Open-access Caracterização da produção científica sobre erro no trabalho em saúde

Caracterización de la producción científica sobre error en el trabajo en salud

Resumo

Objetivo  Caracterizar a produção científica nacional e internacional sobre erro no trabalho em saúde no período de 2000 a 2020.

Métodos  Trata-se de revisão integrativa de literatura, de estudos nacionais e internacionais, realizada nas bases MEDLINE, LILACS/BIREME, PubMed e SciELO. Foram encontrados 4164 estudos, sendo 148 incluídos e submetidos a análise de conteúdo temática. As buscas foram realizadas no período de janeiro a março de 2020 e abril de 2021. Os resultados foram sistematizados em três categorias temáticas.

Resultados  Na categoria Características dos estudos sobre erros, evidenciou-se que as categorias profissionais mais frequentes na ocorrência do erro são enfermeiras(os), médicos e farmacêuticos; quanto à Características do erro no trabalho em saúde, os tipos mais relatados são erro de medicação, de diagnóstico e na assistência de enfermagem, incluindo queda de pacientes, flebites decorrentes de cateteres venosos periféricos, ocorrência de úlceras por pressão e extubação de drenos, cateteres e sondas; e no Contexto para a ocorrência do erro, foram identificados elementos individuais e do contexto do trabalho, destacando-se este último.

Conclusão  Evidenciou-se que a ocorrência de erros no trabalho em saúde ocorre em um contexto de precarização do trabalho, com processos de trabalho marcados pela heterogeneidade. A partir da compreensão de que os trabalhadores da saúde erram e que a precarização do trabalho potencializa a ocorrência de erros, faz-se necessário a reorganização dos sistemas de saúde para que sejam reduzidas as oportunidades para o acontecimento de erros e que sejam promovidos os aprendizados quando estes ocorrerem.

Segurança do paciente; Erros de medicação; Erros médicos; Cuidados de enfermagem; Condições de trabalho

Resumen

Objetivo  Caracterizar la producción científica nacional e internacional sobre el error en el trabajo en salud en el período de 2000 a 2020.

Métodos  Se trata de una revisión integrativa de literatura, de estudios nacionales e internacionales, realizada en las bases MEDLINE, LILACS/BIREME, PubMed y SciELO. Se encontraron 4164 estudios y 148 fueron incluidos y sometidos a un análisis temático de contenido. Las búsquedas se realizaron en el período de enero a marzo de 2020 y abril de 2021. Los resultados fueron sistematizados en tres categorías temáticas.

Resultados  En la categoría Características de los estudios sobre errores, se evidenció que las categorías profesionales más frecuentes en la ocurrencia del error son enfermeras(os), médicos y farmacéuticos; con relación a las Características del error en el trabajo en salud, los tipos más relatados son error de medicación, de diagnóstico y en la asistencia de enfermería, incluyendo la caída de pacientes, flebitis resultantes de catéteres venosos periféricos, y ocurrencia de úlceras por presión y extubación de drenaje, catéteres y sondas; y en el Contexto para la ocurrencia del error, se identificaron elementos individuales y del contexto del trabajo, destacándose este último.

Conclusión  Se evidenció que la ocurrencia de errores en el trabajo en salud se da en un contexto de precarización del trabajo, con procesos de trabajo marcados por la heterogeneidad. A partir del entendimiento de que los trabajadores de la salud cometen errores y que la precarización del trabajo potencia la ocurrencia de errores, se hace necesario reorganizar los sistemas de salud para que se reduzcan las oportunidades de que los errores ocurran y que se promuevan los aprendizajes cuando estos ocurran.

Seguridad del paciente; Erros de medicación; Errores médicos; Cuidados de enfermeira; Condiciones de trabajo

Abstract

Objective  To characterize the national and international scientific production on errors in health work from 2000 to 2020.

Methods  This is an integrative literature review of national and international studies, carried out in the MEDLINE, LILACS/BIREME, PubMed and SciELO databases. A total of 4164 studies were found, 148 of which were included and submitted to thematic content analysis. The searches were carried out from January to March 2020 and April 2021. The results were systematized into three thematic categories.

Results  In the category Characteristics of studies on errors, it was evidenced that the most frequent professional categories in error occurrence are nurses, physicians and pharmacists; regarding Characteristics of error in health work, the most reported types are medication, diagnosis and nursing care errors, including patient falls., phlebitis resulting from peripheral venous catheters, occurrence of pressure ulcers and extubation of drains, catheters and probes; and in Context for error occurrence, individual elements and work context were identified, highlighting the latter.

Conclusion  It was evident that error in health work occurs in a context of precarious work, with work processes marked by heterogeneity. From the understanding that health workers make mistakes and that the precariousness of work enhances error occurrence, it is necessary to reorganize health systems so that the opportunities for errors to occur are reduced and that learning is promoted when they occur.

Patient safety; Medication errors; Medical errors; Nusing care; Working conditions

Introdução

O erro, de acordo com a Teoria do Erro Humano, é compreendido como um ato não intencional, próprio da natureza humana, abrangendo todas as ocasiões em que as ações planejadas e executadas não atingem o resultado esperado.(1)

Ainda de acordo com essa teoria, o erro é um fenômeno que se associa, comumente, à realização de tarefas em sistemas complexos e pouco controlados. Ao considerar que o trabalho em saúde se estrutura como um sistema complexo e dinâmico caracterizado pelo consumo de diferentes níveis de tecnologias e por uma intensa relação e interação entre trabalhadores e usuários, determinados contextos podem tornar-se passíveis à ocorrência de erros.

No trabalho em saúde, a ocorrência de erros repercute na imagem e confiabilidade da organização de saúde, eleva os custos dos serviços de saúde e coloca em risco a integridade física e emocional dos pacientes, podendo causar-lhes danos temporários, permanentes e, em situações mais graves, o óbito. Para os trabalhadores da saúde, o erro indica a vulnerabilidade no trabalho precarizado, a depreciação profissional e está frequentemente relacionado a sentimentos de vergonha e culpa, dada a abordagem punitiva adotada pelas organizações e autarquias que regulam o exercício profissional.(2,3)

Cabe destacar que, no contexto da produção dos serviços de saúde, a segurança do paciente e dos trabalhadores e o desenvolvimento do trabalho, em ambiente e em condições seguras, são confrontados com pressões econômicas, pressão de tempo e de produtividade, da concorrência, do tipo de serviço prestado e da política de trabalho da organização. Associam-se, ainda, à pressão provocada pela elevada carga de serviço e pela rígida estrutura hierárquica do processo de trabalho em saúde.(4,5) Deve-se, tendo em vista que o erro no trabalho em saúde deve ser considerado um fenômeno estrutural, este ser examinado com base no contexto de trabalho, nas modificações das estratégias organizacionais, na variabilidade e na multiplicidade de atividades desenvolvidas.

Diante dessa problemática, questiona-se: “O que a produção científica nacional e internacional revela sobre o erro no trabalho em saúde?”. O objetivo do artigo é caracterizar a produção científica nacional e internacional sobre erro no trabalho em saúde no período de 2000 a 2020. A caracterização sobre o erro em saúde pode contribuir para revelar a ocorrência do erro como um fenômeno complexo, sistêmico e questionar a abordagem individual e moral, ainda hegemônica nos serviços de saúde.

Métodos

Trata-se de revisão integrativa da literatura elaborada com base nas seis etapas recomendadas pelo método(6) e obedecendo a um protocolo de busca de artigos estruturados pelos autores com os seguintes passos: elaboração da pergunta norteadora; definição dos critérios de inclusão e exclusão dos manuscritos científicos; análise criteriosa dos resumos dos estudos encontrados; leitura e avaliação dos manuscritos selecionados utilizando o checklist Critical Appraisal Checklist For Interpretive & Critical Research (JBI-QARI); análise e interpretação dos dados encontrados; categorização dos dados e síntese dos estudos.

Os critérios de inclusão foram manuscritos completos, em formato de artigo original, que abordavam o erro no trabalho em saúde, publicados no período de 2000 a 2020 e que apresentassem o resumo em inglês. A delimitação do período de publicação, como critério de inclusão, considerou a publicação do marco científico sobre a temática, o relatório “The is error human”, do Instituto Americano de Medicina, no ano 2000. Foram excluídos manuscritos de revisão de literatura, revisão sistemática e repetidos nas bases de dados. A busca nas bases de dados foi realizada por dois autores, simultaneamente, sendo o período de busca de janeiro a março de 2020 e abril de 2021, incluindo as bases Comprehensive Medline (MEDLINE), Web of Science, Scopus e Literatura Latinoamericana y del Caribe de Información en Ciencias de La Salud (LILACS/BIREME), National Center for Biotechnology Formation (PubMed) e Scientific Electronic Library Online (SciELO).

A estratégia de busca foi composta pela combinação dos descritores Patient safety AND Medication errors OR Medical error. Os descritores estavam disponíveis nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e no Medical Subject Headings (MeSH) no idioma inglês. A busca foi realizada com os termos em inglês, pois, independentemente da língua em que os artigos foram escritos originalmente todos continham resumos em inglês.

O levantamento identificou 4.164 publicações, sendo o corpus do estudo constituído por 148 artigos (Apêndice 1) contidos nas bases de dados MEDLINE, Web of Science, Scopus, LILACS/BIREME, SciELO. O processo de seleção foi constituído por duas etapas. Etapa 1: foram excluídas 165 publicações duplicadas e, após a leitura dos títulos e dos resumos por duas avaliadoras independentes, foram eliminados 3.064 artigos por não apresentarem elementos de associação entre o erro e o trabalho em saúde. Etapa 2: procedeu-se à leitura dos artigos na íntegra com a exclusão de 784 estudos por não atenderem à pergunta norteadora.

A figura 1 mostra a identificação, seleção e processo de inclusão e exclusão dos artigos nesta revisão.

Figura 1
Identificação, seleção e processo de inclusão e exclusão dos artigos

Adotou-se, tendo em vista a análise crítica dos estudos elegíveis, a classificação dos níveis de evidência científica da Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ), que abrange seis níveis: (I) evidências resultantes de metanálise e revisão sistemática; (II) evidências obtidas em ensaios clínicos com randomização; (III) evidências obtidas em ensaios clínicos sem randomização; (IV) evidências de estudos de coorte e de caso-controle; (V) evidências oriundas de revisão sistemática de estudos descritivos e qualitativos; (VI) evidências baseadas em estudo descritivo ou qualitativo,(7)conforme apresentado na tabela 1.

Tabela 1
Evidências baseadas em estudo descritivo ou qualitativo

Nos artigos selecionados, conforme demonstrado na tabela 1, apenas um (0,7%) apresentou o nível de evidência científica II e um (0,7%) artigo apresentou o nível de evidência científica III; 15 (10,10%) artigos apresentaram o nível de evidência científica IV e 131 (88,50%) artigos apresentaram o nível VI. Não foram identificados artigos com nível de evidência I e V.

Após a análise, os achados nos estudos foram organizados em três categorias: Características dos estudos sobre erros, Características do erro no trabalho em saúde e Contexto para a ocorrência do erro. Para a análise dos artigos, foram seguidos os passos da revisão integrativa e, como método, a Análise de Conteúdo Temática. Os dados encontrados foram discutidos com base na literatura científica e na Teoria do Erro Humano proposta por James Reason, respeitando-se os direitos autorais e a integridade das ideias contidas nos artigos.

Resultados

As características dos estudos sobre erros evidenciaram que os artigos foram produzidos em 36 países, sendo o Brasil o país com maior número de publicações (39,19%), seguido dos EUA (10,81%), Irã e Inglaterra, com 5,40% cada um. A América do Sul produziu 43,24% dos estudos nacionais e internacionais identificados na revisão. Os países do continente asiático foram responsáveis por 20,27%, seguido da Europa e países da América do Norte, com 14,87% cada, 5,40% pelos países do continente africano, e 1,35% por países da Oceania. Destaca-se que 70% dos artigos foram publicados no idioma inglês, 23% na língua portuguesa e 7% em espanhol.

A maioria dos artigos sobre erro no trabalho em saúde foram publicados na Revista Brasileira de Enfermagem (nove artigos), na Revista Latino-Americana de Enfermagem (oito artigos), na ACTA Paulista de Enfermagem (sete artigos) e International Journal for Quality in Health Care (cinco artigos), Texto & Contexto Enfermagem e BMC Health Services Research (quatro artigos cada).

Quanto ao período de publicação, verificou-se que o tema obteve destaque nas publicações a partir de 2011, sendo 85,13% publicados no período de 2011 a 2020. O ano de 2020 registrou o maior número de produção científica sobre erro no trabalho em saúde, 25%.

A abordagem predominante foi quantitativa (56,75%) e descritiva (37,16%); acerca do método de análise, 68,24% dos artigos utilizaram análises estatísticas e, quanto à origem dos dados, 29,72% utilizaram documentos como fonte secundária.

Na categoria erro no trabalho em saúde, verificou-se que os lócus de estudo foram hospitais (82,43%), unidades de Atenção Primária à Saúde (6,75%) e ambulatórios (1,35%). O percentual usado como fonte de dados mídia foi 1,35% e os que não tiveram local definido somam 3,78%.

As categorias profissionais predominantes foram enfermeiras(os), que representaram 27,7%, seguidas de médicos (26,8%) e farmacêuticos (9,45%). Dos 148 artigos, quatorze (9,45%) não citaram quais as categorias profissionais participantes dos estudos.

Quanto ao tipo de erro investigado, os mais frequentes foram erros de medicação (89,18%), erros de diagnóstico (5,40%) e erros na assistência de enfermagem (5,40%), que incluem, além de erros relacionados à medicação, queda de pacientes, flebites decorrentes de cateteres venosos periféricos, ocorrência de úlceras por pressão e extubação de drenos, cateteres e sondas. Apenas um artigo teve como foco de análise erro em procedimento cirúrgico.

Em 51,3% dos estudos, os autores levaram em consideração a abordagem individual e/ou sistêmica diante da ocorrência do erro no trabalho em saúde. A abordagem individual e sistêmica esteve presente, concomitantemente, em 16,2% dos artigos. A abordagem individual foi identificada em 18,2% dos artigos analisados e a abordagem sistêmica em 16,8% dos estudos incluídos na revisão, conforme apresentado na tabela 2.

Tabela 2
Tipo de abordagem e elementos do contexto da ocorrência do erro

Sobre os elementos que indicam o tipo de abordagem do erro, os estudos que abordaram o erro de medicação (89,18%) indicavam a abordagem individual e/ou sistêmica e os estudos sobre erro de diagnóstico e erro na assistência de enfermagem apresentavam somente elementos da abordagem individual.

Na categoria contexto para a ocorrência do erro, destacou-se elementos de contexto individuais e sistêmicos, a partir do tipo de erro cometido. Quanto à ocorrência de erros no âmbito individual destaca-se, principalmente, inexperiência da equipe, formação recente, déficit no conhecimento. Já no âmbito sistêmico, o contexto para a ocorrência evidencia os elementos da precarização do trabalho em saúde, ausência de protocolos institucionais e baixa adesão e a implantação de programas de educação permanente.

Nos tipos de erro de diagnóstico, e erro na assistência de enfermagem foram identificados nos estudos apenas os elementos individuais para a ocorrência dos referidos erros, respectivamente, déficit no conhecimento, déficit nas habilidades clínicas, não seguir o protocolo ou diretriz clínica; e, o descuido e omissão por parte das(os) trabalhadoras(es) em enfermagem. Nos erros em procedimentos cirúrgicos não foram identificados os elementos de contexto individuais e sistêmicos.

Discussão

Os estudos concentram-se em quantificar, descrever e estimar a frequência e os tipos de erros decorrentes do cuidado em saúde. Essa abordagem predominante nos artigos, pode indicar que o erro no trabalho em saúde é um objeto difícil de ser investigado, com imersão na prática dos trabalhadores da saúde e no seu cotidiano de trabalho. Um argumento, para tanto, pode ser a predominância da abordagem individual do erro no trabalho, o que torna este fenômeno um tabu nas organizações de saúde, considerando que a cultura de aprender com o erro ainda não tem registro.

Os erros de medicação, nos serviços de saúde, são objeto de preocupação em diversos países. Estudo realizado para identificar e analisar eventos adversos na assistência de enfermagem verificou que 44% dos relatórios de notificação de incidentes ocorridos no local da pesquisa foram erros de medicação.(8)Isto pode ser atribuído ao fato de esses erros serem mais facilmente identificados e, também por apresentarem potencial de danos imediatos ao paciente, sendo mais frequentemente relatados pelos trabalhadores de saúde. Vale destacar que, embora representem um dos tipos de erros habituais nos serviços de saúde, as evidências apontam para a causalidade complexa e multifatorial.(9) Ressalta-se, também, que os erros na terapia medicamentosa incluem diferentes etapas: erros de dispensação, prescrição, transcrição, preparação e administração, o que envolvem diversos profissionais da equipe de saúde e, dentre eles, estão as(os) trabalhadoras(es) em enfermagem, médicos e farmacêuticos.(10)

Observou-se, em estudos produzidos, que o erro mais frequente cometido por trabalhadoras(es) da enfermagem é o erro de medicação envolvendo o processo de administração de medicamentos.(11-16) No entanto, queda do paciente, seguida de erro de medicação, também prevaleceu como incidentes ocorridos nas unidades hospitalares.(17)

Dentre os erros na terapia medicamentosa, a dosagem incorreta prescrita por médico (28%) e a não administração de medicamento pela(o) enfermeira(o) (29%) foram as etapas citadas como erro mais frequente em unidades de terapia intensiva neonatal.(18) Em estudo realizado em um hospital universitário francês e em uma unidade de terapia intensiva nos EUA, identificou-se que os erros de prescrição de medicamentos, cometidos por médicos, estão entre os que mais ocorrem nos serviços de saúde e são considerados graves.(19,20)

De modo geral, as pesquisas sobre erro no trabalho em saúde ocorreram em hospitais. Este cenário é esperado, pois, no contexto hospitalar, os cuidados prestados são tecnologicamente mais densos e de natureza contínua, com múltiplos processos de trabalho, portanto, com maior exposição ao risco de ocorrência de erros. Outro aspecto é que a notificação de erros é uma prática mais habitual no ambiente hospitalar pelas características dos serviços produzidos e por incorporar práticas de segurança do paciente. Registre-se que são poucos e iniciais os estudos que analisaram erros no trabalho em saúde fora do ambiente hospitalar.

Destaca-se também a cultura punitiva frente à ocorrência de erro como tipo de abordagem registrado nos artigos. Um estudo identificou a adoção da abordagem punitiva para as(os) trabalhadoras(es) da enfermagem que erram.(21) Contudo, as considerações das autoras são direcionadas apenas para a segurança do paciente, sem mencionar a necessidade de reorganização estrutural dos serviços de saúde, já que a punição imputada não considera o contexto do trabalho ao qual as(os) trabalhadoras(es) são submetidas(os). Esse tipo de abordagem estimula a sensação de medo da punição e a imposição de culpa nos profissionais envolvidos, sendo, em geral, as contramedidas adotadas para a adequação do comportamento humano.(22)

Entretanto, ressaltam-se alguns estudos que apresentaram abordagem mista (individual e sistêmica) no gerenciamento do erro.(23,24) Isso pode representar um avanço para a mudança de paradigma quando da ocorrência de erros no trabalho em saúde. A cultura punitiva encontra-se em transição, ao passo que os trabalhadores da saúde percebem a finalidade não punitiva da notificação do erro.(25) É importante ressaltar que a busca por culpados e a punição dos trabalhadores não têm impacto na redução dos erros e na implantação de estratégias para preveni-los.

Quanto aos elementos do contexto para a ocorrência do erro, destaca-se a inexperiência da equipe de saúde, registro ilegível de prescrições, uso de abreviaturas, tempo de formação profissional inferior a dois anos, déficit no conhecimento, estresse, distração e profissionais mais jovens, sendo estes fatores relativos a características individuais dos profissionais.(18,25-29)

Já em outros estudos,(30-33) revelou-se a precarização do trabalho. A precarização do trabalho é um sistema político que visa à dominação e à disseminação do medo, criando um contexto de insegurança permanente no trabalhador, submetendo-o à exploração.(28) O processo de trabalho em saúde desenvolve-se em um contexto de precarização, independentemente das particularidades do contexto de cada país, de cada tempo e do lugar. Embora disseminada, a precarização do trabalho não atinge todos os países e todos os trabalhadores do mesmo modo.

Um cenário que revela a influência da precarização na ocorrência do erro foi apontado em estudo, realizado em 44 hospitais psiquiátricos japoneses, que evidenciou que a administração incorreta de medicamentos era comum em unidades com menos enfermeiros(as).(15) Em estudo sobre experiências com erro e suas possíveis causas, em dois hospitais de ensino, foi evidenciado que a causa mais frequente para a ocorrência de erro foi o excesso de horas de trabalho (19%).(31)

Acrescenta-se também um estudo realizado em um hospital brasileiro, que demonstrou que as ocorrências de eventos adversos foram atribuídas à sobrecarga de trabalho, aumentando o número de dias de internação do paciente e o risco de óbito.(32,33)

Os elementos de contexto para a ocorrência do erro podem ainda ter relação com a organização do processo de trabalho em saúde e em enfermagem. A ausência de rotinas e de padrões institucionais permite que a assistência aos pacientes se produza de modo heterogêneo, deixando para cada trabalhador a decisão sobre o que considera adequado e melhor para cada paciente, o que pode condicionar a ocorrência de erros.

A supervisão inadequada das(os) trabalhadoras(es) em enfermagem é um problema apontado. Deve-se considerar que o trabalho em enfermagem se organiza de forma distinta para as diferentes categorias e que a natureza gerencial-assistencial do trabalho da(o) enfermeira(o) é uma característica singular do seu processo de trabalho que, no cotidiano dos serviços de saúde, produz sobrecarga de atividades, dificultando que a enfermeira exerça a supervisão sobre o trabalho da equipe de auxiliares e técnicos em enfermagem.(2)

Outro fator que deve ser considerado é a baixa adesão aos programas de educação permanente nas organizações de saúde. Essa baixa adesão associa-se ao cenário de precarização do trabalho devido a inadequação da estrutura física, dificuldade de compreensão da metodologia e as múltiplas jornadas de trabalho dos trabalhadores.(34)

Nos erros de diagnóstico e erros na assistência em enfermagem, foram registrados, nos artigos analisados, apenas elementos de contexto centrados no indivíduo e nas falhas humanas. Nos erros em procedimentos cirúrgicos, não foram referidos fatores individuais e sistêmicos.

A análise aponta ainda a manutenção, na produção científica sobre o erro no trabalho em saúde, do paradigma da abordagem individual, com frágil abordagem sobre aspectos sistêmicos que incidem para a sua ocorrência, considerando a heterogeneidade e complexidade do trabalho e da produção dos serviços de saúde em diferentes contextos.

O limite do estudo refere-se às publicações disponíveis. Sabe-se que o erro em saúde ainda se constitui como um tabu nas organizações de saúde, o que pode limitar a quantidade de pesquisas realizadas.

Os resultados deste estudo podem contribuir para que os elementos de contexto sejam considerados e investigados nas pesquisas sobre erros e, também, oferecer subsídios para que o uso da abordagem sistêmica na ocorrência do erro supere a abordagem punitiva, dando sentido à cultura de segurança nos serviços de saúde.

Conclusão

O estudo demonstra que a ocorrência de erros no trabalho em saúde insere-se em um contexto de precarização do trabalho, com processos de trabalho distintos e marcados pela heterogeneidade, com instrumentos de trabalho insuficientes e déficit nos processos de gestão do trabalho e na formação para o trabalho. Assim, na abordagem do erro no trabalho em saúde, deve-se focar menos em aperfeiçoamento do comportamento individual e sim em abordagens sistêmicas. A incipiência no desenvolvimento de pesquisas sobre o erro no trabalho indica que o investimento deve ser direcionado ao conhecimento das causas e determinantes do erro visando subsidiar as organizações de saúde que assumem a segurança do paciente e dos trabalhadores e trabalhadoras como temas estratégicos para o alcance dos seus objetivos.

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Editado por

  • Editor Associado (Avaliação pelos pares): Juliana de Lima Lopes (https://orcid.org/0000-0001-6915-6781) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2020
  • Aceito
    25 Ago 2021
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