Open-access Repercussões da COVID-19 no cuidado às crianças com necessidades de saúde especiais

Repercusiones del COVID-19 en el cuidado de infantes con necesidades de salud especiales

Resumo

Objetivo  Compreender as repercussões da pandemia COVID-19 no cuidado de crianças com necessidades de saúde especiais.

Métodos  Pesquisa exploratória, qualitativa, ancorada no quadro conceitual de vulnerabilidade em saúde nas dimensões individual, social e institucional. Foram realizadas entrevistas, no período de outubro de 2020 a fevereiro de 2021 (pré-vacinação contra COVID-19) com 19 cuidadores familiares, 11 profissionais de instituições de educação, proteção social e saúde e 15 enfermeiros de atenção primária à saúde em um município brasileiro na fronteira Brasil-Argentina-Paraguai. Foi aplicada análise temática reflexiva.

Resultados  Descontinuidade no cuidado, baixo alcance da proteção social e contexto institucional instável marcaram a atenção de crianças com necessidades de saúde especiais. Destacaram-se vulnerabilidades individuais em decorrência de atraso vacinal, medo de contágio e mudanças no desenvolvimento; vulnerabilidade institucional por restrições de visita domiciliar, lista de espera, falta de profissionais e ausência de atividades grupais; e vulnerabilidade social relacionadas às dificuldades de auxílio social e fechamento de fronteiras terrestres. Os elementos relacionados à estratégia de telessaúde e mecanismos que assumem responsabilidade profissional expressaram fortalezas para o cuidado de crianças com necessidades de saúde especiais.

Conclusão  As medidas restritivas adotadas no início da pandemia COVID-19 repercutiram negativamente no cuidado de crianças com necessidades de saúde especiais, intensificando suas vulnerabilidades individual e social. Fortalecer os contextos familiares e comunitários e ampliar o diálogo entre os setores da atenção primária à saúde indicam evitar o descompasso entre o apoio profissional e as necessidades prementes dessas crianças, assegurando a continuidade da atenção.

Vulnerabilidade em saúde; Crianças com deficiência; COVID-19; Infecções por coronavírus; Continuidade da assistência ao paciente; Saúde da criança

Resumen

Objetivo  Comprender las repercusiones de la pandemia de COVID-19 en el cuidado de infantes con necesidades de salud especiales.

Métodos  Estudio exploratorio, cualitativo, basado en el mapa conceptual de vulnerabilidad en salud en la dimensión individual, social e institucional. Se entrevistó a 19 cuidadores familiares, 11 profesionales de instituciones de educación, protección social y salud y 15 enfermeros de atención primaria de salud, en el período de octubre de 2020 a febrero de 2021 (antes de la vacunación contra COVID-19), en un municipio brasileño en la frontera de Brasil, Argentina y Paraguay. Se aplicó el análisis temático reflexivo.

Resultados  La atención de infantes con necesidades de salud especiales fue marcada por la discontinuidad del cuidado, el bajo alcance de la protección social y el contexto institucional inestable. Se observaron vulnerabilidades individuales como consecuencia del retraso de vacunación, miedo del contagio y cambios del desarrollo; vulnerabilidades institucionales por restricciones de visitas domiciliarias, lista de espera, falta de profesionales y ausencia de actividades grupales; y vulnerabilidades sociales relacionadas con las dificultades de ayuda social y cierre de fronteras terrestres. Los elementos relacionados con la estrategia de salud electrónica y mecanismos que asumen responsabilidad profesional expresaron fortalezas para el cuidado de infantes con necesidades de salud especiales.

Conclusión  Las medidas restrictivas adoptadas al comienzo de la pandemia de COVID-19 repercutieron negativamente en el cuidado de infantes con necesidades de salud especiales, lo que intensificó sus vulnerabilidades individuales y sociales. Fortalecer los contextos familiares y comunitarios y ampliar el diálogo entre los sectores de la atención primaria de salud parecen evitar la divergencia entre el apoyo profesional y las necesidades urgentes de estos infantes, para garantizar la continuidad de la atención.

Vulnerabilidad en salud; Niños con discapacidad; COVID-19; Infecciones por coronavirus; Continuidad de la atención al paciente; Salud infantil

Abstract

Objective  Understanding the repercussions of the COVID-19 pandemic on the care of children with special health needs.

Methods  Exploratory, qualitative research, anchored in the conceptual framework of health vulnerability in the individual, social and institutional dimensions. Interviews were carried out from October 2020 to February 2021 (pre-vaccination against COVID-19) with 19 family caregivers, 11 professionals from education, social protection and health institutions and 15 primary health care nurses in a Brazilian city on the Brazil-Argentina-Paraguay border. Reflective thematic analysis was applied.

Results  Discontinuity in care, low scope of social protection and unstable institutional context marked the attention of children with special health needs. Individual vulnerabilities were highlighted as a result of vaccination delays, fear of contagion and changes in development; institutional vulnerability due to restrictions on home visits, waiting lists, lack of professionals and absence of group activities; and social vulnerability related to difficulties in social assistance and the closure of land borders. Elements related to the telehealth strategy and mechanisms that assume professional responsibility expressed strengths for the care of children with special health needs.

Conclusion  The restrictive measures adopted at the beginning of the COVID-19 pandemic had a negative impact on the care of children with special health needs, intensifying their individual and social vulnerabilities. Strengthening family and community contexts and expanding dialogue between sectors of primary health care indicate avoiding a mismatch between professional support and the pressing needs of these children, ensuring continuity of care.

Health vulnerability; Disabled children; COVID-19; Coronavirus infections; Continuity of patient care; Child health

Introdução

O vírus Sars-CoV-2 surgiu no final de 2019 e contaminou mais de 630 milhões de pessoas em todo mundo.(1)Devido ao elevado poder de contágio e alto índice de mortalidade, medidas de prevenção e controle foram implementadas para evitar sua propagação. O fechamento de serviços não essenciais e o distanciamento físico exigidos como medidas preventivas causaram efeitos significativos na saúde, nas relações sociais e na economia.(2-5)

No campo da saúde, o aumento na procura por serviços hospitalares levou a mudanças organizacionais, especialmente nas unidades de Atenção Primária à Saúde (APS).(6)Os serviços de urgência e emergência foram priorizados e os profissionais realocados para setores de cuidado intensivo,(7) comprometendo as ações de seguimento à assistência, particularmente a crianças com necessidades de saúde especiais (CRIANES).(4,8)

As CRIANES têm complexas demandas de cuidado (de desenvolvimento, tecnológicas, medicamentosas e/ou habituais modificadas) e frequentemente dependem de vários serviços ao longo do tempo.(4,9) Elas poderão enfrentar obstáculos no acesso aos serviços públicos de saúde, além de dificuldades de inclusão social, preconceito e escassez de redes de apoio.(10,11)Essas lacunas, que podem estar usualmente no cotidiano de CRIANES, tornam-nas mais vulneráveis, sendo relevante um olhar para o enfoque da vulnerabilidade em saúde.(12)

A vulnerabilidade em saúde envolve situações de agravo à saúde individualmente e/ou coletivamente, podendo ser reconhecidas em três dimensões: individual, social e institucional.(12) Essa abordagem voltada para a saúde da criança engloba as dimensões individual (relações sustentadoras contínuas, proteção física e segurança), social (inserção social da família, acesso a direitos, proteção e promoção social) e institucional (diretrizes e ações de atenção e proteção à saúde infantil).(13)

O contexto da pandemia COVID-19 gerou situações extressantes para as famílias, interferindo substancialmente nas relações de cuidado.(5,9) Tais elementos podem agravar a vulnerabilidade das CRIANES, prejudicando seu crescimento e desenvolvimento, se somados às lacunas de seguimento da saúde.(12-14)

Portanto, o objetivo deste estudo foi compreender as repercussões da pandemia COVID-19 no cuidado de CRIANES.

Métodos

Pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa, ancorada no quadro conceitual de vulnerabilidade em saúde,(12)envolvendo as dimensões individual, social e institucional com foco na saúde da criança.(13)

Este estudo foi desenvolvido em Foz do Iguaçu (PR; região da tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai), em instituições filantrópicas de educação, proteção social e saúde que atendem crianças com múltiplas deficiências, e unidades de APS próximas às áreas de residência das CRIANES.

A investigação foi realizada desde outubro/2020 a fevereiro/2021 com entrevistas conduzidas pela primeira autora, que tem experiência profissional na área da saúde infantil e recebeu treinamento prévio para realizar entrevistas.

Os critérios de inclusão foram os seguintes: ser o cuidador principal de crianças menores de seis anos (com pelo menos duas demandas de cuidado em saúde e em seguimento nas instituições), profissionais atuantes (por pelo menos um ano na área de serviço social, psicologia e coordenação pedagógica), enfermeiras/os das unidades de APS (regiões Norte, Nordeste, Sul, Leste e Oeste). Os critérios de exclusão foram: ser cuidador de crianças que apresentavam apenas deficiência auditiva.

Foi configurada uma amostra por conveniência e a coleta de dados iniciou com todos profissionais da assistência social, psicologia e coordenação pedagógica das instituições, após agendamento telefônico. A partir de uma lista disponibilizada pelas instituições contendo os nomes de 38 crianças (menores de seis anos) e os horários de atendimento, os cuidadores foram abordados pessoalmente e convidados a participar do estudo enquanto aguardavam o atendimento de suas crianças. Em relação aos enfermeiros, a amostra partiu de 17 enfermeiros, atuantes nas 11 unidades referidas pelos cuidadores. Para este grupo, foi realizado agendamento prévio (por telefone), e as entrevistas aconteceram nas próprias unidades durante os intervalos das consultas. Houve recusa de duas enfermeiras devido à sobrecarga de trabalho.

Os participantes foram identificados usando as letras CC (cuidador de CRIANES), PS (profissional da saúde) e PI (profissional de outra instituição), seguidas pelos números das entrevistas. A redação do manuscrito foi orientada pelo Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ).(15)

Não foi feito cálculo amostral prévio, pois a ênfase foi a qualidade dos dados e as interconexões necessárias para compreender o objeto de estudo. A busca foi encerrada quando a pesquisadora encontrou a lógica interna do estudo.(16)

As entrevistas foram realizadas presencialmente em salas privadas, respeitando as medidas sanitárias (distanciamento físico de 2 metros, sala ventilada, uso de máscara e álcool em gel para higiene das mãos), com duração média de 30 minutos, sendo gravadas em áudio e transcritas na íntegra pela primeira autora. A entrevista começou com a pergunta norteadora: “Como tem sido o cuidado e os caminhos percorridos pelas famílias para atender às necessidades de saúde da criança?”. Foi seguido um roteiro focado no primeiro contato com a APS, encaminhamentos, qualidade da escuta, acolhimento, orientações dadas pelos profissionais, integralidade do cuidado e continuidade da atenção.

Foram realizadas duas entrevistas-piloto que foram desconsideradas para análise dos dados. A gravação foi disponibilizada ao fim de cada entrevista para que a/o participante pudesse dar anuência do conteúdo.

A análise temática reflexiva(17,18) foi usada para compreender as percepções da(o)s participantes. Primeiro, foi realizada a leitura repetida das transcrições para maior familiarização com o material coletado. Foi então realizada uma codificação sistemática, com a identificação de alguns padrões nos segmentos dos discursos coletados. Assim, esses segmentos foram agrupados em mapas horizontais. Depois, os temas foram criados e revisados para maior clareza e proximidade ao referencial adotado,(12,13) evitando canais passivos e sem contexto com as respostas da(o)s participantes.(17,18)

A investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (parecer 4.300.226) de acordo com as recomendações da Resolução 466/12 (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética: 37530620.8.0000.0107).

Resultados

A pesquisa envolveu 45 participantes: 19 cuidadores familiares de CRIANES (14 mães, três pais e duas avós), brasileira(o)s, com idades na faixa de 22-54 anos; 11 profissionais das instituições de educação, proteção social e saúde, com 22-67 anos (cinco coordenadores pedagógicos, quatro assistentes sociais e duas psicólogas); e 15 enfermeiros da APS (11 Unidades de Saúde da Família e quatro Unidades Básicas de Saúde) com 22-46 anos.

Os resultados emergiram da sistematização dos dados, permitindo compreender as repercussões da pandemia COVID-19 sobre o cuidado de CRIANES. O quadro 1 mostra as unidades temáticas, as dimensões e os códigos.

Quadro 1
Apresentação das unidades temáticas, dimensões e códigos relativos ao cuidado e às necessidades de saúde das crianças com necessidades de saúde especiais (CRIANES)

Necessidades de saúde e fragilidade do cuidado integral

Este tema mostra o cuidado às CRIANES frente ao contexto que a pandemia trouxe a seus cotidianos, considerando suas necessidades e implicações para o cuidado integral. Durante a pandemia COVID-19, a atenção às necessidades das crianças foi reconhecida como sendo frágil, especialmente quanto às ações de prevenção e promoção da saúde.

“Devido à pandemia, pararam todos os atendimentos; a criança está abandonada” (PI9)

“Fui buscar a declaração de vacina e não consegui; não tem profissional” (CC13)

“O pessoal do posto pediu para eu atrasar as vacinas” (CC7)

As limitações assistenciais decorrentes do distanciamento físico e o medo da contaminação prejudicaram o acompanhamento das crianças.

“Tem lugares onde eu não posso levar meu filho; ele não fica com a máscara” (CC7)

“Houve muitas baixas; as pessoas não vinham aos atendimentos” (PI8)

“Esse ano, as mães não queriam levar as crianças ao atendimento por causa da COVID” (PS7)

“As mães entram em contato por telefone, pois têm medo de trazer as crianças” (PS6)

O cuidado das crianças foi sinalizado por aspectos vinculados ao seu desenvolvimento, destacando-se as dificuldades em seu cotidiano.

“Meu filho tinha evoluído muito, mas com essa coisa [máscara] no rosto o tempo todo, dificulta” (CC7)

“No começo do ano estava tudo maravilhoso; aí veio a pandemia e acabou com tudo; ele [filho] começou a ter pesadelos e rir para as paredes, sintomas que ele não tinha antes” (CC6)

“A gente está tentando se adaptar à pandemia, mas não está fácil. Eu tenho que mantê-la [filha] dentro de casa e a gente está sofrendo muito” (CC3)

Os obstáculos incluíram ora o seguimento do crescimento e do desenvolvimento infantil, ora o diálogo com os cuidadores familiares.

Barreiras para alcançar proteção à saúde e atendimento às necessidades de atenção especial

Este tema expressa o alcance da proteção às crianças na dimensão “acesso às instituições de educação, proteção social e saúde” diante das circunstâncias da pandemia COVID-19. As práticas envolvendo trocas de experiências, acolhimento, orientação e resolução de dúvidas foram interrompidas. As atividades grupais foram suspensas devido ao distanciamento físico.

“Neste ano, a gente não fez qualquer ação em grupo devido à pandemia” (PI1)

“Tinha grupo de atendimento que abordava diferentes situações e isso era positivo: eles se apoiavam, mas desde março a recomendação é não fazer grupo” (PS2)

As visitas domiciliares também foram interrompidas embora houvesse demanda para o atendimento.

“O ACS [Agente Comunitário de Saúde] não está fazendo visita domiciliar; só busca ativa devido à pandemia” (PS3)

“Na pandemia, a gente não está com a visita domiciliar de rotina, mas a gente tem demanda” (PS14)

Considerando os serviços brasileiros de atendimento às CRIANES que moram na tríplice fronteira (Brasil-Argentina-Paraguai), o fechamento das fronteiras terrestres impediu o acesso às crianças.

“Com o fechamento da fronteira, não há procura por atendimento” (PI3)

“O Paraguai estava fechado, então a gente não teve contato com elas [crianças e famílias]” (PI2)

As peculiaridades socioeconômicas das famílias também foram apontadas pelos profissionais, evidenciando a situação de vulnerabilidade social em que elas se encontravam.

“Na pandemia, as famílias nos procuraram mais. Mesmo aquelas que tinham uma condição financeira muito boa, elas precisaram de auxílio social” (PI2)

“Na pandemia, a gente forneceu cesta básica para várias famílias, inclusive àquelas que não precisavam delas antes” (PI11)

As restrições no acesso às práticas de saúde e à rede de apoio social limitaram as oportunidades ao alcance do atendimento à saúde e atendimento das necessidades de atenção especial às CRIANES.

Descontinuidade no acompanhamento de CRIANES

Este tema aborda o contexto institucional (na dimensão das ações programáticas) e seus comprometimentos imediatos e longitudinais. O alto número de casos graves de infecção por COVID-19 e de hospitalizações levou à implementação de novos fluxos e protocolos para reorganizar os serviços de saúde. Os profissionais das unidades de atenção primária foram realocados para os atendimentos de combate à COVID-19, deixando as unidades desprovidas de recursos humanos.

“A gente referenciava ao pediatra da unidade, que vinha uma vez por semana e atendia crianças de alto risco. Mas com a pandemia, ele parou de atender” (PS9)

“Por conta da pandemia, a gente ficou limitado, com redução na equipe” (PS15)

Essa transferência dos profissionais de saúde para outros setores modificou o acompanhamento das crianças.

“Agora, na pandemia, eles [famílias de CRIANES] têm procurado a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) pela facilidade e por ser mais rápido” (PS15)

“Agora, estou levando meu filho à UPA” (CC6)

Na gestão dos serviços de saúde e das instituições assistenciais, houve redução na oferta de atendimentos, que já apresentavam dificuldades para responder às demandas.

“Era para a gente ter chamado boa parte das crianças que estavam na lista de espera, mas com a pandemia, isso atrasou um ano” (PI2)

“A fila de espera é muito grande; principalmente agora durante a pandemia” (CC11)

“Nossa demanda aqui está muito grande: nós estamos com dois médicos devido à pandemia, e a agenda está completa para dois meses” (PS11)

Estratégias complementares usadas para facilitar o fluxo de atendimento foram realizadas, mas insuficientemente.

“Nesse momento de pandemia, a gente faz atendimento telefônico: é pouco, mas ainda é feito” (PI2)

Outros setores também foram afetados, mas eles buscaram viabilizar o atendimento às CRIANES.

“Aqui [instituição filantrópica], eles se organizaram rápido, e a gente ficou pouco tempo sem atendimento” (CC3)

“Na pandemia, o financiamento público e as doações [para instituições filantrópicas] foram suspensas. Para não deixar ninguém desassistido, a gente assumiu essa responsabilidade. A gente atende, mas não recebe pelo atendimento” (PI5)

Embora as instituições de saúde tenham reorganizado ações tentando suprir as demandas apresentadas pelas CRIANES, essas não foram suficientes para assegurar a continuidade do cuidado.

Discussão

Este estudo mostrou que a pandemia COVID-19, incluindo as medidas de restrição adotadas para conter a disseminação do vírus, repercutiram negativamente na atenção à saúde de CRIANES. Os resultados expuseram as fragilidades e a insegurança vivenciada pelos cuidadores familiares, com vulnerabilidades individuais devido ao atraso vacinal, medo de contágio e mudanças no desenvolvimento infantil. Foi observada pouca abrangência da proteção à saúde infantil, com vulnerabilidades institucionais devido a restrições na visita domiciliar e lista de espera, incluindo falta de profissionais e ausência de atividades grupais. As circunstâncias descritas mostram também vulnerabilidade social por dificuldades de auxílio social e fechamento de fronteiras terrestres. Assim, as repercussões da pandemia COVID-19 na atenção à saúde das CRIANES se expressam como um conjunto de vulnerabilidades, incluindo descontinuidade no cuidado, baixo alcance da proteção social e contexto institucional instável.

Ações tais como distanciamento físico e fechamento dos serviços designados como não essenciais privaram as crianças do acompanhamento longitudinal de saúde, assim como descrito em outros estudos.(9,19)O medo da possível contaminação pela COVID-19 também foi evidenciado, causando redução na procura pelos serviços, tanto na APS como na atenção especializada.(4,7,19,20)

O afastamento de CRIANES dos serviços assistenciais e de saúde intensificou suas vulnerabilidades, especialmente no componente individual, levando-as a apresentar comportamentos diferentes dos habituais, concordando com outras investigações.(9,21)A manutenção de ações para promover e estimular o crescimento e o desenvolvimento poderiam assegurar a detecção precoce de situações corrigíveis e a continuidade do cuidado a CRIANES.(22)

O atraso no calendário vacinal, decorrente de lacunas no seguimento longitudinal, ampliou as vulnerabilidades de CRIANES na interface entre vulnerabilidade individual e institucional. Vale ressaltar o reaparecimento de doenças graves no Brasil, tais como o sarampo, ao contrário do que aconteceu em Portugal, onde a vacinação foi encorajada.(22)

Considerando as vulnerabilidades individuais e as mudanças comportamentais observadas em CRIANES, nossos achados foram semelhantes àqueles descritos em um outro estudo realizado em seis países, que apontou aumento na hiperatividade e dificuldades de crianças em controlar suas emoções e conquistar novas habilidades durante a pandemia.(13)

Em termos de vulnerabilidade social, as situações vulneráveis das famílias de CRIANES ficaram mais evidentes, sendo também caracterizadas como recessão econômica.(4,9,12)O presente estudo também concorda com uma outra pesquisa realizada durante a pandemia em 35 países, mostrando que dois terços das famílias com crianças perderam parte de sua renda mensal.(23)A distribuição insuficiente de auxílio emergencial do governo brasileiro frente às dificuldades socioeconômicas diverge daquela de alguns países que tiveram ações mais imediatas à população menos favorecida.(23,24)

A interrupção nas redes de apoio (com baixa interlocução entre as famílias de CRIANES e os serviços de educação, proteção social e saúde) gerou um descompasso entre as necessidades das crianças e o apoio profissional, mostrando vulnerabilidade institucional. Tal interlocução é fundamental para reduzir o estresse, motivar as famílias e trazer esperança frente às dificuldades.(25)

A fragilidade no vínculo entre famílias de CRIANES e as unidades de saúde levou as famílias a procurar outros serviços, tais como as UPA e a rede privada. Neste cenário, o ACS poderia identificar as situações de vulnerabilidade individual e/ou coletiva e direcionando as famílias aos serviços adequados para atenção a suas necessidades e cuidados em saúde.(26-28)

Como este estudo foi realizado em região de fronteira internacional, com interdependência relacionada ao trabalho, lazer, saúde e educação, o fechamento das fronteiras terrestres também impediu o acesso dos brasileiros residentes nos países vizinhos, caracterizando assim sua vulnerabilidade social. Tais aspectos se refletiram na interrupção dos cuidados a CRIANES, concordando com um estudo realizado na fase inicial da pandemia.(29)

Além disso, o aumento na demanda hospitalar e a precariedade dos recursos estruturais e gerenciais para transpor uma situação de vulnerabilidade desta magnitude levou os profissionais da saúde para os serviços intensivos, deixando as unidades de APS desprovidas de profissionais.(4,6,7,12,20,24,29)

Esforços para manter a continuidade e gestão do cuidado à saúde de pessoas com necessidades especiais, tais como a telessaúde, foram apontados no presente estudo como uma fortaleza, assim como relatado na literatura.(22,30,31)

Como limitação deste estudo, destaca-se a realização das entrevistas com os cuidadores familiares nas instituições assistenciais durante os atendimentos especializados das crianças, o que acabou restringindo o tempo de interação entre o participante e o pesquisador.

Este estudo contribuiu para entender melhor as implicações entre medidas sanitárias adotadas durante a pandemia e a continuidade do cuidado a CRIANES. A compreensão de que CRIANES são mais vulneráveis em momentos de emergência sanitária poderá ajudar no planejamento de ações específicas, assegurando acesso, continuidade no cuidado e articulação com as famílias, respondendo assim a suas necessidades especiais de cuidado.

Para manter organizações adequadas em situação de emergência de saúde pública, especialmente aquelas voltadas para grupos mais vulneráveis, com direito a saúde e proteção social, é fundamental fortalecer ações intersetoriais, com políticas sociais de renda e emprego, manutenção de serviços essenciais e informações cientificamente validadas e divulgadas em tempo oportuno.

Conclusão

Aprendemos as repercussões da pandemia COVID-19 na atenção à saúde de crianças com necessidades de cuidado especiais através dos componentes da vulnerabilidade individual, social e institucional em um contexto de fronteira internacional. As dificuldades na atenção a crianças com necessidades de saúde especiais apontam as vulnerabilidades individuais (atraso vacinal, medo de contágio e mudanças no desenvolvimento), institucionais (ausência de atividade grupal, restrição a visita domiciliar, listas de espera e falta de profissionais) e sociais (dificuldades no auxílio social e fechamento de froteiras). Os elementos relativos à estratégia de telessaúde e os mecanismos que assumem responsabilidade profissional mostraram força no cuidado.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento da pesquisa de mestrado realizada pela primeira autora.

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  • Editor Associado (Avaliação pelos pares): Myriam Aparecida Mandetta (https://orcid.org/0000-0003-4399-2479) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    6 Out 2022
  • Aceito
    4 Dez 2023
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