Resumo
Este artigo analisa os problemas teóricos e metodológicos da utilização do conceito de parentela no estudo dos grupos dirigentes. Trata-se, primeiro, de fazer um contraponto entre as análises que têm como base a noção de grandes famílias e as que se centram nas redes de base familiar, fundadas no conceito de família extensa e parentela. Depois, descreve-se o peso do sistema de alianças para a compreensão das condições de emergência e de transformação das redes de base familiar da elite política de Sergipe. Os resultados evidenciam o valor heurístico do conceito de parentela para a apreensão das condições e das dinâmicas de formação dos grupos dirigentes.
Palavras-chave:
Grupos dirigentes; Elites políticas; Parentela; Redes de base familiar
Abstract
This article analyzes the theoretical and methodological issues of using the concept of relatives in the study of governing bodies. First, this is about counterpointing the analyses that are based on the notion of great families and those centered in the family-based network, founded in the concept of extended family and relatives. Then, it describes the weight of the alliances system to understand the emergence and transformation conditions of family-based networks of the political elite of Sergipe. The results highlight the heuristic value of the concept of relatives for understanding the formation conditions and dynamics of governing bodies.
Keywords:
Governing bodies; Political elites; Relatives; Family-based networks
Resumen
Este artículo analiza los problemas teóricos y metodológicos sobre el uso del concepto de parentela en el estudio de los grupos dirigentes. En primer lugar, se hace un contrapunto entre los análisis basados en la noción de familias numerosas y los que se centran en las redes de base familiar a partir del concepto de familia extensa y parentela. A continuación, se describe el peso del sistema de alianzas para comprender las condiciones de surgimiento y transformación de las redes de base familiar de la elite política de Sergipe (Brasil). Los resultados muestran el valor heurístico del concepto de parentela para comprender las condiciones y dinámicas de formación de los grupos dirigentes.
Palabras clave:
Grupos dirigentes; Elites políticas; Parentela; Redes de base familiar
Nos últimos anos, semelhante ao que se tem observado em outros países, o Brasil passou por consideráveis turbulências políticas que colocaram em risco tanto seu sistema político quanto a elite política que governa o país. A imoralidade, a corrupção e o monopólio das elites no poder, do sistema político e dos políticos são, com frequência, salientados como os principais males do nosso tempo, da crise atual da democracia e, em particular, da crise brasileira da última década ( Petrarca, 2020PETRARCA, Fernanda Rios. Carwash Operation and the Complex Mechanism of Political Corruption in Brazil. Civitas, Porto Alegre, v. 20, p. 425-438, 2020a.; Oliveira, 2020OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Anti-Corruption Protests, Alliance System and Political Polarization. Civitas, Porto Alegre, v. 20, p. 439-453, 2020.). No que pese esse legítimo questionamento moral, político e social direcionado às elites, o estudo dos grupos dirigentes (levando em conta as consideráveis variações que tais termos carregam), continua como uma importante linha de pesquisa e objeto de investigação das ciências sociais. Sem dúvida, é de grande pertinência conhecer as condições sociais, políticas e culturais de possibilidade de emergência e de consolidação daquelas pessoas que ocupam posições de destaque ou privilégio em diferentes esferas de atividade, os princípios de seu recrutamento, seleção e hierarquização, suas relações e intersecções com outros espaços sociais, como também as lógicas práticas pelas quais elas exercem seu poder e domínio em diferentes mundos sociais.
Reunindo pesquisas vinculadas a diferentes áreas das ciências humanas e sociais, o estudo das elites possibilita apreender certas características estruturais do sistema político brasileiro e de suas intersecções com diferentes esferas de atividade ( Carvalho, 2003CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite imperial: teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.; Codato; Bolognesi, 2017CODATO, Adriano; BOLOGNESI, Bruno. Sociologia política dos políticos do Brasil: um estudo da competição eleitoral sob o regime da Constituição de 88. [S. l.: s. n.], 2017. DOI: 10.13140/RG.2.2.24934.52809.
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; Codato; Perissinoto, 2015CODATO, Adriano; PERISSINOTO, Renato. Como estudar elites. Curitiba: Editora UFPR, 2015. 319 p.; Conniff, 2006CONNIFF, Michael L. A elite nacional. In: HEINZ, Flavio M. (org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 77-97.; Coradini, 1996CORADINI, Odaci Luiz. Grandes famílias e elite “profissional” na medicina no Brasil. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 425-466, 1996. DOI: 10.1590/S0104-59701996000300004.
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; Grill, 2008GRILL, Igor Gastal. Múltiplas dimensões de uma agenda comum de pesquisa: elites, profissionais e lideranças políticas. In: GRILL, Igor Gastal; REIS, Eliana Tavares dos; BARROS FILHO, José (org.). Elites, profissionais e lideranças políticas (RS e MA): pesquisas recentes. São Luís: EDUFMA, 2008. p. 11-26.; Love; Barickman, 2006LOVE, Joseph L.; BARICKMAN, Bert J. Elites regionais. In: HEINZ, Flavio M. (org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 77-97.; Lynch, 2011LYNCH, Christian Edward Cyril. Do despotismo da gentalha à democracia da gravata lavada: história do conceito de democracia no Brasil (1770-1870). Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 3, p. 355-390, 2011. DOI: 10.1590/S0011-52582011000300004.
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; Oliveira, 2008OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Engajamento político, competência técnica e elites dirigentes do movimento ambientalista. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 16, n. 30, p. 167-186, 2008.; Petrarca, 2017PETRARCA, Fernanda Rios. De coronéis a bacharéis: reestruturação das elites e medicina em Sergipe (1840-1900). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 74, p. 89-112, 2017., 2020bPETRARCA, Fernanda Rios. Composição social, critérios de seleção e lógicas de recrutamento da elite médica em Sergipe. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 35, n. 104, p. 1-20, 2020b.; Petrarca; Oliveira, 2017PETRARCA, Fernanda Rios; OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Parentelas, grupos dirigentes e alianças políticas. Política e Sociedade, Florianópolis, v. 16, p. 191-224, 2017.; Zulini; Ricci, 2021ZULINI, Jacqueline. P.; RICCI, Paolo. Partidos políticos e Legislativo na Era Vargas: a representação política antes da democracia. In: ABREU, Luciano Aronne de; VANNUCCHI, Marco Aurélio (org.). A Era Vargas (1930-1945). Porto Alegre: ediPUCRS, 2021. v. 1, p. 286-317. (História, 87).). Investigar as condições, os processos e as lógicas de formação e de recomposição das elites políticas constitui uma das dimensões principais na compreensão de como tais características e relações combinam ingredientes de continuidade e de mudança. Tal desafio tem se confrontado com problemáticas e dificuldades de investigação que remetem a diversos níveis de compreensão e de exercício da própria ciência social.
Um primeiro conjunto de dificuldades e problemas decorre de certas características próprias das ciências sociais brasileiras na produção de teorias e conceitos para dar conta desse fenômeno. Não muito diferente do que se tem observado em outras áreas de investigação e produção teóricas ( Costa, 2010COSTA, Sérgio. Teoria por adição. In: MARTINS, Carlos B.; MARTINS, Heloisa Helena Teixeira de Souza; BOTELHO, André (org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Barcarolla; ANPOCS, 2010. p. 25-51.), o estudo das condições e das dinâmicas de formação de elites e grupos dirigentes no Brasil se caracteriza pela recorrente importação de perspectivas e abordagens eurocêntricas. Como já evidenciamos em outro artigo, apesar da existência de uma longínqua produção brasileira sobre elites e grupos dirigentes, ela não conta com ingredientes mínimos que sinalizem para a continuidade e para o pertencimento a uma tradição intelectual de investigação sobre a temática ( Oliveira; Petrarca, 2018OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Inovações temáticas, “guinadas” teóricas e tradição intelectual no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia (RBS), Brasília, DF, v. 6, n. 14, p. 34-62, 2018.). Como consequência disso, a produção acadêmica nacional é praticamente ignorada, como se não existissem estudos anteriores sobre essa temática. Assim, grande parte das abordagens, dos problemas de investigação e das tipologias utilizadas pela produção nacional têm como base a Europa Ocidental ou de “uma reificação da experiência social do norte” ( Connell, 2012CONNELL, Raewyn; MAIA, João. A iminente revolução na teoria social. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 27, n. 80, p. 9–20, 2012. DOI: 10.1590/S0102-69092012000300001.
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; Connell et al., 2017CONNELL, Raewyn; COLLYER, Fran; MAIA, João; MORRELL, Robert. Toward a Global Sociology of Knowledge: Post-Colonial Realities and Intellectual Practices. International Sociology, Thousand Oaks, CA, v. 32, n. 1, p. 21-37, 2017. DOI: 10.1177/0268580916676913.
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).
No âmbito dos estudos das condições e dinâmicas de formação e recomposição dos grupos dirigentes, uma das categorias universalizantes que orientam o debate nos últimos anos é a de família e seu desdobramento nas análises das grandes famílias, famílias de elite. Aceitando como dada a reificação da experiência europeia ( Connell, 2012CONNELL, Raewyn; MAIA, João. A iminente revolução na teoria social. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 27, n. 80, p. 9–20, 2012. DOI: 10.1590/S0102-69092012000300001.
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; Connell et al., 2017CONNELL, Raewyn; COLLYER, Fran; MAIA, João; MORRELL, Robert. Toward a Global Sociology of Knowledge: Post-Colonial Realities and Intellectual Practices. International Sociology, Thousand Oaks, CA, v. 32, n. 1, p. 21-37, 2017. DOI: 10.1177/0268580916676913.
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), o modelo de família ocidental é um dos ingredientes chaves para dar conta das condições de emergência e dos processos de transformação e de reprodução dos grupos dirigentes no Brasil ( Oliveira; Petrarca, 2016OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Os estudos de elites no Brasil: um ensaio crítico sobre a produção recente. In: REIS, Eliana Tavares dos; GRILL, Igor Gastal (ed.). Estudos sobre elites políticas e culturais. São Luís: EDUFMA, 2016. v. 2, p. 141-165.). Tal orientação conduziu, em grande parte das análises, à negligência e mesmo ao esquecimento de uma longa tradição de estudos dos grupos dirigentes no Brasil centrados em conceitos como clãs parentais, família extensa, parentela, redes de base familiar., os quais são vistos hoje como historicamente datados e ultrapassados, mas que evidenciam as condições e dinâmicas históricas das elites brasileiras e seu papel na expansão da amizade instrumental e das redes de relações pessoais para a política.
No entanto, nossos estudos sobre os grupos dirigentes de Sergipe demonstram a relevância atual desses conceitos para dar conta tanto das relações e dos conflitos entre os principais grupos dominantes quanto das inserções e vínculos estabelecidos por eles com diferentes mundos sociais: político, profissional, militante. Embora tenham mudado de forma e de configuração organizacional, são princípios de recrutamento, de seleção e de hierarquização semelhantes a esses que estão na base dos processos de formação e recomposição dos grupos políticos.
Para dar conta destes objetivos, este artigo se divide em duas partes principais. Na primeira, faremos um contraponto entre as análises dos grupos dirigentes que têm como base a noção de grandes famílias e as que se centram nas redes de base familiar fundadas nos conceitos de família extensa e parentelas. Destacam-se tanto os avanços quanto as dificuldades e os desafios que tais análise colocam em jogo para situações como a que investigamos. Para isso, faremos um mergulho na sociologia política brasileira no intuito de evidenciar o quanto a noção de família compõe as interpretações sobre o país e suas respectivas particularidades, como também sugerir a partir da noção de família extensa, parentela e redes de base familiar uma alternativa para pensar os problemas de ordem teórica e metodológica no estudo das famílias e grupos dirigentes no Brasil. Num segundo momento, nossa tarefa consiste em descrever o peso do sistema de alianças para a compreensão das condições de emergência e de transformação das “redes de base familiar” da elite política de Sergipe. Mais do que apresentar a descrição de um caso particular, indicaremos que se trata de um princípio geral que, com conotações e formas diferentes, está na raiz da própria política brasileira.
Este artigo apresenta as contribuições heurísticas de tais conceitos para a apreensão do papel central que desempenharam os laços sociais e o sistema de alianças nas dinâmicas de estruturação e de transformação dos grupos dirigentes de Sergipe. Diferentemente das análises que aceitam como dado os processos de diferenciação e autonomização de ordens de atividades distintas, ele contribui para o avanço na análise das relações entre grupos dirigentes ao permitir dar conta da intersecção e conexão entre diferentes mundos sociais, os quais, como se sabe, passam cada vez mais pela compreensão da lógica que os une. Assim, é precisamente a lógica da aliança que se sobressai como traço destacado das relações entre os principais grupos políticos no poder; aspecto que não parece nem um pouco restrito ao caso de Sergipe, mas se apresenta como um dos traços distintivos da política brasileira em diferentes períodos ( Abranches, 1988ABRANCHES, Sérgio Henrique. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-33, 1988., 2018ABRANCHES, Sérgio Henrique. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.; Conniff, 2006CONNIFF, Michael L. A elite nacional. In: HEINZ, Flavio M. (org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 77-97.; Love; Barickman, 2006LOVE, Joseph L.; BARICKMAN, Bert J. Elites regionais. In: HEINZ, Flavio M. (org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 77-97.; Nobre, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia Das Letras, 2013.; Oliveira Viana, 1999OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Instituições políticas brasileiras. Brasília, DF: Senado Federal, 1999. (Biblioteca Básica Brasileira)., 2005OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Populações meridionais do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2005. v. 27. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1108/743391.pdf. Acesso em: 2 dez. 2023.
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; Queiroz, 1968QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Política, ascensão social e liderança num povoado baiano. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 0, n. 3, p. 117, 1968. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i3p117-133.
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, 1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. v. 5.; Schwartzman, 1988SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1988.). Desse modo, o caso sergipano é relevante por evidenciar o quanto as próprias condições de fragmentação da elite política e sua dinâmica de diversificação e diferenciação conduziram à produção de um sistema cujo componente central é a necessidade constante de estabelecer alianças. Logo, mais do que a herança do modelo ocidental de família, é a competência para manter e estabelecer novas alianças que constitui um recurso fundamental de êxito e sucesso dos grupos dirigentes.
Das grandes famílias aos agrupamentos de base familiar
Nos últimos anos, nota-se uma grande diversificação das temáticas e dos tipos de objetos vinculados aos estudos dos grupos dirigentes ( Oliveira; Petrarca, 2016OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Os estudos de elites no Brasil: um ensaio crítico sobre a produção recente. In: REIS, Eliana Tavares dos; GRILL, Igor Gastal (ed.). Estudos sobre elites políticas e culturais. São Luís: EDUFMA, 2016. v. 2, p. 141-165.; Petrarca; Oliveira, 2017PETRARCA, Fernanda Rios; OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Parentelas, grupos dirigentes e alianças políticas. Política e Sociedade, Florianópolis, v. 16, p. 191-224, 2017.). Contribuiu para isso a consolidação e a difusão internacional de uma vertente de estudo — herdeira do marxismo e da sociologia política das elites anglo-saxônicas — que prioriza a investigação do papel das instituições e de suas relações com a emergência e recomposição dos grupos dirigentes. Foi decisivo também a expansão dos trabalhos de Bourdieu e de sua equipe, os quais passaram a se centrar na investigação dos processos de recrutamento e seleção das elites em diferentes esferas, priorizando a análise das relações objetivas entre as propriedades e trajetórias sociais que aproximam, ou opõem, os agentes no estado das relações de forças entre as estruturas de recursos e de capitais mobilizados, bem como nos princípios legítimos de dominação em luta para sua imposição ( Canedo, 2002CANEDO, Letícia. Herança na política ou como adquirir disposições e competências necessárias às funções de representação política (1945-1964). Pro-Posições, Campinas, SP, v. 13, n. 3, p. 169-198, 2002., 2011CANEDO, Letícia. Um capital político multiplicado no trabalho genealógico. Pós, Brasília, DF, v. 8, n. 15, p. 55-75, 2011.; Coradini, 2008CORADINI, Odaci Luiz (org). Estudo de grupos dirigentes no Rio Grande do Sul: algumas contribuições recentes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. 148 p.; Miceli, 1988MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988., 2001MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.).
Acerca dessa última perspectiva, salienta-se que, em termos metodológicos, os procedimentos de pesquisa se direcionam à coleta de informações biográficas diversificadas sobre os indivíduos, as propriedades sociais e os deslocamentos dos dirigentes no espaço social e político e de articulá-los com mudanças e transformações diacrônicas. A recepção dos trabalhos de Bourdieu pelas ciências sociais brasileiras contribuiu para uma renovação e expansão dos estudos e para o aumento do interesse por diferentes tipos de elites: das políticas às sindicais, das profissionais e culturais às militantes. Associado a isso, observa-se a integração de diferentes níveis de análise, como também a ampliação do próprio universo empírico com base tanto na análise histórica e no uso de documentos quanto de entrevista e análise biográfica. Destaca-se a análise de biografias coletivas, o que conduziu ao amplo uso da prosopografia como metodologia dedicada a este tipo de abordagem ( Stone, 2011STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 115-137, 2011. DOI: 10.1590/S0104-44782011000200009.
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).
É no âmbito dessa problemática bourdieusiana que emerge o interesse pela investigação das grandes famílias ( Saint Martin, 1980SAINT MARTIN, Monique. Une Grande Famille. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, n. 31, p. 4-21, 1980., 1995SAINT MARTIN, Monique. Reconversões e reestruturação das elites: o caso da aristocracia em França. Análise Social, Lisboa, vol. 30, n. 134, p. 1023-1039, 1995., 2002SAINT MARTIN, Monique. Coesão e diversificação: os descendentes da nobreza na França no final do século XX. Mana, São Cristóvão, RJ, v. 8, n. 2, p. 127-149, 2002.), estando diretamente vinculada a um grupo coeso e homogêneo e à reivindicação de uma herança familiar pelos seus membros. Com frequência, os participantes das grandes famílias, com base nos laços de consanguinidade, participam de espaços e movimentos com base em relações e vínculos com o lugar de origem da família. Associado a isso, há um conjunto de estratégias que preservam a homogeneidade do grupo familiar e garantem sua condição através do controle sobre o processo de recrutamento para o grupo. Além disso, trata-se também de assegurar o pertencimento ao grupo dentro de uma linhagem de parentesco, o que requer um intenso trabalho social de distinção e de preservação de um lugar reservado no espaço social e de manutenção das diferenças, conduzindo àquilo que a bibliografia chama de esprit de corps [espírito de corpo] ( Bourdieu, 1989BOURDIEU, Pierre. La Noblesse d’État: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Minuit, 1989.). Nessas condições, o que se opera é uma verdadeira empresa coletiva voltada para celebração, acumulação e gestão de capital social.
No que pese a pertinência dessa problemática de levar a sério as relações com a família de origem na investigação dos grupos dirigentes, o padrão de dominação decorrente das grandes famílias francesas não parece adequado ao caso brasileiro. A própria expressão grande família e os contornos que o uso dela assumiu nos estudos sobre elites brasileiras demonstram que os trabalhos estiveram mais preocupados em caracterizar o grupo como uma unidade do que se ater concretamente ao sistema de relações sociais que torna possível e que fundamenta sua existência no decorrer do tempo e em diferentes espaços sociais ( Oliveira; Petrarca, 2016OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Os estudos de elites no Brasil: um ensaio crítico sobre a produção recente. In: REIS, Eliana Tavares dos; GRILL, Igor Gastal (ed.). Estudos sobre elites políticas e culturais. São Luís: EDUFMA, 2016. v. 2, p. 141-165., 2018OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Inovações temáticas, “guinadas” teóricas e tradição intelectual no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia (RBS), Brasília, DF, v. 6, n. 14, p. 34-62, 2018.; Petrarca; Oliveira, 2017PETRARCA, Fernanda Rios; OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Parentelas, grupos dirigentes e alianças políticas. Política e Sociedade, Florianópolis, v. 16, p. 191-224, 2017.). Nesse sentido, partir de determinadas unidades familiares que se destacaram em diferentes cenários e esferas sociais conduz ao perigo de cair no efeito de unificação simbólica do grupo, contribuindo mais para sua existência e legitimação do que para apreensão de suas relações diversificadas com diferentes mundos sociais.
Contrariamente a isso, diferentes gerações de cientistas sociais salientam a especificidade da configuração familiar brasileira, o quanto tal noção de família compõe as interpretações sobre o país e suas respectivas particularidades, como também as principais dificuldades teórico-metodológicas nos usos de abordagens ocidentais para situações como essa ( Bôas, 2010BÔAS, Glaucia Villas. Para ler a sociologia política de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Revista Estudos Políticos, Niterói, RJ, v. 1, n. 1, p. 37-44, 2010. DOI: 10.22409/rep.v1i1.38452.
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; Domingues, 2016DOMINGUES, José Maurício. Familia, modernización y teoría sociológica. Estudios Sociológicos, Ciudad de México, v. 34, n. 100, p. 145-167, 2016.). Quanto a isso, o sistema de parentela tem sido indicado como a chave da organização social e política e um idioma para compreender as bases das relações sociais das famílias dirigentes, sobretudo de meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX ( Candido, 1951CANDIDO, Antonio. The Brazilian Family. In: SMITH, T. Lynn; MARCHANT, Alexander (ed.). Brazil: Portrait of a Continent. New York: Dryden, 1951.; Lewin, 1993LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba. Rio de Janeiro: Record, 1993.; Queiroz, 1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. v. 5.; Wagley, 1971WAGLEY, Charles. An introduction to Brazil. 2. ed. New York: Columbia University Press, 1971.). Tendo como característica principal a capacidade de extensão das relações familiares para além do estrito núcleo consanguíneo, o sistema de parentela e seus desdobramentos em redes de relações personificadas ( Lewin, 1993LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba. Rio de Janeiro: Record, 1993.) se tornou o principal alicerce do sistema de alianças entre elites, grupos dirigentes e lideranças políticas. O caráter aberto, ou extenso, das relações parentais para além do parentesco consanguíneo, o processo de expansão e de diversificação dos vínculos de natureza pessoal nas alianças políticas, as estratégias matrimoniais e de adoção de sobrenomes, a capacidade de incluir novos membros e estabelecer amplas alianças, entre outros aspectos, sinalizam para o quanto sua forma de organização social, econômica e política se opõe àquela observada na noção de grande família, baliza da sociologia política francesa ( Oliveira; Petrarca, 2016OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Os estudos de elites no Brasil: um ensaio crítico sobre a produção recente. In: REIS, Eliana Tavares dos; GRILL, Igor Gastal (ed.). Estudos sobre elites políticas e culturais. São Luís: EDUFMA, 2016. v. 2, p. 141-165.; Petrarca; Oliveira, 2017PETRARCA, Fernanda Rios; OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Parentelas, grupos dirigentes e alianças políticas. Política e Sociedade, Florianópolis, v. 16, p. 191-224, 2017.).
Escravidão, dominação de grandes proprietários rurais e família patriarcal são amplamente salientados na literatura sociológica brasileira como ingredientes estruturais da formação da sociedade e da composição dos sistemas de dominação e de hierarquização dos grupos dirigentes em tal situação. As bases sociais e históricas da definição da grande família brasileira, ou melhor, da família extensa, estaria, nessas condições, fundado num modelo de sociedade estruturado com base na escravidão e que fornecia as condições materiais para a organização e consolidação da dominação senhorial e da família patriarcal como princípios de dominação e de hierarquização das elites.
A obra de Gilberto Freyre ( 1994 [1933]FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 29. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994 [1933].), Casa-grande e senzala, é um dos marcos iniciais para o estudo histórico e sociológico das condições de formação desta família brasileira: a ordem patriarcal. Originário da ordem agrária, o patriarca detém poder sobre esposa, filhos, escravos e agregados, e a família colonial representa, além da unidade doméstica, o principal órgão da formação social brasileira com impacto nas relações políticas, uma vez que o patriarca também chefiava os agrupamentos políticos. Desse modo, a família patriarcal se tornou um dos principais fatores colonizadores que ultrapassou a esfera doméstica, desdobrando-se numa força política e ocupando, muitas vezes, o lugar do Estado. Não há, portanto, nessas condições, uma lógica de ruptura entre família e Estado, mas extensão e continuidade.
Sem negar esse caráter extenso das relações inicialmente constituídas em torno dessa família patriarcal, Caio Prado Júnior mostra, em Formação do Brasil contemporâneo, que a formação brasileira não se processou num ambiente característico de uma família nuclear fundada no parentesco. A onipresença da escravidão em todos os setores da vida social brasileira até o século XIX (das funções produtivas ao serviço doméstico), a base não familiar da emigração brasileira e o reduzido papel da família nuclear na vida colonial constituem traços estruturantes na formação da vida social e política e, principalmente, na configuração dos princípios de emergência e de reprodução dos grupos dirigentes. “A emigração por indivíduos isolados que vem tentar uma aventura e que, mesmo tendo família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida e segura do chefe que emigrou” ( Prado Júnior, 2001: 350-351PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23. ed., 6. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2001. (Leituras Afins).) originou uma organização patriarcal baseada no domínio dos grandes proprietários individuais, os quais reúnem os indivíduos que participam das atividades dele ou a ele se agregam: unidade econômica, social, administrativa, política e religiosa dominada pelos grandes proprietários individuais que dominam do alto até o último escravo e agregado que entra para a sua clientela.
O desenvolvimento de um tipo específico de dominação senhorial nessas condições, fundado numa correspondente organização patriarcal centrada na figura do senhor rural dotado de autoridade e prestígio, fez com que o senhor rural deixasse de ser apenas o proprietário que detém os meios de produção e de exploração dos escravos e passasse a ser visto como protetor, uma espécie de pai dos despossuídos, intensificando os laços sociais entre tais senhores e sua clientela, e tornando mais humanas e menos tensas as relações entre eles. É dessa forma que o proprietário rural consegue reunir todos os elementos que lhe dão autoridade: poder, riqueza e legitimidade.
Tal aspecto está na origem da cordialidade, como apontado por Sérgio Buarque de Holanda (1995)BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. em Raízes do Brasil, e expresso também na ética de fundo emotivo, importante aspecto da vida brasileira e marca das nossas relações cotidianas. Trata-se de uma ética que prioriza as relações humanas e que tem horror à distância social, característica de um país de base rural, diferentemente de uma sociedade agrícola, e que está na origem da forte associação do patriarcalismo com o personalismo do líder. A própria ideia de facção política que se forma nesse contexto no interior dos partidos e que caracteriza a concorrência entre grupos dirigentes e lideranças políticas tem como fundamento a formação de grupos familiares unidos por laços biológicos e afetivos repletos de sentimentos, de laços pessoais e familiares e dos deveres e trocas de favores, e não por interesses ou ideias. Logo, o espírito de facção se origina no chamado pater familias, no qual estão subordinados, à autoridade do senhor rural, todos os membros do grupo familiar, desde os filhos aos agregados.
Essas contribuições são essenciais para melhor especificar as condições iniciais de constituição da família dirigente brasileira, seus recursos, bases sociais e estratégias de reprodução. Diferentemente do conceito francês de grande família, fundado no princípio do parentesco consanguíneo do núcleo familiar, e até dinástico, tais estudos nos direcionam para o papel estruturante da família colonial e patriarcal na organização política da sociedade brasileira. A demonstração de uma forte correlação entre esse tipo de patriarcalismo e de familismo constitui um dos traços principais de nossa “modernidade”.
O caráter extenso, ou ampliado, e relativamente aberto dos vínculos familiares e da solidariedade parental na família senhorial brasileira já fora destacado por Francisco José de Oliveira Viana ( 1999: 226OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Instituições políticas brasileiras. Brasília, DF: Senado Federal, 1999. (Biblioteca Básica Brasileira).) em Instituições políticas brasileiras. Segundo ele, composta pela presença tanto do patriarca da família e de seus parentes consanguíneos (filhos e netos), quanto dos parentes colaterais (irmãos, tios e sobrinhos), dos por afinidade civil (genros e cunhados) e por afinidade religiosa (os compadres e afilhados), e, até mesmo, dos por adoção (os crias da casa senhorial, os moleques mimosos), a organização parental era a base de um sistema de cooperação e de solidariedade social fundamental da elite rural que ia muito além dos laços de parentesco da família nuclear. Derivada e exorbitando em torno da família senhorial, sem organização legal, religiosa ou moral precisa e cuja solidariedade se revelava de maneira mais nítida em situações de lutas de família e de disputas entre diferentes grupos, tais organizações passaram a agregar, por força do regime monárquico inaugurado em 1822, várias parentelas sob uma mesma bandeira para fins eleitorais.
Todavia, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Antonio Candido demonstraram o quanto as noções de parentesco ou grande família, típicos da literatura socioantropológica, não eram generalizantes e universalizantes para dar conta dessa dinâmica familiar brasileira e, por consequência, das próprias relações de articulação e de concorrência entre os principais grupos dirigentes em tal situação. Em contraponto a isso, formularam o conceito de parentela para dar conta de certas regularidades quanto às condições e os princípios de organização, como também de suas transformações no decorrer dos anos. Nesse sentido, a característica central do sistema de parentela era sua organização em torno de uma rede de reciprocidade e de lealdade que ultrapassa a família nuclear (pai + mãe = filhos), envolvendo os tios, primos, sobrinhos, sogros, netos e agregados. Tal princípio possibilitou que, em paralelo à estrutura hierárquica controlada pelo grande proprietário rural, surgisse outra, de tipo mais igualitário, que gerava condições mais abertas para ascensão social via liderança política. Por isso, o arranjo estratificado, rígido, amplamente aceito pela sociologia política brasileira, oferece pouca ou nenhuma margem para pensar as condições de ascensão social e de formação de grupos dirigentes e lideranças políticas em tal situação.
O sistema de parentela se caracteriza por uma forte complexidade interna, uma vez que contém ingredientes tanto de um modelo igualitário, reunindo agrupamentos familiares de nível socioeconômico semelhantes, quanto de um estratificado, caracterizado pela existência de grupos familiares de níveis socioeconômicos desiguais, conectados por múltiplas alianças. Além dessa diferenciação, a forte solidariedade interna permitia unir grupos distintos, fundado no sentimento de união e de pertencimento a um agrupamento maior que poderia garantir as condições necessárias, seja para abertura de um simples negócio, seja para entrada na política, ou até mesmo para sua sobrevivência econômica e social. A lealdade dos membros com os chefes das parentelas constituía um dos aspectos essenciais para a manutenção e importância dos laços sociais. No entanto, longe de representar harmonia ou equilíbrio, essa forma de solidariedade desencadeou fortes rivalidades e confrontos violentos, que conduziam à formação de novos grupos, ou dissidências. Como a ascensão ao topo da parentela não era definida pela hierarquia de parentesco ou herança familiar, as disputas se davam em torno das qualidades pessoais que levavam à liderança. A posse dessas qualidades pessoais se tornava um dos ingredientes fundamentais na composição das parentelas, sendo muito comum que o chefe de uma delas passasse o comando a um sobrinho distante ou a um afilhado em detrimento do filho ou primogênito. Sua posição econômica era um outro ingrediente essencial, na medida em que garantia a realização de uma importante condição: a capacidade de fazer favores. Assim, um chefe de uma parentela era também aquele que estava na condição de fazer favores.
É com base nessa dinâmica móvel de composição, de fragmentação e de intensas divisões e rivalidades dos blocos de parentelas que se formou e se consolidou uma das principais liderança política dos grupos dirigentes da República: a figura do coronel ( Queiroz, 1968QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Política, ascensão social e liderança num povoado baiano. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 0, n. 3, p. 117, 1968. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i3p117-133.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
, 1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. v. 5.). Com a urbanização, os títulos escolares ampliaram e diversificaram o poder das parentelas, integrando-se perfeitamente a esse sistema e expandindo as possibilidades de ascensão entre indivíduos com menos posse ( Oliveira; Petrarca, 2017PETRARCA, Fernanda Rios; OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Parentelas, grupos dirigentes e alianças políticas. Política e Sociedade, Florianópolis, v. 16, p. 191-224, 2017.; Petrarca, 2019PETRARCA, Fernanda Rios. Entre jalecos, bisturis e a arte de fazer política. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 26, p. 573-591, 2019.). Aos poucos, as profissões liberais, instrumentos do poder coronelístico, passaram a exercer um papel fundamental no contexto pós Independência e a ter um peso significativo na República. Constituída por laços matrimoniais múltiplos (dentro e fora do grupo familiar), o sistema de parentelas se desdobra numa rede de alianças e de relações interpessoais entre famílias (rede baseada não só no parentesco de sangue, mas nas afinidades e amizade entre parentes), tornando-se um importante capital social que possibilita articular várias esferas da vida: emprego, favores e acesso a instituições.
O sistema de parentela figura como o principal mecanismo de ascensão e dominação dos grupos dirigentes, em especial até a metade do século XX, e seu processo de transformação não ocorreu sem acomodações que garantiram, em certa medida, sua continuidade. Enquanto princípio de hierarquização, a parentela já integrava atividades econômicas diversificadas (café, açúcar, criação de gado, cacau, comércio), apoiadas em investimentos distintos, do qual o título escolar e as profissões liberais desempenharam papel fundamental e garantiram a entrada dos membros da parentela com alguma formação no Estado. Com o passar do tempo, os princípios que estavam na base do recrutamento, da seleção e da hierarquização dos grupos dirigentes e lideranças se diversificaram espacialmente, ajustando-se aos processos de urbanização e de industrialização, possibilitando sua dominação na grande indústria, no comércio e no alto funcionalismo do Estado. A solidariedade vertical perdeu espaço em detrimento da expansão da solidariedade horizontal. Exemplifica isso, o surgimento de organizações patronais (cooperativas, associações, federações), as quais surgiram para garantir os interesses dos grupos, reforçando a solidariedade horizontal.
Assim, mais do que a “decadência das parentelas”, somos desafiados a pensar em termos do processo de transformação delas em redes de relações diversificadas que mantém os laços de solidariedade ( Lewin, 1993LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba. Rio de Janeiro: Record, 1993.). Desse modo, o conceito de parentela tem um enorme valor heurístico na medida em que, mais do que nos orientar a pensar em termos de unidade familiar ou grandes famílias como categorias universais, nos coloca diante de relações de base familiar bastante diversificadas (abertas, hierárquicas, verticais ou horizontais) e que podem dar conta tanto de alianças opostas (no caso de filhos desprovidos com herdeiras e filhas destinadas ao casamento político), quanto de alianças múltiplas (no caso de dois irmãos ou duas irmãs com irmãos de outra família). Tal formulação nos conduz a pensar não mais em termos das substâncias familiares que possibilitam a formação e a reconfiguração dos grupos dirigentes, mas em termos de relações diversificadas de base familiar que são mobilizadas por tais grupos e respectivas lideranças políticas. Esses aspectos estão presentes quando observamos as dinâmicas de formação e de recomposição dos grupos dirigentes e lideranças políticas de Sergipe.
Recomposição das alianças políticas nas redes de base familiar
Um conjunto de estudos sobre diferentes tipos de elites no estado de Sergipe, dentre elas as elites políticas, jurídicas e médicas ( Oliveira; Petrarca, 2016OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Os estudos de elites no Brasil: um ensaio crítico sobre a produção recente. In: REIS, Eliana Tavares dos; GRILL, Igor Gastal (ed.). Estudos sobre elites políticas e culturais. São Luís: EDUFMA, 2016. v. 2, p. 141-165., 2018OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de; PETRARCA, Fernanda Rios. Inovações temáticas, “guinadas” teóricas e tradição intelectual no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia (RBS), Brasília, DF, v. 6, n. 14, p. 34-62, 2018.; Petrarca, 2019PETRARCA, Fernanda Rios. Entre jalecos, bisturis e a arte de fazer política. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 26, p. 573-591, 2019., 2020bPETRARCA, Fernanda Rios. Composição social, critérios de seleção e lógicas de recrutamento da elite médica em Sergipe. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 35, n. 104, p. 1-20, 2020b.; Petrarca; Lima; Bomfim, 2021PETRARCA, Fernanda Rios; LIMA, Arthur Ives N. da Mota; BOMFIM, Fagner dos Santos (org.). Elites jurídicas em Sergipe: recrutamento, recursos sociais e redes de relações. Aracaju: Criação, 2021.; Petrarca; Oliveira, 2017PETRARCA, Fernanda Rios; OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Parentelas, grupos dirigentes e alianças políticas. Política e Sociedade, Florianópolis, v. 16, p. 191-224, 2017.), demonstram historicamente uma dinâmica fundada no domínio dos proprietários rurais e baseada nos arranjos diversificados entre famílias e afins (aliados políticos, afilhados, amigos), marcada pela forte rivalidade entre os grupos dominantes. Assim como outros estados brasileiros, Sergipe não experimentou o domínio familiar — situação em que uma família controla ao menos um município —, mas uma política constituída por grupos de base familiar. Para controlar o mercado de postos políticos e cargos públicos, as famílias da elite sergipana se aliaram, o que as permitiu acumular recursos diversificados e expandir suas bases familiares. Esse tipo de oligarquia que se formou não era exercido por uma única família, mas por diversas famílias conectadas por meio de casamentos e vínculos políticos e de amizade, fortalecendo a relação de parentela (parentes e afins).
Tal fenômeno ocorreu devido ao caráter fragmentário da terra, caracterizado pela pequena propriedade, ocasionado, muitas vezes, pela extensão das famílias as quais, em geral, tinham mais de cinco filhos. Além disso, como a lógica da parentela não segue a lógica da unidade e do domínio familiar, em muitas situações, as famílias compunham agrupamentos rivais, o que eleva o grau de fragmentação. Essa é a base sócio-histórica a partir da qual se ergue um modelo de controle político que conduziu à mobilização de recursos cada vez mais amplos para manter e conservar o poder dos agrupamentos políticos. A característica principal dos agrupamentos políticos de Sergipe consistiu no processo de recrutamento diversificado, que não se baseava exclusivamente no parentesco e na família nuclear, mas num sistema que incluía uma rede ampla e extensa de parentes (colaterais, por afinidade e descendentes) e amigos (colegas de profissão, afinidade). Esses agrupamentos políticos derivam da união entre parentelas e se constituíram como mecanismo central de dominação e princípio de estratificação social que determinavam o sistema de distribuição dos cargos.
Assim, aos poucos, a parentela, fundamentada em vínculos entre agrupamentos familiares e alianças políticas inconstantes, cedeu lugar a um modo de dominação diversificado, baseado em redes de longo alcance. A amizade política que emerge como recurso importante desse novo modo de dominação, muda o processo de recrutamento das elites políticas que passa a depender cada vez mais dos vínculos obtidos em diferentes espaços de atuação ( Lewin, 1993LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba. Rio de Janeiro: Record, 1993.). Da Proclamação da República à Redemocratização, observa-se a passagem de um modelo baseado nos grupos de base familiar para um padrão sustentado por redes mais amplas capazes de combinar laços familiares com laços profissionais e políticos. O período da Ditadura Militar de 1964 é emblemático porque conduziu à recomposição dos grupos de base familiar que permanecem, até as primeiras décadas da Redemocratização, ocupando os principais postos e cargos públicos e combinando os laços de base familiar e suas ampliações com os laços de amizade profissional e política. Essa demarcação temporal se torna importante já que a instauração do regime autoritário pelos militares, entre 1964 e 1985, exigia bases de apoio regional sólidas. Nessa direção, os grupos políticos que ofereciam esse suporte foram os mais beneficiados ao longo daquele período.
Esse é o caso dos Franco em Sergipe, que souberam controlar a concorrência interna num jogo de alianças com os militares e com outras elites do estado, o que lhes permitiu estabilidade e expansão na política regional. Os Franco, como são conhecidos no estado, constituem um dos agrupamentos de base familiar que mais resistiram ao teste do tempo, permanecendo, por gerações, como parte dos grupos dirigentes políticos e econômicos mais importantes daquele estado do Nordeste ( Petrarca, 2017PETRARCA, Fernanda Rios. De coronéis a bacharéis: reestruturação das elites e medicina em Sergipe (1840-1900). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 74, p. 89-112, 2017., 2019PETRARCA, Fernanda Rios. Entre jalecos, bisturis e a arte de fazer política. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 26, p. 573-591, 2019.). O crescimento do grupo atinge seu ápice no contexto do Regime Militar, combinando amplas alianças, sustentadas na combinação entre redes familiares e amizade política, com expansão dos investimentos econômicos capazes de garantir a manutenção e reprodução do grupo. A ascensão na esfera da política tem seu ponto de virada nas primeiras décadas do século XX, através da união matrimonial com dois outros grupos familiares: os Prado e os Leite. O casamento com os Prado deu origem ao tronco Prado Franco, expandindo os negócios da família e permitindo acumular usinas, bancos e fábricas. Mas é o casamento dos Prado Franco com os Leite que possibilitou a inserção na esfera da política (Autor, 2017, 2019). Dois casamentos se tornaram simbólicos. O primeiro, o matrimônio entre o usineiro Antônio do Prado Franco com Márcia Leite — irmã de Silvio César (médico e político local), Augusto César (médico e político) e Júlio César Leite (bacharel em direito e político) — fortalece os laços entre os cunhados, estendendo a base familiar. O segundo, o casamento entre Augusto do Prado Franco (médico e irmão de Antônio do Prado Franco) e Maria Virginia Leite (filha de Augusto César Leite) consolidam os laços entre genro e sogro. A aliança entre essas famílias marca a entrada dos Franco nos cargos eletivos, inicialmente com a eleição do irmão Walter do Prado Franco (deputado federal de 1955 a 1957, senador em 1946 e 1955) e, depois, com a consolidação de Augusto do Prado Franco como deputado federal (de 1967 a 1971 e de 1983 a 1987), senador (de 1971 até 1979) e governador (de 1979 até 1982). 1 1 Os dados que mobilizamos para analisar esse agrupamento estão dispersos em diferentes fontes. Entre elas, citamos Montalvão e Seidl (2010) e Dantas (1974 , 1983 , 1987 , 1989 , 1997 , 2002, 2004).
Na sequência, eles ampliaram seus laços para fora do círculo de base familiar, expandindo suas formas de atuação e garantindo sua reprodução no espaço do poder. A amizade profissional entre Augusto do Prado Franco e o médico Lourival Batista, colegas na Faculdade de Medicina da Bahia, se torna um elemento central para a entrada deste na política. Baiano de nascimento, Lourival chegou em Sergipe a convite de Augusto para trabalhar como médico em uma das fábricas da família, a Tecidos São Gonçalo, no município de São Cristóvão. Ingressou na política como prefeito daquela cidade, contribuindo para a ocupação dos postos no âmbito municipal do agrupamento dos Franco. Depois, foi deputado federal por dois mandatos (entre 1959 e 1967); governador de Sergipe (entre 1967 e 1970) e senador por três mandatos seguidos (entre 1971 e 1995). Ao mesmo tempo, os filhos de Augusto do Prado Franco preservaram e ampliaram o patrimônio político e econômico da família. Em 1966, Albano Franco, um dos nove filhos de Augusto, elegeu-se para deputado estadual pelo ARENA, partido da Ditadura Militar. Vice-presidente da executiva regional (entre 1971 e 1972) e secretário-geral do partido (em 1979), tornou-se o primeiro suplente do senador Lourival Batista (em 1978), chegando a exercer o mandato mediante convocação.
A continuidade do agrupamento na política se deve, de um lado, à ampliação das alianças de base familiar, tanto com fortalecimento dos laços de cunhadio e entre sogro e genro, quanto da amizade política e da inclusão dos afins no bloco constituído pelo agrupamento. De outro lado, a expansão das atividades empresariais também se constituiu enquanto um recurso fundamental, uma vez que garantiu sua reprodução econômica. O Quadro 1 retrata as principais atuações econômicas deles.
A retomada do pluripartidarismo e das eleições, durante a Redemocratização, provocou algumas mudanças, exigindo a reorganização daqueles agrupamentos, conduzindo a uma maior diversidade na disputa e no controle dos postos e cargos. Em Sergipe, essa disputa reproduziu padrões do período anterior, marcado pela presença dos Franco como um dos principais agrupamentos políticos de base familiar do estado. Só nas décadas que se seguiram é que podemos observar a entrada de novos personagens na cena política.
Liderado agora por Albano Franco, o agrupamento se reorganizou nessa nova configuração, primeiro através de seu ingresso no Partido Democrático Social (PDS), sendo eleito senador em 1982 e reeleito em 1990 através do Partido da Reconstrução Nacional (PRN). Em 1994, migrou para o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no qual se elegeu governador de Sergipe, reeleito em 1998. Em 2006, elegeu-se deputado federal. Envolvido na cena política estadual desde meados da década de 1960 a 2011, Albano é a principal liderança do agrupamento Franco no período democrático. Contudo, o agrupamento teve sua base de alianças redefinida nesse contexto, incluindo outras lideranças emergentes, permanecendo nas posições dirigentes através da construção de um grande bloco político.
Esse bloco, resultado da aliança entre, pelo menos, três agrupamentos de base familiar, elegeu sucessores para o governo do estado até as eleições de 2002. Constituído pelos Franco, os Alves e os Valadares, sob a liderança dos primeiros, o bloco controlou os cargos eletivos no estado tanto no âmbito estadual quanto no federal. Só nas eleições de 2006 que podemos observar uma ruptura naquela continuidade eleitoral devido à fragmentação do bloco. A diluição das relações dentro do bloco possibilitou uma recomposição dos agrupamentos do estado, abrindo a oportunidade para novas lideranças. Como se observa no Organograma 1, cada agrupamento controlava um partido e as alianças de menor alcance, como aquelas que possibilitam o acesso ao cargo de prefeito e vereador. Muitas das alianças, com prefeitos sobretudo, estavam fundadas em grupos de base familiar com alcance local, a exemplo dos Reis, da cidade de Lagarto. 2 2 O agrupamento liderado pela família Reis tem como marco Arthur Reis, eleito prefeito de Lagarto em 1982 e deputado estadual por quatro mandatos seguidos. A família ainda tem outros nomes na política, como os filhos de Arthur, Jerônimo e Goretti Reis, e os netos, Sérgio e Fábio Reis. O grupo já ocupou cargos municipais, como prefeitos de Lagarto, estaduais e federais, como deputados. Hoje, Sérgio Reis, eleito deputado estadual em 2022, está licenciado para ocupar o cargo de secretário especial de Representação de Sergipe em Brasília. Seu irmão, Fábio, elegeu-se deputado federal no mesmo ano. Sobre a família Reis em Sergipe, ver Santos (2016).
O bloco se desfaz nas eleições de 2006. João Alves, líder dos Alves, lança candidatura própria para o governo do estado, e os Valadares apoiam a candidatura de Marcelo Déda, do Partido dos Trabalhadores (PT), lançando um dos seus aliados como vice. Esse é o contexto da eleição de Déda, marcada pela emergência de um novo bloco político, composto por diferentes líderes que souberam combinar recursos de base profissional (profissões e formações acadêmicas) com as alianças de base familiar. Esse bloco era composto pelo grupo liderado por Jackson Barreto, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), pelo grupo de Marcelo Déda e, ainda, por Belivaldo Chagas. A aliança se manteve articulada até a eleição de 2018. Assim como os anteriores, Déda se reelegeu. O bloco combinou, de um lado, os agrupamentos liderados por trajetórias que se constituíram na política contra o Regime Militar, como Jackson Barreto, então do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Marcelo Déda, líder estudantil e do diretório central dos estudantes da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Ambos oriundos da Faculdade de Direito da UFS, eles formaram seus grupos a partir da atuação nos diretórios partidários e nas redes de base profissional. De outro lado, mobilizaram as redes de longo alcance dos agrupamentos familiares. É o caso de Belivaldo Chagas, que, naquele contexto, era considerado um dos principais nomes dos Valadares.
O bloco se manteve coeso. Marcelo Déda se reelege nas eleições de 2010, tendo como vice Jackson Barreto. Contudo, com a morte precoce de Déda, seu vice se tornou governador, e se reelegeu para o cargo. Como num movimento contínuo, a última eleição, em 2018, elegeu Belivaldo Chagas, do Partido Social Democrático (PSD), vice de Jackson Barreto e primeiro vice de Déda. Entretanto, nas eleições de 2022, o bloco se dissolveu. O PT lançou candidatura própria com Rogério Carvalho à frente e com o apoio de Jackson Barreto (PMDB). Belivaldo Chagas rompe com o bloco e lança apoio a Fábio Mitidieri (PSD), do grupo dos Mitidieri, como seu sucessor.
A compreensão dessas movimentações implica dar conta de um sistema político fundado em “alianças personificadas” entre líderes de diversos agrupamentos. A chance de recondução no cargo ou eleição do sucessor depende de alianças com agrupamentos fortes dentro do estado e que se organizam a partir de um grande bloco, condições pelas quais conseguem preencher outros cargos nos âmbitos municipal, estadual e federal. A ruptura na continuidade ocorre quando o bloco se dissolve e as alianças se quebram, expondo a fragmentação, as divisões internas e abrindo a oportunidade para novas lideranças. Foi esse movimento que gerou as condições para a eleição de Déda em 2007, originando um novo bloco, resultado da aliança entre PT, PMDB e PSD. E é justo a ruptura desse bloco no pleito de 2022 que está pavimentando o terreno para um redesenho das relações de força no estado.
Atualmente, o cenário dos agrupamentos políticos de Sergipe tem por característica fundamental uma composição centrada, de uma parte, em redes de base familiar e, de outra, em redes pessoais formadas na política profissional. O uso da expressão base familiar segue os padrões teóricos estabelecidos no nosso trabalho para evitar aproximações com a noção de domínio familiar, caracterizada pelo recrutamento político via parentesco. A rede de base familiar, portanto, é um misto de laços obtidos pelas conexões familiares (irmãos, primos, sobrinhos, tios, afilhados) e pela amizade política. É ela também que conecta os níveis municipal, estadual e federal a partir das alianças individuais estabelecidas fora dos limites regionais. Nessa lógica, é comum os agrupamentos se definirem ou pelo nome da família, como os Alves, os Mitidieri, os Amorim, os Valadares, os Reis, ou pelo nome da liderança e sua base, como o grupo de Jackson, de Belivaldo Chagas, de Alessandro, e assim por diante. Esses grupos disputam o controle partidário e o acesso aos cargos, e os blocos que se formam decorrem da combinação dessas duas bases de alianças. Considerando os cargos para o executivo municipal, os cargos estaduais e federais, Sergipe tem uma configuração que demonstra como essas duas bases se distribuem. A Tabela 1 demonstra os cargos e a porcentagem daqueles que têm família na política, considerando os últimos pleitos.
A tabela não leva em conta as alianças de base familiar, apenas os vínculos de base familiar. Se levarmos em conta a relação entre os eleitos e seus agrupamentos de sustentação, a relação entre família e política fica ainda mais forte, uma vez que os agrupamentos controlam as alianças dos partidos que lideram. Um exemplo é cargo para senador. Dos três senadores eleitos por Sergipe, todos têm suas trajetórias fundadas na combinação entre a política e seus ofícios, seja como médicos, delegados ou empresários. Apesar de não serem de famílias políticas, dois deles têm alianças com grupos de base familiar no estado. A sobrevivência dos agrupamentos de base familiar na política depende das alianças com grupos diversos, cuja base de recursos não repousa nas redes familiares (tio, sobrinho, pai, filho, sogro), mas nos espaços profissionais (empresários, médicos, advogados).
Considerações finais
Oestudo dos grupos dirigentes é uma importante área de discussão e de pesquisa nas ciências sociais. Evidenciar as condições sociais, políticas e culturais que tornam possível o surgimento e a manutenção das organizações, dos grupos e das lideranças que ocupam posições de privilégio, de destaque e de direção em diferentes esferas de atividade constitui um tópico fundamental para quem se dedica ao estudo do poder e da política.
Nos últimos anos, observa-se uma grande renovação e diversificação das temáticas, dos tipos de objetos e das perspectivas de análise dos grupos dirigentes. Sem dúvida, a consolidação e difusão internacional tanto das vertentes institucionalistas quanto da sociologia política do poder e da dominação foram importantes para que isso ocorresse. Apesar dos esforços para compreensão do sistema político brasileiro a partir da sua relação com o poder familiar, essa bibliografia ainda apresenta algumas limitações que procuramos abordar no decorrer deste artigo. No que pese a relevância de tais perspectivas, ainda persistem certas dificuldades decorrentes da aceitação tácita de reificações conceituais e analíticas da experiência europeia. As noções de família, grandes famílias, famílias de elite, características do modelo de família ocidental, acabaram se impondo como modelo de família para a investigação dos grupos dirigentes nas mais diferentes sociedades. No caso brasileiro não foi muito diferente, na medida em que tais orientações conduziram à negligência, e mesmo, de uma série de estudos anteriores que evidenciaram a relevância dos clãs parentais, da família extensa, da parentela, das redes de base familiar. Em vez do diálogo, da problematização e do confronto sistemático entre os conceitos consagrados pela produção acadêmica internacional e aqueles produzidos antes pela sociologia política brasileira, nessa nova guinada teórica, esses conceitos foram simplesmente tachados como “historicamente datados” e “ultrapassados”.
Contrariamente a essa prática recorrente de importação de abordagens conceituais, de problemáticas e de interpretações eurocêntricas, sem problematizar e confrontar sua relevância e aplicabilidade com a produção nacional sobre o tema, procuramos aqui fazer uma imersão na sociologia política brasileira visando demonstrar o quanto as noções de família extensa, parentela e redes de base familiar levantam problemas de ordem teórica e metodológica para o estudo das famílias e dos grupos dirigentes no Brasil. Quanto a isso, o conceito de parentela colocou-nos diante da possibilidade de apreender um conjunto de aspectos antes levantados pela sociologia política brasileira, como também se mostrou uma ferramenta analítica pertinente para uma melhor compreensão histórica e geográfica das várias dimensões envolvidas na formação e recomposição dos grupos dirigentes.
Caracterizado pela capacidade de extensão das relações familiares, esse sistema de parentela se constitui como o alicerce das alianças entre a elite, permitindo compreender tanto a liderança política, quanto a formação dos espaços profissionais. É, portanto, no “jogo entre parentelas” que as condições e os princípios que definem as dinâmicas de formação e reconfiguração dos grupos dirigentes adquirem sua importância política e social. Isso é melhor evidenciado na descrição do peso do sistema de alianças para a compreensão do surgimento e das modificações das redes de base familiar da elite política de Sergipe. Como demonstramos, mais do que apresentar a descrição de um caso particular, trata-se de um princípio geral o qual, com conotações e formas relativamente diferentes, está na raiz da própria política brasileira.
Desse modo, o conceito de parentela nos conduz a romper com o pensamento substancialista que faz da família uma unidade e substância constante e indivisa no tempo e no espaço, nos convida a implementar um modo de pensar relacional que apreende as dinâmicas de formação e de reconfiguração dos grupos dirigentes em suas relações diversificadas com redes, organizações, grupos e lideranças de base familiar.
Referências
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Notas
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1
Os dados que mobilizamos para analisar esse agrupamento estão dispersos em diferentes fontes. Entre elas, citamos Montalvão e Seidl (2010)MONTALVÃO, Ariosvaldo; SEIDL, Ernesto. Arena sergipana: trajetórias políticas dos deputados federais. Scientia Plena, Aracaju, v. 6, n. 3, 2010. e Dantas (1974DANTAS, José Ibarê Costa. O tenentismo em Sergipe: da Revolta de 1924 à Revolução de 1930. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974. , 1983DANTAS, José Ibarê Costa. A Revolução de 1930 em Sergipe: dos Tenentes aos coronéis. São Paulo: Cortez, 1983. , 1987DANTAS, José Ibarê Costa. Coronelismo e dominação. Aracaju: UFS; Diplomata, 1987. , 1989DANTAS, José Ibarê Costa. Os partidos políticos em Sergipe: 1889-1964. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. , 1997DANTAS, José Ibarê Costa. A tutela militar em Sergipe 1964-1984: partidos e eleições num estado autoritário. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. , 2002DANTAS, José Ibarê Costa. Eleições em Sergipe (1985-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002., 2004)DANTAS, José Ibarê Costa. História de Sergipe: República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004..
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2
O agrupamento liderado pela família Reis tem como marco Arthur Reis, eleito prefeito de Lagarto em 1982 e deputado estadual por quatro mandatos seguidos. A família ainda tem outros nomes na política, como os filhos de Arthur, Jerônimo e Goretti Reis, e os netos, Sérgio e Fábio Reis. O grupo já ocupou cargos municipais, como prefeitos de Lagarto, estaduais e federais, como deputados. Hoje, Sérgio Reis, eleito deputado estadual em 2022, está licenciado para ocupar o cargo de secretário especial de Representação de Sergipe em Brasília. Seu irmão, Fábio, elegeu-se deputado federal no mesmo ano. Sobre a família Reis em Sergipe, ver Santos (2016)SANTOS, Pamella. O ofício de cabo eleitoral: entre campanhas, comícios e o dia a dia da política. 2016. 115 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, 2016..
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Fonte de financiamento: Esse artigo integra os projetos de pesquisa 1) Edital Produtividade de Pesquisa 2020, intitulado Etnografia política do ativismo digital anticorrupção, do prof. dr. Wilson José F. de Oliveira, financiando pelo CNPq; 2) Edital Produtividade de Pesquisa 2019, intitulado A força da lei: o direito, as carreiras jurídicas e a luta contra a corrupção em Sergipe, da profa. dra. Fernanda Rios Petrarca.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
01 Set 2023 -
Aceito
28 Nov 2023