Resumos
TEMOS assistido a uma valorização da memória oral nas ciências humanas. Este artigo discute as condições psicossociais que levam ao decaimento da memória e as circuntâncias que promovem sua revalorização. Explora a dimensão psicológica e política da memória oral, sugerindo que o passado narrado assume um caráter de resistência frente à ameaça de desenraizamento.
Memória oral; Desenraizamento social; Narração
WE HAVE been experiencing an increasing importance of the oral memory on the human sciences. This article deals with the psycho-social conditions that led to the desuse of the narration and the circumstances that promote its revitalization. It also explores the psychological and political dimensions of oral memory, suggesting that the narrative past assumes a resistance feature toward the unrooting threat.
Oral memory; Social unrooting; Narration
MEMÓRIAS
A memória oral no mundo contemporâneo
Fernando Frochtengarten
RESUMO
TEMOS assistido a uma valorização da memória oral nas ciências humanas. Este artigo discute as condições psicossociais que levam ao decaimento da memória e as circuntâncias que promovem sua revalorização. Explora a dimensão psicológica e política da memória oral, sugerindo que o passado narrado assume um caráter de resistência frente à ameaça de desenraizamento.
Palavras-chave: Memória oral, Desenraizamento social, Narração.
ABSTRACT
WE HAVE been experiencing an increasing importance of the oral memory on the human sciences. This article deals with the psycho-social conditions that led to the desuse of the narration and the circumstances that promote its revitalization. It also explores the psychological and political dimensions of oral memory, suggesting that the narrative past assumes a resistance feature toward the unrooting threat.
Key-words: Oral memory, Social unrooting, Narration.
TEMOS ASSISTIDO a um movimento de valorização do recurso à memória oral no campo das ciências humanas. Entre psicólogos sociais, antropólogos e historiadores, cada vez mais assídua tem sido a prática do recolhimento de lembranças por meio de depoimentos. Os quadros de tal modo produzidos alimentam de conteúdos o interesse dos pesquisadores, não sem suscitar o debate em torno do conhecimento engendrado pela narração.
Recentemente escreveu Ecléa Bosi (2003, p. 16): "O movimento de recuperação da memória nas ciências humanas será moda acadêmica ou tem origem mais profunda como a necessidade de enraizamento? Do vínculo com o passado se extrai a força para formação de identidade". Alinhado ao pensamento da psicóloga social para quem a tendência acadêmica traduz uma demanda do homem contemporâneo, este artigo tem a intenção de investigar as condições psicossociais que levam à derrocada da memória e aquelas que, em contrapartida, reclamam sua valorização.
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A concepção da memória como produto de uma atividade meramente subjetiva foi superada pelo pensamento de Maurice Halbwachs (1956), para quem as lembranças são frutos de uma atividade de reconstrução do vivido. Esse trabalho da memória conta com o suporte de imagens e idéias, valores e afetos vinculados a grupos sociais junto aos quais o memorialista experimenta algum sentimento de pertença. Se há ocasiões em que a aprovação social assenta as lembranças sobre a operação de ideologias e estereótipos (Bosi, 2003, pp. 113-126), há momentos outros em que os apoios comunitários são articulados de modo original pela memória individual, desde então participando de um ponto de vista particular sobre o passado.
O sentimento de pertença a um grupo não pressupõe a presença atual de seus membros. Suas influências podem permanecer vivas, orientando o olhar do memorialista sobre o passado. Ainda assim, o apoio coletivo à memória é mais vigoroso quando envolve a presença sensível de antigos companheiros e suas marcas no entorno. A materialidade como que incrementa a presença do grupo em pensamento. A convivência entre antigos companheiros nutre a comunicação entre visões de mundo que se limitam, se conformam e se interpenetram. O passado permanece então em contínua reconstrução pela memória coletiva.
Enfatizando o caráter coletivo da memória, diríamos que seu suporte social é doado por grupos pregressos e atuais, especialmente em condições promotoras de uma participação enraizada dos homens no meio coletivo. São circunstâncias em que o passado de um homem pode mais vigorosamente ser vivido como o passado do grupo.
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A recente incorporação dos termos "enraizamento" e "desenraizamento" pela linguagem cotidiana do senso comum pode fazer pressupor alguma convicção quanto ao sentido de seu emprego. É preciso, entretanto, esclarecer o conceito assim concebido por Simone Weil (1943a, p. 411):
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.
O enraizamento pressupõe a participação de um homem entre outros, em condições bastante determinadas. O homem enraizado participa de grupos que conservam heranças do passado. Podem ser transmitidas pelas palavras dos mais velhos: um ensinamento, uma sugestão prática ou uma norma. Podem ser recebidas como bens materiais: a paisagem de uma cidade, a terra revolvida pelos ancestrais, a casa por eles habitada ou objetos que revivem feitos de antigas gerações. Em outros termos, diríamos que a participação social do homem enraizado está assentada em meios onde recebe os princípios da vida moral, intelectual e espiritual que irão informar sua existência. Participação que pode vir do nascimento, da casa, da vizinhança, do trabalho, da cidade.
É preciso esclarecer que a comunicação enraizada com o passado não se confunde com uma atitude meramente contemplativa. Tampouco assume uma orientação reacionária. Onde os homens espraiam raízes, as lutas e construções dos antepassados, suas idéias e tradições, alicerçam realizações que, por sua vez, poderão revesti-las com novos significados. Esclarece Simone Weil (1943, p. 418) que este vínculo com o pregresso não coincide com sua importação passiva:
Seria vão voltar as costas ao passado para só pensar no futuro. É uma ilusão perigosa acreditar que haja aí uma possibilidade. A oposição entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; nós é que, para construí-lo, devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso ter, e não temos outra vida, outra seiva a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra mais vital que o passado.
Um passado elaborado não se reduz à idolatria irrefletida que apenas apoiaria projeções de um futuro utópico (Bosi, 1987, p. 18). Simone Weil faz referência a um passado que serve como inspiração para iniciativas.
"Iniciar" e "começar" são palavras cujas origens remetem a archein, termo grego equivalente ao latino agere que, por sua vez, significa "imprimir movimento a alguma coisa". Uma ação, nesta medida, corresponde ao início de algo inédito e singular, em que um homem se revela aos outros não sob a mediação da matéria, mas por meio de atos e palavras (Arendt, 1997, pp. 188-193). Meios promotores de enraizamento garantem esta condição política aos seres humanos: preservam as condições de igualdade que asseguram aos homens o livre exercício da palavra e que conservam aberturas para novas fundações.
O enraizamento não pressupõe o isolamento do espaço geográfico ou da produção cultural de uma coletividade. No sentido proposto por Simone Weil, a multiplicação de contatos (1943, p. 419) e a troca de influências (1943a, p. 419) podem alimentar revelações de parte a parte e estimular a originalidade de seus partícipes. É por meio da aparição diante do outro que os homens desenham sua identidade pessoal. Tal pluralidade é condição para a ação e para o discurso: funda e alimenta o corpo político.
A noção antagonista de desenraizamento surge, na obra de Simone Weil, a partir de sua experiência como operária em linhas de montagem de indústrias francesas, na década de 1930. Seus diários revelam formas pelas quais a substituição do trabalho manual pela técnica industrial impôs um distanciamento entre os trabalhadores. A interdição das relações intersubjetivas decorria do exílio de cada operário em um fragmento da produção, orientada que estava segundo um modelo fordista. Naquele cotidiano fabril restava, a cada trabalhador, a subordinação ao ritmo e à força das máquinas e a repetição de movimentos incompatíveis com o pensamento. Um afastamento de si mesmo acompanhava o isolamento relativo aos companheiros de trabalho. Para além da alienação sobre o produto final, primeiro apontada por Marx, a fábrica obliterava a comunicação com princípios e valores transmitidos pela vida familiar e escolar, sem acolhimento em meio ao barulho dos metais.
Ainda sobre o desenraizamento, José Moura Gonçalves Filho (1998, pp. 11-67) afirma tratar-se de uma doença da cultura. Esclarece que ele comporta um impedimento político: prejudica a reunião entre os homens, sua comunicação com o passado e seu campo de iniciativas. São condições que desfazem o laço de comunicabilidade entre as experiências vividas. Prevalece uma modalidade de vivências marcadas pelo isolamento, em que as lembranças se limitam ao âmbito de uma história pessoal, mais se aproximando de atos visionários.
No mesmo decênio em que Simone Weil dirigia seu olhar à experiência operária, a vigência da produção industrial, especialmente seus abalos sobre a narração, ocupava o pensamento de Walter Benjamin (1936). Para o historiador, a ruptura do sistema corporativo medieval e a ascensão da burguesia européia desfizeram as condições favoráveis à aproximação entre o narrador e seus ouvintes. O sistema artesanal propiciava as condições para o encontro entre experiências de longa data do mestre sedentário e as vivências de aprendizes migrantes, oriundos de distantes paragens. O sistema fabril rompe com o que sejam as experiências de vida do trabalhador e acaba por dissipar o vínculo entre a identidade de cada homem e sua origem. Onde cada qual conta por sua função produtiva sucumbe a memória, musa da narração.
Os escritos de Simone Weil e Walter Benjamin estão fundados sobre a crise cultural disparada pela modernidade e seus desdobramentos sobre o campo intersubjetivo. A contemporaneidade entre a formulação do conceito de desenraizamento e as reflexões sobre o decaimento da narração não é casual. As circunstâncias que ameaçam as raízes da participação dos homens na vida comunitária igualmente ferem as modalidades de relacionamento apoiadas sobre a narração. São condições que prejudicam a memória social.
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A atual valorização da memória oral ganhou impulso a partir de acontecimentos sucessivos aos anos vividos por Walter Benjamin e Simone Weil e que, experiências de desenraizamento por excelência, vieram a exasperar alguns dos fenômenos por ambos apontados. A Shoah e a bomba nuclear, justamente eventos que ameaçaram suas vítimas de apagamento e esquecimento, transformaram o testemunho sobre o passado em uma modalidade decisiva de relacionamento dos homens com os acontecimentos (Felman, 2000, p. 18). Na esteira desses eventos, elementos da realidade contemporânea vieram a imprimir uma lógica da descontinuidade sobre a experiência humana. Vivências de ruptura são marcas de um tempo em que os imperativos econômicos passaram a mediar mesmo as relações interpessoais, em que a globalização emergiu como ameaça às tradições, em que o cotidiano se acelerou de forma inaudita e em que a identidade dos homens mais estreitamente vinculou-se a suas façanhas pessoais.
Entre os problemas brasileiros que tornam o desenraizamento um tema relevante, o movimento migratório para as metrópoles é das mais graves situações. A mentalidade e as habilidades que o migrante ousa carregar ameaçam perder-se no lugar em que aporta. Personagem urbano, mergulha em um mundo onde vigoram relações de subordinação vinculadas ao trabalho e à ameaça do desemprego. Freqüentemente, a migração representa um choque com a cultura letrada, cuja prevalência cala a oralidade essencial à cultura popular. No espaço urbano, mas igualmente para além dele, sua tradição é atrofiada pela indústria cultural.
A urbanização tradicional, acidentada e orientada pelo capital, não raramente faz minguar a intimidade entre a vida compartilhada por um grupo de pessoas e a geografia do lugar (Frochtengarten, 2004). É o caso de paisagens das grandes cidades que vêm sendo subitamente rasgadas por grandes obras. Outras vezes são os empreendimentos do setor elétrico que represam rios e obrigam populações inteiras ao deslocamento. São circunstâncias que espoliam lembranças porque diluem os apoios da memória espacial.
Nos recônditos que permanecem distantes das cidades, são os avanços da monocultura e a mecanização da lavoura que ameaçam o pequeno agricultor. O saber herdado de safras pregressas não germina na paisagem corrompida, no solo compactado, impermeabilizado e irrigado por águas poluídas.
Nas regiões produtoras de carvão, sisal ou babaçu, o trabalho freqüentemente deixa de ser extensão do brinquedo, da escola e da convivência com o ofício dos pais. Converte-se em choque sobre os corpos de meninos e meninas relegados à mão-de-obra infantil. É o que ocorre em extensos laranjais do nordeste brasileiro. Os corpos franzinos são priorizados pelo empregador, já que poupam mesmo os mais delgados galhos das árvores. Aos poucos, o ácido cítrico apaga suas impressões digitais, roubando-lhes a identidade infantil.
Há casos em que as raízes dos homens são ameaçadas pela transformação de uma região em área de proteção ambiental. Não raramente, a desapropriação de terras desaloja gente cuja vida por longa data esteve embrenhada na paisagem e impede a manutenção de atividades extrativistas tradicionais. São casos em que, geralmente, as alternativas oferecidas à população pressupõem uma equivalência entre o espaço outrora habitado e a propriedade de um novo pedaço de terra. Planos de manejo ocupados com estas regiões mais deveriam considerar o plano simbólico das relações entre o bicho-homem e seu ambiente.
Este elenco de situações não comporta qualquer pretensão de esgotar os fenômenos brasileiros que, nos dias de hoje, ameaçam tornar perecíveis as relações entre os homens e o mundo comunitário. Antes, pretende lançar alguma luz sobre realidades nas quais a narrativa e a escuta sobre o passado emergem como atos de resistência. As raízes dos homens não se deixam arrancar impunemente.
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Ao menos duas dimensões devem ser valorizadas em uma psicologia da resistência dedicada à memória.
A narrativa carrega um sentido político nos termos propostos por Arendt (2002, pp. 91-115) e esclarecidos por Gonçalves Filho (2003, pp. 211-212). Entre os antigos gregos, Sócrates considerava uma opinião (doxa) como a formulação, em fala, da maneira como o mundo se parece para cada homem (dokei moi). Se todos compartilhamos a vivência de um mundo "comum", este fato não reside na equivalência de nossas opiniões, mas no fato de que o mundo se abre a tantas opiniões quanto somos os homens. No sentido socrático, a verdade sobre o mundo não reclama a superação da diversidade de opiniões, mas resulta de um diálogo em que a opinião de cada homem pode ser compreendida pelo outro. Desde então, a medida de objetividade (utilizando o termo da filosofia moderna) vem por meio de uma prática intersubjetiva: o que é tomado por verdade abrange um ponto de vista que se deixa atravessar por outros, seus encontros e desencontros, acordos e conflitos, a superação de um olhar particular por outro que comporta o ponto de vista de outros homens1.
O passado narrado carrega uma opinião: uma lembrança é uma perspectiva sobre o vivido. Por meio dela o memorialista aparece aos demais. A arte de narrar envolve a coordenação da alma, da voz, do olhar e das mãos. É como que uma performance em que a palavra, associada à ação, permite ao homem mostrar quem ele é.
Porque representa uma forma de participação dos homens no domínio político, a memória oral levanta-se contra o isolamento humano. Quando habita o campo compartilhado por narrador e ouvinte, o passado de um homem ingressa no regime de inteligibilidade de outros homens, aproxima-se do passado do grupo. Com Ecléa Bosi (1995, pp. 413-414), diríamos que se converte em realidade social.
Entre os antigos atenienses, apenas aos heróis era permitido recolher as migalhas que caíam ao solo durante as refeições. Explica Benjamin (s.d., p. 26) que a interdição do ato a outros homens consistia em uma experiência ética, já que as migalhas conferem proveito ao solo e às gerações vindouras. O narrador carrega uma disposição heróica para juntar os fragmentos da vida transcorrida. Inversamente ao herói grego, no entanto, é por meio deste recolhimento que doa sua experiência no mundo a seus herdeiros.
Em nossos dias, o pretenso conhecimento sobre a realidade tem se desenvolvido em meios restritos e impregnado por ideologias que orientam sua veiculação aos meios considerados não cultivados. A memória oral resiste a esse saber que mais se aproxima da verdade por necessidade. O direito à narração alarga o debate sobre o vivido e conserva um mundo acolhedor de olhares geralmente impedidos de ascender à condição política. Assim considerando, transforma-se o caráter do que podemos tomar por conhecimento sobre o passado. O que supomos como verdade não mais abrange uma conclusão definitiva e universal como requisito de sua validade. Antes, o pregresso permanece aberto e provisório, sujeito à experiência de morada na perspectiva de outro amigo.
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Em um tempo em que se esgarçam os tecidos que vascularizam a participação dos homens no mundo social, uma interrupção ameaça fraturar suas biografias. As instituições formadoras do sujeito não mais encontram ressonância na vida social. Convertidas em imposturas, deixam de informar o porvir e o que produzem é o mal-estar de uma existência desperdiçada. A ruptura biográfica é a dimensão psicológica do desenraizamento social.
Frente ao trauma de uma ruptura biográfica, a significação da vida parece precipitar-se no ponto de sua erosão, gerando algo como um esvaziamento identitário. As rachaduras então geradas dispersam sobre o passado e o futuro de suas vítimas. Nesta medida, a significação de uma experiência de desenraizamento dificilmente pode ser alcançada por uma atenção ao intervalo de sua duração cronológica. Sua compreensão requer um olhar alargado, retrospectivo e perspectivo. Solicita um abraço sobre os prejuízos gerados sobre a comunicação com o passado que, desde então, insiste em aparecer à consciência como indício dos desdobramentos que estariam por vir. Escreve Walter Benjamin (1936, p. 213): "um homem que morre aos trinta e cinco anos aparecerá sempre, na rememoração, em cada momento de sua vida, como um homem que morre aos trinta e cinco anos". Igualmente, a significação de uma experiência de desenraizamento carece de relacionamento com os prejuízos gerados sobre o futuro, com o que pode sucumbir e permanecer como apoio a novas fundações.
Em uma realidade assombrada por vivências de rupturas biográficas, a narração de memórias de vida propicia um trabalho de elaboração psíquica no qual reside outra razão para a ascensão da memória oral2. Quando conta sua biografia, o memorialista não tem a oferecer um discurso completo e definitivo sobre o vivido. Uma narração é uma prática da linguagem em processo e que se renova a cada experiência de recordar, pensar e contar.
O passado lembrado não é linear. A narração avança e recua sobre a linha do tempo, como que transbordando a finitude espaço-temporal que é própria dos acontecimentos vividos (Benjamin, 1929, p. 37). As lembranças abrem as portas para o que veio antes e depois. Uma recordação chama outra, compondo uma teia de rememorações mais ou menos singular, cuja textura se alinhava pela maneira como cada memorialista recolhe e amarra as imagens pregressas e busca sua significação.
A narração doa um tempo e um lugar, uma seqüência e uma causalidade às reminiscências. A ela atribui um início e um final; um antes, um durante e um depois (Laub, 1992, p. 69). Contar o passado envolve alguma organização das idéias, a nomeação das vivências e sua integração a outras representações. A memória integra o trabalho de elaboração psíquica. É pela reconstrução do ponto de fricção de sua experiência no mundo, por sua recorrente inscrição na subjetividade, que o sujeito poderá caminhar, mais ou menos bem sucedido, para a liberação de novas significações ao vivido (Frochtengarten, 2004a).
Dispersos os antigos companheiros e desfeitas as paisagens, é por meio de uma escuta que o narrador encontra apoio para convocar o passado ao presente. Quando entrega suas vivências a um ouvinte, de algum modo libertando-se do fardo solitário do testemunho, um homem pode ouvir a si próprio e suturar suas reminiscências ao momento atual. A resistência da memória oral assenta sobre a necessidade de atribuir algum sentido de permanência à existência dos homens no mundo
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A aproximação entre o narrador e seu ouvinte é obra de um tempo transcorrido. Sua reunião é cimentada pela vitalidade do passado. Em sentido inverso, este encontro apóia a comunicação com o pregresso e a reconstrução do vivido. Sua reunião confere vitalidade ao passado.
Concluindo, diríamos que o campo compartilhado pelo narrador e seu ouvinte propicia um ingresso no campo político, uma abertura ao engajamento do passado no presente e alguma elaboração de vivências que exigem respostas mentais. A memória oral é condição promotora de enraizamento.
Narrar o passado deveria ser um direito estendido a todos os homens. Aqueles que partem sem ter o heroísmo de sua biografia reconhecido por um ouvinte deixam a impressão de ter morrido duas vezes. Uma vida é vivida quando narrada.
Notas
Rerefências biliográficas
Texto recebido em 25.5.05 e aceito em 10.9.05.
Fernando Frochtengarten é mestre e doutorando em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP. @ fernandofrochtengarten@uol.com.br
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jun 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2005
Histórico
-
Recebido
25 Maio 2005 -
Aceito
10 Set 2005