Open-access Biofilme em parafusos ortopédicos prontos para uso adquiridos por meio de sistema de consiganação/comodato

Biopelícula en tornillos ortopédicos listos para uso adquiridos por medio del sistema de consignación/comodato

Resumo

Objetivo  Avaliar a integridade da superfície e as condições microbiológicas de parafusos prontos para uso em bandejas ortopédicas após múltiplos processamentos.

Métodos  Após o processamento completo, as bandejas utilizadas em cirurgias de pequenos fragmentos, fornecidas por meio de sistema de consignação/comodato em um hospital brasileiro, foram selecionadas aleatoriamente durante quatro meses. Os parafusos mais utilizados (números 14, 16 e 18 – Grupo 1) e menos utilizados (números 10 e 38 – Grupo 2), portanto, os mais e menos expostos a agentes biológicos, químicos e físicos, foram aleatoriamente removidos e submetidos a inspeção visual (n=126), seguido de cultura bacteriana (n=6 parafusos/bandeja, 9 bandejas), teste de proteínas (n=6 parafusos/bandeja, 9 bandejas) e Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV) (n=2 parafusos/bandeja, 9 bandejas). As culturas positivas foram submetidas a métodos automatizados de identificação bacteriana e suscetibilidade antimicrobiana.

Resultados  Foram detectadas ranhuras em 8,7% dos parafusos, predominantemente no Grupo 2 (8/11). Proteína residual foi detectada em 96,3%, e não houve diferença estatisticamente significativa na quantidade de proteína entre os grupos (P=0,07). Crescimento bacteriano foi identificado em 3/54 parafusos. Danos na superfície e presença de sujidade foram visualizados em todos os parafusos submetidos a MEV. Formação de biofilmes extensos foi detectada em oito parafusos, três do Grupo 1 e cinco do Grupo 2.

Conclusão  Recuperação de bactérias viáveis, acúmulo de biofilme e danos na superfície foram detectados nos parafusos prontos para uso. Os parafusos costumam permanecer nas bandejas cirúrgicas e serem submetidos a múltiplos processamento, sendo expostos a contaminação e danos repetidas vezes. Esses achados apontam para a necessidade de discutir e repensar a forma como esses implantes de uso único são atualmente disponibilizados para cirurgias.

Esterilização; Próteses e implantes; Parafusos ósseos; Procedimentos ortopédicos; Biofilmes; Anti-infecciosos; Bacterias

Resumen

Objetivo  Evaluar la integridad de la superficie y las condiciones microbiológicas de tornillos listos para uso en bandejas ortopédicas después de múltiples procesamientos.

Métodos  Después del procesamiento completo, fueron seleccionadas aleatoriamente durante cuatro meses las bandejas utilizadas en cirugías de pequeños fragmentos, proporcionadas mediante el sistema de consignación/comodato en un hospital brasileño. Los tornillos más utilizados (números 14, 16 y 18 – Grupo 1) y menos utilizados (números 10 y 38 – Grupo 2), por lo tanto, los más y menos expuestos a agentes biológicos, químicos y físicos, fueron quitados aleatoriamente y sometidos a inspección visual (n=126), seguido de cultivo bacteriano (n=6 tornillos/bandeja, 9 bandejas), prueba de proteínas (n=6 tornillos/bandeja, 9 bandejas) y microscopía electrónica de barrido (MEB) (n=2 tornillos/bandeja, 9 bandejas). Los cultivos positivos fueron sometidos a métodos automatizados de identificación bacteriana y susceptibilidad antimicrobiana.

Resultados  Se detectaron ranuras en el 8,7 % de los tornillos, predominantemente en el Grupo 2 (8/11). Se detectó proteína residual en el 96,3 % y no se encontró diferencia estadísticamente significativa en la cantidad de proteína entre los grupos (P=0,07). En 3/54 tornillos se identificó crecimiento bacteriano. Se visualizaron daños en la superficie y presencia de suciedad en todos los tornillos sometidos a MEB. En ocho tornillos se detectó la formación de biopelículas, tres del Grupo 1 y cinco del Grupo 2.

Conclusión  Se detectó recuperación de bacterias viables, acumulación de biopelícula y daños en la superficie en los tornillos listos para uso. Los tornillos suelen permanecer en las bandejas quirúrgicas y son sometidos a múltiples procesamientos, donde están expuestos a contaminación y daños repetidas veces. Estos descubrimientos señalan la necesidad de discutir y repensar la forma como estos implantes de uso único se ponen a disposición para cirugía actualmente.

Esterilización; Prótesis e implantes; Tornillos óseos; Procedimientos ortopédicos; Biopelículas; Antiinfecciosos; Bacterias

Abstract

Objective  Assess the surface integrity and microbiological conditions of patient-ready screws in orthopaedic trays that had been multiply reprocessed.

Methods  After full reprocessing, clinical trays used for small fragment surgery provided through a loaner system to a Brazilian hospital were randomly selected during four months. The most (numbers 14, 16 and 18 – Group 1) and least (numbers 10 and 38 – Group 2) frequently implanted screws, therefore, the ones estimated to be the most and least exposed to biological, chemical and physical agents, were randomly removed and subjected to visual inspection (n=126), followed by bacterial culture (n=6 screws/tray, 9 trays), protein test (n=6 screws/tray, 9 trays) and Scanning Electron Microscopy (SEM) (n=2 screws/tray, 9 trays). Positive cultures were subjected to automated bacterial identification and antimicrobial susceptibility tests.

Results  Grooves were detected on 8.7% screws, predominantly in Group 2 (8/11). Residual protein was detected on 96,3%, and there was no statistically significant difference in the amount of protein between the groups (P=0.07). Bacterial growth was identified in 3/54 screws. Surface damage and soil were visualized on all screws subjected to SEM. Extensive biofilms were detected on eight screws, three from Group 1 and five from Group 2.

Conclusion  Recovery of bacteria, biofilm accumulation and surface damage were detected on patient-ready screws. Screws frequently remain in surgical trays for multiple reprocessing; thus they are repeatedly exposed to contamination and damage. These findings point to the need to discuss and review the way these single-use implants are currently made available for surgeries.

Sterilization; Prostheses and implants; Bone screws; Orthopedic procedures; Biofilms; Anti-infective agents; Bacteria

Introdução

Em todo o mundo, Produtos Para Saúde (PPS), especialmente aqueles usados em cirurgia ortopédica, são adquiridos por meio de sistemas de consignação/comodato.(1)Caixas cirúrgicas ortopédicas também incluem implantes de uso único, fabricados em aço inoxidável, como placas e parafusos. Apesar de serem classificados como de uso único, as placas e parafusos ortopédicos são embalados com os demais dispositivos cirúrgicos na bandeja e passam por diversos processos de esterilização até sua implantação. Dessa forma, esses dispositivos estão expostos a agentes físicos, químicos e biológicos múltiplas vezes, o que pode resultar em contaminação e danos à superfície. ( 2 )

O sistema de consignação/comodato possibilita que os hospitais tenham acesso a uma ampla variedade de dispositivos cirúrgicos, acompanhando os rápidos avanços tecnológicos. Entretanto, a alta rotatividade das caixas cirúrgicas entre as diversas unidades de saúde pode dificultar o seu adequado gerenciamento e processamento.(1-3)Embora a apresentação dos parafusos em racks dentro das caixas cirúrgicas facilite seu uso durante a cirurgia, essa disposição não favorece o processamento, principalmente na etapa de limpeza.(4)

Um dos grandes problemas decorrentes do processamento inadequado é a formação de biofilme, que consiste em um agregado de células sésseis aderidas a uma superfície e envoltas em uma matriz de substâncias poliméricas extracelulares (Extracellular polymeric substances - EPS).(5)Os biofilmes protegem os microrganismos contra condições adversas, como exposição a detergentes, desinfetantes e agentes esterilizantes.(2,3,6)Nos PPS, o biofilme se desenvolve gradualmente ao longo de sucessivas etapas de exposição a fluidos (uso no paciente, pré-limpeza, limpeza, desinfecção/esterilização) e secagem (embalagem e armazenamento), sendo denominado biofilme de acúmulo.(6,7)O biofilme de acúmulo é mais compacto e aderente que o biofilme tradicional,(6,8)que se forma sob condições de umidade constante.(7) O objetivo desse trabalho foi avaliar a integridade da superfície e a contaminação microbiológica de parafusos cirúrgicos ortopédicos prontos para uso (parafusos corticais menos e mais utilizados), fornecidos através do sistema de consignação/comodato.

Métodos

Esse estudo foi realizado no Centro de Material e Esterilização (CME) de um hospital público de ensino (235 leitos) na região Centro-Oeste do Brasil, no período de agosto a novembro de 2019. Caixas de pequenos fragmentos 3.5 (CPF 3.5) adquiridas pelo sistema de consignação/comodato e utilizadas em cirurgias ortopédicas (fraturas) de membros inferiores e superiores foram avaliadas. As CPF 3.5 contêm instrumentos cirúrgicos e uma bandeja com parafusos corticais e esponjosos que variam do número 10 ao 50.

Para evitar interferências na rotina cirúrgica do hospital, a empresa fornecedora entregava um kit CPF 3.5 extra uma vez por semana. No momento da entrega no CME, as CPF 3.5 foram submetidas a todas as etapas de processamento (recepção, limpeza, secagem, avaliação da integridade e funcionalidade, preparo, esterilização e armazenamento), seguindo o protocolo do hospital. O método de esterilização utilizado foi vapor saturado sob pressão (134ºC por 5 minutos - Baumer, Brasil). A rotina de controle de qualidade da esterilização incluiu: indicadores físicos de cada ciclo, indicadores químicos Classe I em todas as embalagens, Classe II (Bowie & Dick) diariamente, e Classe V em todas as caixas cirúrgicas, e indicador biológico de terceira geração diariamente. Na área de armazenamento do CME, uma das CPF 3.5 foi selecionada aleatoriamente (número do patrimônio registrado), colocada em caixa plástica desinfetada com tampa e transportada para o laboratório de microbiologia.

Um total de nove CPF 3,5 foram selecionadas para o estudo, e 14 parafusos corticais foram retirados de cada kit: sete parafusos tamanhos 14, 16 ou 18 (Grupo 1 - os mais utilizados, portanto, aqueles que permanecem na caixa por um período de tempo menor e, consequentemente, são menos expostos a agentes biológicos, químicos e físicos durante o manuseio e processamento) e sete parafusos tamanho 10 ou 38 (Grupo 2 - menos utilizados e, portanto, mais frequentemente expostos aos agentes mencionados acima).

Cada CPF 3.5 possui quatro unidades de parafusos corticais de cada tamanho, totalizando 12 parafusos no Grupo 1 e oito no Grupo 2. Os parafusos foram selecionados aleatoriamente por meio do Random App (Mireia Lluch Ortola, Creations Apps). Os parafusos selecionados foram submetidos a cultura bacteriana (n=6 parafusos/bandeja, 9 bandejas), quantificação de proteína contaminante (n=6 parafusos/bandeja, 9 bandejas) e Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV) (n=2 parafusos/bandeja, 9 bandejas).

Todos os parafusos selecionados para análise foram inspecionados visualmente com o auxílio de uma lente de aumento de oito vezes, com uma fonte de luz acoplada (LED Bench Magnifier HL-500 8D, China).(9,10)

A proteína foi extraída dos parafusos usando hidrólise alcalina modificada.(11,12)Resumidamente, os parafusos foram imersos individualmente em 2mL (parafusos número 14, 16 e 18) ou 4mL (parafusos número 38) de ácido 2-morfolinoetanossulfônico (MES) gelado (20 mM), em solução salina 0,9%, contendo NaOH (30%), e submetidos a sonicação por 1 hora, vortex por 2 minutos, incubação a 30°C por 30 minutos e imersão em água fervente por 15 minutos. Após o resfriamento, a solução extraída de cada parafuso foi transferida para tubos plásticos individuais, onde se adicionou HCl 32%. Em seguida, os tubos passaram por centrifugação (13.000 rpm por 5 minutos). Uma alíquota de 1mL da amostra extraída de cada parafuso foi usada para quantificar a proteína usando 1mL de mistura do teste Pierce ® micro-BCA protein Assay (Thermofisher, Waltham, EUA), e incubada e lida por espectrofotometria (Digital UV-VIS IL- 593-S, Kasuaki), com comprimento de onda de 562nm, conforme instruções de uso do fabricante. A concentração de proteína (µg/mL) foi calculada usando uma curva padrão. A sensibilidade do teste foi de 0,5µg/mL. O cálculo de proteína por parafuso foi: µg/mL X volume da amostra extraída.

Para MEV, os parafusos foram individualmente colocados em 2,5mL (tamanho 10, 14, 16, 18) ou 5,5ml (tamanho 38) de Tryptic Soy Broth (TSB) e submetidos a 10 minutos de sonicação (USC - 1400A, Unique, São Paulo, Brasil), e vortex por 2 minutos, e depois incubados a 35°C por até 28 dias.(13)Uma alíquota de 10µL das culturas positivas foi semeada em ágar Brain Heart Infusion, e as colônias de bactérias foram submetidas à coloração de Gram e cultivadas em ágar MacConkey ou sal manitol. A identificação bacteriana e os testes de suscetibilidade antimicrobiana foram realizados usando o sistema Vitek 2 Compact (BioMérieux, Marcy-l’Étoile, Carolina do Norte, EUA). A suscetibilidade antimicrobiana foi classificada de acordo com os pontos de corte do Clinical and Laboratory Standards Institute.(14)As cepas da American Type Culture Collection (ATCC) foram utilizadas como controle de qualidade: Enterococcus faecalis (29212) e Staphylococcus aureus (25923). O teste de sensibilidade antimicrobiana não foi realizado em Micrococcus sp., Kocuria sp., bacilos Gram-positivos, e micobactérias.

Os parafusos foram fixados em glutaraldeído 2,5% em tampão fosfato 0,1 M pH7,2 durante a noite. Posteriormente, as amostras foram lavadas em tampão fosfato 0,1 M pH7,2; desidratadas em concentrações crescentes de etanol; enxaguadas em solução de hexametildissilazano (HDMS); montadas em stubs com auxílio de tinta de carbono; revestidas em ouro (Denton Vacuum - Desk V; Morristown; New Jersey, EUA). O parafuso inteiro foi escaneado por meio de MEV (JSM-6610, JOEL, Japão). Os parafusos foram considerados positivos para biofilme se houvesse microrganismos agregados imersos em EPS em sua superfície.(5) Um novo parafuso, que passou por apenas um processamento, também foi avaliado por MEV, nas mesmas condições.

O teste de Wilcoxon-MannWhitney foi utilizado para analisar a quantidade de proteína nos parafusos dos Grupos 1 (mais utilizados) e 2 (menos utilizados), utilizando o programa R. Valores de P<0,05 foram considerados estatisticamente significantes.

O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás aprovou a pesquisa (número do parecer 558.585) (CAAE: 26959614.0.0000.5078).

Resultados

A inspeção visual com o auxílio de uma lente de aumento de oito vezes foi realizada em todos os 126 parafusos corticais. Ranhuras foram detectados em 11 (8,7%) parafusos, predominantemente no grupo 2 (8/11). Dois parafusos (1,6%) do grupo 2 apresentaram sinais de desgaste. A proteína foi quantificada em 54 parafusos (27 de cada grupo) e detectada em 52 (96,3%), 26 de cada grupo. No grupo 1, a média da quantidade de proteína foi 19,85µg (variação de 5,03 a 56,3) e, no grupo 2, 26,95µg (variação de 6,5 a 65,7). A maioria dos parafusos (22/26 e 24/26 do grupo 1 e grupo 2, respectivamente) apresentou quantidade de proteína contaminante > 10µg. Não houve diferença estatisticamente significativa na quantidade de proteína entre os grupos (P=0,07). O crescimento bacteriano foi avaliado em 27 parafusos de cada grupo e encontrado em três (5,5%) parafusos, um do grupo 1 (mais utilizados) e dois do grupo 2 (menos utilizados). Micrococcus luteus foi isolada em um parafuso do grupo 1, e M. luteus (parafuso A), Kocuria rhizophila e Staphylococcus hominis resistente à rifampicina (parafuso B) foram isoladas em dois parafusos do grupo 2. Sujidade e/ou ranhuras foram detectados em todos os 18 parafusos submetido à MEV (Quadro 1) (Figura 1), e também no novo parafuso. Biofilme foi detectado em oito parafusos, três do grupo 1 (mais utilizados) e cinco do grupo 2 (menos utilizados) (Figura 2).

Quadro 1
Danos à superfície, sujidade e biofilme detectados em implantes ortopédicos (parafusos corticais), a partir de caixas pequenos fragmentos 3,5 adquiridas por sistema de consignação/comodato e prontos para uso

Figura 1
Micrografias mostrando ranhuras e sujidade em implantes ortopédicos (parafusos corticais), adquiridos por sistema de consignação/comodato e prontos para uso

Figura 2
Micrografias de biofilme nos implantes ortopédicos (parafusos corticais) mais utilizados (Grupo 1) e menos utilizados (Grupo 2), adquiridos por meio de consignação/comodato e prontos para uso

Discussão

Os parafusos corticais de uso único prontos para uso, fornecidos em kits ortopédicos consignados, estavam contaminados por proteína e biofilme, e todos apresentaram danos na superfície, de acordo com MEV. Esse dano também foi detectado por inspeção visual nos parafusos 3/63 e 8/63 dos grupos 1 e 2, respectivamente. Os parafusos do grupo 2 tendem a permanecer no kit cirúrgico por mais tempo e, por isso, estão expostos a mais oportunidades de danos durante o manuseio e processamento. Isso pode fazer com que os danos nos parafusos do grupo 2 sejam “mais profundos” ou “piores”, o que foi verificado na inspeção visual (com o auxílio de lentes de aumento). A associação entre corrosão/deterioração de parafusos ortopédicos e número de processamentos foi relatada por McAuley.(15)Vale ressaltar que o novo parafuso (processado apenas uma vez) também apresentou ranhuras, revelando que podem ocorrer danos na superfície durante o processo de fabricação, transporte, e manuseio do parafuso. Os danos na superfície favorecem o acúmulo de matéria orgânica, aumentando a dificuldade do processamento.

A presença de proteína foi observada em 96,3% (52/54) dos parafusos, atingindo valores seis vezes maiores (65,7µg) do que o recomendado (5 µg por lado do DMR(16)ou 10µg por DMR). A média de proteína encontrada em cada grupo foi 1,9 e 2,6 vezes superior à quantidade aceitável. Costa et al.(2)encontraram altos níveis de proteína residual em instrumentos/implantes cirúrgicos feitos de aço inoxidável e submetidos a múltiplos processamentos na Austrália. Em Costa et al.(2), todos os dispositivos, incluindo os parafusos ortopédicos, apresentaram nível de proteína acima do recomendado (10µg por DMR), sendo que um parafuso apresentou nível de proteína de 24µg e 61% dos demais instrumentos cirúrgicos apresentaram nível de proteína 10 vezes ou mais acima da quantidade máxima aceitável. Em um estudo de Agarwal et al., matéria orgânica (carboidratos, gorduras), sabão, e corrosão também foram encontrados em parafusos pediculares prontos para uso em cirurgia de coluna.(17) A forma atual de apresentação dos parafusos na caixa cirúrgica, em racks que, na maioria das vezes, não podem ser removidos da caixa, dificulta sua limpeza – etapa mais importante do processamento –, considerando que há um grande número de parafusos (centenas) e a maioria deles é muito pequeno, o que faz com que seja difícil realizar fricção manual suficiente para garantir a limpeza adequada. A maioria das instruções dos fabricantes na América do Norte não especifica como implantes ortopédicos, como os parafusos, devem ser processados.(4) O alto percentual de parafusos com quantidade de proteína acima do aceitável demonstra essa dificuldade de limpeza e sugere que os parafusos ortopédicos deveriam ser apresentados de forma diferente. Além disso, conforme Agaral et ai.(17), o procedimento recomendado para o processamento de parafusos pediculares é inviável (19 horas de processamento nas recomendações do fabricante versus 1 hora e 17 minutos nas observações em tempo real).

A presença de proteína em instrumentos/implantes cirúrgicos prontos para uso pode resultar em respostas inflamatórias após a cirurgia e, em países europeus, há preocupação com a transmissão da variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.(18)

A presença de matéria orgânica diminui a eficácia dos processos de esterilização. Após o processamento, bactérias formadoras de biofilme foram isoladas em 3/54 parafusos, e extensa formação de biofilme foi visualmente confirmada em 8/18 parafusos por meio de MEV. Esse consórcio microbiano também foi encontrado em estudos anteriores com parafusos consignados(2,19). Isso representa um desafio para o controle de infecção, pois esse consórcio microbiano protege os microrganismos contra limpeza, desinfetantes e biocidas. Além disso, conforme relatado por Almatroudi et al.,(20) o biofilme de superfícies secas de S. aureus pode sobreviver à autoclavação a 121oC por 30 minutos. A presença de sujidade auxilia na formação de biofilme, agindo como uma camada de condicionamento para a fixação das bactérias. Assim, o biofilme pode se formar rapidamente em instrumentos cirúrgicos processados, como demonstrado no estudo in vitro de Lopes et al. Biofilme foi encontrado em fresas medulares flexíveis e medidores de profundidade após 20 ciclos de uso e processamento, incluindo esterilização em autoclave a vapor saturado sob pressão (134 oC por 3 min e 30s).(3)Parafusos contaminados com biofilme podem liberar organismos viáveis no sítio cirúrgico e resultar em infecção e perda do implante.

Embora classificados como de uso único, os parafusos estão expostos a múltiplas oportunidades de contaminação antes da implantação(21)e, atualmente, não há critérios para determinar o tempo máximo para o processamento de um parafuso ou uma maneira de identificar o número de vezes que um parafuso é processado. Há uma tendência de mudança para o uso de parafusos embalados individualmente.(17,22)Por exemplo, na Escócia, o processamento de implantes não é permitido.(21)Segundo Litrico et al.,(23)a taxa de infecção foi menor em parafusos previamente esterilizados e embalados individualmente (2%) em comparação com implantes processados (6%). Por outro lado, essa prática também gera preocupações em relação ao aumento do risco de contaminação,(24)da duração da cirurgia (25)e dos custos.(25,26)

Na Austrália e na Nova Zelândia,(27)os PPS passam por desinfecção de alto nível ou esterilização antes de serem devolvidos à empresa fornecedora. No Brasil, apenas a limpeza é obrigatória.(9)A limpeza reduz a carga microbiana e a presença de outras matérias orgânicas e inorgânicas; entretanto, a contaminação remanescente favorece a formação de biofilme até que a caixa cirúrgica seja processada/utilizada em outro serviço de saúde. A presença de sangue em caixas cirúrgicas tem sido detectada no momento da entrega nas unidades de saúde nos EUA(28,29)e no Brasil,(2) também revelando o risco ocupacional para os trabalhadores da empresa cedente, que muitas vezes não possuem treinamento específico em risco biológico.(2)Os indicadores de qualidade relacionados à estrutura e ao processo de trabalho para manejo e processamento de PPS e implantes consignados, como parafusos, tendem a ser mais elevados em países de renda alta do que em países de renda média ou baixa; ainda assim, falhas acontecem em países de todas as categorias, demonstrando a necessidade de enfrentar os desafios do sistema de consignação/comodato em todo o mundo.(30)

Conclusão

O estudo revelou que parafusos corticais prontos para uso estavam contaminados por bactérias viáveis, biofilme, e possuíam danos na superfície. Os parafusos costumam permanecer nas bandejas cirúrgicas para múltiplos processamentos, sendo expostos repetidamente à contaminação e a possíveis danos. Esses achados demonstram a necessidade de discutir e repensar a forma como esses implantes de uso único são atualmente disponibilizados para cirurgia.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; bolsa de pesquisa: 484578/2013-8) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES; bolsa de pós-doutorado para Dayane de Melo Costa; bolsa de pesquisa: 88882.306482/2018-01).

Referências

  • 1 Seavey R. Reducing the risks associated with loaner instrumentation and implants. AORN J. 2010;92(3):322-31; quiz 332-4.
  • 2 Costa DM, Lopes LK, Vickery K, Watanabe E, Vasconcelos LS, De Paula MC, et al. Reprocessing safety issues associated with complex-design orthopaedic loaned surgical instruments and implants. Injury. 2018;49(11):2005-12.
  • 3 Lopes LK, Costa DM, Tipple AF, Watanabe E, Castillo RB, Hu H, et al. Surgical instruments complex design as barrier for cleaning effectiveness, favouring biofilm formation. J Hosp Infect. 2019;103:e53-60.
  • 4 Vickery K, Hu H, Jacombs AS, Bradshaw DA, Deva AK. A review of bacterial biofilms and their role in device-associated infection. Infect Dis Health. 2013;18:61-6. Review.
  • 5 Alfa MJ. The “Pandora’s box” dilemma: reprocessing of implantable screws and plates in orthopedic tray sets. Biomed Instrum Technol. 2012;(Suppl):55–9.
  • 6 Alfa M, Howie R. Modeling microbial survival in buildup biofilm for complex medical devices. BMC Infect Dis. 2009;9:1-14.
  • 7 Zhong W, Alfa M, Howie R, Zelenitksy S. Simulation of cyclic reprocessing buildup on reused medical devices. Comput Biol Med. 2009;39:568-77.
  • 8 Vickery K. Special Issue: microbial biofilms in healthcare: formation, prevention and treatment [Editorial]. Materiais (Basel). 2019;12:2001.
  • 9 Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC No 15, de 15 de março de 2012. Dispõe sobre requisitos de boas práticas para o processamento de produtos para saúde e dá outras providências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2012. [citado 2015 Jul 12]. Disponível em: https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/rdc-15-de-15-de-marco-de-2012
    » https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/rdc-15-de-15-de-marco-de-2012
  • 10 World Health Organization (WHO). Global guidelines for the prevention of surgical site infection. Geneva: WHO; 2016 [cited 2019 Aug 13]. Available from: https://www.who.int/gpsc/ssi-guidelines/en/
    » https://www.who.int/gpsc/ssi-guidelines/en/
  • 11 Li XZ, Webb JS, Kjelleberg S, Rosche B. Enhanced benzaldehyde tolerance in zymomonas mobilis biofilms and the potential of biofilm applications in fine-chemical production. Appl Environ Microbiol. 2006;72:1639-44.
  • 12 Chowdhury D, Rahman A, Hu H, Jensen SO, Deva AK, Vickery K. The effect of disinfectant formulation and organic soil on the efficacy of oxidising disinfectants against biofilms. J Hosp Infect. 2019;103(1):e33-41.
  • 13 Tessarolo F, Caola I, Caciagli P, Guarrera GM, Nollo G. Sterility and microbiological assessment of reused single-use cardiac electrophysiology catheters. Infect Control Hosp Epidemiol. 2006;27(12):1385-92.
  • 14 Clinical and Laboratory Standards Institute (CLSI). Performance standards for antimicrobial susceptibility testing. 27th ed. CLSI supplement M100 S27. Wayne PAÇ Clinical and Laboratory Standards Institute, 2017. United States: CLSI; 2017 [cited 2020 May 14]. Available from: https://clsi.org/media/1795/catalog2017_web.pdf
    » https://clsi.org/media/1795/catalog2017_web.pdf
  • 15 McAuley T. Reprocessing of ‘Single-Use’ Orthopaedic Implants. A Study on the Effects of Repeated Reprocessing. In Proceedings of the 17th World Sterilization Congress. Brisbane, Australia, 26–29 October 2016 [cited 2018 July 24]. Available from: https://www.fsraca.org.au/wfhss-2016-17th-world-sterilization-congress/
    » https://www.fsraca.org.au/wfhss-2016-17th-world-sterilization-congress/
  • 16 United Kingdom Department of Health. Health Technical Memorandum (HTM) 01-01: management and decontamination of surgical instruments (medical devices) used in acute care. Part C: Steam sterilization. UK: United Kingdom Department of Health; 2016 [cited 2018 July 24]. Available from: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/545863/HTM0101PartC.pdf
    » https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/545863/HTM0101PartC.pdf
  • 17 Agarwal A, Schultz C, Agarwal AK, Wang JC, Garfin SF, Anand N. Harboring contaminants in repeatedly reprocessed pedicle screws. Global Spine J. 2019;9:173-8.
  • 18 World Health Organization (WHO). WHO manual for surveillance of human transmissible spongiform encephalopathies, including variant Creutzfeldt-Jakob disease. Geneva: WHO; 2003 [cited 2016 May 29]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/42656
    » https://apps.who.int/iris/handle/10665/42656
  • 19 Costa DM, Lopes LK, Tipple AF, Johani K, Hu H, Deva AK, et al. Evaluation of stainless steel surgical instruments subjected to multiple use/processing. Infect Dis Health. 2017;23(1):3-9.
  • 20 Almatroudi A, Gosbell IB, Hu H, Jensen SO, Espedido BA, Tahira S, et al. Staphylococcus aureus dry-surface biofilms are not killed by sodium hypochlorite: implications for infection control. J Hosp Infec. 2016;93(3):263-70.
  • 21 Costa DM, Vickery K, Tipple AF, Hu H. Providing sterile orthopedic implants: challenges associated with multiple reprocessing of orthopedic surgical trays. Hygiene. 2022;2(1):63-71.
  • 22 National Health Scotland (NHS). Decontamination: migration to single-use pre-sterilized individually wrapped small orthopedic implants. Scotland: NHS; 2007 [cited 2019 Oct 10]. Available from: www.sehd.scot.nhs.uk/mels/hdl2007_04.pdf
    » www.sehd.scot.nhs.uk/mels/hdl2007_04.pdf
  • 23 Litrico S, Recanati G, Gennari A, Maillot C, Saffarini M, Le Huec JC. Single-use instrumentation in posterior lumbar fusion could decrease incidence of surgical site infection: a prospective bi-centric study. Eur J Orthop Surg Traumatol. 2016;26:21-6.
  • 24 Man WY, Mukherjee A, Feng Lee PY. The economic impact of individually packaged screws. Surgeon. 2014;12(1):35-9.
  • 25 Crick B, Chua S, Canty J, McCullough K. Potential for contamination of orthopaedic implants using individually wrapped screws. ANZ J Surg. 2008;78(4):266-8.
  • 26 Suchowersky AM, Hua M, Lorentzos P, Ashton LA. A comparison of risk profile for orthopaedic operations when utilizing individually wrapped screws (IWS) when compared with sterile screw caddies (screw racks). J Orthop Surg (Hong Kong). 2020;28:2309499020944086.
  • 27 Australian/New Zeland Standard. AS/NZS 4187:2003Equipment ceaning, disinfecting and sterilizing reusable medical and surgical instruments and equipment, and maintenance of associated environments in health care facilities. Joint Technical Committee HE-023. Australian/New Zealand: Standards Australia International Ltd; 2003 [cited 2019 Oct 10]. Available from: https://www.saiglobal.com/pdftemp/previews/osh/as/as4000/4100/4187.pdf
    » https://www.saiglobal.com/pdftemp/previews/osh/as/as4000/4100/4187.pdf
  • 28 Winthrop TG, Sion BA, Gaines C. Loaner instrumentation: Processing the unknown. AORN J. 2007;85(3):566-73.
  • 29 Huter-Kunish GG. Processing loaner instruments in an ambulatory surgery center. AORN J. 2009;89(5):861-70.
  • 30 Tipple AF, Costa DM, Lopes LK, Veloso TR, Pereira LA, Hu H, et al. Reprocessing of loaned surgical instruments/implants in Australia and Brazil: a survey of those at the coalface. Infect Dis Health. 2022;27(1):23-30.

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2021
  • Aceito
    29 Ago 2022
location_on
Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo R. Napoleão de Barros, 754, 04024-002 São Paulo - SP/Brasil, Tel./Fax: (55 11) 5576 4430 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: actapaulista@unifesp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro