RESENHAS
João Goulart: um personagem em busca de uma história
João Goulart: a character in search of a history
Marcos Napolitano
Marcos Napolitano é doutor em História Social e livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde leciona História do Brasil desde 2004 (napoli@usp.br)
João Goulart uma biografia. Jorge Ferreira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713 p.
João Goulart é um dos personagens mais polêmicos e menos estudados da história do Brasil. Dizer isso soa como um clichê, mas é inevitável. Mais que um interesse meramente biográfico, o estudo de sua vida e trajetória política é, necessariamente, um exercício de análise da história do Brasil. Qualquer estudo biográfico sobre o personagem é um convite à polêmica e exige do analista um jogo de aproximação e de distanciamento a um só tempo.
O livro do historiador Jorge Ferreira consegue construir o perfil de um líder com qualidades e defeitos, faturas e fracassos, que ao longo de sua curta trajetória na política brasileira de pouco mais de 14 anos mexeu profundamente com nossa modorrenta e conservadora vida política. Para tanto, Jorge Ferreira explicita de saída sua estratégia: analisar Jango para além dos dois dias finais de seu governo, aqueles que se plasmaram para sempre na história do biografado.
O livro resgata aspectos da vida privada e pública de Jango, traçando um perfil coerente de uma personalidade política que ajudou a formular um projeto para o Brasil, designado como trabalhismo reformista de corte nacional-popular (p. 137-140). Jango tornou-se, na memória e na história, o personagem síntese deste projeto fracassado, tragado por uma bem-sucedida conspiração direitista. Personagem que acabou visto como um arremedo de Vargas e Perón, sem a grandeza trágica ou a coragem política dos dois.
A biografia ganha especial importância, reposicionando criticamente algumas questões e matizando as visões negativas e moralistas sobre Jango, sua época a "República de 46" e seu governo. O distanciamento do autor, cioso do seu oficio de historiador, não se traduz em uma visão pretensamente neutra. O biografado Jango que se desenha nas 690 páginas de texto é um líder lúcido, ponderado, coerente. Mas também manipulador, contraditório e, em muitos (e fatais) momentos, hesitante. Nem vilão, nem herói, Jango é reconhecido como um político importante que esboçou um projeto e uma agenda de reformas profundas.
O texto é marcado pelo equilíbrio entre a biografia e o ensaio acadêmico de história política. Cabe aqui destacar o importante trabalho que Jorge Ferreira vem desenvolvendo há algum tempo na recuperação historiográfica da "República de 46", apontando para a necessidade de outras pautas de pesquisa que deem conta do período, para além das categorias clássicas "populismo" e "desenvolvimentismo".
Há uma impressionante quantidade de fontes primárias e secundárias, muito bem articuladas pelo autor: livros de memórias, crônicas, documentos oficiais, cartas, manifestos políticos, matérias de imprensa partidária e comercial. Mas não deixa de ser curioso que o biografado, nos momentos em que esteve no poder como deputado, presidente do PTB, ministro do trabalho, vice-presidente ou presidente da República pouco fale de si através das inúmeras fontes primárias citadas. Ao contrário, as fontes em primeira pessoa escritas por Jango surgem apenas no contexto do exílio, dando o tom dos dois últimos capítulos da biografia escrita por Jorge Ferreira. Nestas fontes, entretanto, predominam o gosto amargo da derrota e os balanços negativos de sua trajetória e legado, impedindo qualquer tipo de monumentalização histórica, sempre muito comum em biografias. Jango, em certo sentido, mergulhou no esquecimento ou no ostracismo, apesar do esforço de alguns poucos correligionários e historiadores em dar-lhe uma sentença mais justa no tribunal do tempo.
Nesta linha, Jorge Ferreira resgata um aspecto ainda pouco estudado da trajetória política de Jango: sua passagem pelo Ministério do Trabalho do segundo governo Vargas (capítulo 3). O detalhamento desta fase da vida política do futuro presidente é uma das grandes contribuições historiográficas do livro. No comando da pasta, Goulart mudou completamente o papel do Estado na negociação entre patrões e trabalhadores (urbanos) e, mesmo inclinando-se para o lado destes últimos, nunca abriu mão da estratégia de mediação e negociação de conflitos. As bases sociais e políticas ali constituídas deram-lhe força para esboçar um projeto reformista que, na verdade, foi muito mais uma agenda do que um projeto, abortada pelo golpe de 1964.
Ferreira recusa duas explicações clássicas sobre o golpe: a tese da "grande conspiração da direita", bem como a tese do "colapso do populismo". Ambas trabalham com a idéia de inexorabilidade do processo histórico. A primeira minimiza os erros políticos da esquerda ao destacar a sagacidade da direita, e a segunda vê o governo Jango apenas como um soluço final no grande terremoto estrutural que moveu a história, porque a lógica de acumulação do capital assim o quis. Há no livro uma percepção detalhada sobre as "marchas e contramarchas" do tempo histórico na direção do golpe de estado, evitando a inexorabilidade do evento que selou o destino do personagem e do seu tempo. Mas ao recusar estes paradigmas para explicar o golpe militar de 1964, Ferreira se aproximou de outro, que, a meu ver, mereceria mais exame crítico. Aqui me refiro à maneira como Jorge Ferreira utilizou o livro de Argelina Figueiredo, Democracia ou reformas (publicado no início dos anos 1990), e incorporou, em certo sentido, o paradigma do colapso da democracia como obra do radicalismo dos atores de esquerda e direita (p. 429). Fruto de uma excelente e acurada pesquisa empírica e dotado de coerência teórico-metodológica e plausibilidade argumentativa, o livro de Argelina consolidou a retomada da história política para compreender a crise política que desaguou no golpe militar de 1964. Entretanto, sua perspectiva de análise funcionalista parte do princípio de que as instituições políticas devem absorver e neutralizar os "interesses" e "conflitos" protagonizados pelos atores.
Mesmo se pautando pela tese do radicalismo generalizado, Jorge Ferreira deixa bem claro que o golpe foi da direita, evitando diluir as responsabilidades pelo conjunto de atores. Mas defende a tese de que o ambiente político criado pela radicalização das esquerdas (leia-se, a esquerda brizolista, sobretudo) inviabilizou a liderança janguista na condução de um projeto negociado de reformas e acabou fazendo com que o centro político fosse para a direita (p. 412, 429). Jorge Ferreira demonstra que a habilidade de negociador de João Goulart encontrou seu limite neste ponto. Mas como negociar reformas em um ambiente político e institucional conservador que transformou o lugar da negociação o Congresso Nacional em um bunker do antirreformismo?
Neste ponto, seria oportuno revisar o conteúdo histórico do pretenso "radicalismo" das esquerdas que teriam ajudado a construir o golpe da direita. Olhando mais de perto, a grande radicalização das esquerdas entre 1962 e 1964, bravatas retóricas à parte, era propor uma reforma agrária contra o latifúndio improdutivo, disciplinar a remessa de lucros para o exterior e apostar em um novo poder constituinte.
Ainda que mantenha certas perspectivas sobre a crise final do governo e sobre o golpe que poderiam ser mais problematizadas, Jorge Ferreira deu uma grande contribuição no sentido de reposicionar Jango criticamente na tessitura do tempo histórico sem tomá-lo como farsante ou herói mal compreendido. Esta é uma das grandes qualidades da obra, que, inclusive, valoriza a erudição na qual se apoia. João Goulart uma biografia sem dúvida entrará para a galeria das biografias clássicas da história do Brasil. A partir dele, Jango deixa o território da memória (ou melhor, do esquecimento) para retornar à história.
Resenha recebida em 6 de dezembro de 2011 e aprovada para publicação em 23 de março de 2012.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Ago 2012 -
Data do Fascículo
Jun 2012