Resumo
Objetivo Analisar o perfil sociodemográfico de pessoas homossexuais, bissexuais, travestis e transgêneros vítimas de violência interpessoal em São Paulo – SP, o contexto das ocorrências, as características dos agressores e os encaminhamentos feitos às vítimas.
Métodos Estudo transversal desenvolvido por meio da análise das notificações de casos suspeitos ou confirmados de violência interpessoal no período de 2016 a 2020 na cidade de São Paulo, contidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação. A coleta foi feita entre fevereiro e março de 2021. Para análise estatística, foram empregados o teste exato de Fischer e o método de Holm.
Resultados Foram obtidas 4.828 notificações de violência contra homossexuais, bissexuais, travestis e pessoas transgênero. A faixa etária mais acometida foi entre 20 e 34 anos (48,2%), de cor de pele parda ou preta (51,5%) e com ensino médio completo (24,7%). Os agressores foram homens (64,5%) com idade entre 25 e 59 anos (56,3%). Homens homossexuais tiveram maior associação à violência física, enquanto mulheres homossexuais e bissexuais sofreram maior violência psicológica (p<0,001). Travestis e mulheres transgênero com menor escolaridade foram mais vitimizadas. Houve associação da violência física ao sexismo (p<0,003) e da violência psicológica à homofobia ou transfobia (p=0,016). Predominaram encaminhamentos à rede de assistência à saúde e profilaxia às Infecções Sexualmente Transmissíveis.
Conclusão Adultos jovens, pardos ou negros, com ensino fundamental ou médio foram as principais vítimas. As agressões ocorreram na residência ou em via pública, provocadas por homens mais velhos do que as vítimas, motivados por sexismo, homofobia/transfobia ou conflitos geracionais. Houve associação ao consumo de álcool pelo agressor.
Homossexualidade; Bissexualidade; Pessoas transgênero; Sistemas de informação em saúde; Violência
Resumen
Objetivo Analizar el perfil sociodemográfico de personas homosexuales, bisexuales, travestis y transgénero víctimas de violencia interpersonal en São Paulo, SP, el contexto de los episodios, las características de los agresores y las orientaciones dadas a las víctimas.
Métodos Estudio transversal llevado a cabo mediante el análisis de las notificaciones de casos sospechosos o confirmados de violencia interpersonal en el período de 2016 a 2020 en la ciudad de São Paulo, incluidos en el Sistema de Información de Agravios de Notificación. La recopilación se realizó entre febrero y marzo de 2021. Para el análisis estadístico, se empleó la prueba exacta de Fisher y el método de Holm.
Resultados Se obtuvieron 4.828 notificaciones de violencia contra homosexuales, bisexuales, travestis y personas transgénero. El grupo de edad más afectado fue entre 20 y 34 años (48,2 %), de color de piel parda o negra (51,5 %) y con educación secundaria completa (24,7 %). Los agresores fueron hombres (64,5 %), entre 25 y 29 años de edad (56,3 %). Hombres homosexuales tuvieron una mayor asociación a la violencia física, mientras que mujeres homosexuales y bisexuales sufrieron mayor violencia psicológica (p<0,001). Travestis y mujeres transgénero con menor escolaridad fueron más victimizadas. Hubo asociación de la violencia física al sexismo (p<0,003) y de la violencia psicológica a la homofobia o transfobia (p=0,016). Las orientaciones predominantes fueron derivación a la red de atención a la salud y profilaxis para las infecciones de transmisión sexual.
Conclusión Adultos jóvenes, pardos o negros, con educación primaria o secundaria fueron las principales víctimas. Las agresiones ocurrieron en la residencia o en la vía pública, provocadas por hombres mayores que las víctimas, motivados por sexismo, homofobia/transfobia o conflictos generacionales. Hubo asociación al consumo de alcohol por parte del agresor
Homossexualidad; Bissexualidad; Personas transgénero; Sistemas de información em salud; Violencia
Abstract
Objective To analyze the sociodemographic profile of homosexual, bisexual, transvestite and transgender people victims of interpersonal violence in São Paulo - SP, the context of the occurrences, the aggressor characteristics of and the referrals made to the victims.
Methods This is a cross-sectional study developed through the analysis of notifications of suspected or confirmed cases of interpersonal violence, from 2016 to 2020, in the city of São Paulo, contained in the Notifiable Diseases Information System. Data collection was carried out between February and March 2021. For statistical analysis, Fischer’s exact test and Holm-Bonferroni method were used.
Results A total of 4,828 notifications of violence against homosexual, bisexual, transvestite and transgender people were obtained. The most affected age group was between 20 and 34 years old (48.2%), with brown or black skin color (51.5%) and with complete high school (24.7%). The aggressors were men (64.5%) aged between 25 and 59 years (56.3%). Homosexual men were more associated with physical violence, while homosexual and bisexual women suffered greater psychological violence (p<0.001). Transvestites and transgender women with less education were more victimized. There was an association between physical violence and sexism (p<0.003) and psychological violence with homophobia or transphobia (p=0.016). Referrals to the health care network and sexually transmitted infections prophylaxis predominated.
Conclusion Young adults, brown or black, with elementary or high school education were the main victims. The assaults took place at home or on a public road, provoked by men older than the victims, motivated by sexism, homophobia/transphobia or generational conflicts. There was an association with alcohol consumption by the aggressor.
Homosexuality; Bisexuality; Transgender persons; Health information systems; Violence
Introdução
Em diferentes períodos e em várias culturas, homossexuais, bissexuais e pessoas cuja identidade de gênero contrariava o sexo biológico, foram associadas à algumas doenças e ao pecado, sendo repudiadas, segregadas e sofrendo violência. Todavia, ao longo das últimas três décadas, notam-se avanços, mesmo que moderados, em vários países, sobre os direitos de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Travestis (LGBT), com ampliação gradual de políticas públicas, aumento de visibilidade e ações de promoção à saúde de forma mais coerente às suas demandas. Tais aspectos supostamente reduziriam a violência interpessoal, que pode ser entendida como agressão, de diferentes naturezas, contra outrem afetando sua integridade física, psíquica, social ou moral e/ou de seus bens e valores, ocasionada por conhecido ou não.(1-3)
Estudos internacionais(4,5) apontam que políticas públicas apropriadas, aumento do empoderamento das pessoas e respeito à diversidade sexual são elementos construtivos para melhoria da qualidade de vida de pessoas homossexuais, transgênero e demais membros da sociedade, refletindo em redução de agravos, como violência interpessoal de qualquer tipificação. Para isso, comunidades, estados e países devem lançar mão de recursos como a vigilância em saúde para monitorar atentamente os casos de violência e implementar ações de forma ágil e coordenada com outros setores (como educação e segurança pública), a fim de prevenir e mitigar esse agravo, além de acompanhar as vítimas para controle de danos posteriores.
No Brasil, houve preocupação com a pauta LGBT de forma especial entre 2003 e 2016, sendo promovidos avanços no âmbito da saúde e da educação, com o objetivo de suprir as demandas que os movimentos sociais exigiam para melhorar e reconhecer a vida dessas pessoas. Destacam-se a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a criação de políticas estaduais e nacional de saúde integral de LGBT, além de avanços em relação aos direitos sexuais e reprodutivos e da homoparentalidade. Esse período, apesar de sucinto, mostrou resultados positivos, porém não sustentáveis, em relação às políticas públicas, permitindo inclusive retrocessos recentes. A ascensão de governos liberais e conservadores provocou descontinuidades nas conquistas e afetou direitos fundamentais desta população além de fomentar a violência de forma pública por meio de incitações e discursos de alguns dirigentes. Somado a isso, a falta de recursos e de institucionalização dessas políticas as tornou pouco duradouras e efetivas ao longo dos governos seguintes, sendo necessárias políticas novas e efetivas.(1-3)
Pessoas LGBT sofrem inúmeras violências intencionais na forma de agressões morais e físicas, ameaças ou vias de fato ao longo de sua vida, caracterizando a violência interpessoal. A violência contra essa população geralmente é motivada por homofobia, que é uma aversão ou rejeição a homossexuais, também estendida para bissexuais e pessoas transgênero. Essa hostilidade pode estar presente em instituições, famílias, comunidades, espaços públicos e setores privados.(2)
Estudos apontam aumento de crimes de intolerância e de ódio contra essa população, que levam à danos pessoais, coletivos e sociais. Dentre as implicações, incluem-se a morbidade e sequelas, a mortalidade e mesmo os custos associados a tratamentos e reabilitação das vítimas, incluindo o de cunho psicossocial.(5,6)
Segundo o Ministério da Saúde, caso suspeito ou confirmado de violência doméstica/intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas contra mulheres e homens em todas as idades é de notificação compulsória e deve ser feito rigorosamente pelos profissionais de saúde que atendem as vítimas.(7)Os profissionais de saúde, investidos de seus conhecimentos técnicos, devem preencher a ficha de notificação de violência interpessoal e autoprovocada, ainda que não haja confirmação da violência. Por meio dessa determinação, os casos ocorridos devem ser registrados, para posterior elaboração de indicadores.(7,8)
Este estudo se propõe a responder as seguintes indagações: Qual o perfil sociodemográfico de pessoas LGBT vítimas de violência interpessoal, atendidas por serviços de saúde em um grande centro urbano, as características dos agressores e os encaminhamentos realizados? Espera-se que o conhecimento detalhado possa balizar diretrizes para planejamento de programas e implementação de políticas de prevenção e controle desse agravo.
Assim, o objetivo deste estudo foi analisar o perfil sociodemográfico de pessoas LGBT vítimas de violência interpessoal atendidas por serviços de saúde de São Paulo – SP, o contexto das ocorrências, as características dos agressores e os encaminhamentos feitos às vítimas.
Métodos
Trata-se de pesquisa exploratória, descritiva, com delineamento transversal,(9) norteada pela ferramenta Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE).(10)
A coleta de dados foi feita por meio das informações apontadas nas Fichas de Notificação de Casos Suspeitos ou Confirmados de Violência Interpessoal do Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Foram analisadas variáveis como o tipo de violência ocorrida, os perfis da vítima e do agressor e as características da ocorrência e da lesão mais relevante (quando houve). Além disso, também foram coletadas informações sobre os encaminhamentos realizados pelos profissionais que atenderam as vítimas.
Todas as informações foram lançadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação por unidades de saúde notificadoras, como Vigilância Epidemiológica, hospitais, unidades de assistência médica ambulatorial e demais serviços públicos de Atenção Primária, Secundária ou Terciária. Posteriormente, os dados foram disponibilizados pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo por meio do TabNet, programa desenvolvido pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde e disponibilizado pela internet sem restrições de acesso.
Como critérios de inclusão, foram utilizadas as notificações de casos suspeitos ou confirmados de violência interpessoal contra pessoas que se identificam como homossexuais, bissexuais, travestis, homens transgênero e mulheres transgênero, atendidas em unidades de saúde públicas ou privadas de São Paulo (SP). Pontua-se o uso do termo “travesti” foi adotado em virtude desta denominação constar na ficha de notificação compulsória e tendo em vista que algumas mulheres transgênero optam por se identificarem assim. Nos casos de homens transgênero não há termos alternativos no instrumento. Foram excluídas notificações de casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada e tentativa de suicídio. Não foi possível a separação dos casos ainda suspeitos dos confirmados de violência interpessoal, pois a ficha de notificação é a mesma para ambos, além de o sistema TabNet também não permitir tal distinção.
A capital de São Paulo foi escolhida por se tratar da cidade mais populosa do Brasil e com grande diversidade social e cultural. Além disso, os dados de notificação dessa cidade são disponibilizados no TabNet para consulta pública de forma mais veloz do que pelo sistema nacional, tendo em vista as dimensões e as características variadas de acesso ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação dos estados e municípios brasileiros. Na ocasião da busca, o sistema nacional possuía dados tabulados até o ano de 2017, enquanto o da capital de São Paulo apresentava dados de 2020 já disponíveis.
O período delineado para este estudo foi das notificações de casos de violência efetuadas entre os anos de 2016 a 2020. As notificações de violência anteriores à 2016 eram lançadas em outro sistema, sendo só a partir desta data digitadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Os dados do ano de 2021 ainda não se encontravam acessíveis para análise. A coleta das informações ocorreu entre fevereiro e março de 2021, e a tabulação foi feita com uso do programa Excel 2007.
Realizou-se a análise estatística univariada com uso dos softwares Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 21.0, e o R, versão 4.0.2. Como o conjunto de dados é constituído de variáveis categóricas, foi realizada uma análise descritiva dos dados a partir da apuração de frequência simples absoluta e percentual. Para verificar as associações entre tipo de violência e as outras variáveis (motivação da violência, meio de agressão, se ocorreu violência sexual, local de ocorrência, sexo do autor da agressão, ciclo de vida do agressor, encaminhamento, faixa etária, raça, escolaridade, situação conjugal e deficiência), foram realizados o teste do qui-quadrado ou o teste exato de Fisher. Foi considerado o nível de significância de 5% (α = 0,05). Para a violência física, foram realizados o teste de igualdade de proporção, para os casos de significância, e o teste de comparações múltiplas via método Holm, para verificar em qual par de categorias de alguma variável avaliada existia a diferença de proporções. O mesmo foi feito para violência sexual e psicológica. Nos casos de pouca frequência de violência física com alguma categoria de uma variável, essa categoria foi desconsiderada nas comparações das proporções. O mesmo foi feito para as violências psicológica e sexual.
Foram respeitados os princípios éticos da pesquisa. Por se tratar de estudo coletado em base de dados de domínio público, sem restrição de acesso, não houve necessidade de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme normas internacionais e da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
Foram notificados 4.828 casos de pessoas LGBT que sofreram alguma forma de violência no período de 2016 a 2020 em São Paulo. De acordo com a tabela 1, 55,4% (2.675) eram do gênero feminino, porém, na análise estatística, houve proporcionalidade entre os gêneros (valor de p <0,005). A faixa etária mais acometida foi de adultos jovens, entre 20 e 34 anos (48,2%; 2.326).
De acordo com as notificações, as pessoas que se identificaram como pardas e pretas somaram 51,5% (2.491) dos casos de violência interpessoal. Em relação à escolaridade, 24,7% (1.194) das vítimas tinham ensino médio completo. A minoria (0,5%; 23) se afirmou analfabeta. Na tabela 2, nota-se que, em algumas características dos registros, as notificações podiam ter mais de uma resposta, como, por exemplo, nos tipos de violência e os meios de agressão. O tipo de violência mais comum foi a física, com 76,3% (3.683), acompanhada da psicológica/moral, com 32,6% (1.576), e da sexual, com 17,7% (854). O meio de agressão mais empregado foi a força corporal ou espancamento, com 64,4% (3.110), seguida, em menor número, pelo uso de objeto perfurocortante 9,9% (477).
Em relação aos encaminhamentos realizados (podendo ser mais de um), evidenciou-se que cerca de 83,0% (4.008) das vítimas foram encaminhadas para a rede de saúde (Unidade Básica de Saúde, hospital especializado ou outros), 28,6% (1.383) para outras delegacias e 11,2% (541) para a rede de atendimento à mulher. A análise estatística evidenciou diferenças de proporções do tipo de violência, da orientação sexual e da identidade de gênero. A violência física esteve associada à orientação homossexual e pessoas do gênero masculino (valor de p <0,001), tendo nível de significância de 5%. Todavia, pessoas do gênero feminino de orientação homossexual e bissexual apresentaram maior associação à violência psicológica ou moral (valor de p <0,001). Em relação à faixa etária, as formas de violência física e psicológica estiveram associadas a diferentes momentos do ciclo vital, com maior significado entre 15 e 64 anos. Já a violência financeira foi maior em pessoas do gênero feminino nas faixas etárias de 20 a 34 anos e 50 a 64 anos (valor de p <0,001). Nos casos de violência sexual, a proporção de homossexuais, bissexuais e mulheres transgênero manteve-se similar, especialmente quando as vítimas eram da faixa etária de 20 a 34 anos (valor de p <0,005). Na variável raça/cor, houve maior associação de violência contra pessoas pardas em todas as orientações sexuais ou identidades de gênero (valor de p <0,001), com elevada frequência nos casos de violência física, quando comparada às demais. Apesar da frequência absoluta de violência ser maior entre pessoas com ensino médio, no teste exato de Fischer encontrou-se maior associação estatística entre pessoas com ensino fundamental completo e incompleto (quinta a oitava série do ensino fundamental), especialmente entre mulheres transgênero e travestis (valor de p <0,001). As principais motivações de violência contra homossexuais, bissexuais, travestis e pessoas transgênero foram homofobia e/ou transfobia (10,3%; 496) e sexismo (9,8%; 474), além de outras motivações, que somaram 23% (1.112). Nas comparações múltiplas pelo método de Holm, verificaram-se diferenças nos tipos de violência. Nos casos de violência física, houve associação estatística ao sexismo (valor de p <0,003), enquanto na violência psicológica, além da motivação por homofobia e/ou transfobia, foi evidenciado que conflitos geracionais podem ser fatores causais do evento (valor de p =0,016). Verificou-se distinção nas proporções de violência física entre os meios de agressão: força corporal/espancamento e todas as outras categorias (valor de p <0,001). Na realização dos testes de igualdade de proporções, houve diferença entre as dimensões de violência sexual envolvendo estupro e exploração sexual (valor de p <0,001). Nas comparações múltiplas, notou-se que os procedimentos realizados em casos de violência sexual foram predominantemente voltados à profilaxia ao HIV/Infecções Sexualmente Transmissíveis em relação às demais ações (valor de p <0,05). Nos casos de violência física, os autores desconhecidos são proporcionalmente distintos dos cônjuges, ex-companheiros ou familiares. Porém, a violência psicológica, a sexual e os casos de tortura possuem maior proporção quando o agressor é familiar, do gênero masculino, mais velho do que a vítima, instigado por conflitos geracionais e sexismo (valor de p <0,005). A suspeita do consumo de álcool pelo autor da violência também foi frequente nas notificações compulsórias, com 32% (1.554). Identificou-se distinção nas proporções de violência física e sexual entre os encaminhamentos: rede de saúde e quase todos os outros encaminhamentos, exceto outras delegacias (valor de p <0,001). Em relação às demais formas de violência, os encaminhamentos seguiram características semelhantes (valor de p <0,05).
Discussão
Este estudo possui como principais limitações o risco de perda de algumas informações, levando-se em conta a possibilidade de inclusão de notificações tardiamente, em casos de violências que ainda estavam sob investigação epidemiológica durante o período de coleta e dos riscos de incorreções no preenchimento das fichas de notificação compulsória por parte dos profissionais de saúde, dentre elas as limitações decorrentes da autoidentificação das vítimas em relação à algumas variáveis, como raça/cor e identidade de gênero. Outras potenciais limitações são a regionalidade dos fatos, podendo haver divergências de achados em outras capitais ou cidades com perfis socioeconômicos diferentes, e da investigação não ter se debruçado sobre a análise comparativa da violência antes e após decisão do Superior Tribunal Federal Brasileiro que, em 2019, igualou as atitudes discriminatórias, preconceituosas e agressões contra pessoas LGBT ao crime de racismo. Todavia, as limitações não inviabilizam os achados, pois trazem informações importantes sobre as características da violência interpessoal contra essa população, ainda escassa na literatura.
A violência contra esta população parece ser um fenômeno frequente e comum, que atravessa tempos e localidades. A própria busca do autoconhecimento da identidade sexual, da identidade de gênero e dos desafios da juventude e início da idade adulta são fatores que podem provocar sofrimento àqueles que não se encaixam no modelo hetero e cisnormativo. Somado a isso, a violência interpessoal parece ser mais comum contra pessoas na faixa etária da juventude, momento da vida em que muitos valores e afetos estão em construção e podem ser influenciados pela ação violenta.
Estudo norte-americano(11) aponta que a faixa etária entre 12 e 29 anos é extremamente delicada para pessoas com orientação homossexual, bissexual ou com identidade de gênero diferente do sexo biológico. A pesquisa, desenvolvida com 2.209 pessoas, apontou elevada taxa de suicídio nessa população, possivelmente associada a sofrimento psíquico duradouro. Apesar de haver distinções entre os grupos (homossexuais masculinos, homossexuais femininos, bissexuais e pessoas transgênero), o estudo conclui que jovens LGBT apresentam maior risco específico para o suicídio do que os heterossexuais, cabendo esforços para minimizar situações de violência que potencializem danos psíquicos neste momento do ciclo vital.
Estudo nacional que avaliou as notificações de violência contra pessoas LGBT entre 2015 e 2017 apontou que os casos de agressões foram mais frequentes contra pessoas de menor escolaridade (ensino fundamental incompleto ou completo).(12) Todavia, a magnitude territorial do Brasil e as grandes diferenças de acesso à educação podem justificar esse achado. Já capitais como São Paulo, com uma maior rede de ensino escolar, podem ter populações com média de anos de estudo maiores, justificando a diferença dos achados desta pesquisa. Destaca-se, porém, que mulheres transgênero e travestis enfrentam outra realidade. Mesmo em grandes centros urbanos, abandonam precocemente os estudos, o que está intimamente associado às situações de bullying ou violência institucional.(13)
Outra informação importante identificada na análise dos dados tratou-se da maior prevalência do agravo contra pessoas pretas e pardas (51,5%), assim como encontrado em estudo realizado no interior do nordeste brasileiro(1) e outro nacional(12) em que ambos identificaram maior vitimização entre pessoas com cores de pele parda e/ou preta. Vale pontuar que a cor de pele descrita na ficha de notificação compulsória é a autodeclarada, porém pesquisadores têm se debruçado frequentemente sobre as diferenças entre a cor de pele autodeclarada e a percebida por outros. Em virtude de aspectos culturais e sociais variados, no Brasil encontram-se pessoas pardas que comumente se autodeclararem brancas.(14,15) Assim, pode-se supor que o número de pessoas pretas e pardas vítimas de violência pode ser ainda maior. O racismo estrutural, as desigualdades sociais e aspectos históricos de distinção de classes por meio da cor de pele podem ser fatores que vulnerabilizam pessoas pardas e pretas às agressões.(15,16)
A violência física como sendo a mais perpetrada contra pessoas LGBT é um indicador de risco elevado à saúde dessa população. Pesquisadores equatorianos(17) apontam que uma das formas de retaliação social àquilo que se toma por “diferente” é a agressão física, que pode incluir uso de força corporal, armas de fogo ou brancas e espancamento, dentre outros meios. A associação à agressão psicológica ou moral pode ser danosa à vida das vítimas, com potenciais danos ou sequelas biopsicossociais.
Além da violência física e psicológica, pessoas do gênero feminino também estiveram mais associadas à violência financeira, e pessoas mais jovens estiveram associadas à violência sexual. Estudos destacam que pessoas LGBT jovens e mulheres são mais vulneráveis à múltiplas formas de violência, associadas intimamente ao sexismo, sugerindo que o fenômeno seja melhor atendido em políticas públicas de prevenção e também em medidas de controle da violência associada ao gênero.(17,18)
A análise dos dados sobre o perfil das vítimas de violência interpessoal aponta para interseccionalidade entre raça/cor, pobreza e gênero como geradora de iniquidades e maior vulnerabilidade individual e programática. O conceito de vulnerabilidade aponta que alguns fenômenos em saúde precisam ser compreendidos de forma muito mais ampla do que sua associação à fatores de risco ou condições causais.(19) No caso da violência contra a população do estudo existem aspectos que se inter-relacionam como a baixa formação educacional das vítimas, a vivência do preconceito quanto a orientação sexual e/ou identidade de gênero, da cor de pele parda ou preta e a dificuldade de implementação de políticas protetivas e de garantias de direitos pelo Estado. Estes elementos se somam e geram condições favoráveis para a perpetração de abusos.(20)
As agressões cometidas por desconhecidos foram comuns, especialmente em vias públicas. Lamentavelmente, a maioria das situações violentas ocorreu no domicílio das vítimas, tendo sido cometida por familiares, cônjuge ou ex-companheiros. É importante destacar que a violência doméstica é uma das formas mais frequentes entre diversas populações. No caso de pessoas LGBT esse tipo de violência é prática ainda mais comuns, por vezes perpetuadas por longo tempo.
A violência decorrente de homofobia e/ou transfobia pode ser uma forma de controle familiar à orientação sexual, “afetações” e pelo julgamento do outro como inferior, ficando clara a noção de relações de poder entre o agressor e a vítima.(20,21) Tais relações podem ser também justificadas por diferenças de idade ou conflitos geracionais, como os achados deste estudo. Esses conflitos são entendidos como divergências ou desacordos acentuados entre pessoas de faixas etárias distintas, cuja oposição de interesses e valores causam distúrbios nos relacionamentos interpessoais e predispõem às ações violentas.(22)No presente estudo foi identificado elevado número de motivações da violência descritas como “outros(as)” (23%), as justificativas podem estar associadas as limitações do instrumento de notificação ou despreparo dos profissionais notificadores sobre a magnitude do registro detalhado deste dado para o planejamento e implementação de políticas públicas, assim como apontam outros pesquisadores.(1,12)
Assim como em outras pesquisas internacionais,(23,24) o autor predominante das situações de violência foi do sexo masculino. Mundialmente os homens costumam ser os principais agressores de pessoas LGBT. Todavia, países latino-americanos e aqueles com culturas pouco abertas à igualdade entre os gêneros, tendem a ter números maiores de violência contra pessoas entendidas como “diferentes” ou mais frágeis, refletindo um comportamento machista hegemônico altamente prejudicial aos direitos humanos e à igualdade de gênero.(23)
O consumo de álcool pelo agressor também pode ser agente potencializador da violência contra LGBT. Este tipo de consumo costuma levar à diminuição de comportamentos de autocontrole, o que pode desencadear atitudes violentas contra aqueles que, inconscientemente, o agressor prediz como mais frágil, como gays e lésbicas.(20-24) Estudiosos citam que o abuso de álcool causa danos não só a quem o consome, mas às pessoas próximas, aos familiares e à sociedade de modo geral.(25,26)
Assim como em outros estudos,(1,12,27) nos casos de violência sexual, os encaminhamentos feitos pelos profissionais notificadores foram para serviços da rede de assistência à saúde e delegacias. Também se notou que foram implementadas profilaxias contra Infecções Sexualmente Transmissíveis e HIV, porém com baixa adoção de medidas de prevenção à infecção pelo vírus da hepatite B e à contracepção de emergência. A violência sexual expõe a vítima a complicações psicossociais que talvez nunca sejam sanadas. Porém, os riscos biológicos podem ser amplamente diminuídos, caso as medidas tomadas sejam rápida e assertivamente adotadas.
A pesquisa aponta informações novas a respeito do tema, caracterizando violência notificada por profissionais de saúde contra as pessoas LGBT. Contribui para a enfermagem e outras ciências a medida segundo a qual a identificação do perfil sociodemográfico permite a reflexão sobre as maiores condições de vulnerabilidade e permite a implementação de políticas públicas mais assertivas de prevenção e controle da violência.
Conclusão
Pessoas jovens, pardas ou pretas, com escolaridade até o ensino médio foram as principais vítimas de violência interpessoal, especialmente a física, também associada à orientação homossexual e pessoas do gênero masculino. A violência psicológica ou moral esteve associada a pessoas do gênero feminino, homossexuais ou bissexuais. As motivações da violência foram a homofobia e/ou transfobia, além de conflitos geracionais. Os agressores foram do gênero masculino, mais velhos do que a vítima, com relação próxima ou desconhecidos, agindo na própria residência ou em via pública. Situações de violência sexual ocorreram em todas as orientações e identidades sexuais, com maior associação entre bissexuais e mulheres transgênero. Encaminhamentos à rede de saúde foram usuais, com adoção prevalente de medidas de profilaxia às infecções sexualmente transmissíveis e ao HIV, nos casos de violência sexual. Infelizmente, nem todas as situações de violência contra pessoas LGBT são notificadas aos serviços de saúde. Todavia, o registro das notificações compulsórias sobre violência interpessoal se mostra como uma importante ferramenta para traçar o perfil das vítimas e dos agressores, permitir a implementação de políticas públicas de forma efetiva e reduzir a violência estrutural que tanto afeta as necessidades básicas e os direitos humanos, especialmente das minorias sociais.
Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq), processo no. 139015/2020-5.
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Editado por
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Editor Associado (Avaliação pelos pares): Thiago da Silva Domingos (https://orcid.org/0000-0002-1421-7468) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Ago 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
04 Jun 2021 -
Aceito
19 Jan 2022