sobrecarga pode estar associado ao medo do adoecimento pelo novo coronavírus. O aumento dessa percepção pode ser de natureza psicológica e culminar em desfechos negativos para a saúde mental, como ansiedade e depressão.(26)
Para mitigar as repercussões do distanciamento físico, as mães necessitam se sentir seguras mediante demonstração de atenção, carinho e afeto dos familiares, possibilitada por contatos telefônicos ou videochamadas.(29) Além disso, os profissionais podem contribuir ofertando orientações terapêuticas de forma remota, a exemplo de técnicas de massoterapia e meditação, prover grupos de autoajuda online, estimular o autocuidado, solidariedade entre as pessoas, apresentar informações atualizadas e confiáveis, e estratégias comprovadas no enfrentamento das repercussões psicossociais em outros eventos epidêmicos.(30)
Conclusão
A pandemia da COVID-19 repercutiu no incremento de novas tarefas de cuidado com a criança e ambiente doméstico, bem como elevou os níveis de sobrecarga de cuidado das mães, o que pode resultar em alterações importantes na saúde física e mental delas. Além disso, conviver com dificuldades financeiras, desorganização da rotina e má qualidade do sono pode culminar em desequilíbrio do processo saúde-doença.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Jul 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
02 Fev 2021 -
Aceito
23 Mar 2021