Open-access Análise dos casos de violência interpessoal contra mulheres

Análisis de casos de violencia interpersonal contra mujeres

Resumo

Objetivo  Analisar os casos notificados de violência interpessoal contra as mulheres no estado do Espírito Santo.

Métodos  Estudo analítico, do tipo transversal, em que foram analisados os casos notificados de violência contra a mulher no período de 2011 a 2018 no Espírito Santo. Os dados que foram analisados neste estudo são resultantes das Fichas de Notificação/Investigação de Violência Interpessoal e Autoprovocada provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). As análises estatísticas foram realizadas por meio do teste de Qui-quadrado e regressão de Poisson, utilizando o software Stata 14.1, sendo considerados significativos valores de p menores que 0,05.

Resultados  A notificação de violência interpessoal no sexo feminino representou frequência de 74,9% (n=20.449; IC95%: 74,4-75,4). Foi observado que crianças e idosas apresentaram 35% mais prevalência desse agravo comparada aos adolescentes. Há maior frequência desse fenômeno entre pessoas de cor preta / parda (RP: 1,07; IC95%:1,05-1,08) comparada àquelas de cor branca. Quanto às características do agressor verifica-se maior prevalência na faixa etária de 25 anos e mais (RP: 1,09; IC95%: 1,06-1,11), do sexo masculino (RP: 3,02; IC95%: 2,88-3,17) e sob suspeita de uso de álcool no momento da agressão (IC95%: 1,05-1,08). Em relação ao evento, nota-se uma frequência 1,28 vezes maior em via pública.

Conclusão  Fatores sociodemográficos, comportamentais e experiências pessoais de violência influenciam a ocorrência do fenômeno.

Exposição à violência; Violência contra a mulher; Violência por parceiro íntimo; Violência

Resumen

Objetivo  Analizar los casos notificados de violencia interpersonal contra mujeres en el estado de Espírito Santo.

Métodos  Estudio analítico, tipo transversal, en el que se analizaron los casos notificados de violencia contra la mujer en el período de 2011 a 2018 en Espírito Santo. Los datos que fueron analizados en este estudio son resultantes de las Fichas de Notificación/Investigación de Violencia Interpersonal y Autoprovocada provenientes del Sistema de Información de Agravios de Notificación (SINAN). Los análisis estadísticos se realizaron mediante la prueba χ2 de Pearson y regresión de Poisson, con el uso del software Stata 14.1, donde se consideraron significativos valores de p menores que 0,05.

Resultados  La notificación de violencia interpersonal en el sexo femenino representó una frecuencia de 74,9 % (n=20.449; IC95 %: 74,4-75,4). Se observó que niñas y adultas mayores presentan un 35 % más de prevalencia de este agravio, comparadas con adolescentes. Existe una mayor frecuencia de este fenómeno en personas de color negro / pardo (RP: 1,07; IC95 %:1,05-1,08), comparadas con las de color blanco. Respecto a las características del agresor, se verificó mayor prevalencia en el grupo de edad de 25 años o más (RP: 1,09; IC95 %: 1,06-1,11), de sexo masculino (RP: 3,02; IC95 %: 2,88-3,17) y con sospecha de uso de alcohol en el momento de la agresión (IC95 %: 1,05-1,08). Con relación al evento, se observa una frecuencia 1,28 veces mayor en la vía pública.

Conclusión  Factores sociodemográficos, de comportamiento y experiencias personales de violencia influyen para que suceda este fenómeno

Exposición a la violencia; Violencia contra la mujer; Violencia de pareja; Violencia

Abstract

Objective  To analyze the reported cases of interpersonal violence against women in the state of Espírito Santo.

Methods  This is an analytical, cross-sectional study, which analyzed the reported cases of violence against women from 2011 to 2018 in Espírito Santo. The data that were analyzed in this study are the result of the Reporting Forms/Investigation of Interpersonal and Self-inflicted Violence from the Reporting Diseases Information System (SINAN). Statistical analyzes were performed using the chi-square test and Poisson regression, using Stata 14.1, with p-values lower than 0.05 being considered significant.

Results  Interpersonal violence reporting in females represented a frequency of 74.9% (n=20,449; 95%CI: 74.4-75.4). It was observed that children and older adults had a 35% higher prevalence of this condition compared to adolescents. There is a higher frequency of this phenomenon among black/brown people (PR: 1.07; 95%CI: 1.05-1.08) compared to white people. As for aggressor characteristics, there is a higher prevalence in the age group of 25 years and older (PR: 1.09; 95%CI: 1.06-1.11), male (PR: 3.02; 95%CI: 2.88-3.17) and under suspicion of alcohol consumption at the time of aggression (95%CI: 1.05-1.08). Regarding the event, there is a frequency 1.28 times higher on public thoroughfare.

Conclusion  Sociodemographic, behavioral factors and personal experiences of violence influence its occurrence.

Exposure to violence; Violence against women; Intimate partner violence; Violence

Introdução

Ao longo dos últimos anos a violência contra a mulher vem recebendo destaque nas pautas dos órgãos públicos e governamentais devido aos seus diversos impactos na vida social, econômica e física das pessoas, sendo incluída a igualdade de gênero dentro dos objetivos de desenvolvimento sustentáveis (ODS) na Agenda 2030 definida pela Organização das Nações Unidas (ONU).(1) Mesmo com a preocupação, tal agravo ainda se mantém com números alarmantes na população mundial, sobretudo, após o início da pandemia da COVID-19 que aumentou as denúncias de violência doméstica entre mulheres devido às restrições e isolamento social.(2)

A violência interpessoal pode ser entendida como o uso de força física ou outro tipo de poder contra uma pessoa, de forma intencional, perpetrada por um individuo ou pequeno grupo de indivíduos. Sendo classificada como violência física, sexual ou psicológica, e podendo ainda envolver privação e negligência.(3)

Dados atualizados de 2018 informam que na América Latina e no Caribe, 25% das mulheres sofrem ou já sofreram algum tipo de violência física ou sexual ao longo da vida, trazendo destaque para a vitimização de mulheres jovens tendo como agressor o parceiro íntimo. Com isso, ações multissetoriais devem ser implementadas devido ao caráter complexo deste agravo, envolvendo também a participação social no processo da superação cultural das desigualdades de gênero.(2)

O Atlas da Violência 2021 mostra que no ano de 2019 o Brasil apresentou taxa de 21,7 mortes a cada 100 mil habitantes decorrentes de homicídios, ficando a taxa entre as vítimas do sexo feminino em 3,5 mortes a cada 100 mil pessoas.(4) O estado do Espírito Santo situado na região sudeste do Brasil, figurou em 2015 como o terceiro estado com maior taxa de homicídios no país, com 40,4/100 mil habitantes, estando abaixo apenas das taxas registradas nos estados de Alagoas e Pernambuco.(5)

No Brasil, este agravo passou a ter maior visibilidade a partir da promulgação Lei Maria da Penha (lei nº 11.340), que a definiu como qualquer ação ou omissão que leve à morte, lesão física, sexual, psicológica e dano moral ou patrimonial à mulher.(4,6)

Uma revisão sistemática realizada recentemente a partir de 366 estudos, que reuniu respostas de cerca de 2 milhões de mulheres em mais de 160 países do mundo, mostrou que globalmente, aproximadamente 27% das mulheres já experienciaram violência na vida, e 13% vivenciaram este agravo no último ano.(7)No Espírito Santo, um estudo de base populacional realizado com quase mil mulheres usuárias dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), mostrou que a violência psicológica foi a mais frequentemente reportada, com prevalência de 25,3% dos casos, enquanto 9,9% das mulheres foram vítimas de violência psicológica e 5,7% de violência sexual.(8)

A violência contra a mulher pode causar repercussões a curto e médio prazo na saúde física e mental das mulheres e, inclusive, de seus filhos.(7) Dentre as repercussões relatadas na literatura estão: ansiedade, estresse, distúrbios de sono, sintomas depressivos, cardiopatias, dores crônicas, disfunções intestinais, fibromialgia e outras. Além das repercussões à saúde sexual e reprodutiva da mulher, como disfunções sexuais, infecções sexualmente transmissíveis, doença inflamatória pélvica, gravidez indesejada e complicações maternas e neonatais.(9)

Nesse sentido, e considerando que a violência é passiva de prevenção e o conhecimento acerca de seus fatores relacionados são fundamentais para a criação de políticas públicas pertinentes a cada região,(10) o presente estudo tem por objetivo analisar os casos notificados de violência interpessoal contra as mulheres no estado do Espírito Santo.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, descritivo e analítico, onde foram notificados 27.315 casos de violência contra a mulher no período de 2011 a 2018 no Espírito Santo, dos quais 20.449 correspondiam a violência interpessoal contra a mulher. A escolha do ano de 2011 ocorreu devido a inclusão da violência na lista de agravos de notificação compulsória pelo Ministério da Saúde,(11) sendo finalizado em 2018 onde foi concretizada a realização do estudo maior intitulado “Análise das notificações de violência no Espírito Santo”.

O Espírito Santo é um estado localizado na região sudeste do Brasil. De acordo com o censo de 2010, contava com 3.514.952 habitantes em uma extensão territorial de 46.074,444 Km2 e uma densidade demográfica de 76,25 habitantes/Km2. Possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,740 e 50,75% da sua população é composta por mulheres (1.783.735).(12)

Os dados analisados neste estudo são provenientes das Fichas de Notificação/Investigação de Violência Interpessoal e Autoprovocada,(13) preenchidas nos serviços de saúde público e privado, digitalizadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). O banco foi fornecido pelo setor de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo.(14)

Após, o banco passou por extensiva análise exploratória para qualificação das variáveis de interesse e correção de possíveis inconsistências e fichas duplicadas. Nesse processo de qualificação foram avaliados o campo de registro do número da ficha de notificação para verificação de duplicações. Além disso, cada registro foi avaliado individualmente para verificar se outros campos continham informações que foram preenchidas como ignoradas ou que estavam em branco no campo de interesse – por exemplo, detalhes sobre a ocorrência que estavam descritas no campo observações. Para cada ficha também foi identificado o tipo de violência que motivou a notificação (quando eram registrados mais de um tipo de violência), seguindo as diretrizes do Instrutivo de Notificação Interpessoal e Autoprovocada.(13)

Neste estudo considera-se a violência interpessoal como a definida no instrutivo que se difere em duas tipologias: violência doméstica/intrafamiliar que é caracterizada como a que acontece entre parceiros íntimos ou membros da família nas residências ou fora delas e a violência extrafamiliar/comunitária como aquela que ocorre no ambiente social incluindo tanto conhecidos ou desconhecidos. O conceito engloba as diferentes naturezas da violência interpessoal como: física; psicológica/moral; tortura; sexual; tráfico de seres humanos; financeira/econômica; negligência/abandono; trabalho infantil e intervenção legal.(13)

O desfecho em análise foi a violência interpessoal (não, sim) e o grupo de comparação foram os indivíduos que cometeram violência autoprovocada. As variáveis independentes foram:

  1. Caracterização da vítima
    1. Faixa etária: 0 a 9 anos, 10 a 19 anos, 20 a 59 anos, 60 anos ou mais

    2. Raça/cor: branca, preta e parda

    3. Presença de deficiências e/ou transtornos: não, sim

    4. Zona de residência: urbana/periurbana; rural)

  2. Caracterização do agressor
    1. Faixa etária: 0 a 24 anos; 25 anos ou mais

    2. Sexo: masculino, feminino

    3. Vínculo com a vítima: familiar, conhecido, desconhecido

    4. Suspeita de uso de álcool: não, sim

  3. Caracterização da ocorrência
    1. Número de envolvidos: um, dois ou mais

    2. Local: residência, via pública, outros

    3. Histórico de repetição: não, sim

    4. Encaminhamento para outros serviços da rede: não, sim

Antes das análises foi realizado processo de qualificação do banco de dados para correção de possíveis inconsistências.

Foram calculadas frequências absolutas e relativas das variáveis com seus intervalos de confiança de 95%. Na análise bivariada foi utilizado o teste Qui-Quadrado de Pearson e na multivariada a regressão de Poisson, com estimativa das Razões de Prevalência. As variáveis incluídas no modelo foram aquelas que obtiveram p < 0,20 na bivariada, tendo sido considerado dois níveis hierárquicos: o primeiro composto pelas características da vítima e o segundo pelas variáveis ligadas ao agressor e à ocorrência. A variável encaminhamento não foi incluída na análise multivariada por ser uma situação que ocorre após o desfecho. Todas as análises foram realizadas no software Stata 14.1 e foram considerados significativos valores de p menores que 0,05.

O presente trabalho é um recorte de um projeto maior, sendo que este foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal do Espírito Santo com o parecer número 2.819.597 (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética: 88138618.0.0000.5060).

Resultados

A notificação de violência interpessoal no sexo feminino representou uma frequência de 74,9% (n= 20.449; IC95%: 74,4-75,4). No que tange a caracterização das vítimas, nota-se que a faixa etária mais comprometida foi de 20 a 59 anos (66,6%), 70,5% da raça/cor preta/parda, aproximadamente, 91% sem deficiência ou transtorno e residentes da área urbana. Quanto ao agressor, cerca de 70% na faixa etária de 25 anos ou mais e 84,8% do sexo masculino. Observa-se que 53,2% dos agressores não faziam uso de álcool no momento da agressão, 67,4% tinham vínculo familiar com a vítima e sete em cada 10 casos de violência interpessoal contra a mulher ocorreu na residência. Em aproximadamente 60% das notificações a violência foi de repetição, sendo a maioria (85,3%) dos casos encaminhados para serem atendidos por outros serviços (Tabela 1).

Tabela 1
Características dos casos notificados de violência interpessoal contra mulheres (n=20449)

Na análise bivariada (Tabela 2), percebe-se que a violência interpessoal esteve relacionada às seguintes características da vítima: faixa etária, raça/cor, deficiência/transtorno e zona de residência. No que diz respeito às características do agressor, observa-se uma relação com a faixa etária, sexo e suspeita do uso de álcool. Quanto ao evento, a violência interpessoal esteve relacionada ao local de ocorrência, repetição e encaminhamento (p<0,005).

Tabela 2
Análise bivariada da distribuição das características segundo a ocorrência das notificações de violência interpessoal contra mulheres (n=20449)

A tabela 3 apresenta os resultados da análise ajustada para os fatores de confusão. Observa-se que crianças e idosos apresentaram 35% mais prevalência de notificação de violência interpessoal comparada ao grupo de adolescentes. Outro achado foi a maior frequência de notificação entre pessoas de cor preta/parda (RP: 1,07; IC95%: 1,05-1,08) comparada àquelas de cor branca. Nota-se ainda que notificações de violência contra pessoas sem deficiência são 78% mais prevalentes. Quanto às características do agressor verifica-se maior prevalência na faixa etária de 25 anos e mais (RP: 1,09; IC95%: 1,06-1,11), do sexo masculino (RP: 3,02; IC95%: 2,88-3,17) e sob suspeita de uso de álcool no momento da agressão (RP: 1,07; IC95%: 1,05-1,08). No que tange ao evento, 1,28 vezes mais frequentemente ocorreu em via pública.

Tabela 3
Análise bivariada com a razão de prevalência bruta e o modelo multivariado com a razão de prevalência ajustada das variáveis associadas aos casos de violência interpessoal contra mulheres (n=20449)

Discussão

A violência contra a mulher representa uma violação aos seus direitos e dignidade, é bastante frequente em nossa sociedade, e comumente resulta da desigualdade de gênero. A ocorrência deste agravo faz parte de um sistema sócio-histórico patriarcal que condicionou as mulheres a uma posição hierarquicamente inferior na escala de perfeição social, produzindo uma relação desigual entre homens e mulheres, que apesar de apresentar diminuição nos últimos anos, ainda é um grave problema em todo o mundo.(15,16)

Neste estudo, identificou-se alta prevalência de violência interpessoal contra a mulher, correspondendo a 74,9% (n=20.449; IC95%: 74,4-75,4) nas notificações de violência registradas para o sexo feminino no Espírito Santo. Este achado é similar ao encontrado a nível nacional, os quais revelam que em 2015 foram registradas 162.575 notificações de violência contra a mulher no SINAN, correspondendo a 67,1% do número total de notificações.(17)

Além do grande número de notificações, o Brasil apresenta também expressivos números de mortes motivadas por violência contra as mulheres. No ano de 2019, 3.737 mulheres foram assassinadas de forma violenta no Brasil, tendo como principais causas a violência doméstica ou familiar, discriminação à condição de mulher e casos de violência urbana, como roubos seguidos de morte.(4) O estado do Espírito Santo representou uma das maiores reduções de mortes violentas contra as mulheres entre 2018 e 2019 (-59,4%),(4) entretanto, ainda apresenta alta prevalência de notificações de violência contra o público feminino comparado a outros estados brasileiros, como evidenciado em outro estudo,(18) que apontou o Espírito Santo como primeiro lugar na prevalência de violência por parceiro íntimo (67,6%), número maior até que o observado nacionalmente (62,4%).

Os órgãos notificadores de cada local contribuem no fomento das bases de dados, dando maior visibilidade ao agravo da violência, ainda assim, no que concernem as práticas violentas contra o público feminino, destaca-se a desigualdade de gênero introduzida na sociedade por questões históricas e culturais que influenciam de forma grandiosa para a maior vivência de situações violentas entre as mulheres, pois permite que se estabeleçam relações de poder e dominação da figura masculina sobre a feminina.(17,19)

Em relação às características da vítima, a análise ajustada dos dados mostra prevalência de violência interpessoal 35% maior entre crianças e idosas quando comparado ao grupo de adolescentes e 11% maior entre as adultas, o que sugere maiores vulnerabilidades das faixas etárias mais extremas. Ainda, achados do Inquérito de Violências e Acidentes em Serviços Sentinela de Urgência e Emergência (VIVA) no ano de 2017, identificou maiores concentrações de agressões entre 20 e 59 anos (66,3%).(20) Vale ponderar que a idade adulta aumenta a exposição à violência quando comparado às adolescentes visto que mulheres em idade reprodutiva são mais expostas a vivência de abuso doméstico, sobretudo pelo parceiro íntimo.(18)

Em relação a maior exposição de violência entre crianças, dados do Espírito Santo encontraram maiores frequências de violência contra meninas (60,1%) em relação aos meninos, mostrando que a vitimização da mulher é superior desde a infância, e trazendo uma vez mais a cultura machista como uma possível responsável por esse cenário.(21)

Levando em conta a raça/cor, as mulheres pretas apresentaram 1,07 vezes maior prevalência de sofrer violência interpessoal quando comparado às mulheres brancas. O estado de Rondônia também encontrou maior frequência de violência interpessoal contra mulheres de cor preta (63,80%) em relação às mulheres de cor branca (20,05%).(22)

Ao se analisar os casos de mulheres mortas vítimas de violência doméstica, urbana e motivadas por desigualdade de gênero no Brasil, os números também são maiores entre mulheres pretas. No estado do Espírito Santo em 2019 o risco de uma mulher negra ser morta violentamente foi 3,7 vezes maior em relação a uma mulher branca, maior que o risco nacional que foi de 1,7 vezes.(4) Mulheres pretas historicamente convivem com maiores situações de discriminação, bem como desfavorecimentos econômicos e sociais que predispõem a este agravo.(4,22)

Outro dado encontrado foi a menor frequência de notificações entre o público sem deficiência e transtorno. Ao se comparar os dados, as pessoas sem deficiência apresentaram 1,78 vezes mais prevalência de exposição a violência. Dados gerais das notificações de violência interpessoal no Brasil entre 2015 e 2019 se assemelham a encontrada neste estudo,(23) entretanto, vale destacar o estudo feito em Manaus que encontrou baixa completude do campo de deficiência e transtorno dentro da ficha de notificação o que contribui na subnotificação dos casos.(24) O Relatório Mundial sobre a Deficiência aborda sobre as principais dificuldades encontradas por este grupo ao longo de sua vida destacando a exposição a acidentes e violências como um grave problema a ser enfrentado.(25)

Em relação ao agressor, destacaram-se o sexo masculino (RP: 3,02; IC95%: 2,88-3,17) e indivíduos adultos na faixa etária de 25 anos e mais (RP: 1,09; IC95%: 1,06-1,11) como os principais perpetradores da violência contra a mulher, o que está de acordo com diversos estudos.(20,22,23) No Brasil de 2015 a 2019, 54,54% dos agressores eram homens e 50,36% adultos.(23) Mesmo avaliando os agressores de acordo com o sexo da vítima, as frequências permaneceram altas, sendo 84,7% quando a vítima era outro homem e 64,8% quando a vítima era uma mulher.(20) Pesquisa feita em Rondônia também encontrou maior proporção de homens agressores, destacando o vínculo de parceiro íntimo com a vítima como contribuinte devido à relação de poder estabelecida neste tipo de relação.(22)

Outra característica relacionada ao perpetrador encontrada neste estudo diz respeito ao uso de álcool, onde fazer uso desta substância ou estar sob suspeita de uso pelo agressor aumentou a prevalência de se cometer violência (RP: 1,07; IC95%: 1,05-1,08). Embora as maiores frequências sejam encontradas em agressores que não fizeram uso de álcool(20,22,23) é importante avaliar sua associação. Em análise específica da violência perpetrada por parceiro íntimo, fazer uso de álcool aumentou em 1,12 vezes (IC95%: 1,12-1,13) a prática da violência.(18) É sabido que, o uso de álcool pode alterar diversas funções neurofisiológicas no organismo, podendo fazer com que o indivíduo fique mais agressivo e violento.(18)

Apesar do presente estudo apresentar a via pública (RP: 1,28 IC95%: 1,25-1,31) como espaço de maior ocorrência das notificações de violência interpessoal contra as mulheres, é importante reforçar que é comumente evidenciado na literatura que a residência mostra-se como o principal local de ocorrência deste agravo,(17,23,24) especialmente por este ser local de maior imposição de autoridade e condição de subordinação.(24)

Por fim, nesse cenário, ganha destaque o setor saúde, em especial os profissionais da atenção básica e da enfermagem, por sua proximidade com as comunidades, famílias e residências das mulheres, podendo assim, contribuir sobremaneira para o processo de rastreio e identificação, notificação e enfrentamento da violência, assim como com medidas de prevenção deste agravo. Importante destacar que em território brasileiro, os casos de violência devem ser notificados por meio da ficha de notificação de violência interpessoal,(11) todavia a realização da notificação ainda possui muitos déficits e uma baixa adesão por uma parcela dos profissionais de saúde e, esses referem tal fato à extensão e fraco conhecimento sobre a ficha, medo de represálias por parte dos agressores das vítimas, confusão dos conceitos de notificação e denúncia, entre outros tabus associados.(26)

Acredita-se que os achados do presente estudo podem servir de apoio para as ações e efetivação de programas de enfrentamento da violência contra a mulher, porém, algumas limitações precisam ser observadas, como a análise secundária de dados, a subnotificação intrínseca dos sistemas de informação e o delineamento transversal do estudo. Todavia, é importante ressaltar que foram tomadas medidas para minimizar algumas dessas limitações, como o processo de qualificação do banco de dados. Além disso, apesar da impossibilidade de estabelecer relação causal, os estudos transversais são importantes instrumentos para a avaliação, acompanhamento e elaboração de políticas públicas devido ao alto potencial descritivo e a simplicidade analítica.

Conclusão

A violência interpessoal representou elevada magnitude dentre as violências contra as mulheres notificadas no Espírito Santo no período de 2011 a 2018, sendo mais prevalente entre aquelas em idades mais vulneráveis (crianças e idosas), e, de cor preta/parda. Nota-se ainda como principais agressores homens, de 25 anos e mais, e, sob suspeita de uso de álcool. O local mais prevalente para esse agravo notificado foi a via pública. Esses achados se revelam como importantes e devem ser considerados ao se estabelecer ações de enfrentamento e prevenção da violência interpessoal, todavia devem ser vistos com cautela considerando que ainda há muita subnotificação, todavia, mesmo diante disso não podemos deixar de ressaltar a importância do setor saúde como um espaço fundamental para a oferta de cuidado à vítima e assim contribuição para a ruptura do ciclo de violência.

Referências

  • 1 Stöckl H, Sardinha L, Maheu-Giroux M, Meyer SR, García-Moreno C. Physical, sexual and psychological intimate partner violence and non-partner sexual violence against women and girls: a systematic review protocol for producing global, regional, and country estimates. BMJ Open. 2021;11:e045574. Review.
  • 2 World Health Organization (WHO). Violence against women prevalence estimates, 2018: global, regional and national prevalence estimates for intimate partner violence against women and global and regional prevalence estimates for non-partner sexual violence against women. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 Nov 20]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240022256
    » https://www.who.int/publications/i/item/9789240022256
  • 3 World Health Organization (WHO). World Report on Violence and Health. Geneva: WHO; 2002 [cited 2021 Nov 20]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf
    » https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf
  • 4 Brasil. Governo Federal. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Atlas da Violência 2021. Brasília (DF): IPEA; 2021 [citado 2021 Nov 20]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf
    » https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf
  • 5 Malta DC, Minayo MC, Soares Filho AM, Silva MM, Montenegro MM, Ladeira RM. Mortality and years of life lost by interpersonal violence and self-harm: in Brazil and Brazilian states: analysis of the estimates of the Global Burden of Disease Study, 1990 and 2015. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(Suppl 1):142-56.
  • 6 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília (DF): Presidência da República; 2006 [citado 2021 Nov 20]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
  • 7 Sardinha L, Maheu-Giroux M, Stöckl H, Meyer SR, García-Moreno C. Global, regional, and national prevalence estimates of physical or sexual, or both, intimate partner violence against women in 2018. Lancet. 2022;399(10327):803-13.
  • 8 Leite FM, Amorim MH, Wehrmeister FC, Gigante DP. Violência contra a mulher em Vitória, Espírito Santo, Brasil. Rev Saude Publica. 2017;51:33.
  • 9 Idoko P, Ogbe E, Jallow O, Ocheke A. Burden of intimate partner violence in the Gambia: a cross sectional study of pregnant women. Reproductive Health. 2015;12(34):1-6.
  • 10 Delziovo CR, Bolsoni CC, Nazário NO, Coelho EB. Características dos casos de violência sexual contra mulheres adolescentes e adultas notificadas pelos serviços públicos de saúde em Santa Catarina, Brasil. Cad Saude Publica. 2017;33(6):e00002716.
  • 11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2011 [citado 2021 Nov 20]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0104_25_01_2011.html
    » https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0104_25_01_2011.html
  • 12 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades: panorama Espírito Santo. Rio de Janeiro: IBGE; 2021 [citado 2021 Nov 20]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/es/panorama
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/es/panorama
  • 13 Brasil. Ministério da Saúde. VIVA: instrutivo de notificação de violência interpessoal e autoprovocada. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016. 92 p.
  • 14 Espírito Santo. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo – SESA ES. Vitória: 2022. [citado 2022 Set 5]. Disponível em: https://saude.es.gov.br/
    » https://saude.es.gov.br/
  • 15 Oliveira RH, Fonseca RM. A violência como objeto de pesquisa e intervenção no campo da saúde: uma análise a partir da produção do Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(Esp 2):32-9.
  • 16 Silva LE, Oliveira ML. Violência contra a mulher: revisão sistemática da produção científica nacional no período de 2009 a 2013. Cien Saude Colet. 2015;20(11):3523-32. Review.
  • 17 Barufaldi LA, Souto RM, Correia RS, Montenegro MM, Pinto IV, Silva MM, et al. Gender violence: a comparison of mortality from aggression against women who have and have not previously reported violence. Cien Saude Colet. 2017;22(9):2929-38.
  • 18 Mascarenhas MD, Tomaz GR, Meneses GM, Rodrigues MT, Pereira VO, Corassa RB. Análise das notificações de violência por parceiro íntimo contra mulheres, Brasil, 2011–2017. Rev Bras Epidemiol. 2020;23(Suppl 1):e200007.
  • 19 Catóia CC, Severi FC, Firmino IF. Caso “Alyne Pimentel”: violência de gênero e interseccionalidades. Rev Estud Fem. 2020;28(1):e60361.
  • 20 Brasil. Ministério da Saúde. Viva inquérito 2017: vigilância de violências e acidentes em serviços sentinelas de urgência e emergência – capitais e municípios. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019. 132 p.
  • 21 Pedroso MR, Leite FM. Violência recorrente contra crianças: análise dos casos notificados entre 2011 e 2018 no Estado do Espírito Santo. Epidemiol Serv Saude. 2021;30(3):e2020809.
  • 22 Oliveira CA, Alencar LN, Cardena RR, Moreira KF, Pereira PP, Fernandes DE. Perfil da vítima e características da violência contra a mulher no estado de Rondônia - Brasil. Rev Cuid. 2019;10(1):e573.
  • 23 Souza IT, Passos TS, Almeida LM, Almeida-Santos MA. Epidemiological profile of interpersonal violence in Brazil between 2015 and 2019. Res SocDevel. 2021;10(16):e29101623204.
  • 24 Oliveira NF, Moraes CL, Junger WL, Reichenheim ME. Violência contra crianças e adolescentes em Manaus, Amazonas: estudo descritivo dos casos e análise da completude das fichas de notificação, 2009-2016. Epidemiol Serv Saúde. 2020;29(1):e2018438.
  • 25 Governo do Estado de São Paulo. Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial sobre a deficiência. São Paulo: Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência; 2012 [citado 2021 Nov 20]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44575/9788564047020_por.pdf
    » https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44575/9788564047020_por.pdf
  • 26 Silva MM, Ribeiro FM, Frossard VC, Souza RM, Schenker M, Minayo MC. “No meio do fogo cruzado”: reflexões sobre os impactos da violência armada na Atenção Primária em Saúde no município do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet. 2021;26(6):2109-18.

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    2 Fev 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
location_on
Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo R. Napoleão de Barros, 754, 04024-002 São Paulo - SP/Brasil, Tel./Fax: (55 11) 5576 4430 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: actapaulista@unifesp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro