Nas últimas décadas, o estudo das elites se firmou como uma área interdisciplinar. Múltiplos objetivos de pesquisa atraíram para essa agenda sociólogos, cientistas políticos, economistas e vários outros especialistas que se encontravam diante do desafio de compreender melhor as características dos grupos dirigentes, seja para tratá-las como variável dependente ou independente em suas análises ( BEST; HIGLEY, 2018BEST, Heinrich. HIGLEY, John. The Palgrave Handbook of Political Elites. London: Palgrave Macmillan, 2018.; COTTA; BEST, 2007COTTA, Maurizio Cotta. BEST, Heinrich. Democratic Representation in Europe: Diversity, Change, and Convergence. Oxford; New York: Oxford University Press, 2007.; PERISSINOTTO; CODATO, 2015PERISSINOTTO, Renato; CODATO, Adriano (org.). Como estudar elites. Curitiba: Editora UFPR, 2015.). Entre os historiadores, a temática das elites foi temporariamente preterida com a projeção dos estudos focados nas classes subalternas ( THOMPSON, 2001THOMPSON, Edward Palmer. A história vista de baixo. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.), mas os estudos sobre as famílias e parentelas políticas à frente do poder nunca foi abandonado por completo, dada a sua centralidade para se compreender a luta de classes. Foi o recente ataque às instituições democráticas que abriu caminho para a ascensão de líderes populistas mundo afora ( LEVITSKY; ZIBLATT, 2018LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. São Paulo: Zahar, 2018.) e reacendeu o interesse pelo campo de estudo das elites, nos advertindo sobre o problema de renunciá-lo. Afinal, serviu como um lembrete do que acontece quando “os eleitores estão frustrados com os políticos de carreira, a elite dominante e os partidos que os criam e controlam” ( GABEL, 2002, p. 699GABEL, Matthew. Parliamentary Representation in Europe: Past, Present, and Future. Contemporary European History, Cambridge, v. 11, n. 4, pp. 665-674, 2002., tradução minha).
Esse dossiê procura justamente dar visibilidade às múltiplas estratégias teórico-metodológicas e evidências encontradas pelos analistas que têm se dedicado a compreender as características, continuidades e metamorfoses das elites políticas e sociais. Os textos que o compõem refletem a complexidade de um campo de estudos já consolidado, mas de enorme potencial de diálogo acadêmico para se revisitar o passado, interpretar o presente e refletir sobre o futuro das pesquisas sobre elites.
Duas colaborações especiais que integram o dossiê atestam como o estudo das elites se beneficiou da pluralidade metodológica. Com seu didatismo ímpar e tom espirituoso, Flavio M. Heinz assina a primeira delas em um texto no qual revisita uma técnica de pesquisa clássica nesse campo, a prosopografia, abordando questões corriqueiras não ditas, mas que assombram os jovens pesquisadores, como a definição do público-alvo digno do pretendido levantamento de dados: o temido n. Sua forma de descrever os desafios cotidianos da “cozinha” desse tipo de pesquisa funciona duplamente para introduzir o método de forma pragmática aos interessados, digna de manual metodológico, bem como uma espécie de terapia para quem está conduzindo uma prosopografia em tempo real, funcionando tal qual uma leitura estratégica de apoio. Certamente, um trabalho capaz de despertar desde a atenção do estudante que estiver dando seus primeiros passos nesse universo ao professor mais experiente à procura de um texto de referência para indicar em programas de curso e recomendar a orientandos.
A segunda colaboração especial, por sua vez, convida o leitor da Estudos Históricos a se abrir para a análise de surveys. Julian Borba e colegas analisam as pesquisas de opinião feitas com os deputados federais brasileiros entre 2005 e 2021 para investigar se de fato existem evidências de que, nesse universo, aconteceu uma virada conservadora. O artigo é um desenho de pesquisa que revela as vantagens de transpor para o estudo das elites as formas já clássicas de medir ideologia nos trabalhos sobre a opinião pública, que também interessam a uma diversidade de especialistas de diferentes disciplinas dispostas a avaliar se há correspondência entre os representantes eleitos e a vontade popular. Os dados apresentados pelos autores relativizam a ideia de que estamos assistindo a um processo em curso de polarização ideológica entre os legisladores no país, pelo menos em se tratando de questões econômicas e culturais.
Os nove artigos que completam o dossiê espelham a mesma aposta na diversidade teórico-metodológica típica dos estudos sobre as elites. Dois deles discutem dois públicos-alvo menos estudados pelo campo, comparativamente à ampla produção existente sobre as elites políticas. Renato Perissinotto e coautores investem na análise de redes para estudar a elite dos colunistas de economia nos principais jornais brasileiros. O método lhes permite capturar as relações estabelecidas entre esses colunistas, algo impossível de auferir caso os pesquisadores recorressem ao simples levantamento das filiações institucionais daquela amostra de jornalistas. Mais do que isso: uma escolha metodológica que prescinde da análise do conteúdo dos textos dos colunistas de economia, mas, ainda assim, se mostra perspicaz ao inferir a influência daqueles atores no discurso econômico, atestando o poder da imprensa como estruturante da opinião pública. Fabiano Engelmann explora a conexão entre o associativismo e a produção de elites na Magistratura e no Ministério Público, temática que ganha cada vez mais projeção graças ao crescente protagonismo político-judicial vivenciado no Brasil nas últimas décadas. O autor se vale da análise de um banco de dados observacionais elaborado a partir de fontes oficiais que lhe permitiram identificar cargos estratégicos ocupados pelas lideranças das instituições judiciais do país. Seu trabalho mapeia a trajetória dos presidentes das associações de magistrados estaduais e os magistrados que ocupavam a direção nos tribunais estaduais que independem de antiguidade, como vice-presidências e a Corregedoria-Geral, entre outras posições ocupadas pelas elites judiciais. Como resultado, oferece pistas da forma pela qual as elites judiciais adquiriram gradativamente uma legitimidade e autonomia para mediar os conflitos entre os Poderes Executivo e Legislativo, sem qualquer mediação partidária.
Outros três artigos encaram as elites políticas brasileiras em diferentes momentos da trajetória do governo representativo no país. Rogerio Schlegel realiza um estudo prosopográfico dos interventores estaduais que atuaram no Brasil entre 1945 e 1947, traçando as diferenças entre os indicados por José Linhares e por Eurico Gaspar Dutra. Uma contribuição importante a respeito de um período (a queda do Estado Novo e a ascensão da República de 1946-1964) e de um tema (os limites da descentralização nos estados brasileiros) ainda muito pouco explorados tanto pela historiografia como pela ciência política. Seu trabalho permite compreender as dificuldades que aqueles atores encontraram durante a transição democrática, insuficiente, por si só, para lhes garantir autonomia diante do governo federal. Adriano Codato e colegas também elegem a primeira experiência democrática brasileira para estudo. Através de uma análise de regressão, os autores se empenham em detectar os fatores associados à demissão dos ministros que compuseram os gabinetes presidenciais formados entre 1945 e 1964. Trata-se de um exercício que articula muito bem a reflexão histórica e a análise política para revisitar um período da trajetória política do país menos explorado pela produção científica recente, embora permaneça aberto o debate sobre as relações Executivo-Legislativo no Brasil pré-1988. A constatação dos autores é a de que o aumento do número efetivo de partidos na Câmara dos Deputados e a necessidade de acomodar aliados da base do governo nos ministérios, que implicou a variação na quantidade de partidos representados nos gabinetes, foram os elementos mais correlacionados com a instabilidade dos ministérios à época — outro achado que pode fomentar futuras pesquisas sobre as instituições políticas brasileiras de 1946-1964. Ana Paula Ribeiro Freitas volta ao século XIX com o objetivo de analisar o resultado da Lei dos Círculos (1855) na composição da maior bancada de deputados do Brasil Império, a de Minas Gerais. Por meio da triangulação de diversas fontes, a autora consegue sistematizar o grau de renovação legislativa proporcionado pela reforma eleitoral. Seu trabalho permite conhecer o perfil do novo grupo de deputados eleitos para os anos 1857-1860, em linha com os esforços mais recentes de pesquisas focadas no resgate da memória eleitoral brasileira antes da democracia. O texto é uma inspiração para a retomada dos estudos sobre as elites imperiais, temática que pode continuar rendendo muito, especialmente quando se trata de desvendar a forma como os representantes daquela época chegavam ao poder.
Ainda sobre o Brasil, dois artigos problematizam discussões teórico-metodológicas promissoras para repensarmos futuras agendas de pesquisa sobre elites. Fernanda Rios Petrarca e Wilson José Ferreira de Oliveira retomam a discussão clássica de parentela política para discutir a formação de alianças e redes de base familiar na arena política. Tomando a análise da elite política sergipana como pano de fundo, os autores contestam o hábito presente em muitos estudos que naturalizam categorias como família para se mapear os grupos dirigentes. O grande mérito do texto é enfrentar uma temática que atravessa temporalidades e espacialidades, o que exige rigor teórico-metodológico, como os pesquisadores bem sinalizam. Ernesto Seidl e Bruno Costa Barreiros, por sua vez, propõem caminhos de pesquisa sobre elites e instituições a partir de análises que caracterizam as elites atuantes nos domínios militares (entre o Segundo Império e a Primeira República) e empresariais (no curso da Nova República). A principal contribuição do trabalho está em resgatar a abordagem que a sociologia política francesa aplica ao estudo das instituições — incomum nas investigações conduzidas pela academia brasileira — para encampar um diálogo com a abordagem neoinstitucionalista — mais comum entre nós em se tratando do estudo das elites. Seguramente, uma proposta que pode motivar especialistas em outros segmentos de grupos dirigentes (religiosos, partidários, jurídicos etc.) a expandir as suas respectivas abordagens analíticas com sucesso.
Para ampliar seus horizontes, o leitor ainda encontra dois estudos de caso latino-americanos neste dossiê, os quais convergem para uma perspectiva comportamental na análise das elites. Mariana Gené explora as trajetórias e práticas das elites do Ministério do Interior argentino durante o governo de Mauricio Macri (2015-2019) a partir de entrevistas em profundidade e do levantamento de fontes oficiais e da imprensa escrita. A autora procura demonstrar como o estudo das elites não pode se restringir à investigação da trajetória pregressa do universo de interesse. Seu trabalho endossa uma combinação do exame das trajetórias com o estudo das redes de contatos dos atores que compõem a elite entre si, por entender que os sujeitos sociais são também produtos dos desafios históricos que enfrentam — uma condicionante, por si só, dos recursos que eles terão à sua disposição para atuar politicamente. De sua parte, Miguel Serna e Eduardo Bottinelli analisam os valores da elite empresarial uruguaia em relação à igualdade de gênero durante a pandemia da covid-19. A escolha do caso se deveu à baixa presença feminina em cargos de gerência no país comparativamente aos demais países latino-americanos. Para enfrentar a questão, os autores conduziram uma pesquisa de atitude e carreira com 158 gerentes de uma lista de 530 grandes empresas no Uruguai. Os resultados ajudam a mapear as barreiras que os entrevistados identificaram como causas principais da pequena participação das mulheres em postos-chave, com destaque para determinantes socioculturais e variáveis ligadas à estrutura organizacional das próprias empresas. São dados relevantes que podem representar uma contribuição para trabalhos semelhantes no Brasil, viabilizando inclusive uma perspectiva comparada.
Completa o dossiê uma homenagem preparada pela professora Lucia Lippi Oliveira em memória à obra de Alzira Alves de Abreu, falecida em 2023 após anos de dedicação ao Dicionário histórico-biográfico brasileiro (DHBB), a maior enciclopédia sobre as elites políticas brasileiras. O texto é uma versão da palestra proferida durante o X Ateliê do Pensamento Social, realizado no Rio de Janeiro, em setembro de 2023, no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC). Nele, Lucia nos brinda com o resgate de uma face menos conhecida da contribuição intelectual de Alzira sobre o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Ao incorporarmos essa memória no dossiê, esperamos fazer justiça à memória de uma das maiores entusiastas do estudo das elites brasileiras.
Referências
- BEST, Heinrich. HIGLEY, John. The Palgrave Handbook of Political Elites. London: Palgrave Macmillan, 2018.
- COTTA, Maurizio Cotta. BEST, Heinrich. Democratic Representation in Europe: Diversity, Change, and Convergence. Oxford; New York: Oxford University Press, 2007.
- GABEL, Matthew. Parliamentary Representation in Europe: Past, Present, and Future. Contemporary European History, Cambridge, v. 11, n. 4, pp. 665-674, 2002.
- LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. São Paulo: Zahar, 2018.
- PERISSINOTTO, Renato; CODATO, Adriano (org.). Como estudar elites. Curitiba: Editora UFPR, 2015.
- THOMPSON, Edward Palmer. A história vista de baixo. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024