Open-access A ética no pensamento de Wittgenstein

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A ética no pensamento de Wittgenstein*

Rudolf Haller

Quando Wittgenstein fala de ética, ele tem consciência de que se trata, em primeiro lugar, de um objeto de "significado universal" , i. é, de um objeto de importância e valor para cada pessoa, e de que, em segundo lugar, a própria 'Ética' é " a investigação universal do que é bom". Essa determinação, que Wittgenstein extrai dos Princípia Éthica de George Edward Moore, está grosso modo em consonância com o que apareceu sob essa denominação na história da filosofia. Desde os filósofos da Antigüidade havia um consenso de que a meta, a meta suprema da ação humana seria o Bem. Mais ainda: reconhecia-se que conhecer e ensinar o Bem não significava apenas compreender o que ele é, mas, além disso, esforçar-se em realmente alcançar o Bem como meta da vida humana. Escolhemos muitas metas, talvez a maioria delas para alcançar através da sua consecução um bem que as transcende. O Bem no seu sentido universal, no entanto, nós o escolhemos em função dele mesmo.. Assim pelo menos reza a doutrina. Os filósofos antigos sabiam, por conseguinte, que não queremos conhecer essa doutrina para ampliar o nosso saber, mas, num primeiro momento, para que nós mesmos possamos ser homens bons. Isso poderá soar como um exagero ou poderá mesmo ser um exagero, já que se pode duvidar se o desejo de ser bom é tão universal como o desejo de alcançar o saber. Talvez possamos conferir plausibilidade a esse desejo, se admitirmos que queremos – como todos os homens – ser simplesmente felizes, ainda que não estejamos em condições de dizer em que deveria consistir o estado "ser feliz".

Quando Wittgenstein redigiu as suas idéias acerca da ética na forma de uma conferência – isso ocorreu pouco após a sua volta à Inglaterra em 1929/30 -, ele cuidou de esclarecer aos seus ouvintes que a ética seria uma disciplina, que trataria de "investigar o sentido da vida, (...) de descobrir a maneira correta de viver" (1).

Mesmo se o Filósofo britânico-austríaco tem plena consciência de que não pode explicitar ao seu público o que ele mesmo vê como sentido da vida, ele pretende, não obstante, mostrar por que considera todos os discursos sobre o que é bom do ponto de vista da moral como desprovidos de sentido. Para tal fim ele se vale num primeiro momento da distinção entre um sentido relativo e um sentido absoluto de expressões lingüísticas (sprachliche Ausdrücke) e afirma que todas as expressões, que utilizamos em contextos éticos, são utilizados em duas acepções inteiramente diferentes. Uma acepção ele denomina sentido simples e relativo, a outra sentido absoluto ou ético. Assim por exemplo "bom"no sentido relativo significa: bom com relação a uma escala, a uma "medida previamente fixada "ou, em duas palavras, bom no contexto de um quadro de avaliação. Um bom jogador de futebol é avaliado segundo as suas capacidades efetivas de domínio da bola, segundo a sua habilidade na luta com o jogador adversário, segundo a rapidez das suas reações, segundo o seu estilo paculiar, etc.; uma boa poltrona é avaliada segundo a sua forma, segundo o material e o seu aproveitamento, segundo o seu conforto; um bom estudante é avaliado segundo as suas capacidades, seu rendimento e seus conceitos, em comparação com os outros colegas de classe, etc.

Em todos esses casos lançamos mão de um esquema, de uma espécie de escala de avaliação, com a ajuda da qual valiamos ou até damos um conceito aos "estados de coisas" (Sachverhalte). Assim os "estados de coisas "ou as ações podem ser avaliadas como mais ou menos conformes à finalidade pressuposta para o objeto ou a ação ora avaliada. Os predicados de valor a serem concedidos são nesses casos concedidos com referência à relação entre meios e fins. Nesse sentido também é possível transformar as nossas avaliações, que aparecem como valorações, em enunciados sobre fatos, que descrevem no jogador de futebol ou no estudante apenas o seu rendimento efetivo – "ele corre mais rápido do que a maioria dos jogadores da sua equipe", "ele faz mais gols do que os outros" ou, no caso do estudante: "ele responde corretamente a todas as perguntas formuladas" e assim por diante.

Sem dúvida trata-se em tais casos de enunciados sobre fatos, enunciados que são verdadeiros se aquilo que está sendo dito é o caso e que são falsos se o que está sendo dito não é o caso. São as proposições que expressam, segundo a acepção de Wittgenstein, os pensamentos de maneira sensorialmente perceptível. Os pensamentos são as imagens lógicas dos fatos. Isso nos é dito pelas observações referidas do número 3 do Tractatus, cujo pressuposto consiste, por um lado, no fato de que o mundo não se compõe de objetos, e não pode, por conseguinte, ser determinado pela totalidade dos objetos, mas pelo que é o caso, pelos fatos. Daí a afirmação.

1.1 "O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas".

Se Wittgenstein introduz a distinção entre juízos de valor relativos e absolutos, ele faz isso diante do pano de fundo da sua concepção do mundo que afirma que o mundo abrange todos os fatos ou é idêntico à totalidade dos fatos ou daquilo que é o caso.

Para explicitar por que um juízo de valor absoluto não é nenhum juízo sobre os fatos nem pode sê-lo, ele propõe a seguinte suposição: suponhamos um espírito onisciente, um sujeito que conheça todos os corpos, todos os corpos materiais e vivos no mundo e todos os seus movimentos; suponhamos que esse espírito onisciente conheça também todos os estados de consciência e com isso os estados de consciência de todos os homens, e suponhamos agora que um tal espírito registre todos os fatos, que são do seu conhecimento – e aqui teríamos todos os fatos existentes –, num livro: nesse caso o livro em questão conteria a descrição integral do mundo. Isso é claro, se for correto que o mundo é a totalidade dos fatos. Mesmo um espírito que conhecesse todos os fatos não poderia incluir nesse livro um único juízo ético, uma proposição, que implicasse apenas um juízo ético desse tipo.

Juízos de valor absolutos, i. é, juízos éticos, não podem, por conseguinte, tratar do mundo. Poderíamos, no entanto, objetar que mesmo que os próprios fatos não fossem valoráveis ou não pudessem encarnar valores absolutos, os predicados 'bom' e 'mau' poderiam estar localizados na parte psíquica do homem, na sua consciência (BewuBtsein) ou na sua consciência moral (Gewissen), à medida que ela fosse consciente. O próprio Wittgenstein lembra a propósito as palavras de Hamlet: "Em si nada é bom ou mau; o pensamento tão-somente faz com que as coisas sejam bos ou más". Mas Wittgenstein também impossibilita essa interpretação: a descrição completa de um assassinato "com todos os detalhes físicos e psíquicos" não nos fornece uma única proposição ética, e isso simplesmente pelo fato da descrição poder se referir apenas a dados factuais. Ficamos tentados a referir-nos aos nossos sentimentos: será que a nossa reação a um assassinato não evidencia também a nossa valoração? Será que o sentimento não constitui talvez o chão sobre o qual se formam os juízos éticos, i. é, os juízos de valor absolutos? Mas Wittgenstein mais uma vez responde negativamente: a tristeza, a indignação, a raiva, em duas palavras, nossos sentimentos e abalos pertencem ao mundo dos fatos assim como os corpos e os seus movimentos. Alguém de nós poderia suspeitar aqui o seguinte: talvez Wittgenstein se refira a algo semelhante ao que a assim chamada interpretação emotivista de juízos morais queria expressar. Essa concepção, defendida por exemplo e sobretudo por Alfred J. Ayer, Stevenson e outros, afirma sabidamente que "proposições, que normalmente contém símbolos éticos, não são equivalentes a proposições que expressam conteúdos de juízo psicológicos ou, genericamente, quaisquer conteúdos de juízo empíricos" (2). E como os conceitos utilizados em tais enunciados não podem ser resgatados cognitivamente e representam meros conceitos aparentes, os juízos formados a partir deles também não podem ser expressos e enunciados com sentido, razão pela queal também não pode existir nenhuma ciência da ética. Se portanto acreditamos expressar um juízo moral quando afirmamos "Essa ação foi má" ou "Matar homens é proibido", então o emotivista nos ensina que nas assim chamadas proposições éticas se trata, "em realidade", da expressão não-articulável de um sentimento de concordância ou rejeição. Meras exclamações como " Que horror!" e " Que barbaridade!", que ligamos com expressões descritivas, não produzem proposições com sentido e, naturalmente, tãm pouco proposições passíveis de conterem um valor de verdade. Até aqui o emotivista talvez coincida com Wittgenstein. Mas os caminhos de ambos separam-se por razões de princípio na análise dos valores absolutos, mesmo se na superfície forem extraídas as mesmas conseqüências.

Antes de abordarmos em detalhe as conseqüências, está na hora de dar finalmente uma resposta à pergunta pelo sentido de juízos de valor absolutos. E interessante verificar que Wittgenstein – praticamente pela única vez em todos os seus escritos – chama a atenção ao fato de que o exemplo, do qual ele se vale para tornar esses juízos compreensíveis, é um exemplo inteiramente pessoal, e que outras pessoas deveriam inserir aqui os seus próprios exemplos análogos de vivências para que pudessem compreender o que estaria sendo dito. De fato Wittgenstein rememora três vivências próprias que devem tornar claro o que ele quer dizer quando se refere a um juízo de valor absoluto. A primeira é a vivência do espanto diante da existência do mundo. Trata-se sem dúvida daquela vivência que foi transformada por Schelling e Heidegger na pergunta "Por que o ser existe e não, muito pelo contrário, o nada?". Em Wittgenstein esse espanto, que nos pode assaltar desde a infância de tempos em tempos, é expresso de forma mais simples nas seguintes palavras: "Que estranho que algo exista, afinal de contas." Antes de ouvirmos maiores detalhes sobre essa exclamação estranha, quero apresentar rapidamente os outros dois exemplos de Wittgenstein. O segundo diz respeito a sua vivência da certeza absoluta, a uma vivência que ele encontrara outrora expressa nas seguintes palavras do poeta austríaco Ludwig Anzengruber: "Nada te pode suceder" (3) – palavras que expressam uma espécie de super-revelação, um tipo de vivência mística no sentido de que nós fazemos parte de tudo e tudo participa de nós, de que estamos abrigados, não importa o que possa acontecer conosco. O terceiro exemplo refere-se ao sentimento de culpa de uma pessoa, expresso na imagem ou na parábola segundo a qual Deus desaprova o nosso comportamento. Ao menos a pessoa marcada pela religiosidade terá por vezes essa vivência – quando ela comete uma falta ou quando ela infringe, conforme diz a expressão, um dos mandamentos com a sua ação.

A rigor trata-se também nessas vivências estranhas e peculiares de fatos da consciência. E à medida que se trata da consciência, não se pode adjudicar-lhes nenhum valor absoluto, à semelhança de todos os outros fatos. Por isso Wittgenstein fala, não sem razão, de um paradoxo – do paradoxo de um fato, a saber a minha vivência, parecer ter um valor sobrenatural (4).

Acredito que o reconhecimento desse paradoxo no fundo é o elemento que distingue a reflexão wittgensteiniana sobre a essência do Ético de todas as outras teorias da ética da história da filosofia. Esse paradoxo tem naturalmente seus pressupostos. O primeiro deles diz que o mundo consiste exclusivamente em fatos e no fato de que são todos os fatos. Entre esses fatos, raciocina o naturalista ético, encontramos também os que nos permitem dizer porque um 'x' é bom ou deve ser feito.

Por que então, assim poderíamos indagar agora, os modos de comportamento ditos morais de uma sociedade não podem também ser descritos como fatos, que os membros da sociedade reconhecem e segundo os quais eles orientam as suas ações? Será que nesse caso o Ético não pode ser concebido como o respeito a uma convenção, que emprega 'bom' e 'mau' para a caracterização da aceitação e da rejeição de uma maneira de agir, que por sua vez é considerada segundo a convenção boa ou má?

Wittgenstein não se ocupa diretamente com essa pergunta, mas é evidente que ele – que haveria de conceder um valor tão grande às regras do costume nos seus escritos posteriores – não pensou de nenhuma maneira em aceitar o apagamento da fronteira entre juízos de valor absolutos e relativos. Assim ele nunca pensou em poder considerar o dever ser ético como um dever ser condicionado, como por exemplo, um dever ser determinado pelas boas razões em favor do comportamento convencional. Mas sem a compreensão da sua visão do mundo não poderemos compreender a concepção da ética de Wittgenstein.

Na parte final do Tractatus lemos o seguinte:

6.41 "O sentido do mundo deve estar localizado fora dele. No mundo tudo e como é e tudo acontece como acontece, não há nele nenhum valor – e se houvesse, ele não teria nenhum valor.

Se há um valor que tenha valor, ele deverá estar localizado fora de todos os acontecimentos e fora do estar-assim. Pois todos os acontecimentos e todo o estar-assim são casuais.

O que não os torna casuais não pode estar localizado no mundo, pois do contrário isso seria por sua vez uma casualidade.

Deve estar fora do mundo".

6.42 "Por essa razão também não pode haver proposições de ética. Proposições não podem expressar nada de superior".

Nessa passagem constatamos quão inseguro é o chão no qual estamos, se a questão do paradoxo, que ainda estamos discutindo, deverá ser esclarecida. Faz parte dos pressupostos antes mencionados, em primeiro lugar, que fora da lógica nada no mundo é necessariamente assim como é. Esta é uma conseqüência clara da afirmação de que existe "apenas uma necessidade lógica" (5). Devemos ter em mente a totalidade dos fatos, se quisermos avaliar a influência exercida no mundo pelo querer bom ou mau. Se quisermos fazer com que algo se realize, o esforço de chegar à meta sempre implica também a vontade de querer transformar uma situação no mundo. Surge assim a pergunta: Até que ponto o nosso querer pode transformar o mundo? A primeira resposta de Wittgenstein a essa pergunta causa surpresa: não há nenhuma influência volitiva sobre o mundo: "O mundo independe da minha vontade" (TLP 6.373). No mundo tudo acontece como acontece, mas não por haver uma coerção, segundo a qual um A sempre deveria ser seguido por um B. Não existe nenhuma necessidade da natureza. O querer bom ou mau somente por acaso ou pela graça pode "fazer com que aconteça" o que queremos. Pois se o mundo independe da vontade, o querer bom ou mau não pode interferir nos fatos, não pode modificá-los. E se nada no mundo se fundamentasse na necessidade, como seriam então os valores absolutos? Afinal de contas, os valores absolutos – caso existissem – não teriam o caráter de existência necessária? Se admitirmos isso, veremos apenas duas possibilidades com relação a valores absolutos: ou eles existem, então eles não podem existir internamente ao mundo, ou eles não existem, então eles são objetos não-existentes. Wittgenstein portanto pode afirmar com fundamento em ambos os casos que o que faz com que um evento, um acontecimento não sejam casuais não pode estar localizado no mundo. Com efeito tais enunciados também coincidem com o que ele escreveu aos 24 anos de idade, ao afirmar que a filosofia consistiria somente em lógica e metafísica (6). Os enunciados científicos ocupam-se dos fatos do mundo, a lógica com a estrutura e a metafísica com o ser. Sobre esse poderá nunca haver clareza, de acordo com Wittgenstein, razão pela qual a tendência ao misticismo freqüentemente se origina na sensação de insuficiência remanescente nas respostas das ciências.

É, portanto, o metafísico Wittgenstein que pretende solucionar o enigma dos valores absolutos, e que, ao fazer isso, tem consciência de que as suas respostas não poderão ter o caráter de proposições lógicas ou científicas. Isso causa alguma confusão. Precisamos tentar resolvê-la.

"É claro que a ética não pode ser verbalizada. A ética é transcendental" (TLP 6.421).

Mas fala-se na mesma passagem de leis éticas e da idéia do que aconteceria se os homens não as observassem. Se, por conseguinte, a ética não pode ser verbalizada, como é que podemos referir-nos então a leis? Afinal, leis devem ser formuladas em proposições universais, condicionais ou incondicionais. E naturalmente também podem ser formuladas na forma de normas, mandamentos e proibições, como, por exemplo, "E proibido roubar"ou "Quem disser uma inverdade será punido" e assim por diante. E aquele, cuja razão exigir que uma norma deverá estar fundamentada para que possa ser reconhecida, também defenderá a opinião de que vale para a Ética o que se pode exigir de todas as disciplinas: que ela também faça justiça às pretensões da razão e que torne compreensíveis e fundamente as exigências e os mandamentos formulados.

Conforme vocês já viram e, por coseguinte, sabem, Wittgenstein vai ao encontro dessas pretensões na menor medida possível. Muito pelo contrário, ele responde com uma constatação lapidar que o discurso ético – como de resto também o discurso estético (7) – não pode ser científico, "já que a ausência de sentido constitui a sua verdadeira essência" (8).

Tal enunciado não parece ser compreensível nem para as pessoas mais bem intnadas: num primeiro momento Wittgenstein remete a vivências que tem – como poderíamos dizer – um caráter existencial, à medida que tocam as profundezas da alma humana, à medida que elas podem inclusive significar para o indivíduo que são elas que respondem à pergunta pelo sentido da própria vida; e depois, num segundo momento, somos informados de que tudo o que se diria sobre essas vivências seria desprovido de sentido. Como essas duas afirmações podem ser harmonizadas?

Ora, a obra, cuja última frase afirma "Devemos silenciar sobre o que não podemos falar", o Tractatus, apresenta no prefácio uma referência insofismável à intenção fundamental do autor, que consiste em fixar um limite para a expressão dos pensamentos, de sorte que, de um lado, encontramos tudo aquilo que pode ser dito com clareza e, no outro lado, tudo aquilo que não tem sentido ou significa ausência de sentido. Proposições descrevem "estados de coisas". Uma proposição é clara quando ela corresponde, em primeiro lugar, às regras da lógica da linguagem e quando ela pode, em segundo lugar, ser compreendida de tal modo que se saiba o que é o caso se ela for verdadeira (9). Ambas as condições não são satisfeitas pelas ' proposições' éticas; elas são, como nos diz Wittgenstein, desprovidas de sentido na sua essência.

Não obstante, Wittgenstin amplifica o caráter paradoxal do tratamento do paradoxo dos valores absolutos, à medida que ele – que num primeiro momento afirma que o querer bom ou mau não podem transformar o mundo daquilo que é o caso – admite, apesar disso, a possibilidade de uma transformação do mundo como um todo. Justamente por um querer bom ou mau nós mos referimos aos limites no mundo – e esses, pensa Wittgenstein, nós podemos transformar, mas somente através do crescimento ou da diminuição do mundo como um todo. Essa idéia naturalmente não é tão clara, pois nem sabemos o que seria se o mundo crescesse ou diminuísse. A analogia, segundo a qual o nosso mundo ou o cosmos como um todo cresce ou diminui, coduz mais a caminhos errôneos ao invés de esclarecer algum aspecto. O que Wittgenstein quer dizer, portanto?

Em todas as passagens, nas quais essa questão se manifesta, Wittgenstein se refugia na oposição entre duas espécies de vida – a vida feliz e a vida infeliz. Ele é de opinião que esse ponto no fundo consiste no fato de que a vida feliz é a vida boa e a infeliz é má. Mas o que significa uma vida feliz? O próprio Wittgenstein formula-se essa pergunta. Num registro no seu diário, datado de 30 de julho de 1916, ele faz o seguinte comentário:

"A vida feliz parece ser num sentido qualquer mais harmoniosa do que a infeliz. Mas em que sentido? Qual é o traço distintivo objetivo da vida feliz, harmoniosa? Mais uma vez fica claro que não pode existir nenhum traço distintivo desse tipo, que pudesse ser descrito."

Não pode existir nenhuma descrição de um traço distintivo, assim como "os homens que começaram a ter clareza acerca do sentido da vida, depois de longas dúvidas, também não podiam dizer em que consistia esse sentido".

Este é, portanto, o movimento do pensamento de Wittgenstein: conduzir até os limites do que pode ser descrito com clareza e fazer, para além desses limites, silenciar toda e qualquer conversa fiada. Dessa oposição resulta também a separação estrita entre as perguntas científicas possíveis – e os problemas da vida. Assim certamente é de importância significativa para a questão da vida feliz se a gente ama ou é amado. Mas a concretização do desejo não constitui uma meta científica, mas uma meta essencialmente individual e depende, como se sabe e como se costuma dizer, da sorte. O mundo de Don Juan certamente é diferente do de Raskolnikov.

No entanto, Wittgenstein não se contenta em afirmar que a vida feliz não pode ser caracterizada. Nas páginas do seu diário do mesmo mês de guerra do ano de 1916 ele procura ressaltar diferentes momentos do que poderíamos conceber como uma vida feliz.

A característica mais importante talvez consista no fato de que na vida feliz, bem como nas suas diferentes faces, existe uma concordância entre mim e o mundo. Se vivemos em concordância, vivemos no presente. Quem vive no presente não tem medo, pois ele não é torturado pela preocupação com o futuro e seu equilíbrio não é perturbado pela consciência das ações praticadas no passado. Quem é feliz e vive, por conseguinte, no presente, também não sente nenhum temor diante da morte.

Após ter percorrido tais reflexões, Wittgenstein chega a resultados que são mais concretos do que o que foi dito até o momento, ainda que o conteúdo desses resultados não seja determinado mais concretamente ou mesmo desenvolvido.

O primeiro resultado diz o seguinte: " O mundo e a vida são uma coisa só" (10). Por isso o nosso corpo é um pedaço do mundo entre os outros, assim como os corpos dos animais, das plantas ou das pedras. Poderíamos dizer isso com uma leve alusão a Kant, Schopenhauer e Weininger da seguinte maneira: formamos um conjunto com ele.

"Há duas divindades: o mundo e o seu eu independente" (8 de julho de 1916).

Essas duas divindades se devem fundir em uma unidade, para que o mundo humano possa ser feliz, pois o único imperativo ético formulado por Wittgenstein afirma: "Vive feliz!". Esse imperativo não nos leva para além de nós mesmos.

Poderíamos explicitar isso também da seguinte maneira: conscientizando-nos de que a posição de destaque, que as nossas ações assumem na maioria dos sistemas éticos diante de outras pessoas, é completamente modificada em Wittgenstein. A modificação se evidencia em primeiro lugar no fato de que o primado é concedido ao ser-sujeito do próprio indivíduo, i. é, de que os predicados 'bom' e 'mau' não podem ser aplicados a acontecimentos, portanto também não às conseqüências de uma ação, à medida que elas dizem respeito a acontecimentos. Não é pelos frutos, portanto, que se conhece um ato que realiza um valor absoluto. Por isso também os outros homens, vistos a partir do sujeito, não se encontram numa situação essencialmente diferente das partes restantes do mundo. O mundo, ao qual o sujeito agente se refere, não é, bem consideradas as coisas, o verdadeiro chão da ética. O mundo não encarna nenhum valor absoluto. Por isso a recompensa e a punição, a recompensa ética e a punição ética, naturalmente não estão localizadas no mundo, mas tão-somente nas ações, quer dizer no próprio sujeito.

Creio que com o realce desses momentos e a caracterização da vida boa conhecemos o perfil de uma ética cujo único mandamento parece ser: "Vive feliz!" – como se a realização desse imperativo estivesse unicamente na dependência do nosso poder.

Se nos lembrarmos aqui mais uma vez do paradoxo que consiste no fato de que nada no mundo pode representar um valor absoluto, que os valores absolutos, no entanto, somente podem ser apresentados em vivências efetivas, então talvez ficará mais claro ainda porque o filósofo austríaco-britânico insiste em que o mundo da pessoa feliz é completamente diferente do mundo da pessoa infeliz. Assim Wittgenstein afirma uma vez que no fundo só uma pessoa infeliz tem o direito de ter pena de outra pessoa infeliz. Poder-se-ia dizer que essa afirmação soa demasiado restritiva, pois todos deveriam ter os mesmos direitos morais. Mas a razão mais profunda dessa afirmação parece ser que o sentimento de pena e empatia diante de uma pessoa infeliz vem de fora, se advém da perspectiva do mundo da pessoa feliz, e que ele somente seria autêntico se adviesse do mesmo mundo.

Sabemos de experiência própria o que significa sair de um mundo e ir para outro. Essa experiência nos apresenta constantemente como caminhantes entre os dois mundos.

A alma humana ou o eu metafísico, do qual Wittgenstein fala, não é um ponto rígido e imóvel, mas abrange todo um mundo, que reconhecemos como nosso mundo. Nos limites desse microcosmo, onde a nossa linguagem não consegue mais ancorar-se nas coisas, situam-se os valores absolutos. Eles assumem forma somente quando se materializam nas vivências, como premonições, sentimentos ou desejos. Estamos aqui no domínio mais pessoal da nossa vida, para o qual não existem perguntas científicas, já que nele não há possibilidade de identificar o objeto da pergunta bem como de chegar a um conhecimento objetivo dos valores. Isso porque um conhecimento objetivo haveria de negar e desconsiderar justamente aquilo que é o chão único da ação ética, a saber a decisão de fazer ou não alguma coisa. Se não são as conseqüências da ação que justificam um juízo em termos de ' bom' ou ' mau' mas – conforme ouvimos – a própria ação do sujeito, então não há nada fora de nós, em que pudéssemos examinar a nossa vivência do valor.

Não importa quão insatisfatória possa parecer a exigência de compreender que não existe uma resposta clara nem, em termos gerais, uma resposta cabal e com sentido (sinnvoll) a uma das perguntas mais centrais da nossa vida: o caminho, que conduziu a esse resultado, é muito coerente. A Ética nunca poderá ser uma ciência no sentido rigoroso, pois o cânone de regras, que observamos nas nossas ações, ou opera com valores relativos e não é, por conseguinte, universal, ou baseia-se em valores absolutos, que só podem adquirir vigência subjetiva, já que não se pode objetivar para eles nenhuma suposição de existência.

Wittgenstein achava que era suficiente ter levado a reflexão filosófica até esse ponto. Ele achava, portanto, que seria mais honesto silenciar sobre um assunto, com relação ao qual um discurso racional e verificável não faria sentido, ainda que o seu objeto fosse universal.

Assim ele queria ver compreendido o Tractatus e essas conseqüências ele respeitou durante toda a sua vida.

Parece evidente, contudo, que temos mais facilidades em falar do que em silenciar, mesmo se o que dizemos não se refere a " estados de coisas "universalmente reconhecidos. Poderíamos, no entanto, objetivar o seguinte: será que a Ética deve basear-se em valores absolutos, mesmo se admitir-mos que ela não é uma ciência? E mesmo se ela se baseasse em valores absolutos, será que não poderíamos falar racionalmente sobre objetos que não existem ou que nem podem existir, por serem impossíveis? Quem haveria de proibir de direito a Platão que discursasse sobre uma hierarquia de idéias, mesmo se nós em oposição a ele – estivéssemos convictos de que eles não são o Ser único e verdadeiro?

Por um termo à conversa fiada dos filósofos é um objetivo bom. E é uma obviedade não falar sobre o que não se pode dizer nada. Mas permanece em aberto saber sobre o que se pode falar.

Notas

Rudolf Haller é professor de Filosofia da Universidade de Graz, Áustria.

Tradução de Peter Naumann. Revisão Técnica de Norberto Abreu e Silva Neto.

  • 1
    WITTGENSTEIN, L.
    Vortrag über Ethik und andere kleine Schriften (Conferência sobre Ética e outros escritos menores). Frankfurt; 1989. J. Schule, p. 20 s. (doravante citado abreviadamente como, Ética').
  • 2
    AYER, A. J.
    Sprache, Wahrheit und Logik (Linguagem, verdade e lógica). Trad, alemã de H. Hering. Stuttgart, 1970. p. 1 39.
  • 3
    ANZENGRUBER, L.
    Die Kreuzelschreiber (os escrevinhadores de cruzes), Ato III, cena 1. Cf. B. McGuinness,
    Wittgenstein frühe Jakre(Os anos jovens de Wittgenstein). Frankfurt, 1988. p. 160.
  • 4
    Wittgenstein, L. 'Etica, p. 17.
  • 5
    __________.
    Tractatus logico-philosophicus, 6.37.
  • 6
    __________
    . Aufzeichnungen über Logik (Anotações sobre a Lógica (1913). In:
    Werkausgabe (Edição das obras), v. 1. Tractatus etc. p. 206.
  • 7
    __________. TLP. 6.421 (" Ética e Estética são uma coisa só").
  • 8
    __________. Ética. p. 18.
  • 9
    __________. TLP. 4.024.
  • 10
    __________.
    Tagebucheintragung vom 2.8.1916 (Anotações no diário, de 2 de agosto de 1916).
  • *
    Conferência do Mês do IEA/USP feita pelo autor no dia 28 de novembro de 1990. O original em alemão encontra-se à disposição do leitor no IEA para eventual consulta.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 1991
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