Resumo
Objetivo Construir o instrumento brasileiro para investigação de eventos adversos em saúde e avaliar as evidências da validade de conteúdo e o processo de resposta.
Métodos Este estudo psicométrico foi realizado conforme o Standards for Education and Psychological Testing e conduzido nas seguintes etapas: busca por evidências da validade de conteúdo e do processo de resposta. Na evidência de conteúdo participaram 46 especialistas de todas as regiões do Brasil. No processo de resposta, participaram 76 profissionais de 31 instituições de saúde. Foi usado o programa Statistical Package for the Social Sciences para distribuição de variáveis quantitativas e síntese, via cálculo de estatísticas descritivas. Na etapa de evidência de conteúdo, foi usado o Content Validity Ratio (CVR) aceitável maior que o CVR crítico esperado para N juízes; neste estudo, foi usado o CVR crítico de 0,35. Já o grupo focal foi realizado para o processo de resposta.
Resultados No total, 46 especialistas participaram na etapa de validação de conteúdo, predominantemente enfermeiros de formação (84,8%) formados há 11 anos (60,7%) ou mais. Os resultados obtidos na validação de conteúdo para cada nível foram: nivel I apresentou um CVR: 0,88, nível II 0,76 e nível III 0,97. Já na etapa de processo de resposta, foram realizados ajustes na nomenclatura e encadeamento das etapas.
Conclusão Foi possível construir e validar o primeiro Instrumento Brasileiro para Investigação de Eventos Adversos na Saúde com as fontes necessárias para assegurar o conteúdo e processo de resposta, considerando as melhores evidências articuladas com as referências nacionais e internacionais, permitindo o aprimoramento dos sistemas de investigação para instituições de saúde privadas e públicas.
Segurança do paciente; Gestão de riscos; Dano ao paciente; Gestão da segurança
Resumen
Objetivo Elaborar un instrumento brasileño para la investigación de eventos adversos en salud y evaluar las evidencias de la validez de contenido y el proceso de respuesta.
Métodos Este estudio psicométrico fue realizado de acuerdo con el Standards for Education and Psychological Testing y cumplió las siguientes etapas: búsqueda de evidencias de la validez de contenido y del proceso de respuesta. En la evidencia de contenido participaron 46 especialistas de todas las regiones de Brasil. En el proceso de respuesta, fueron 76 profesionales de 31 instituciones de salud. Se utilizó el programa Statistical Package for the Social Sciences para la distribución de variables cuantitativas y síntesis, a través del cálculo de estadísticas descriptivas. En la etapa de evidencia de contenido, se utilizó el Content Validity Ratio (CVR) aceptable más alto que el CVR crítico esperado para N jueces. En este estudio, el CVR crítico usado fue 0,35. Para el proceso de respuesta, se realizó un grupo focal.
Resultados En total, participaron 46 especialistas en la etapa de validación de contenido, predominantemente enfermeros de formación (84,8 %) graduados hace 11 años (60,7 %) o más. Los resultados obtenidos en la validación de contenido de cada nivel fueron: CVR 0,88 en el nivel I, 0,76 en el nivel II y 0,97 en el nivel III. En la etapa de proceso de respuesta, se realizaron ajustes en la nomenclatura y en la concatenación de las etapas.
Conclusión Fue posible elaborar y validar el primer Instrumento Brasileño para la Investigación de Eventos Adversos en Salud, con las fuentes necesarias para garantizar el contenido y el proceso de respuesta, y las mejores evidencias conectadas con las referencias nacionales e internacionales, lo que permite la mejora de los sistemas de investigación para instituciones de salud públicas y privadas.
Seguridad del paciente; Gestión de riesgos; Daño del paciente; Administración de la seguridad
Abstract
Objective To build the Brazilian instrument for investigating adverse health events and evaluate the evidence of content validity and the response process.
Methods This psychometric study was conducted according to the Standards for Education and Psychological Testing in the following stages: search for evidence of content validity and response process. In the content evidence, 46 experts from all regions of Brazil participated. In the response process, 76 professionals from 31 health institutions participated. The Statistical Package for the Social Sciences program was used for the distribution of quantitative variables and synthesis, via the calculation of descriptive statistics. In the content evidence stage, the acceptable Content Validity Ratio (CVR) greater than the expected critical CVR for N judges was used; the critical CVR of 0.35 was used in this study. The focus group has been performed for the response process.
Results In total, 46 experts participated in the content validation stage, predominantly training nurses (84.8%), and nurses who graduated 11 years ago (60.7%) or more. The results obtained for each level in content validation were as follows: levels I, II, and III respectively presented the following CVR values: 0.88, 0.76, and 0.97. In the response process stage, adjustments to the nomenclature and sequence of steps were performed.
Conclusion Building and validating the first Brazilian Instrument for Investigating Adverse Events in Health was possible with the necessary sources to ensure the content and response process. The best evidence articulated with national and international references was considered, making it possible to improve investigation systems in private and public health institutions.
Patient safety; Risk management; Patient harm; Safety management
Introdução
Nos Estados Unidos da América (EUA), o Institute of Medicine (IOM) publicou o relatório To Err is Human estimando a ocorrência de 44-98 mil óbitos decorrentes de eventos adversos (EA) a cada ano. Desde então, foi desencadeada uma mobilização dos profissionais na área de saúde e da população em geral com questões relacionadas à segurança dos pacientes.1,2 Assim, o IOM incorporou a “segurança do paciente” como um dos seis atributos de qualidade, junto com a efetividade do cuidado, a centralidade nos pacientes, a oportunidade do cuidado, a eficiência e a equidade.1,2 Neste contexto, tem sido observada uma evolução exponencial sobre o tema gestão de incidentes e eventos adversos nas instituições de saúde nos últimos anos.2,3
Em 2021, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou o Plano de Ação Global para Segurança do Paciente 2021-2030. Seu objetivo foi eliminar os danos evitáveis nos cuidados de saúde pois foi estimado que 1 em cada 10 pacientes está sujeito a um evento adverso durante a internação hospitalar. Estudos mais recentes sugerem que 134 milhões de eventos decorrentes de fragilidade dos cuidados e/ou cuidados inseguros ocorrem todos anos nos hospitais de países de renda baixa-média, podendo resultar em 2,6 milhões de mortes anuais.3-5
Nos EUA, um em cada quatro pacientes internados em hospitais sofreu algum evento adverso em 2018. Além disso, 8-12% dos pacientes hospitalizados na Europa experimentam a cada ano algum tipo de dano ou lesão relacionado(a) a incidente durante os cuidados que recebem.6 No Brasil, foram notificados 333.275 incidentes de julho de 2022 a junho de 2023; os principais foram relacionados a falhas durante a assistência à saúde envolvendo cateter intravenoso, lesão por pressão e queda de paciente. Em relação aos never events (aqueles que nunca deveriam ocorrer), foram registrados 3.525 que devem ser priorizados pelos serviços de saúde para uma investigação sistematizada visando melhor compreender o modo de falha.4
Segundo a OMS, os incidentes são classificados como: circunstâncias de risco, incidentes sem dano, near miss (quase falha) e incidentes com dano. Estes, também conhecidos como eventos adversos, podem ser classificados segundo o grau do dano como: leves, moderados, graves ou óbito.7
Nos serviços de saúde, a gestão e operacionalização da abordagem proativa e reativa da gestão de riscos (tais como identificação, análise, avaliação, monitoramento, tratamento e comunicação de riscos) compete ao Núcleo de Segurança do Paciente (NSP) por meio de um Plano Nacional de Segurança do Paciente.7-9A abordagem proativa consiste em gerenciar riscos, enquanto são identificadas, planejadas e implementadas ações e atividades que funcionam como barreiras para evitar que o risco resulte em um incidente. A abordagem reativa consiste em gerenciar incidentes pois os riscos já foram identificados como incidentes.7-9
A abordagem reativa (investigação de eventos adversos nos serviços de saúde) é considerada uma exigência do NSP; ela é uma ação fundamental para identificar e mapear falhas ocorridas na assistência, explorar as possíveis causas que levaram ao incidente e traçar planos de ação para reduzir o grau do dano e prevenir uma possível recorrência.7-9
No entanto, ainda existe uma lacuna referente a esses processos de investigação desde a implantação da metodologia de gestão reativa dos riscos em organizações de saúde: a maioria das ferramentas para investigação de incidentes vem de outros segmentos tais como indústria, logística, gestão da qualidade total, aviação, etc.8-13
Atualmente, os escritórios de qualidade e segurança de pacientes têm várias atribuições: gestão de riscos, incidentes, indicadores e documentos, protocolos clínicos e auditoria; além disso, a etapa de detecção de incidentes e a decisão de investigar geram uma sobrecarga operacional, criando um processo de investigação “superficial” e ausência de monitoramento das ações de melhoria. O Protocolo de Londres, recomendado pelo Ministério da Saúde, é a ferramenta mais usada no Brasil para investigar incidentes clínicos na saúde.9-13
O estudo teve o propósito de elaborar o primeiro instrumento brasileiro para investigar incidentes clínicos permitindo uma abordagem conforme o grau do dano; o Protocolo de Londres não permite escalonar o processo de investigação e operacionalizar o modo de monitoramento das ações de melhoria, além das etapas que visam a segunda vítima, a matriz de responsabilização e a gestão do incidente envolvendo a alta liderança. É importante destacar que a base do instrumento são as recomendações nacionais e internacionais.3,9-20
Portanto, o objetivo deste estudo foi construir o Instrumento Brasileiro para Investigação de Eventos Adversos em Saúde e avaliar evidências de validade de conteúdo e o processo de resposta.
Métodos
Este estudo psicométrico seguiu os Standards for Education and Psychological Testing (1999, 2014). O instrumento foi construído em duas etapas.
Inicialmente, foi realizada revisão de escopo segundo as recomendações do Joanna Briggs Institute (JBI) para mapear e aprofundar o conhecimento sobre as ferramentas usadas para investigar eventos adversos em saúde.3,21,22Além da revisão de escopo, foi realizada uma pesquisa em 24 hospitais que têm Núcleos de Segurança do Paciente para identificar as etapas e recomendações práticas que devem ser incluídas nos processos de investigação de eventos adversos em saúde. Os hospitais estavam distribuídos nas regiões Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Sul do Brasil e receberam um questionário estruturado com perguntas fechadas sobre o processo de investigação de eventos adversos.
As perguntas do questionário foram baseadas nas recomendações de revisão de escopo, literaturas nacional e internacional e ferramentas recomendadas pelas metodologias de acreditação nacional e internacional. Portanto, o instrumento foi criado não só a partir de uma revisão mas também de uma articulação com a prática clínica.10-12
Inicialmente, o instrumento foi construído com 33 itens e 3 níveis (“Nível 1: Incidentes com dano leve”; “Nível 2: Incidentes com dano moderado”; “Nível 3: Incidente com dano grave e óbito”). Ele foi intitulado Instrumento Brasileiro para Investigação de Eventos Adversos na Saúde (IBIEAS) e seu modelo de investigação foi construído em etapas que a equipe de investigação seguiu. Esta versão inicial foi submetida à avaliação de conteúdo por especialistas em eventos adversos em saúde de todas regiões do Brasil e dois bacharéis em Letras. Os critérios de elegibilidade dos especialistas foram os seguintes: ser profissional de saúde; ter título mínimo de especialista em qualquer área clínica (ou gestão de qualidade e segurança de pacientes); atuar pelo menos dois anos na área de investigação de eventos adversos e ter aplicado pelo menos cinco Protocolos de Londres ou outro método e investigação de eventos adversos.
O recrutamento de potenciais participantes foi realizado em março de 2021 via Plataforma Lattes, convidando membros de sociedades científicas, associações e institutos tais como: Instituto Brasileiro de Segurança do Paciente (IBSP); Sociedade Brasileira para Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (SOBRASP); Associação de Medicina Intensiva (AMIB) e avaliadores certificados pela Organização Nacional de Acreditação (ONA). Os especialistas receberam um convite por e-mail com um link para assistir a um vídeo (construído usando o software Google Hangouts, v. 110.0.5481.180) contendo uma breve explicação sobre a pesquisa e o impacto de sua participação no estudo.
Foram convidados 84 especialistas e 46 deles aceitaram participar no estudo. Após seu aceite, foi encaminhado um e-mail contendo o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) para colher as assinaturas e o link para acessar o instrumento (elaborado usando o software Survey Monkey online) usado para coleta de dados. Os convidados tiveram um prazo de 10 dias para devolver o questionário.
A primeira versão do IBIEAS (formato pdf) foi enviada por e-mail junto com o link do questionário para avaliar a pertinência, clareza e organização dos itens através de uma escala tipo Likert. Nesta etapa, foi analisado o critério quantitativo de Lawshe23 de Content Validity Ratio (CVR) aceitável maior que o CVR crítico esperado para N juízes; neste estudo, foi usado o CVR crítico de 0,35. O critério qualitativo foi também usado para avaliação dos campos de texto livre presentes no questionário pois alguns juízes fizeram algumas recomendações sobre o conteúdo proposto.
Após avaliar as evidências de validade de conteúdo, foi realizada a etapa de verificação da validade do processo de resposta pelos profissionais de saúde. Foram convidados 101 profissionais de 31 instituições de saúde públicas e privadas em todo território nacional e 76 deles aceitaram participar. Os critérios de elegibilidade foram os seguintes: ser profissional de nível superior; ser membro do Núcleo de Segurança do Paciente e atuar na análise e investigação de incidentes através de um sistema de notificação manual ou eletrônico e não estar afastado de suas funções no período da coleta de dados (novembro de 2021 a fevereiro de 2022).
As instituições foram convidadas e selecionadas através do banco de dados existente Sistema Epimed Monitor UTI Adulto e Segurança do Paciente da Epimed Solutions. Após aceite e anuência da diretoria e aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), os responsáveis pelos núcleos institucionais de Segurança do Paciente receberam um convite por e-mail com orientações sobre a pesquisa.
Para esta etapa, foi usada a estratégia de grupo focal estratificada por região do país. Foram realizadas cinco reuniões na plataforma Google Meet. Cada grupo focal começou apresentando o IBIEAS com o recurso do PowerPoint. Após a apresentação pelo mediador, os participantes apresentaram suas considerações e sugestões, principalmente para esclarecer cada item do IBIEAS em todas dimensões. Assim, foram apresentadas contribuições importantes sobre o processo de resposta e como o instrumento poderá ser aplicado na prática clínica. Quando os depoimentos e contribuições se tonaram repetitivos e previsíveis, consideramos que a evidência do processo de resposta foi alcançada. Após o término das reuniões, os áudios foram transcritos na plataforma Google Docs. Cada reunião durou 86 min, em média.
As análises estatísticas foram realizadas usando o programa IBM SPSS (Statistical Package for the Social Sciences, v. 22.0). A distribuição das variáveis quantitativas sobre os especialistas foi sintetizada calculando as estatísticas descritivas. A pesquisa cumpriu todos aspectos éticos legais conforme a Resolução (466/2012) do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos; ela foi submetida ao CEP da instituição proponente e aprovada por meio do Parecer Consubstanciado (3.567.788/2020) e o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE: 17558819.9.0000.5243).
Resultados
Os especialistas que participaram da avaliação do conteúdo eram predominantemente da região Sudeste (56,5%); do sexo feminino (78,3%), com idades de 38-45 anos (65,2%), enfermeiros de formação (84,8%), formados há 11-16 anos (60,7%), com MBA (54,3%) e duas especializações (60,9%) como maior titulação. A primeira especialização mais frequente era em Terapia Intensiva (52,2%), seguida por Gestão de Qualidade em Serviços de Saúde (45,0%) e Gestão em Saúde (6,5%). Os principais cargos exercidos por estes especialistas eram Consultor de Qualidade (4,5%), Coordenador de Qualidade (21,7%) e Analista de Qualidade (17,4%). Eles estavam no cargo há 4-7 anos (63,1%) e atuavam na assistência há 5-10 anos (67,3%); atuavam em gestão de qualidade há 4-7 anos (67,4%) e atuavam no Núcleo de Segurança do Paciente há 4-6 anos (80,4%). Finalmente, todos especialistas afirmaram ter já aplicado o protocolo de Londres e o fizeram 25-74 vezes (82,5%). Os profissionais tinham vivência com as principais certificações de saúde consolidadas no país tais como Organização Nacional Acreditação (ONA), Joint Comission International (JCI) e Qmentum. O CVR foi analisado para cada nível do IBIEAS. A tabela 1 mostra os resultados da avaliação de conteúdo na Dimensão “Nível 1: incidentes com dano leve”.
Verificamos que o item “Passo 5” (Parecer de especialista) na Dimensão “Nível 1: incidentes com dano leve” não atingiu uma adequada evidência de validade em relação ao critério de pertinência. As principais justificativas foram as seguintes: não pertinência deste item em investigação de incidente leve gerando sobrecarga aos NSPs; em relação ao critério de organização, por ser uma investigação que será encaminhada para análise por um especialista e/ou gestor da área. Portanto, este item foi excluído. A tabela 2 mostra os resultados da avaliação de conteúdo na Dimensão “Nível 2: incidentes com dano moderado”.
Foi observada a recomendação sobre ausência de evidência de validade nos passos 4, 7 e 11 para o nível 2 (incidentes com dano moderado); as principais justificativas foram as seguintes: ausência de recursos humanos para realizar o tracer e gerar sobrecarga aos núcleos de segurança do paciente para estabelecer uma cronologia para cada incidente moderado (isso pode resultar em atraso na investigação e estabelecimento precoce de ações corretivas devido à necessidade de validação jurídica no primeiro momento). Portanto, os passos 4, 7 e 11 foram excluídos. Finalmente, a tabela 3 mostra os resultados da avaliação de conteúdo na Dimensão “Nível 3: incidentes com dano grave e óbito”.
Em todos passos foram encontradas evidências de validade para o nível 3, permitindo uma investigação sistematizada, qualificada e robusta para incidentes com dano crítico. Entretanto, o único ajuste a partir das evidências foi realizado no domínio clareza (passo 1). Segundo os especialistas, o termo comitê poderia implicar na obrigação de estabelecer um comitê adicional, ao passo que investigação deve ser realizada por uma equipe independente, sendo indicada uma comunicação precoce para a alta liderança. O quadro 1 resume a decisão dos pesquisadores em relação a cada item do instrumento com base nas sugestões dos especialistas durante a reunião do grupo focal.
Discussão
Nossos resultados possibilitaram buscar evidências de validade de conteúdo e processo de resposta do IBIEAS através de profissionais que atuam na investigação de incidentes em todas regiões do Brasil. Além disso, eles contribuíram para refletir sobre a importância de uma investigação robusta e qualificada, usando recursos conforme o grau do incidente inicialmente detectado, e fortalecer um instrumento desenvolvido e aplicável ao contexto nacional.
Como limitação do estudo, destacamos o número reduzido de instituições públicas e o predomínio de uma categoria profissional entre os participantes da pesquisa. Assim, não foi possível comparar as respostas dos diferentes tipos de formação e região, pois o tamanho amostral dos subgrupos de outras formações em todas regionais foi pequeno.
Quanto à predominância, 84,8% do grupo de especialistas eram enfermeiros, majoritariamente da região Sudeste (56,5%). Isto reforça um estudo recente que revelou o perfil dos recursos humanos nos núcleos de segurança dos pacientes no Brasil.
Apesar da especialização dos participantes do grupo de evidência de validade de conteúdo, identificamos a especialização predominante em terapia intensiva (52,2%). Isto aponta para a necessidade de uma maior experiência na prática assistencial e uma visão clínica sistêmica que permita compreender melhor os aspectos relacionados a doença, fármacos, suportes clínicos críticos, escores prognósticos e interface com a tecnologia. Estes fatores permitem uma investigação mais robusta com análise crítica sobre o planejamento terapêutico proposto.9-13
Entretanto, é importante destacar a segunda especialização (Gestão de Qualidade em Serviços de Saúde; 45,0%). Só com esse conhecimento a prática clínica pode ser articulada com as ferramentas e técnicas de gestão de risco, resultando em uma análise especializada com os elementos necessários para identificar o modo de falha e o estabelecimento das ações de melhoria.
Por isso, o profissional que conduz a investigação de eventos adversos deve ter uma visão sistêmica, sobretudo do processo clínico-assistencial. Por outro lado, alguns autores afirmam que atualmente algumas investigações são executadas rotineiramente, mas com um referencial de responsabilização e não de reflexão, identificação de oportunidade de melhoria ou aprendizagem.14-18
Um estudo publicado em 2023 com 11 hospitais de Massachusetts, EUA, e uma amostra aleatória de 2.809 internações, identificou pelo menos um evento adverso em 23,6% da amostra; 32,3% deles foram classificados como eventos adversos graves, destacando que o erro associado a medicamentos foi o mais comum (39,0%), seguido por eventos cirúrgicos (30,4%). Portanto, é importante uma investigação ampla e independente com todas técnicas necessárias para identificar os fatores contribuintes e o modo de falha.6
Ressaltamos a importância de um instrumento adaptado ao contexto nacional que operacionalize e apoie os profissionais na busca dessa visão sistêmica, não só sequenciando as ações durante a investigação mas também permitindo estabelecer um padrão na identificação dos fatores contribuintes com a possibilidade futura de realizar um benchmarking entre as instituições e o compartilhamento das causas raízes. Assim, planos globais de ações de melhoria emergirão nos processos de cuidado com uma visão integrada do modo de falha.16-20
No nível I, etapa de evidência de conteúdo, o passo descrito como parecer de especialista (0,18) foi retirado pois essa investigação já foi realizada pelos responsáveis nas unidades onde ocorreram os eventos. Devido às novas tendências e configurações do mercado de trabalho, as inovações tecnológicas e o aumento na oferta de cursos de graduação em enfermagem resultam em um mercado altamente competitivo, fazendo surgir a necessidade de líderes qualificados e especializados em suas áreas de conhecimento.24,25
No nível II, os passos tracer (0,33), cronologia (0,34) e validação jurídica (0,16) foram excluídos pois poderiam gerar um atraso na definição do desfecho, isto é, no dano inicialmente detectado, além de uma sobrecarga aos profissionais nos núcleos de segurança dos pacientes no Brasil.25,26Salientamos que este nível de investigação abrange os eventos adversos moderados e algumas instituições de saúde os analisam de forma consolidada. Entretanto, o protocolo canadense para investigação de incidentes descreve três tipos de investigação: conciso, compreensivo e multiincidentes, dependendo do contexto.20
Os autores do protocolo canadense reforçam que os princípios e etapas básicas da análise são iguais independentemente do método usado mas a complexidade do detalhamento e o escopo da revisão serão diferentes para cada tipo. Portanto, reforçamos a necessidade de estabelecer um processo que não gere aumento no uso de recursos da instituição.20
Além disso, o IBIEAS consolida todos pilares do modelo de acidente organizacional do referencial teórico James Reason (2005) em um único instrumento. Ele ressalta a importância de compreender o modo de falha, não examinando as defesas e barreiras que foram “quebradas”, mas esgotando os aspectos da cultura organizacional, falhas latentes e ativas do processo, permitindo assim construir a análise de causa raiz a partir de uma visão ampliada, sistematizada e categorizada dos fatores contribuintes.11,15,17,18
No IBIEAS, ressaltamos o passo que envolve a entrevista. Segundo um estudo internacional, o emprego desta técnica é limitado. Porém, esta técnica é mais usada que as técnicas de observação ou tracer no dia a dia das instituições. Portanto, essa prática não pode ser realizada isoladamente pois pode enfraquecer a força da análise de causa raiz (ACR) e os entrevistados podem apresentar discursos com algum grau de viés.27
Um estudo recente sobre as ferramentas de investigação de eventos adversos descreveu que nas entrevistas é comum observar os entrevistados relatarem o que “deveria ter acontecido” e não o que de fato ocorreu no momento do incidente. Entretanto, quando são usadas outras técnicas, por exemplo, técnicas de observação e auditoria do itinerário terapêutico, elas resultam em uma investigação sem viés excluindo atitudes individuais dos profissionais.3,25-29
No nível III de investigação, os especialistas reforçaram a necessidade de esclarecer a comunicação do evento adverso com óbito (0,33). Entretanto, todos os passos deste nível atingiram valor satisfatório para evidência de validade de conteúdo.
Os eventos adversos graves, ou que resultam em óbito, devem ser notificados às agências reguladoras e órgãos de certificação hospitalar em um curto prazo. Por isso, a investigação deve ser iniciada precocemente para ratificar a percepção do dano grave ou causa do óbito rapidamente. No Brasil, atualmente o serviço de saúde dispõe de 72 horas para notificar a ocorrência de óbito atribuído a evento adverso (RDC 36/2013). Nos EUA, o documento do RCA2(Improving Root Cause Analyses and Actions to Prevent Harm) da National Patient Safety Foundation recomenda finalizar o processo de investigação em até 45 dias.9,16
Portanto, os resultados obtidos no processo de resposta ampliaram a visão sistêmica do instrumento no contexto nacional, isto é, a partir dos profissionais da prática clínica das diferentes regiões, foi possível tornar o instrumento aplicável em quaisquer cenários. Ademais, um estudo pioneiro poderá ser realizado futuramente no âmbito dos estudos de validação, isto é, ancorado nos Standards for Education and Psychological Testing (1999, 2014) para pesquisas de evidências de validade, a etapa de Consequência do Teste e verificar os impactos clínico, assistencial, organizacional e financeiro do IBIEAS nas instituições de saúde.
Conclusão
O Instrumento Brasileiro para Investigação de Eventos Adversos na Saúde tem agora as fontes necessárias para assegurar o conteúdo considerando as melhores evidências articuladas com as referências nacionais e internacionais sobre as ferramentas e técnicas de investigação de eventos adversos. Ele também está alinhado à realidade dos diversos cenários nas instituições de saúde do Brasil e possibilita aos usuários identificar aspectos e/ou lacunas relacionadas à operacionalização institucional. Portanto, o instrumento tem as evidências de validade necessárias para aplicação em instituições de saúde sob as óticas do paciente, do profissional e da instituição. Ele permite aperfeiçoar os sistemas de investigação em instituições de saúde privadas e públicas, contribuindo para identificar a causa raiz, responsabilidade, o modo de falha e o direcionamento da construção do plano de ação estratificado pelo grau de força de intervenção.
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Editado por
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Editor Associado
Marcia Barbieri (https://orcid.org/0000-0002-4662-1983) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
8 Maio 2023 -
Aceito
2 Maio 2024