Open-access A noção de representação política em Ernesto Laclau: populismo e democracia

The notion of political representation in Ernesto Laclau: populism and democracy

La noción de representación política en Ernesto Laclau: populismo y democracia

Resumo:

A discussão sobre a representação é clássica nas teorias do Estado e na filosofia política. A proposta deste artigo é realizar um levantamento para diagnosticar a concepção de representação política elaborada por Ernesto Laclau, assim como identificar com quais abordagens ele dialoga ou se opõe. O interesse em examinar esse conceito na teoria de Ernesto Laclau decorre da exponencial atenção em relação às suas reflexões no cenário acadêmico e em propostas de intervenção política, mas principalmente pela singularidade de sua exposição na compreensão do processo (e dos desafios) de representação. A partir disso, o texto é composto por três seções: na primeira, concentramo-nos em apresentar as bases de sua construção teórica. Na segunda seção, examinamos as formulações de Ernesto Laclau sobre a representação política no âmbito institucional da democrática representativa. Posteriormente, identificamos como se desenvolve a representação política nas construções políticas populistas.

Palavras-chave: Ernesto Laclau; representação; democracia; populismo

Abstract:

Debates on representation are foundational in both political philosophy and theories of the state. This article aims to analyze Ernesto Laclau’s concept of political representation and to identify the approaches with which he dialogues and that he criticizes. Our interest in Laclau’s concept of representation is justified by the increasing academic attention to this debate. This theory also includes proposals for political intervention that can be useful when representative democracy is in crisis. Discourse Theory further proposes a specific view of the process of representation. The article is divided into three sections. The first focuses on the theoretical tools developed by Laclau to explain his political theory. The second explores the connection between representation and representative democracy in the institutional area. The last part analyzes how political representation develops in populist contexts.

Keywords: Ernesto Laclau; representation; democracy; populism

Resumen:

La discusión sobre la representación es clásica en las teorías del Estado y la filosofía política. El propósito de este artículo es realizar una encuesta para diagnosticar la concepción de representación política elaborada por Ernesto Laclau, así como identificar con qué enfoques dialoga o se opone. El interés por examinar este concepto en la teoría de Ernesto Laclau se debe a la atención exponencial a sus reflexiones en el ámbito académico y propuestas de intervención política, pero principalmente a la singularidad de su exposición en la comprensión del proceso (y desafíos) de la representación. A partir de esto, el texto se compone de tres apartados: En el primero, nos centramos en presentar las bases de su construcción teórica. En la segunda sección, examinamos las formulaciones de Ernesto Laclau sobre la representación política en el ámbito institucional de la democracia representativa. Posteriormente, identificamos cómo se desarrolla la representación política en las construcciones políticas populistas.

Palabras clave: Ernesto Laclau; representación; democracia; populismo

Introdução3

A discussão sobre a representação é clássica nas teorias do Estado e na filosofia política, sendo amplamente abordada nas reflexões de Thomas Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau, Karl Marx e Max Weber. No cenário contemporâneo, essa noção tem novamente ocupado um espaço relevante nas elaborações vinculadas ao campo da teoria política e nas avaliações sobre o funcionamento dos regimes democráticos, cujos diagnósticos majoritariamente apontam a crise do processo de representação nas democracias, em virtude da ausência de interlocução entre os representantes e seus eleitores.

A proposta deste texto é analisar a concepção de representação política elaborada por Ernesto Laclau, visando, principalmente, compreender como esse conceito dialoga com as construções políticas do autor sobre as práticas populistas. O interesse em examinar tal conceito foi motivado, por um lado, pela singularidade de sua exposição na compreensão do processo (e dos desafios) da representação política e, por outro lado, pela exponencial atenção em relação às suas reflexões no cenário acadêmico, cuja sistematização de aspectos específicos tem-se constituído em agenda de pesquisa no campo da teoria política. Nesse sentido, as contribuições e as controvérsias suscitadas pelas reflexões de Ernesto Laclau inseriram-no como um dos principais teóricos no cenário contemporâneo, estabelecendo interlocução com um conjunto relativamente amplo e interdisciplinar de filósofos/as, como: Chantal Mouffe, SlavojZizek, Judith Butler, Alan Badiou e Jacques Rancière. Sob a influência dos escritos de Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, esses analistas vêm lançando luz sob outras possibilidades no entendimento do campo social e político.

A partir disso, o texto é composto por três seções: na primeira, concentramo-nos em apresentar brevemente as bases de sua construção teórica, especialmente a noção de discurso e hegemonia. Essa seção introdutória se propõe a contextualizar aspectos conceituais pertinentes no desenvolvimento das demais etapas. Na segunda seção, examinamos as formulações de Ernesto Laclau a respeito da representação política no âmbito institucional da democracia representativa. Na terceira seção, identificamos como a representação política é compreendida nas dinâmicas do populismo, destacando os limites da proposição de Ernesto Laclau no contexto atual, no qual despontam diversos projetos de populismo com aspirações autoritárias e antidemocráticas.

Pressupostos conceituais da obra de Ernesto Laclau

A proposta teórica de Ernesto Laclau inscreve-se no campo teórico pós-estruturalista, tendo profundas influências pós-fundacionais (MARCHART, 2009). Desse modo, ainda que a sua perspectiva sustente a existência de fundamentos na sociedade, caracterizam-se pela contingência e precariedade. A instabilidade na forma como são compreendidos os fenômenos políticos e sociais constitui-se em um dos elementos centrais de sua proposta, desconstruindo a premissa de um sentido imutável aos fundamentos existentes na sociedade (MARCHART, 2009). Sua concepção se constrói a partir da crítica a duas vertentes: o fundacionismo, presente em abordagens ortodoxas do liberalismo e do marxismo, que estão alicerçadas na suposta premissa de uma totalidade ou essência dos processos sociais; e o antifundacionismo, subjacente às concepções pós-modernas, que defendem a inexistência de fundamentos estruturantes da sociedade (LACLAU, 2011). Na perspectiva do autor, sob profunda influência de Martin Heidegger, os fundamentos do social estão alicerçados em um abismo (ab-grund) e, em razão disso, nunca se dão por totalmente esgotados (BALSA, 2017).

A teoria do discurso elaborada por Ernesto Laclau versa sobre a produção de sentidos. Portanto, em sua perspectiva, o discurso é um sistema de representação cuja função é simbolizar a realidade através de significantes articulados que produzem determinados sentidos. Isso nos diz que os discursos são abertos: eles atraem elementos de outras formações discursivas ou elementos dispersos no campo da discursividade, vinculando-os à sua própria cadeia de significação. Para Laclau e Mouffe (2010), todos os sentidos presentes no espaço social são provenientes de formações discursivas, pois nenhum significado pode se constituir fora desse campo. Eles inauguram uma nova percepção da realidade, em certa medida, ignorada por várias áreas do conhecimento científico, cujo mérito reside na compreensão de que a materialidade do real é interpelada pelo simbólico.

Nesse contexto, as práticas sociais são entendidas como construções discursivas elaboradas sob determinado contexto discursivo, que lhes confere condições de emergência. Dito de outra forma, os discursos contêm significados incorporados pelos sujeitos, que os constroem ao mesmo tempo em que são por eles subjetificados. Essa operação provoca efeitos concretos nos indivíduos, sobretudo na forma como irão compreender o contexto social e político em que estão inseridos (SILVA, 2014).

De acordo com o exposto, afirma-se que as identidades sociais são fruto de práticas discursivas. Todavia, os discursos construídos não são permanentes: por mais que se busque uma consolidação dos sentidos articulados, esse processo é sempre provisório e precário. Por mais longa que seja a produção de sentidos em torno de um conceito, ela sempre será precária e contingente e não há garantia alguma que sua significação será sempre a mesma (MENDONÇA, 2003). Uma das razões explicativas para essa instabilidade advém da disputa pelo processo de simbolização. O campo da discursividade é repleto de práticas de significação que se mantêm em constante disputa, visto que dependem de outras práticas discursivas para se constituírem. Logo, os sentidos edificados sempre tendem a ter o seu significado ameaçado por outras formações discursivas, que buscarão disputar a hegemonia no processo de simbolização da realidade. Nesse cenário, alguns sentidos podem provisoriamente se hegemonizar, mesmo que temporariamente, ao passo que outros não (LACLAU; MOUFFE, 2010; PINTO, 1999).

Em torno de um mesmo tema poderá haver múltiplas construções de sentido, que disputam a todo momento a titularidade da verdade. Não obstante, o processo de conflito é constante e, por conta disso, outras construções de sentido permanecem existindo e disputando a simbolização de um determinado tema (SILVA, 2014).

É preciso ter em vista que os discursos não surgem do nada. Para que a sua articulação produza sentido, eles necessitam de condições de emergência. Por exemplo, no discurso político, a condição de emergência pode ser uma política governamental. Os discursos são construções sociais que visam conferir significado a realidade a partir de alguns sentidos. Contudo, essa construção é instável e objeto de constantes deslocamentos (MENDONÇA, 2008).

A noção de hegemonia é fundamental para compreender a formação e a construção discursiva. Em geral, todo discurso almeja, em última instância, tornar-se hegemônico, isto é, de modo que seus sentidos se universalizem. É comum pensar a construção do discurso hegemônico como abrangente a uma parcela considerável dos indivíduos. Contudo, é preciso atentar igualmente que o processo de hegemonização de sentidos é construído no interior dos grupos sociais. Assim, o espaço hegemônico possui um raio de atuação geralmente limitado a uma determinada esfera, por exemplo, a forma como a questão das desigualdades sociais é compreendida pelos membros de um partido político. Por isso, em boa parte dos casos, o espaço hegemônico não se constitui em uma totalidade social, ou melhor, em um único princípio articulador. De acordo com Burity (1997), em uma formação social são possíveis múltiplos centros de hegemonia, sem que haja relação entre eles.

A hegemonia discursiva é resultado de uma particularidade que conseguiu universalizar seus sentidos em determinada esfera. Isso porque a hegemonia se constrói em um campo cercado de antagonismos, em virtude das outras particularidades que não lograram o mesmo êxito em se universalizar, e assim, buscarão desconstruir esse discurso para se constituir como uma nova hegemonia.

A hegemonia ocorre a partir da articulação de significantes que estavam dispersos no campo da discursividade. Nesse cenário, cada particularidade assume a representação de outros discursos (MENDONÇA, 2008). Essa incorporação de significantes é tamanha que o transcende, ou seja, os sentidos apresentados pelo discurso hegemônico se dilatam, sobretudo em relação à particularidade que originou dada construção discursiva (ALVES, 2010).

O reflexo dessa estrutura discursiva é a sedimentação, o que faz com que tanto as práticas quanto a significação atribuídas a um tema sejam vistas como naturais. Esse processo decorre da atenuação dos sentidos particulares e será tão abstrato quanto maior for a cadeia articulada de equivalências. Se, por diferentes razões, há um enfraquecimento nessa cadeia de equivalências, é possível que o discurso hegemônico fracasse na sua função de simbolizar, demonstrando, assim, o seu caráter provisório. Os sentidos particulares, outrora diminuídos no interior da estrutura, podem ser reativados, passando a exercer um papel hegemônico como reflexo de uma nova conjuntura de significação.

Para ilustrar esse ponto, parece pertinente usar o exemplo da democracia para dar ênfase ao que foi apresentado. Conforme argumenta Céli Pinto (1999), a democracia na antiguidade era uma forma de governo de muitos, cuja tomada de decisão era realizada por toda população. No cenário contemporâneo, especialmente na fórmula pluralista, a democracia incorporou diversos significados complementares: a escolha da classe política dirigente por meio de eleições livres, competitivas e regulares, liberdade de expressão e organização, diversidade nas fontes de informação, direitos civis, políticos, sociais e humanos, entre outros aspectos. Portanto, os sentidos atribuídos à democracia se expandiram, incorporando gradualmente mais equivalências e perdendo, na mesma proporção, o seu conteúdo particular. Mesmo considerada a fórmula pluralista, hegemônica nos países ocidentais, esse processo não impede a construção de discursos contra hegemônicos sobre a democracia no que tange aos seus conteúdos e procedimentos.

Sabe-se que as formações discursivas podem conferir sentidos distintos a uma mesma realidade e que essa relação pode ser de ajuste ou disputa entre os elementos evocados para a construção das significações. Sendo assim, é necessário expor o processo que estrutura os discursos no campo das significações. Para Laclau e Mouffe (2010), os discursos se constroem por meio de duas lógicas, a saber: lógica da equivalência e lógica da diferença.

A lógica da equivalência pressupõe a relação de exclusão e antagonismo entre os discursos. Portanto, mediante essa lógica, o discurso constrói uma cadeia de equivalências entre, por exemplo, o que é A, ou o que é B, e de forma antagônica àquilo que representa a sua negação, que não tem plena positividade (MENDONÇA, 2008). Desse modo, da formação de cadeias de equivalência advém a constituição dicotomizada da comunidade entre grupos que disputam a articulação da maior quantidade de elementos simbólicos presentes em dada sociedade. Esse processo ocorre em virtude do antagonismo, já que, em dado momento, a formação discursiva tema produção de sentidos bloqueada, e isso se dá por conta de uma força que se opõe a ela. Segundo Laclau e Mouffe (2010, p. 125), “a presença do outro impede-me de ser totalmente eu mesmo. A relação não surge de identidades plenas, mas da impossibilidade da constituição das mesmas”.

Ernesto Laclau (2011) explica que ao mesmo tempo em que o discurso antagônico ameaça a constituição do interior discursivo antagonizado, ele é também a própria condição da existência do interior, na medida em que esse último se constituiu sob a ameaça da presença do primeiro. Conforme aponta Francisco Panizza (2008), o antagonismo permite estabelecer os fluxos que ordenam os processos de construção identitária em dada sociedade. Em um contexto complexo, a identidade que prevalece é aquela que se encontra mais ameaçada por um inimigo externo.

Essa relação que se estabelece entre os discursos antagonizados de negação e de dependência é que impede a constituição da objetividade, compreendida justamente pela impossibilidade de o discurso se constituir plenamente. O antagonismo é o limite de toda a objetividade justamente por impedir a constituição completa de sentidos em um sistema discursivo, que tem a pretensão de dominar o campo da discursividade. Porém, essa pretensão jamais será atingida, seja pelas características próprias do discurso (a contingência e a precariedade), seja pela presença do antagonismo (LACLAU; MOUFFE, 2010).

Um dos aspectos mais inovadores da proposta de Laclau e Mouffe (2010) consiste em trazer a legitimação do conflito para um primeiro plano na compreensão dos fenômenos sociais e políticos. Ao identificar a importância dos valores e interesses conflitantes, entendem que as formações discursivas se constroem em torno de posições claramente diferenciadas. Esse aspecto é divergente de outras concepções de democracia, que postulam a construção de canais de deliberação e/ou dispositivos institucionais para estabelecer consensos e para atenuar o antagonismo estabelecido das posições entre os atores sociais envolvidos em processo de disputa (MOUFFE, 2001; 2005).

Por outro lado, a lógica da diferença sugere uma relação em que os discursos são distintos entre si. Nessa perspectiva, eles não deixam de construir sentidos excludentes, mas conseguem se definir de forma independente do outro. Um bom exemplo disso é o discurso da social-democracia no século XX, que foi hegemônico em diversos países do continente europeu (PINTO, 1999). A conquista do equilíbrio social, político e econômico durante os anos da reconstrução pós-segunda guerra garantiram sua força política por mais quatro décadas no poder em países importantes do velho mundo sem que houvesse qualquer força que a antagonizasse. Conforme avalia Céli Pinto (1999), um dos indicadores para o êxito da social-democracia europeia é exatamente a construção de um discurso hegemônico no qual estavam praticamente ausentes as relações antagônicas.

A conjugação das equivalências e diferenças, orquestrada pelo corte antagônico, conflui para o que Laclau e Mouffe entendem por hegemonia. Segundo Carlés (2010), ela pode ser compreendida como o operativo para a construção de diferentes tipos de solidariedades em níveis muito distintos, que pressupõem diferentes posições de sujeito e processos de universalização e generalização de determinada identidade.

Como sustenta Javer Balsa (2011), na teoria de Ernesto Laclau, a hegemonia ocupa um lugar transcendental, por vezes confundindo-se com a própria noção de política. Todo o tipo de solidariedade social se forma a partir desses princípios formais de diferença, que estão na base de qualquer processo de universalização identitária. Até mesmo a sedimentação (estabilização) de um processo de significação supõe a manutenção das operações hegemônicas que lhes deram origem. A compreensão desses movimentos explícitos em momentos de crise e implícitos em momentos de normalidade vincula-se ao que o autor compreende por representação e construção de um sujeito político democrático.

A noção de representação política na democracia

Ernesto Laclau dedicou poucos textos para tratar exclusivamente do processo de representação política no ambiente político-institucional, em comparação com a representação política no populismo, tanto que a sua concepção sobre o assunto se encontra fragmentada em sua obra, assim como em entrevistas e textos de opinião.

A noção de representação defendida por Laclau recebe influência das discussões contemporâneas sobre o tema, principalmente das vertentes teóricas que efetuam o diagnóstico acercada existência de uma crise no processo representativo, em virtude dos problemas na expansão dos canais comunicativos com os eleitores, especialmente por meio do mecanismo de accountability, considerados fundamentais no aprimoramento da democracia representativa4. Ernesto Laclau (2011) considera que essas concepções apresentam uma visão unilateral desse sistema, pois identificam que as vontades constitutivas da representação são desconsideradas, ou seja, são insuficientemente incorporadas pelo representante. Ao invés disso, Laclau propõe uma reflexão que considera os dois eixos formadores dessa relação na construção das demandas políticas.

Parte dessas críticas está assentada em percepções fundacionais ou antifundacionais da representação. A crítica à representação no fundacionismo está baseada na compreensão moderna de que a sociedade se fundamenta em princípios e que a representação se constitui como tal enquanto mecanismo de transferência dos desejos dos representados aos representantes (LACLAU, 2008; 2011). Os autores antifundacionais defendem a ideia de que há o rompimento do indivíduo com os sistemas de identificação, a exemplo da representação política. Essa última vertente é amplamente refutada por Ernesto Laclau (2011), pois considera que o antifundacionismo se desenvolve a partir da negação do fundamento, criando, assim, um novo fundamento baseado na ideia de que nada tem fundamento.

Salientando a necessidade de uma nova postura frente à modernidade, Ernesto Laclau elaborou uma alternativa à dicotomia modernidade/pós-modernidade. Trata-se do estabelecimento de novas inflexões de seus temas, porém sem abandonar seus princípios básicos. Sua formulação recebe influência da desconstrução derridiana, segundo a qual o significado não pode ser fixado definitivamente, ao invés disso passa a ser reconfigurado pelos deslocamentos discursivos, os quais introduzem novos sentidos aos fundamentos contingencialmente estabelecidos (LACLAU, 2011; 2008). Desde já, essa colocação anuncia a problematização da concepção hegemônica e fechada de representação política.

Desse modo, a representação consiste na situação em que alguém (ou grupo de pessoas) está presente em um espaço no qual está materialmente ausente. Disso decorre que o representante “substitui” e, ao mesmo tempo, “encarna” os representados (LACLAU, 2011). As circunstâncias ideais da representação são atingidas na medida em que há a transferência direta das vontades do representado ao representante, cabendo a esse último apenas o papel de estar presente em um local em que seus representados estão impossibilitados de estar.

Na perspectiva de Ernesto Laclau (2011), tal compreensão da ideia de representação pressupõe que as vontades dos representados estão inteiramente constituídas, restando ao representante apenas a tarefa de realizar a intermediação entre as vontades plenamente constituídas e as esferas de tomada de decisão. Pondera o autor, no entanto, que tal situação não é viável, pois inexistem condições de perfeita representatividade (LACLAU, 2011). Isso se dá, principalmente, porque os processos de identificação entre representante e representado transcorrem em espaços políticos distintos e não coincidentes, de tal forma que é impossível que um traduza completamente o outro. Dessa forma, ele conclui que o representante é um suplemento indispensável na constituição da identidade do representado. O ponto central é saber se esse suplemento é a reprodução dos termos e conteúdos construídos no espaço em que originalmente a identidade do representado foi constituída, ou se, na verdade, é um acréscimo parcial ou inteiramente novo. Nesse último caso, a identidade do representado seria transformada e ampliada pelo processo de representação.

Portanto, na perspectiva de Ernesto Laclau (2011; 2008), a representação política se desenvolve por meio de um duplo movimento. No primeiro movimento, os representados conduzem ao representante seus desejos e vontades, estipulando as fronteiras objetivas e ideológicas sobre as quais suas necessidades estão construídas. Já o segundo movimento da representação ocorre quando o representante interpela aqueles que representa, aludindo os limites e as adversidades para incorporar suas demandas na agenda da esfera política. O resultado dessa interação provavelmente irá conferir a construção ou a reelaboração de novos sentidos no campo de disputa pretendido (LACLAU, 2008). Nessa conjuntura, o representante dispõe de um papel duplo: cabe a ele preencher, de forma específica, a necessidade de representação, bem como simbolizar a articulação dos conteúdos inerentes à formação discursiva que ele representa e que ao mesmo tempo é produtor5.

Uma vez que há uma indecisão sobre o lugar em que essas demandas são constituídas, a questão sobre a representação é ilustrada sob novos termos. Partindo do pressuposto de que as identidades não são fixas e constituídas a priori, a representação necessariamente envolve um movimento duplo de trocas entre as duas partes envolvidas (representante e representado). A abordagem laclauniana traz à tona o papel do representante na formação das demandas e sua função na sua constituição das vontades coletivas. O exemplo expresso por Ernesto Laclau parece útil para elucidar o exposto até aqui:

Tomemos um exemplo simples, em que a contribuição do representante para constituição do “interesse” a ser representado é aparentemente mínima: um deputado federal, representando um grupo de agricultores cujo interesse mais importante é a defesa dos preços dos produtos agrícolas. Mesmo aqui o papel do representante excede em muito a simples transferência de um interesse pré-constituído. Pois o terreno em que esse interesse tem que ser representado é o da política nacional, onde muitas outras coisas estão acontecendo, e mesmo algo aparentemente tão simples como a proteção dos preços agrícolas exige processos de negociação e articulação com todo um conjunto de forças e de problemas que excedem em muito o que é pensável e dedutível a partir do lugar A. Assim, o que o representante inscreve um interesse numa realidade complexa, diferente daquela na qual esse interesse foi originalmente formulado, e, assim fazendo, ele o constrói e o transforma. Mas, desse modo, o representante também está transformando a identidade do representado. (LACLAU, 2011, p. 147-148).

Justamente nesse ponto jaz a crítica às teorias da representação política que desconsideram o hiato que pode ocorrer entre a ação do representante e a vontade das bases, que podem se sentir ignoradas ou até mesmo traídas. Segundo Laclau (2011), esse entendimento apresenta uma visão unilateral do sistema, pois concebe a vontade do povo como predefinida antes da representação. Conforme já colocado, nesse caso, o representante é construído pela vontade do representado e existe somente para dar voz a esses desejos no espaço institucional, em suma, não haveria diferenciação no processo (LACLAU, 2006). Nesse sentido, a sua ideia é situar a importância do papel constitutivo da representação na construção das vontades.

Em sociedades complexas, compostas por agentes sociais com identidades instáveis e defensores de múltiplas agendas, há uma ampliação no papel do representante. Ele não só assume a função de ser o suplemento, mas passa a se converter em terreno primário na constituição das vontades. Dito de outro modo, o representante seria o eixo de articulação e a unidade entre identidades inicialmente fragmentadas. Por essa razão, o teórico argentino considera equivocada a relação estabelecida entre a diminuição dos espaços representativos e, por conseguinte, o maior envolvimento da população nos processos decisórios, com a ampliação dos canais democráticos na sociedade:

Se, como afirmei, há um vazio na identidade do representado que requer que o processo de representação o preencha, simplesmente não é verdade que a redução dos espaços sociais em que mecanismos representativos operam levará necessariamente a sociedades mais democraticamente geridas. (LACLAU, 2011, p. 149).

Em nosso entendimento, esse cenário é problemático, sob muitos aspectos, principalmente do ponto de vista de algumas vertentes da teoria democrática contemporânea. Entretanto, Laclau (2011; 2008; 1986) sustenta que, em vez de expressar um retrocesso nos alicerces da democracia, essa visão salienta a sua própria possibilidade, pois exatamente em regimes avessos à democracia é que se ambicionam identidades plenamente transparentes e definidas. Nesse panorama, a proliferação de disputas em torno dos conteúdos é uma característica das democracias contemporâneas, cuja representação tem por função unificar em torno de uma cadeia de sentidos. Tal processo está baseado em uma pluralidade de exigências concretas, o que conduz a multiplicação dos espaços políticos e a constituição de uma concepção radicalmente política da democracia.

A representação política em Ernesto Laclau apresenta pontos de interlocução com as elaborações teóricas de Judith Butler, especialmente pela influência da desconstrução derridiana, por conseguinte, a crítica ao fundacionismo, amparada no processo de representação de identidades fixas, inerente a uma posição específica na estrutura social.

A partir disso, Judith Butler (2003) ressalta a importância da estratégia política de grupos marginalizados para ampliar a diversidade social nas estruturas institucionais de tomada de decisão. Não obstante, a sua reflexão pondera que a teoria feminista se baseou na existência de uma identidade definida, em torno da categoria “mulheres”, cujo papel deveria ser a articulação dos interesses objetivos e a representação dessa identidade fixada nos espaços políticos. Em sua perspectiva, há uma impossibilidade em compreender, em termos estáveis e permanentes, o sujeito que deveria constituir a categoria “mulheres”. Essa premissa é um equívoco do fundacionismo, próprio das teorias modernas, em que a representação das “mulheres” denotaria uma identidade comum, logo, produziria um significante capaz de unificar os propósitos de superação da opressão patriarcal.

De acordo com Judith Butler (2003), o essencialismo da categoria “mulher” apresenta um aspecto altamente coercitivo e regulador das identidades. Por mais que o seu propósito seja de emancipação, inversamente, esse discurso reproduz as opressões efetuadas pelo sistema jurídico-político ao suprimir e marginalizar a diversidade das identidades sexuais e de gênero. Judith Butler, em diálogo com Ernesto Laclau, sustenta sua rejeição a possibilidade de qualquer determinismo, seja biológico ou cultural, para fixar a identidade de gênero (BUTLER; LACLAU, 2008, p. 418-419).

Desse modo, a crítica feminista tem por tarefa compreender e denunciar a naturalização das opressões, no entanto também deve permanecer autocrítica em relação às concepções essencialistas do feminismo (BUTLER, 2003). Isso porque a estratégia em identificar o polo antagônico na emancipação do discurso feminista pode reproduzir as estratégias do opressor. Para isso, um dos desafios é não suprimir a diversidade sexual e de gênero na construção de uma representação política entendida como mais eficaz na desconstrução das estruturas de dominação (BUTLER, 2003).

Sem discutir as consequências sobre (des)mobilização nas disputas concretas à ampliação da representação feminina nos espaços institucionais, queremos apenas sublinhar que a aproximação entre o conceito de representação em Judith Butler e Ernesto Laclau é verificada pela ruptura com a premissa de que as demandas e as vontades dos representados estão predefinidas, seja pela posição socioeconômica, seja por sexo ou gênero, o que acaba por influenciar, de modo determinante, o exercício da representação. Essa visão é sustentada por vertentes do pluralismo e do marxismo. Não obstante, Ernesto Laclau (2011) aponta outros elementos que não estão presentes em Judith Butler, especialmente a divergência com as teorias deliberativas e participativas da democracia. Isso dito, na medida em que desconsidera que a crise de representação seja superada pela da ampliação dos canais de deliberação e participação nas entidades da sociedade civil e na interlocução com o Estado, com o intuito de tornar os regimes mais democráticos por meio da integração das pessoas no processo de tomada de decisões (HELD, 1987). Em suma, Ernesto Laclau desenvolve uma percepção de representação baseada em processos de identificação com um alto teor afetivo, através do qual é estabelecida uma relação de conexão e interdependência entre representante e representado, cuja máxima expressão é a representação no populismo.

A representação política no populismo

A noção de populismo elaborada por Ernesto Laclau em A razão populista é resultado de uma longa trajetória de estudos sobre o tema que se iniciou em 1977, quando discutiu pela primeira vez o tema (LACLAU, 1978). Em seus primeiros escritos, o populismo aparece como uma ruptura ou dicotomização da comunidade política baseada na “apresentação das interpelações popular-democráticas como conjunto sintético antagônico a respeito da ideologia dominante” (LACLAU, 1978). Quatro décadas depois, Ernesto Laclau aprimorou o conceito para apresentá-lo como uma tensão existente na sociedade política.

Muito mais do que uma ideologia específica, a lógica populista refere-se ao surgimento de espaços dicotômicos no tecido social. Nesse caso, temos um discurso hegemônico que fracassa em sua função de se sobrepor às particularidades, permitindo que vários pontos de disputas surjam, por vezes culminando no deslocamento ou na ruptura de práticas outrora naturalizadas. Amiúde, surge uma lógica que articula a ideia de “povo” contra seus opressores, por meio da articulação de demandas insatisfeitas (LACLAU, 2006; PANIZZA, 2005).

Conforme sustentam Daniel de Mendonça e Roberto Junior (2014), a demanda é a precondição para a emergência da experiência populista. Valendo-se do sentido dicotômico que o termo adquire em língua inglesa, o autor divide o termo em duas categorias distintas: a primeira se refere a um pedido ou solicitação frente às instituições. A segunda se apresenta em caso de frustração na apelação, em que tais demandas se transformaram em reivindicações (MENDONÇA; JUNIOR, 2014). Dito de outra forma, as demandas democráticas existem (por exemplo, saneamento básico, transporte público de qualidade, saúde e trabalho digno), mas estão dispersas em uma comunidade. Uma vez atendidas pelas instituições vigentes, elas desaparecem (LACLAU, 2007). Entretanto, se não atendidas, todas as demandas poderão se articular em uma subjetividade social mais ampla, ou seja, um processo de representação que construirá a noção de uma fronteira antagônica entre o “povo” e o poder, transformando as demandas democráticas em demandas populares (LACLAU, 2006; 2007).

As lógicas da diferença e equivalência operam um papel central no desenvolvimento desse argumento. A lógica da diferença representa a lógica puramente institucionalista, na qual as demandas democráticas são absorvidas pelo sistema. A lógica da equivalência faz emergir o populismo, uma vez que estabelece uma equivalência entre as demandas dispersas e seu opressor. Elas passam a serem vistas como constitutivas do desejo popular. Assim, o populismo é uma questão de grau e proporção em que a lógica equivalência prevalece sobre a lógica da diferença, ainda que essa sobreposição não seja total de uma sobre a outra (LACLAU, 2006; 2007; PANIZZA, 2008).

A representação política está imbricada nessa conjuntura, ainda mais quando as demandas populares se cristalizam em símbolos comuns de representação. É nesse cenário que surge a figura do líder, que encarna esse processo de identificação popular (LACLAU, 2007). A lógica populista tem lugar quando as demandas populares, articuladas em cadeias de equivalências, privilegiam os sentidos discursivos compartilhados em detrimento de suas particularidades. Tal articulação se dá a partir da identificação de todos os elos das cadeias com um princípio de identidade que cristaliza todas as reivindicações (LACLAU, 2006).

Esse denominador comum - que representa as demandas de toda a cadeia de equivalência - tem de necessariamente advir da própria cadeia: trata-se de uma demanda individual que, por razões circunstanciais (e imprevisíveis), assume centralidade naquele contexto discursivo. A demanda passa a não somente representar seu próprio interesse, mas também se torna o interesse de toda a universalidade (LACLAU, 2006). Ela assume cargas semânticas que antes lhe eram estranhas e que, de alguma forma, modificam sua identidade. Esse fenômeno é replicado para toda a cadeia de equivalências: todos os discursos acabam por se dividir entre o particularismo de suas próprias demandas e os aspectos universais da cadeia em que estão inseridos.

O significante potencialmente vazio, que na empiria se verifica na função de liderança, pode ser exercido por um movimento social, partido político e, obviamente, por uma pessoa. Contudo, é pertinente perceber que a noção de líder não está meramente associada a uma pessoa específica, mas sim a um nome que ativa o desejo do objeto. Aqui se expressa a grande influência da psicanálise, sobretudo, Jacques Lacan (GLYNOS; STRAVRAKAKIS, 2008). A força do investimento que a cadeia faz em seu líder, segundo Laclau (2006), é explicada pela ordem dos afetos.

Sendo assim, o líder incorpora a representação das demandas não pelo fato de possuir atributos objetivos para atendê-las, mas, preponderantemente em função de ele próprio representar aquilo que o supera, ou seja, a capacidade de emancipação dos discursos articulados. Na verdade, ele é o significante que unifica a cadeia discursiva, que torna possível a construção de um “povo”. É preciso igualmente esclarecer que a ideia de “povo” não representa um conjunto de habitantes de dada localidade concreta, mas sim a estruturação de um discurso representado na figura de um líder que torna sujeito uma parte das pessoas, mas que consegue ser politicamente construída como todo (LACLAU, 2006; 2008; MERLIN, 2017).

Para construir essa noção de representação, Ernesto Laclau estabeleceu um diálogo pertinente com Hanna Pitkin (1967). A crítica à representação simbólica, elaborada por essa autora, advoga que a liderança baseada na identificação dos seguidores obscurece a fidelidade das vontades constituídas pela população. Nesse caso, o laço político não pode se constituir como representação política em uma democracia, posto que perfis autoritários, como ditadores ou monarcas, teriam mais êxito em arregimentar as vontades coletivas que os parlamentares. Em síntese, para Hanna Pitkin, a representação não pode ser vista como reflexo da identificação ou aceitação da liderança mediante a satisfação das demandas.

Conforme Laclau (2006), a abordagem de Hanna Pitkin permanece clássica e relevante para as reflexões sobre a representação política simbólica. Debruçando-se sobre a teoria fascista da representação, a autora criticou a ideia de que o representante pode impor seus desejos, cabendo aos cidadãos o dever de se enquadrarem segundo a vontade dos representantes (LACLAU, 2006). O autor argentino julgou tal exemplo extremado, principalmente por não traduzir de forma adequada o funcionamento ordinário da representação política. Suas críticas residiam no fato de que:

A esfera das razões existe independentemente de qualquer identificação; as razões operam fora da representação. Como resultado, a autora só vê irracionalidade em qualquer tipo simbólico de representação. Não consegue distinguir de forma clara entre o que seria a manipulação e o desprezo da vontade popular, e o que seria a constituição daquela vontade através da identificação simbólica. [...] toda a sua discussão gira em torno da questão do respeito ou da ignorância da vontade popular, sem levar em consideração como esta vontade popular é constituída, antes de mais nada, e se a representação não é a própria premissa daquela constituição. (LACLAU, 2006, p. 204).

Diferentemente, para Ernesto Laclau (2006), a estruturação do “povo” é possível mediante a homogeneização das demandas heterogêneas, condição indispensável para a formação do corte antagônico entre “nós” e “eles”. A partir disso, o discurso populista se coloca como a essência da representação política, já que se constrói no terreno no qual as vontades específicas são influenciadas e influenciam os símbolos, a serem articulados pelo líder em cadeias de equivalências. Nesse cenário, como já explicitado, desconstrói-se a noção de que as vontades são constantes ou definitivas: pelo contrário, há um processo de fricção e hibridização entre os conteúdos adotados e os contingencialmente particularizados.

A avaliação do discurso populista, pejorativa ou positiva, bem como a ideia construída de “povo” e do “líder”, dependerá do apoio que cada indivíduo dará a este movimento concreto (LACLAU, 2007). Isso porque os significantes que estruturam o discurso populista não possuem um conteúdo definido fora do campo em que estão sendo enunciados - daí o seu sentido flutuar entre formações discursivas distintas. Dessa forma, Ernesto Laclau (2006) problematiza o conceito, remetendo-o a uma esfera complexa, posicionando ainda essa lógica discursiva no campo ontológico. Com isso, essa noção deixa de estar atrelada a estereótipos ameaçadores à política e se transforma em ferramenta analítica para identificar tal lógica política em diversas formações discursivas, inclusive naquelas não reconhecidas tradicionalmente como populistas. Nessa conjuntura, convém ilustrar três exemplos de representações populistas ao longo da história para auxiliar no entendimento do fenômeno.

No primeiro exemplo, a representação emerge no discurso neoliberal, diante do contexto de crise do welfare state. Nesse período, ganham força as teorias monetaristas que postulam a necessidade de diminuição do Estado. O desencadeamento da onda neoliberal teve como representante política à premier britânica Margaret Thatcher, que alicerçou o seu discurso na desmoralização do Estado e de suas ramificações. Esse discurso construiu uma cadeia de equivalências entre o “povo” e o seu opressor-no caso, o aparelho estatal. Ele enfatizou o livre funcionamento das forças do mercado como capazes de proporcionar o desenvolvimento econômico e social (LACLAU, 2007).

O segundo exemplo é o movimento polonês denominado Solidariedade. De acordo com Ernesto Laclau (2006), esse movimento se iniciou a partir de demandas específicas dos trabalhadores da cidade de Gdansk, integrando, em suas manifestações, sindicatos de diversas categorias e de diferentes localidades6. Essa organização social se transformou no significante que unificou a contestação popular em torno dos problemas econômicos vividos naquela região, preponderantemente a oposição ao governo comunista (LACLAU, 2006).

O último exemplo trata da construção do discurso populista presente na chamada Revolução Bolivariana (LACLAU, 2007). Nessa circunstância, temos uma fronteira antagônica entre uma elite corrupta e sem canais de comunicação com as massas e uma identidade popular,a qual reclama maior participação nos processos decisórios e maior redistribuição dos bens socialmente produzidos. Tais demandas estariam representadas nas figuras dos líderes Hugo Chávez e Evo Morales, que encarnariam a ruptura do “povo” contra os saqueadores do bem público (GOULART, 2013).

A pluralidade dos exemplos demonstra que a teoria desenvolvida por Ernesto Laclau fornece os instrumentos teóricos profícuos para analisar uma realidade social concreta, independentemente de sua localização geográfica, seu contexto histórico e as forças políticas envolvidas. Suas categorias identificam o desenvolvimento das dimensões materiais e simbólicas do populismo, amparando-se na construção política em torno da representação. Por conta disso, não é exagero dizer que a sua formulação recobriu uma importante esfera do fazer político negligenciada, até certo ponto, pelas escolas de pensamento mais convencionais das ciências sociais, em especial da Ciência Política, que, frequentemente, tratava o populismo simplesmente como uma anomalia a partir dos constrangimentos institucionais causados pelos líderes por sua interlocução com o povo.

Ao tratar da noção de populismo exclusivamente no plano ontológico, Ernesto Laclau retirou do conceito qualquer conteúdo que lhe seja próprio. Se tal escolha tem o mérito de retirar os preconceitos que o termo acumulou pelas experiências totalitárias no século XX, ela também apresenta uma face pouco discutida entre os teóricos políticos e comentadores. O fenômeno populista, entendido pelo autor como próprio sinônimo de democracia, traduz-se na empiria como uma lógica política verificável independente do teor das demandas democráticas articuladas em relações de equivalência. A lógica de articulação está intimamente relacionada ao antagonismo e independe dos conteúdos ideológicos por meio dos quais eles se articulam. Seu conteúdo democrático, na perspectiva do autor, fundamenta-se nas redes normativas baseadas no direito à soberania e na denúncia das assimetrias de poder, que caracterizam as instituições políticas e econômicas que predominam em determinado contexto discursivo, mesmo que elas se estruturem em antagonismos, por exemplo, segregacionistas de cunho evidentemente antidemocráticos.

Em nosso ponto de vista, trata-se de um ponto fundamental na discussão, pois uma coisa é reconhecer o instrumento conceitual fornecido por Ernesto Laclau para analisar o fenômeno, com suas virtudes e limitações; a outra é entender que o populismo pode se constituir como estratégia política de intervenção democrática, independentemente do conteúdo que venha assumir. Esse é um terreno de indefinições, em que direitos e liberdades podem tornar-se negociáveis e dispensáveis, a depender de conformações e arranjos complexos da experiência populista.

A diferenciação entre as experiências populistas e o tipo de representação política engendrada por elas é um tema pouco - ou nada - abordado por Ernesto Laclau. Em sua obra, assim como em entrevistas e artigos, há clara indicação de que os requisitos à qualificação do regime enquanto democrático estão atrelados na representação da vontade popular por um líder, que encarna os desejos coletivos, geralmente a destituição dos inimigos do povo de sua condição de poder (em suma, a institucionalidade ou establishment). Nesse caso, não há ponderação nas situações em que as ações tomadas pela nova estruturação de poder sejam problemáticas do ponto de vista democrático. De algum modo, esse ponto pode ser compreensível, já que na perspectiva de Ernesto Laclau a democracia é um significante flutuante, e os princípios agregados a ela são fixados de modo contingente. Portanto, as noções daquilo que é democrático e antidemocrático, legítimo e ilegítimo, o que é considerado como direito básico ou não, estão em território de permanente disputa.

A ausência de definições precisas sobre a representação política nas experiências populistas e seu conteúdo é uma lacuna em aberto. As reflexões desenvolvidas por Chantal Mouffe, em entrevistas, artigos e seus últimos livros, têm se dedicado a abordar esse fenômeno, assim como elaborar categorias que permitam distinguir o tipo de representação política nas experiências populistas. No livro Por um populismo de esquerda, Chantal Mouffe tem por objetivo apresentar uma distinção entre populismo de esquerda e de direita. Em linhas gerais, a sua proposta é prescrever linhas de ação aos movimentos de esquerda em articular o “povo” por meio da representação dos valores da social democracia. Na obra, ela oferece categorias para identificar os dois projetos políticos: de um lado, o populismo de esquerda se estrutura em torno dos valores de equidade e soberania popular; por outro lado, os populismos de direita vinculados a representação de perspectivas excludentes, segregacionistas e xenófobas (MOUFFE, 2018, p. 28).

O papel do populismo de esquerda é, nesse cenário, promover uma rearticulação de sentidos sem romper com a democracia liberal constitucional, que deve ser direcionada àqueles que sofrem opressão, dominação e exploração (MOUFFE, 2018). Cabe ao populismo de esquerda promover uma estratégia de intervenção que seja tanto vertical como horizontal, dentro das instituições e também associações e movimentos sociais. Para atingir tal fim, a representação política tem de se voltar às pessoas de modo a atingir seus afetos de forma congruente com os valores e identidades daqueles que almeja interpelar (MOUFFE, 2018).

Nadia Urbinati (2019) considera, em certa medida, inviável a proposta de Chantal Mouffe, pois a estrutura do populismo é tão maleável que pode ser instrumento apropriado por qualquer clivagem política, cuja representação pode ser construída por partidos de direita e de esquerda. Em sua perspectiva, a ausência de pressupostos ideológicos e de qualquer concepção normativa de democracia torna o populismo um recurso estratégico para qualquer líder ou movimento reunir conjunto de pessoas ou grupos, intitulado “povo”, com o intuito de alcançar alguma forma de poder, cujos valores são contingentes e, em boa medida, relativistas. De acordo com Nadia Urbinati (2019, p. 33), esse é o problema com a estrutura do populismo como projeto à construção de uma política emancipatória de esquerda, conforme Ernesto Laclau gostaria de promover.

Em ensaio recente, Luis Felipe Miguel (2020) também apontou a debilidade do populismo como projeto alternativo à esquerda. Tendo em vista que a proposta de Chantal Mouffe (2018) à construção de uma fronteira entre o “povo” e o establishment não problematiza o fato de que a fronteira entre “nós” e “eles” tende, geralmente, a ser moldada em favor dos grupos e setores que compõem o establishment, em virtude dos recursos disponíveis para articular a opinião pública em torno de agendas políticas, em muitos casos, nociva aos princípios da liberdade, democracia e direitos dos trabalhadores. Como aponta Luis Felipe Miguel (2020), a proposta de Chantal Mouffe (2018) apresenta dois problemas centrais: (i)por um lado, a ausência de materialidade das categorias, sobretudo no que diz respeito à ideia de “povo” enquanto agente da transformação, poiso “povo” é indeterminado e a sua força remanescente pelo fato de ser maioria, sendo essa a imagem do eleitorado indistinto das democracias liberais- além do mais, faz-se importante o seu questionamento à assertiva de Mouffe de que qualquer experiência política construída a partir da arregimentação da categoria “povo” possa ser considerada, por esse fator, como democrática, objeto de nossa atenção mais adiante; (ii)por outro lado, enquanto proposta de ação de um populismo de esquerda, Chantal Mouffe (2018) coloca em segundo plano a significativa influência do capitalismo, por conseguinte, do capital financeiro no cenário de restrição das liberdades, da democracia e dos direitos sociais e humanos a amplas parcelas da população. A partir disso, Luis Felipe Miguel (2020) sustenta que o horizonte à esquerda deve se concentrar na superação das opressões e privações, identificando as causas estruturais desses processos, em torno de um projeto anticapitalista, ao invés da representação política populista como vetor de um projeto de transformação social.

Por mais que a distinção realizada por Chantal Mouffe possa ser considerada problemática sob diversos ângulos, podemos acrescentar o fato de ter como horizonte a realidade europeia, que viu aumentar o número de partidos e políticos de extrema direita. Mesmo assim, o seu esforço sinaliza uma agenda de pesquisa e preocupação genuína com arestas na teoria do populismo de Ernesto Laclau. Nessa situação, reconhece a diversidade de objetivos e conteúdos articulados na representação política populista, bem como aponta que a lógica populista pode - e costuma ser - utilizada por distintos campos da política (MOUFFE, 2018). A distinção entre a representação política no populismo de esquerda e de direita é relevante, embora parcialmente insuficiente para distinguir as experiências que poderiam ser enquadradas como democráticas ou antidemocráticas, em nosso ponto de vista a questão mais problemática. Entre as operações defendidas por Laclau, a equivalência da representação política no populismo com democracia causou diversos questionamentos.

Cass Mudde e Rovira Kaltwasser (2017) estão entre os principais analistas afinados com a defesa de uma percepção de populismo como um fenômeno potencialmente nocivo à democracia liberal. No texto Populism - a very short introduction, os autores apresentam a percepção sobre o que é o fenômeno populista, conceituando-o como

uma ideologia restrita que considera que a sociedade é dividida em dois grupos homogêneos e antagônicos - as pessoas puras versus a elite corrupta - e que defendem que a política deveria ser a expressão da vontade geral das pessoas. (MUDDE; KALTWASSER, 2017, p. 6).

A lógica populista, assim como defendida pelos autores, não detém uma afiliação ideológica específica. O populismo aparece sempre atrelado - e, às vezes, assimilado - àoutra ideologia. Essa percepção de populismo - como uma ideologia atrelada à outra - permite que sejam compreendidas as razões pelas quais a emergência de fenômenos populistas ocorre em diferentes contextos e atrelado tanto à direita quanto à esquerda. A partir disso, concordamos em parte com Cass Mudde e Rovira Kaltwasser (2017) na acepção de que o populismo possui um elemento ambíguo e que não pode ser classificado, necessariamente, como bom ou ruim, e, dependendo em que contexto eleitoral o fenômeno surge, passa a desempenhar um relevante papel para corrigir os vícios da democracia liberal. Eles justificam esse posicionamento explorando o vácuo que há nas democracias liberais representativas entre a vontade do povo e a elite política, considerando que essa última nem sempre toma decisões que estão de acordo com os interesses da maioria e tendem a obedecer a interesses difusos (como os interesses do mercado). Nesse contexto, os líderes populistas são importantes por reacender a crença política do povo na democracia, reduzindo o vácuo criado entre representantes e representados.

Ainda que Cass Muddee Rovira Kaltwasser (2017) reconheçam esse papel, a maior preocupação reside no elemento potencialmente autoritário que existe na representação populista, cujo diagnóstico compartilhamos. Isso exposto, haja vista que o populismo explora a relação existente nas democracias liberais entre a lei da maioria e os direitos minoritários. Como o populismo busca deslegitimar qualquer instituição que limite os poderes do demos, o seu resultado pode desembocar em uma forma de extremismo democrático que se transforma em uma democracia não liberal. Inclusive, Cass Mudde e Rovira Kaltwasser (2017) desenvolvem um modelo de transição democrática ao autoritarismo, que se inicia com as críticas às instituições, perpassa uma mudança legislativa em nome dos interesses do “povo” e finaliza no aprofundamento democrático, no qual os interesses da maioria suprimem os direitos fundamentais de minorias e o sistema reprime os que não se incluem em seu modelo.

De acordo com Carlos Vilas (2006), a pretensão de metastasiar o populismo a ponto de contundi-lo com a democracia desconsidera os cenários sociopolíticos e econômicos - especialmente nos países do Cone Sul, nos quais essa construção discursiva teve lugar. Dessa forma, segundo Vilas (2006), ao invés de Laclau trazer maior complexidade ao fenômeno, ele acaba por reduzi-lo ao desconsiderar devidamente o contexto que lhe dá condições de emergência. A crítica de Carlos Vilas (2006) está assentada no fato de que, tradicionalmente, o populismo expressa uma interpretação econômica de um elemento fundamental do Estado moderno: a contradição entre sua condição de Estado e de uma parcialidade - um grupo, classe, elite ou como se queira chamar - ao mesmo tempo que é o Estado de uma nação inteira. Essa contradição entre uma parte e o todo é o que funda a luta democrática moderna, sendo “um despropósito reduzi-la ao populismo” (VILAS, 2006, p. 19).

A relação entre a representação política na proposta populista de Esnesto Laclau e os limites da democracia também é também objeto de reflexão de Nadia Urbinati (2019), corroborando em alguns argumentos de Carlos Vilas (2006), Cass Mudde e Rovira Kaltwasser (2017). Inicialmente aponta que Laclau descreve o populismo como uma experiência democrática autêntica, por integrar o “povo” enquanto sujeito coletivo em torno de seu representante, cujo processo de interação entre as partes resulta na construção e estabelecimento das vontades coletivas (URBINATI, 2019, p. 32-33). A partir disso, o primeiro ponto avaliado é que a representação populista do “povo” não pode ser considerada integralmente inclusiva, haja vista que é constituída através de um ato de exclusão primordial, especificamente daquilo que é considerado o establishment, cuja materialidade também é imprecisa. Dito de outro modo, o populismo almeja concentrar e aglutinar as pessoas “certas ou puras”, independentemente de quem elas são, consequentemente, a constituição de um “nós” em contraposição a “eles”, o binarismo entre o “povo” versus o “establishment” que fundamenta a experiência populista e compromete a inclusividade do ponto de vista de qualquer ideal democrático. Assim, o populismo se estrutura com base em um paradoxo: a denúncia de exclusão do “povo” e a construção de uma estratégia de inclusão do “povo” por meio da exclusão do “establishment” (URBINATI, 2019, p. 205).

Por outro lado, Nadia Urbinati (2019, p. 52) considera que a consolidação da representação na experiência populista, a partir da elaboração de Laclau, não oferece qualquer garantia de incorporação das pessoas constituídas como “povo”, no sentido de aprofundamento da autonomia política e participação nos processos de tomada de decisão. Portanto, a experiência populista pode resultar em maior centralização do poder em torno do líder e de seu grupo político, com tendências potencialmente autoritárias e intolerantes, sem freios institucionais e opiniões dissidentes para governar.

Outro ponto relevante é a relação de interesses mútuos entre representante e representado na construção das demandas, cuja abordagem laclauniana compreende haver processo de interação, com poder de interferência dos representados nas perspectivas do representante, e vice-versa. Não obstante, não há previsão de que essa reciprocidade vá operar em um espaço cujas instituições e procedimentos foram totalmente ocupadas por pessoas que o líder proclama representar (URBINATI, 2019, p. 152). Além da ascendência formal sobre seus representados, é preciso considerar que o “povo” deposita no líder uma confiança similar à fé religiosa, quer dizer, sua identificação é emocional (URBINATI, 2019, p. 64). Esses fatores tornam questionável o poder de interlocução e interferência dos representados na agenda do representante, mais do que isso, essa composição de teologia política distancia, no entendimento de Nadia Urbinati (2019, p. 64), o populismo da democracia representativa.

Mesmo pontuando as arestas e as limitações da teoria de Ernesto Laclau, com a qual estamos de acordo por sua profundidade e pertinência, Nadia Urubinati (2019, p. 52) considera louvável e genuinamente sincero o seu esforço em aliar o populismo com a ideia de integrar as massas excluídas, sob o propósito de reverter a transformação do governo representativo em oligarquia eleita, cujo processo mobiliza grande parte das reflexões sobre a democracia. Em sua perspectiva, a lógica populista expõe de maneira transparente algo que outras vertentes defendem secretamente (tais como: liberalismo, conservadorismo e o socialismo), ou seja, todo processo de construção política é parcial, melhor dizendo, a reivindicação de uma generalidade de dentro de uma perspectiva parcial (URBINATI, 2019, p. 144). Nesse sentido, a representação política populista é plenamente consciente desse processo, estando imbuída a perseguir a parcialidade do universal e tornando as pessoas parte constitutiva de um todo, mas que não fala em nome de todos, pois exclui o establishment.

As abordagens apresentadas ponderam a relação entre a representação política no populismo quanto ao seu projeto, inclinações ideológicas e, principalmente, sua correlação com os parâmetros da democracia. Os argumentos são extremamente importantes para avaliar as diferenciações da representação política populista, que, em nossa compreensão, é ponto nebuloso na teoria de Ernesto Laclau, especialmente pela imprecisão de alguns conceitos. Mesmo considerando esses aspectos, entendemos que não é discutida uma distinção entre populismos democráticos e antidemocráticos. Em entrevista, Chantal Mouffe oferece um caminho útil para iniciar uma reflexão, inclusive mencionando o caso que motivou a nossas indagações sobre a representação política no populismo e a sua relação com a democracia:

Eu penso que há uma grande diferença entre o populismo de direita e os fascistas. Por exemplo, atualmente, e não falo apenas a nível europeu, mas pensando na América Latina, há apenas uma pessoa que merece o título de fascista e é Bolsonaro. O projeto de Bolsonaro é claramente um projeto que coloca em questão o Estado de Direito e as instituições da democracia pluralista. Mas eu não vejo nenhum outro realmente no mundo ocidental que vá tão longe (MOUFFE, 2018b, s.p.).

A partir disso, apresentar uma proposição muito rudimentar, em fase preliminar de elaboração, para definir os populismos democráticos e antidemocráticos. Em nossa perspectiva, a questão da institucionalidade é ponto central à reflexão da representação no populismo, na medida em que a ela são dirigidas as demandas populares. Não há uma definição clara do que se trata a institucionalidade na obra de Laclau. Há a indicação de que ela representa um corpo de poder que usurpa, de diferentes modos, o povo. Aqui há uma distinção pouco explorada, pois uma coisa é ser contra e se organizar em oposição ao modus operandi da institucionalidade, entendida como o establishment, outra radicalmente diferente é se organizar para destruir os princípios que a estruturam. Explicado de outro modo, uma coisa é o populismo, por meio das demandas, articular-se em torno de um representante que denuncia a institucionalidade, a qual conserva as estruturas de poder, transforma o sistema político em mera sanção do cardápio eleitoral e a relação subserviente em relação às potências capitalistas ou imperialistas; outra é no sentido de o populismo se organizar para minar os princípios do Estado de direito e das instituições da democracia pluralista, isto é, a isenção dos agentes públicos (por exemplo, nos julgamentos) e a igualdade de todos perante a lei. Com todas as ressalvas relacionadas a estes princípios, sobretudo quanto sua ineficácia.

Então, há uma clara distinção entre as formas de representação no populismo que almejam transformar a estrutura para que ela cumpra seus princípios, e outra quando busca a refundação da política, sancionando uma ordem patrimonialista da administração pública, alicerçada em critérios parciais e arbitrários na condução da coisa pública, como a prisão e censura, inclusive dentro da nova legalidade, de oponentes reais ou imaginários.

A constituição populista nos marcos do Estado de direito, à direita ou à esquerda, oferece margem para disputas e espaços contra-hegemônicos para desestabilização do populismo, já no segundo caso essas alternativas se reproduzem na ilegalidade e sob condições indefinidas. As duas formas de populismo podem ser destacadas em experiências antigas e contemporâneas: elas existem, porém, parecem ser inverossímeis.

Com isso, a ideia não consiste em domesticar a lógica populista à concepção de Estado da noção liberal. O exercício é realizado apenas para sinalizar que o populismo, por mais disruptivo que seja, não se produz no vácuo, isto é, ausente de correlação com outros Estados. Não podemos esquecer que o populismo se desenvolve em um território, o qual, acima de tudo, é uma construção política. A forma de organização do Estado tendo como princípio básico os direitos das cidadãs e cidadãos é um discurso hegemônico que estrutura, antecede e pressiona a representação política na experiência populista, via cumprimentos de acordos internacionais, sob o risco de sanções de ordem política, diplomática e econômica, que podem exaurir o êxito do empreendimento populista.

É possível estimar que Ernesto Laclau pensasse que formas totalitárias, como o nazismo e o fascismo, estavam superadas. Aliás, a sua crítica à Hannah Pitkin - a ideia de representação simbólica - estrutura-se no fato de a autora ter se concentrado em situações extremas, essencialmente nos perigos advindos do papel do líder no fascismo. É impossível mensurar a posição de Ernesto Laclau em relação aos fenômenos ocorridos após seu falecimento em 2014, ou seja, a ascensão de discursos populistas organizados em torno de representantes com ideias claramente totalitárias em diferentes continentes. Chantal Mouffe, nesse aspecto, tem avançado ao desenvolver abordagens para refletir e inserir essa discussão nos círculos acadêmicos, na sociedade civil e no debate público. Consideramos de suma importância elaborar modelos analíticos para distinguir, avançando sobre a premissa do limite do Estado democrático, ou a partir de outra categoria, os populismos com matizes democráticos daqueles de caráter autoritário, independentemente da inflexão ideológica dos conteúdos que mobilizam.

Considerações finais

A discussão efetuada neste texto teve como propósito sistematizar as formas de elaboração da noção de representação política na obra de Ernesto Laclau. Por essa noção estar fragmentada em seus textos, foi necessária dispor essa discussão mediante as construções discursivas nas quais se observam diferentes relações de representação. O fio condutor para exibir essa concepção teve como ponto de partida a ênfase a aspectos operacionais dessa abordagem, além de situá-las no debate acadêmico.

Esse primeiro exercício possibilita apreender que a representação política na obra de Ernesto Laclau é composta por uma dialética entre representante e representado, em que ambos estão em condições de formular e interferir na construção das vontades coletivas. Essa abordagem é, em certa medida, inovadora, sobretudo por identificar o papel do representante como elemento constitutivo na estruturação da representação. Seu argumento é relevante na medida em que considera a complexificação das relações sociais e das agendas políticas no processo de representação. A partir disso, o representante, a par das profundas discussões e vicissitudes das demandas de seus representados, tem por função enquadrar as perceptivas, estabelecer articulação com outros setores e negociar alternativas políticas que são, até certo ponto, coerentes com as vontades de seus representados.

A excessiva ênfase no papel do representante é talvez o ponto mais discutível em sua perspectiva por três razões: Em primeiro lugar, a sua abordagem não acrescenta elementos efetivos para superar os impasses da representação nas democracias contemporâneas, cujos representantes se distanciam das bases e preservam a ausência de comunicação e prestação de contas com seus representados. Em segundo, parece-nos problemático reduzir o impacto da premissa de maior participação da população, por meio da sociedade civil, como requisito de aprofundamento do regime democrático, para, em seu lugar, apenas reconhecer o múltiplo papel do representante como elemento capaz de suprir a carência de espaços participativos. Por último, a representação, especialmente na experiência populista, pode assumir conotações muito distintas, para as quais não há definição concreta na obra de Ernesto Laclau no sentido de diferenciar as experiências e suas orientações, isto é, aquelas com aspectos democráticos ou antidemocráticos. A noção de representação política é conceito estruturante na obra de Ernesto Laclau. Por isso, reconhecemos que a sistematização dessa noção e os argumentos abordados a partir dela requerem aprofundamento, visando ampliar aspectos já expostos ou, ainda, reexaminar o ângulo de análise e as decisões tomadas.

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  • 3
    Agradecemos a Daniel de Mendonça, Joanildo Burity e Mayra Goulart e às/aos pareceristas anônimas/os da RBCP pelos comentários e críticas, contudo ressalvamos a nossa responsabilidade pelos argumentos, hipóteses e conclusões apresentadas neste texto. Pela atenção, cuidado e espaço para publicação do artigo, agradecemos também à equipe editorial da Revista Brasileira de Ciência Política, Profª Debora Rezende, Profª Rebecca Abers, Marina Andrade e Igor Novaes Lins, bem como à revisão textual, cujo trabalho foi excelente para aprimorar o texto.
  • 4
    Convém destacar que Luis Felipe Miguel (2014) apresenta a sistematização de diferentes correntes teóricas sobre o conceito de representação política.
  • 5
    A cientista política Debora Almeida (2018) realiza importante discussão sobre os pressupostos do construtivismo na redefinição do conceito de representação, especialmente quanto ao papel do representante na construção dos interesses do representado.
  • 6
    Embora tenham havido lideranças nesse movimento, inclusive Lech Walesa se tornou presidente da Polônia, elas, contudo, não se constituíram da mesma forma que os outros exemplos citados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2020
  • Aceito
    28 Maio 2021
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