Em 1991, a Revista Estudos Históricos publicou o Dossiê História e Natureza, que reuniu textos de importantes pesquisadores que compartilhavam de pressupostos teóricos e metodológicos da história ambiental. Dentre os sete textos publicados, estavam um texto do brasilianista Warren Dean, “A botânica e a política imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil”, o texto “A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa” de autoria de José Augusto Drummond, e a tradução do clássico artigo “Para fazer história ambiental”, de Donald Worster (1991). Arriscamos afirmar que os três textos são considerados até hoje leituras obrigatórias para os interessados no tema no Brasil, sendo comumente revisitados por pesquisadores iniciantes e veteranos que se arriscam pelas sendas da História Ambiental. Nossa afirmação se dá principalmente pelo fato de os textos trazerem questões epistemológicas, pontuarem conceitos e apontarem paradigmas possíveis, assim como por apresentarem provocações para novas pesquisas. Assim, cita-se a celebre afirmação de Worster (1991, p. 19), por nós aqui apropriada - mostrando como a disciplina se mostra inclusiva e transcendental às relações inter-humanas:
A história ambiental é parte de um esforço revisionista para tornar a disciplina da história muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tem tradicionalmente sido. Acima de tudo, a história ambiental rejeita a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolveu sem restrições naturais, de que os humanos são uma espécie distinta e “super-natural”, de que as consequências ecológicas dos seus feitos passados podem ser ignoradas.
Passados mais de 30 anos desde a publicação desse clássico dossiê, a revista traz novamente a temática ambiental como tópico especial, e mostra como a História Ambiental - que no início da década de 1990 era um campo em consolidação - vem se mostrando madura, pertinente e cada vez mais solidificada no universo historiográfico. Neste número, serão apresentados nove artigos e um ensaio. Os textos aqui apresentados nos permitem assegurar que a História Ambiental ultrapassa a esfera acadêmica e vem buscando apresentar respostas aos desafios apresentados por problemas socioambientais. Entende-se que transformações ambientais não podem ser estudadas de forma isolada, sem compreender as interconexões, que ultrapassam os limites regionais e biogeográficos, projetando-se, por vezes, a escalas globais.
As provocações feitas por Dean, Worster e Drummond foram estimulantes e inspiradoras. Atualmente contamos com uma ampla comunidade de pesquisadores, que vem fazendo da história ambiental o cerne de suas pesquisas. Os textos aqui apresentados são um exemplo disso. O presente dossiê agrupou estudos dedicados às relações entre a História e meio ambiente, com ênfase nas concepções, atitudes e atividades humanas e não-humanas na transformação das paisagens, bem como os estudos que analisaram as consequências dessas transformações para as comunidades naturais e sociais.
Abrindo o dossiê se encontra o texto de autoria de André Secchieri Bailão, “Histórias entrelaçadas de queimadas, paisagens e climas no Brasil Central entre naturalistas do século XIX”, que procurou analisar a forma como alguns naturalistas viajantes descreveram as queimadas nos campos, matos e cerrados do Brasil Central no século XIX. O autor faz um estudo comparativo, mostrando os diferentes modos como estes se engajaram com as queimadas ao longo do século, algumas disputas de interpretação, e como discorreram sobre os efeitos particulares, gerais e históricos do fogo na flora e fauna, nas paisagens e climas do Brasil Central.
Fabíula Sevilha, autora de “A luta por um Museu Público da Mata Atlântica: história, memória e identidade do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão (1984-2014)”, discorre sobre o Museu de Biologia Professor Mello Leitão, fundado por Augusto Ruschi em 1949, em Santa Teresa (ES). Neste artigo, Sevilha investiga as transformações institucionais ocorridas no Museu, que se tornou uma referência nacional de instituição dedicada à pesquisa, difusão da ciência e conservação da Mata Atlântica brasileira.
O texto “Patrimônio ambiental e diversidade cultural: marcos na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil (2011-2014)”, de Paulo Henrique Martinez, abordou os entrelaçamentos entre o patrimônio ambiental e a diversidade cultural na mobilização e organização política pelos direitos constitucionais e políticas públicas para as Terras Indígenas no Brasil, entre os anos de 2011 e 2014.
Em seu artigo “Das árvores do Recife (1924) às matas do Nordeste (1937): ecologia, trópico e região na obra de Gilberto Freyre”, Alberto Luiz Schneider procurou analisar as obras de Freyre e seu posicionamento perante as reformas urbanas do Recife e as ameaças decorrentes do urbanismo à conservação das árvores. Para isso, utiliza como fontes as colaborações de Freyre no “Diário de Pernambuco” e suas obras “Nordeste”, “Casa-grande & Senzala” (1933) e “Sobrados e Mucambos” (1936). Os argumentos procuram reforçar como em Freyre a monocultura e as modernas usinas de açúcar eram destacadas como ameaças aos rios e matas da região.
Douglas de Souza Pimentel, em seu texto “História do Parque Estadual da Serra da Tiririca (RJ) e das Percepções Sobre o Seu Processo de Institucionalização”, analisa as relações sociais para a conservação ambiental no tempo e no espaço. O enfoque para essa análise é o Parque Estadual da Serra da Tiririca, que é analisado historicamente na associação com embates e transformações ambientais da região fluminense.
O texto “Suinocultura e Antropização da Floresta Ombrófila Mista do Oeste de Santa Catarina (Décadas de 1910 a 1950)”, de autoria de Marlon Brandt e Miguel Mundstock Xavier de Caravalho, procurou analisar as transformações nessa paisagem florestal catarinense peculiar por meio da colonização e desflorestamento. No entanto, esse estudo teve como enredo principal a prática da suinocultura, entre o período que compreende o início da colonização da região na primeira metade do século XX, quando o setor agroindustrial de produção de carnes se consolidou regionalmente.
Também trazendo a inserção animal como agente de transformação ambiental, o texto “Invasões biológicas e ansiedades socioambientais: uma leitura histórico-etnográfica da proliferação de javalis (Sus scrofa) no bioma Pampa”, de Caetano Sordi, discute as reações sociais à proliferação de javalis europeus (Sus scrofa) no Pampa brasileiro como manifestações superficiais de processos mais amplos de transformação da paisagem. Por meio de uma crítica antropológica contemporânea a noções como “eco-ansiedade” e “transtorno de ansiedade ecológica”, o artigo busca demonstrar como uma apreensão socialmente situada e não reducionista do que está em jogo nas ansiedades socioambientais, tal como enunciadas por sujeitos concretos em situações locais, pode ser obtida a partir da combinação entre abordagens etnográficas (sincrônicas) e históricas (diacrônicas).
Em “Colonização e Transformação de Paisagens na Floresta com Araucárias no século XX”, os autores Marcos Gerhard, Eunice Nodari e Debora Sá interpretam parte dos processos migratórios e de colonização ocorridos no Sul do Brasil e na província argentina de Misiones, na área de ocorrência da Floresta com Araucárias, impulsionados por companhias colonizadoras privadas e pelas políticas públicas de repovoamento do século XX. Utilizam como fonte histórica os estudos de engenheiros agrônomos e de outros pesquisadores argentinos, que registraram as áreas de distribuição da Araucaria angustifolia na região de Misiones.
O dossiê se encerra com a importante participação do historiador José Augusto Pádua, que é um dos pioneiros nos estudos históricos ambientais no Brasil e tem sido uma referência internacional sobre esse campo historiográfico brasileiro. Pádua participa com o ensaio intitulado “Pensar a história em territórios cheios: a importância do conceito de biomas brasileiros”, no qual faz uma importante reflexão sobre o campo da história ambiental no Brasil e as formações biogeográficas.
O dossiê, portanto, se constitui em uma importante coletânea de temas, distintos e diversos, e que representam de forma muito sutil como o campo é composto no Brasil. Nesse sentido, é importante destacar, nessa breve apresentação, parte das reflexões propostas por Pádua e que muito aderem à proposta do dossiê e desse campo historiográfico no Brasil; que a história ambiental não se constitui em um conjunto de temas que relacionam sociedade e natureza, mas um campo analítico do processo histórico, no qual a história humana se insere de maneira visceral nos artifícios ecológicos do planeta.
REFERÊNCIAS
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WORSTER, Donald. Para fazer a história ambiental. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8 1991. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/view/311 Acesso em: jun. 2023.
» https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/view/311
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023