Open-access Um encontro entre Celso Furtado e Fernand Braudel

resumo

Em 1978 o economista Celso Furtado participou de um colóquio internacional sobre história econômica na cidade italiana de Prato. Organizado pelo historiador francês Fernand Braudel, em torno do tema “Desenvolvimento e subdesenvolvimento na Europa e fora da Europa, do século XIII à Revolução Industrial”, o encontro reuniu historiadores de uma vintena de países. Na mesa de encerramento, Celso Furtado, então professor de economia da Universidade de Paris, e Fernand Braudel dialogaram sobre temas ligados ao desenvolvimento e ao subdesenvolvimento, às teorias da Cepal em torno dos conceitos de centro e periferia, à visão do economista face às observações dos historiadores.

palavras-chave: Fernand Braudel; Centro-periferia; Comércio internacional; Celso Furtado; Economia-mundo; Cepal

abstract

In 1978, economist Celso Furtado participated in an international colloquium on economic history in the Italian city of Prato. Organized by French historian Fernand Braudel on the theme “Development and underdevelopment in Europe and beyond from the 13th century to the Industrial Revolution,” the meeting brought together historians from twenty countries. At the closing roundtable, Celso Furtado, then a professor of economics at the University of Paris, and Fernand Braudel discussed issues related to development and underdevelopment, to the theories of the Economic Commission for Latin America and the Caribbean (ECLAC) concerning the concepts of center and periphery, and the economist’s view of the observations of historians.

keywords: Fernand Braudel; Center-periphery; International trade; Celso Furtado; World economy; ECLAC

Em abril de 1978, realizou-se em Prato, na Toscana, a X Semana de Estudos do Istituto Internazionale di Storia Economica Francesco Datini. Em torno do tema “Desenvolvimento e subdesenvolvimento na Europa e fora da Europa, do século XIII à Revolução Industrial”, o encontro teve seis sessões, que reuniram cerca de quarenta historiadores da então União Soviética, Polônia, Espanha, Iugoslávia, Escócia, Finlândia, Inglaterra, Bélgica, dos Estados Unidos e de Israel, e da Itália e da França. A mesa-redonda de encerramento, no dia 12, versou sobre “Novas perspectivas, novas fronteiras”. No salão do Palazzo Crocini, monumento histórico da cidade, Fernand Braudel, presidente do comitê científico do Istituto, debateu com Paul Bairoch, de Genebra, Sir John Hicks, de Oxford, Hermann Kellenbenz, da Noruega, Henk Wesseling, de Leiden, e Celso Furtado.

Fernand Braudel era o historiador mais renomado da França e, sem dúvida, um dos nomes mais conhecidos da École des Annales, em especial por sua obra sobre o Mediterrâneo e sobre o capitalismo. A amizade com o economista brasileiro vinha de meados dos anos 1960, quando Celso Furtado chegou à França como exilado e se tornou professor na Faculdade de Direito e Economia da Universidade de Paris-Sorbonne. Nos seminários da École Pratique des Hautes Études, como diretor da Revue des Annales, mais tarde como administrador da Maison des Sciences de l’Homme, Fernand Braudel tinha contato regular com Celso Furtado, cujo livro Formação econômica do Brasil era, a seu ver, uma grande obra de história econômica. Viram-se pela última vez em outubro de 1985, num seminário em Châteauvallon sobre a obra de Braudel. Tiveram uma longa conversa, que girou em torno de intelectuais franceses e brasileiros e da presença de Braudel no Brasil, nos anos 1930 em que a USP nascia. Desse encontro Celso deixou registro em seus diários (D’Aguiar, 2019). No mês seguinte, morria Fernand Braudel.

Semanas depois do congresso de Prato, Celso recebeu dos organizadores a transcrição de suas intervenções durante o debate que se seguiu à sessão de encerramento. É esse diálogo com Fernand Braudel, com as correções manuscritas de Celso, que traduzo a seguir. Vale assinalar que Braudel, demonstrando porventura sua posição de “professor” diante de Celso, o “aluno”, ou mesmo um toque de simpatia pouco usual no meio acadêmico francês, dirige-se a Celso com familiaridade, tratando-o de tu. Celso, mais cerimonioso, dirige-se ao mestre com o pronome vous. Nesta tradução, adotei “você” e “senhor”.

“Esconomista do subdesenvolvimento”

Fernand Braudel: Eu permito que você fale todas as línguas, se quiser, até mesmo italiano. Seria preciso misturar um pouco as línguas. É um dos maiores prazeres que temos na Semana de Prato.

Celso Furtado: Mas para mim, falar francês já é misturar.

FB: Você me ouviu, não ouviu? Desejo que não esteja de acordo, porque você nunca utilizou a noção de economia-mundo, nunca se jogou nessa simplificação, você não é um caloroso partidário de [Immanuel] Wallerstein ou de mim mesmo. Então, diga por quê.

CF: Preciso falar, primeiro, como economista.

FB: Não, você fala como Furtado: não há economista, não há historiador.

CF: Mas estou sob o controle de historiadores! Estou sob a mira dos historiadores, portanto preciso falar como economista.

FB: Ah, não, você não tem o direito de pegar as suas anotações! Sem anotações! Assim é muito fácil: você tem notas, fala…

CF: Não sou o professor Braudel! Devo me proteger.

FB: Você foi ministro. Eu nunca fui ministro. Eles não quiseram!

CF: É bem mais fácil ser ministro do que ser o professor Braudel.

FB: Oh, oh! Não é divertido ser ministro, acredite em mim.

CF: Se me permitem, gostaria de dizer alguma coisa como economista, economista do subdesenvolvimento. Temos aqui um grande economista, que é evidentemente um economista do crescimento, o professor Hicks, e eu sou apenas um economista da economia do subdesenvolvimento. Permitam-me, então, algumas pequenas reflexões. Gostaria primeiro de agradecer a todos, assim como ao Istituto, por esse convite. Aqui estou como estudante, e estudante atento, pois posso lhes dizer com toda a franqueza que aprendi muito com os senhores. Foi para mim um prazer extraordinário ver que os historiadores, embora usando conceitos de economistas, sabem perfeitamente ir muito mais longe, têm muito mais imaginação do que nós, os economistas.

Essas reflexões que lhes apresento aqui são, todas, as de alguém que acaba de escutá-los atentamente. Na verdade, é a primeira vez que, aqui, tomo a palavra, porque me comportei como um aluno... Certas categorias, como a de centro-periferia - é preciso reconhecer - nasceram na América Latina, há cerca de trinta anos. Na verdade, o trabalho clássico de Raúl Prebisch foi publicado em 1949. Elas são o resultado de um esforço para ultrapassar o caráter estritamente descritivo do conceito de subdesenvolvimento. Naquela época, há cerca de trinta anos, concebia-se o subdesenvolvimento, de modo implícito ou explícito, como uma fase, uma etapa na vida dos povos pela qual todos passavam. Era o déjà vu: “De te fabula narratur”, disse-nos Marx, falando desses povos atrasados, que não tinham história e que deviam reproduzir a história dos países avançados. Era essa a concepção de há três decênios. Ora, nós, dos países da periferia, nos demos conta de que, no esforço realizado para identificar os problemas específicos dos países subdesenvolvidos, não era possível refletir, pensar o subdesenvolvimento como uma realidade isolada, a partir de economias fechadas, e portanto devíamos colocar esses problemas, essas realidades, num quadro global: era, digamos, o início do conceito de economia-mundo, isto é, do conceito centro-periferia.

FB: Você poderia nos dizer como esses países da periferia, e o nosso Brasil, por exemplo, e até mesmo o país da América Latina que você quiser, como conseguem crescer?

CF: Se me permite, gostaria de dizer primeiro o que nós, economistas da periferia, entendemos por centro-periferia, e em seguida tento estudar se as suas reflexões, o seu uso do conceito, têm alguma relação com as nossas reflexões. E se podemos, de certa maneira, usar as nossas reflexões para enriquecer as suas. Nesse sentido é que gostaria de estabelecer meu diálogo com o senhor. Permito-me lhe dizer que o ponto de partida de Raúl Prebisch foi a crítica ao sistema de divisão internacional do trabalho e à teoria do comércio internacional, baseada na ideia das vantagens comparativas, cuja validade permanecia indiscutida no mundo acadêmico. De acordo com um dos corolários dessa teoria, o comércio internacional não era apenas um motor de crescimento, the engine of growth; graças a ele, todos os países que participavam do comércio internacional podiam empregar mais racionalmente seus próprios recursos. Mas o comércio internacional também era um fator de redução das disparidades, dos níveis de vida entre os países, pois eliminava certos efeitos negativos causados pela falta de complementaridade entre os fatores de produção disponíveis em cada país. Ora, os dados empíricos disponíveis sobre esse assunto - sobre o comportamento a longo prazo dos preços dos mercados internacionais - estavam longe de confirmar tais previsões. Se existiam algumas evidências, era no sentido inverso. Não quero discutir esse problema que o senhor bem conhece. Quais eram as causas desse comportamento inverso, perverso em relação ao caso teórico aceito, à boa teoria dos custos comparativos, à boa teoria da escola sueca, que ainda hoje é utilizada em nossas escolas? A resistência à baixa dos custos nas economias industrializadas tinha sido assinalada por Keynes, que a atribuía ao vigor das organizações sindicais. Mas a situação era diferente nos países exportadores de produtos primários, tema que breve seria desenvolvido pelos economistas na teoria do excedente estrutural de mão de obra. Existiria assim, no sistema capitalista, uma tendência estrutural à concentração da renda em benefício dos países com organização social mais avançada. As disparidades nos ritmos de acumulação, para as quais contribuiu o sistema de divisão internacional do trabalho, e suas repercussões sobre as estruturas sociais geraram uma heterogeneidade estrutural nos sistemas capitalistas que não pode ser ignorada quando se estudam as relações internacionais. Assim, o subdesenvolvimento vem a ser considerado como uma conformação das estruturas e não como uma fase evolutiva. A fratura entre centro e periferia não é mais que uma manifestação dessa conformação estrutural.

FB: Você poderia parar um instante, porque o professor Wesseling vai traduzir em inglês? E se necessário, se o público, se o povo reclamar a tradução em italiano, [Carlo] Poni a fará. Porque queremos ser compreendidos; não falar, mas pensar, se for possível. Passo a escutá-lo, meu caro Wesseling.

FB: Você repetiria esta última observação em inglês, pois não o escutaram?

CF: Well, I started from a critique of the theory of comparative advantages; this is for economists. And I suggested the point that one of the corollaries of that theory was that the level of per capita income might tend to level off, to equalize among countries participating in the international trade. But the empirical evidence available at that time demonstrated that the trend had been indeed reversed.

CF: Explico-me: a maior resistência dos custos à baixa nos países industrializados durante os ciclos econômicos responde pela concentração da renda. Vou tentar resumir ainda mais, porque vejo que o tempo avança. O processo formativo de um sistema econômico mundial, cujo ponto de partida é a aceleração da acumulação, nasceu na Europa, mais exatamente na Inglaterra. Ele pode ser observado de dois ângulos distintos. Do primeiro, apresenta-se como a transformação das formas de produção, isto é, como a destruição total ou parcial das formas familiares, artesanais, senhoriais e corporativas de organização da produção e a implantação progressiva do mercado dos fatores de produção. Essa transformação se traduziu por uma possibilidade mais ampla de divisão do trabalho e do progresso técnico, o que explica a aceleração da acumulação.

“Aceleração da acumulação”

FB: Repita esta ultima frase, porque ela é importante.

CF: O que o senhor estuda, no fundo, é a aceleração da acumulação. É o que marca a história moderna. A acumulação foi lenta antes da Revolução Industrial, muito lenta, talvez imperceptível para uma geração. Às vezes uma região, ou uma sub-região se aproveitava disso. Mas o fato importante é que, no conjunto, ela era muito lenta, ao passo que, a partir de certo momento, há uma explosão de forma exponencial na Europa. Mas esse fenômeno tem duas faces. De um lado, ele vai transformar as formas de produção, porque vai introduzir o critério de racionalidade na organização da produção; já não será quanto ao comércio, e sim quanto à ordenação dos fatores de produção. Então, vamos pensar progressivamente em termos de fatores de produção em relação ao trabalho, à terra etc. Mas esse mesmo processo tem outra face, que é a da expansão do comércio, que afetará o conjunto do planeta - pelo comércio, mas não pela transformação das formas de produção. A transformação das formas de produção é limitada a certa área do planeta, mas as consequências no plano comercial são globais. Era o que eu queria dizer.

FB: Como é que você se sai com o problema das minas? Há de fato uma transformação da produção sob o impacto comercial?

CF: É que não sou historiador, então não considero os detalhes.

FB: Muito bom, isso! Mas não, reflita: o sistema do amálgama que chega ao México, à Nova Espanha e ao Peru, é, ainda assim, uma mudança da produção. E ele não chegou sozinho.

CF: Nesse caso, é uma modificação técnica que pode resultar de uma base empírica. Mas falo aqui em relação à organização social.

FB: Então, quando você tem o salariato na Nova Espanha, é muito cedo? Era uma transformação em que sentido?

CF: Era muito cedo, como aliás em Roma também havia salariato e era muito cedo.

FB: Mas estou lhe falando da sua América Latina.

CF: O salariato sempre existiu na Idade Média. Mas não era a forma predominante de organização de pagamento da força de trabalho.

FB: Mas nas minas da Nova Espanha é o salariato que se torna a forma predominante.

CF: Somente em certas regiões da Nova Espanha. Porque havia penúria de mão de obra. Mas não sou historiador, desculpe.

FB: Você se defende mal! Eu não sou economista mas aceitaria discutir, ainda que não conheça a questão.

CF: Mas tenho, afinal, de avançar outra ideia. A segunda face de que eu falava reflete a ativação das atividades comerciais, isto é, a divisão do trabalho inter-regional. As regiões onde nasceu a aceleração da acumulação tenderam a se especializar em atividades em que havia maiores possibilidades de avanço da técnica, e transformaram-se em foco gerador do progresso tecnológico. No entanto, a especialização geográfica também provocava uma produtividade maior, isto é, um uso mais eficaz dos recursos produtivos disponíveis. Nascendo do comércio exterior, esse último aumento de produtividade serviu de vetor de transmissão para as inovações da cultura material, as quais refletiam a aceleração da acumulação. O progresso, aquilo que o senhor chama de progresso, isto é, a assimilação de novas formas de vida, que gerava a acumulação na cultura dominante, aparecia em toda parte, embora em graus diversos. A modernização dos modelos de consumo, transformação inicial de importantes fragmentos da cultura material, pôde avançar consideravelmente, sem interferências decisivas nas estruturas sociais. O que explica que em numerosas partes do mundo a ativação do comércio exterior tenha se realizado no quadro das formas preexistentes da organização da produção, inclusive da escravidão.

FB: Você me faça a gentileza de deixar Wesseling explicar em inglês o que você entende por acumulação - o movimento do capitalismo mercantil fora da produção -, para que a discussão possa prosseguir. Desculpe!

FB: Você ouviu a comunicação de Pierre Gourou, que tentou mostrar os obstáculos ao crescimento num país subdesenvolvido. Você certamente prestou atenção à comunicação - a meu ver extraordinária - do professor de Vries;1 ele não está de acordo comigo, mas você não imagina o prazer que tive em ler a comunicação dele. De Vries mostra como, na Holanda, há um terreno agrícola que já está preparado, e no qual a semente pode crescer. Há uma comparação muito bonita com Portugal. Em Portugal, existem todos os elementos exteriores, existem todos os apelos da vida mercantil. E depois, o solo não fornece a possibilidade de crescer. Então, será que na América Latina você veria alguma coisa de comparável, seja com Portugal, seja com a Holanda? Não o aborreço com minhas perguntas? Queríamos respostas de economista para nossas preocupações de historiadores. As regiões subdesenvolvidas são aquelas que, apesar de tudo, se desenvolvem: o Brasil se desenvolve, sem nenhuma dúvida. E então, ele não pode se desenvolver tanto quanto os outros por razões internacionais, mas como se desenvolve a partir de si mesmo?


Carteira funcional da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, Nações Unidas.


Celso Furtado com um russo e coreanos em Praga, em julho de 1947.


Salvo-conduto emitido pelo governo peruano em 1970 para que Celso Furtado pudesse viajar ao Peru.

CF: É um tema muito vasto. Todos os países do mundo se desenvolvem, hoje, no sentido de que a acumulação é relativamente rápida no mundo. Ocorre que há formas diferentes de acumulação e de desenvolvimento. O que acontece num país que se industrializa, com o atraso do Brasil, é que essa industrialização não consegue transformar as estruturas sociais. E o que marcou o desenvolvimento da Europa foi que as estruturas sociais foram afetadas pela acumulação. Mas isso me afasta um pouco do tema. Se me permite, monsieur Braudel, quero abordar diretamente a parte final.

FB: Você tem o direito de se defender, mas também tem o direito de atacar!

CF: Não discutimos aqui esse problema central que é a razão pela qual essa explosão, essa mudança qualitativa, para falar como um dialético, ocorreu na Inglaterra, e não na Holanda. E o interesse da comunicação do professor de Vries é que ele avança ideias sobre isso: por que não aqui, por que não na Itália? Vê-se bem que é um processo que pertence à história da Europa. No fundo, a Europa é que reunia as condições…

FB: E as colônias inglesas?

CF: ... E a Inglaterra, como plataforma aberta em todas as direções, reuniu o máximo de vantagens, mas isso não foi nosso tema aqui. Então eu gostaria de voltar ao essencial de minha reflexão, que é o que se pode fazer, hoje, com esses conceitos. Será que podemos utilizá-los para refletir sobre o passado? É esse, finalmente, o tema de nossa reunião.

Em primeiro lugar, a formação de um sistema econômico mundial - e isso é uma simples evidência histórica - anda sobre dois pés. É preciso reter bem esse ponto. O da difusão da racionalidade no arranjo dos recursos produtivos, e o da transformação das formas de vida das populações (o que a economia chama de difusão dos produtos novos). São dois pés, duas dimensões do progresso tecnológico: a racionalidade no arranjo dos recursos produtivos e a racionalidade nas formas de comportamento das pessoas: por exemplo, a introdução do automóvel, de tudo o que se conhece como “vestimenta” do desenvolvimento. Mas esses dois processos têm o mesmo vetor, que é a acumulação. Ora, os recursos destinados à acumulação podem vir, seja do desenvolvimento das forças produtivas - para usar a linguagem do século XIX, de List ou de Marx -, seja das vantagens comparativas, isto é, da especialização internacional. É possível ter recursos para se modernizar, para se revestir em país desenvolvido, sem ter de passar pela transformação das formas de produção, e sem o desenvolvimento das forças produtivas. É possível, digamos, ir visitar a própria fazenda de café, na qual se empregam as mesmas técnicas de produção do século XVIII, mas à qual se chega em avião particular. Aí estão os dois lados da questão. Em outras palavras, o desenvolvimento das forças produtivas não é uma condição necessária para ter acesso a produtos que são o fruto do desenvolvimento das forças produtivas em outros países. É possível pagar os automóveis com cacau, café etc. Assim, o subdesenvolvimento não é senão a transplantação de uma civilização material complexa, sem a base material correspondente de acumulação no nível das forças produtivas. É por isso que, para compreender a realidade do subdesenvolvimento, precisa-se de uma visão global do sistema capitalista: visão que nos deu a concepção das categorias centro-periferia. Mas voltemos à preocupação de nosso debate. Será que essas categorias derivadas da observação da história do capitalismo industrial têm algum valor para entender o mundo pré-industrial? A Revolução Industrial não é mais que uma formidável aceleração do processo de acumulação, em especial dos sistemas de produção. Essa aceleração é a causa da distância crescente dos níveis de acumulação, que vai se apresentar entre os países a partir da segunda metade do século XIX. Ora, no mundo pré-industrial, as diferenças entre os níveis de acumulação eram algo modestos. O que diferenciava essas sociedades pré-industriais eram as motivações dos grupos ou classes que se apropriavam do excedente. Assim, vimos que as motivações da burguesia dos Países Baixos se modificaram em função dos parâmetros externos, e essas mudanças determinaram o tipo de desenvolvimento da região. Tudo nos leva, pois, a pensar que se a Índia tivesse seguido uma política tal como a que foi definida por Alexander Hamilton e adotada nos Estados Unidos, o país teria certamente se industrializado, teria acelerado sua acumulação a partir mais ou menos da mesma época que os países da Europa continental, que souberam se proteger contra o avanço das exportações inglesas. Porque o nível de acumulação na Índia não era tão diferente daquele que existia aqui, na Europa. Não é possível deixar de separar o que vai se passar, isto é, esse avanço, essa aceleração a partir de um ponto determinado, e a dimensão política, o poder político que a Inglaterra e a Europa puderam aplicar para impor normas de comportamento a outros países, a outras regiões do mundo. É aí, nesse ponto, que hoje estamos. Para entender as grandes disparidades dos níveis de acumulação, que estão na origem da estrutura centro-periferia, é preciso levar em conta, primeiro, a aceleração da acumulação ocorrida na Inglaterra, e em seguida, a capacidade de reação das outras regiões, já que a partir desse momento o comércio exterior passava a ter também um papel de fator desestruturante. Sem dúvida, é possível usar os conceitos de desenvolvimento e de subdesenvolvimento conforme foi feito aqui, num sentido estritamente descritivo. Na verdade, em todos os períodos da história certos povos prosperaram mais que outros. As razões dessas disparidades são tão complexas como a história dos homens. Da mesma maneira, é possível usar as categorias centro-periferia para descrever a expansão planetária das redes comerciais dos europeus. Mas esses conceitos só têm alcance analítico se os ligamos à aceleração da acumulação na Europa ocidental, a partir do fim do século XVIII. Isso permitiu alargar e aprofundar a dominação política que certos países da Europa já exerciam sobre vastas regiões do planeta. Não se deve esquecer de que a periferia é também um conjunto de regiões dominadas, embora essa dominação nem sempre seja visível, nem sempre esteja na consciência daqueles que a sofrem. Obrigado.

FB: Agradeço-lhe muito, querido professor Furtado. Gostaria ainda assim que fosse possível esclarecer os dois pés mais a acumulação, isto é, os três pés. Você disse que há dois, mas encontrou um terceiro. Então eu gostaria que retomasse essas explicações. Você disse que há dois pés, e que o vetor continua a ser a acumulação, portanto há três pés.

Transformação das formas de produção e das formas de vida

CF: Eu dizia que há duas maneiras de transformação: transformação das formas de produção e transformação das formas de vida. As duas têm o mesmo vetor, que é a acumulação - a mesma acumulação que pode ser usada para comprar, por exemplo, uma máquina, pode também ser usada para urbanizar o Rio de Janeiro, o que é uma forma de consumo, ou para comprar carros de turismo, o que é uma forma de acumulação. Em geral o economista só vê a acumulação no nível das formas produtivas, isto é, das forças produtivas. Mas boa parte da acumulação da humanidade que todas as sociedades realizaram está fora das forças produtivas. E isso marca inteiramente o subdesenvolvimento, porque a civilização material que os países subdesenvolvidos importam demanda uma acumulação muito avançada no nível do consumo. E é por isso que, quando se deseja reproduzir essas formas de consumo, deve-se concentrar a renda, excluir dos benefícios do desenvolvimento uma boa parte da população e, no fundo, manter uma estrutura a que chamamos de subdesenvolvida, embora se avançando muito no caminho da industrialização.

FB: Nós vamos aplaudi-lo de novo, porque ficou muito mais claro para nós. Desculpe-me fazê-lo repetir mas não é muito fácil para um historiador compreender um problema, eu diria, tão difícil e apresentado tão rapidamente. Eu pediria ao professor Bairoch a gentileza de se inserir na discussão e responder ao que tentei dizer no início. Tenha toda a liberdade, o senhor está longe de mim, vou aborrecê-lo muito menos.

CF: Sinto muito retê-los aqui mais um minuto. Mas como o professor Vesseling me pediu para ser mais exato, me pediu mais rigor... - e para mim é um grande prazer ver um historiador que se preocupa com o rigor [interrupção para troca de fita]... porque nós, economistas, sempre somos criticados por nos preocuparmos demais com essas coisas. Ora, o conceito de aceleração não é um conceito de economista, como bem sabem, é um conceito matemático. Então, não é possível discuti-lo. Podemos discutir o conceito de capital, como faz o professor Hicks, que vincula o capital à taxa de juros; podemos discuti-lo como economistas. Mas a aceleração, que é a primeira derivada de uma função, não se discute. O que o economista chama de aceleração da acumulação é uma elevação da taxa de investimento. O que é a Revolução Industrial? É uma mudança, como que um salto, da taxa de investimento. Então, temos uma aceleração que se esgota. Mas como em escala mundial houve um desdobramento desse processo, um país depois do outro, a aceleração foi prolongada. Vista do lado da Inglaterra, essa aceleração se esgotou a partir dos anos 1840. É quando há a passagem de uma taxa de 5% ou 6% para 14% de investimento líquido. Mas se pegamos concretamente as estatísticas do período recente, vemos que os países do centro apresentaram uma taxa de investimento - nesse caso, não falo de aceleração - mais alta que a dos países da periferia. É por isso que a taxa de crescimento ou de produtividade ou de renda per capita, como preferirem, foi, no centro do sistema, de cerca de 3,5% durante este quarto de século, e na periferia, de 2,5%. É o que foi chamado de alargamento da distância. Mas esse é um outro aspecto do problema.

FB: Agradeço ao professor Celso Furtado por esse último esforço, com o qual terminamos. Caros amigos, agradeço a todos; agradeço aos que intervieram, aos que tiveram a gentileza de nos escutar, às vezes até de nos aplaudir. Agradeço aos que foram muito, muito atentos, aos que participaram da discussão de um lado e outro da mesa. Antes de declarar que a X Semana está encerrada, devo dar a palavra ao nosso amigo, o presidente Ottone Magistrali.2 Vocês sabem, meus caros amigos, que as discussões intelectuais nem sempre são perfeitas, mesmo aqui em Prato, mas o que é perfeito é, afinal de contas, a organização material, a organização administrativa, a preparação, que aliás suscitou a admiração de todos os nossos colegas. Caro presidente, a palavra é sua.

Referência

  • D’AGUIAR, R. F. de. (Org.) Diários intermitentes de Celso Furtado. 1937-2002. Apresentação e notas de Rosa Freire d’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Cia. das Letras, 2019.

Notas

  • 1
    1 Pierre Gourou, historiador belga, apresentou no congresso uma palestra sobre “África negra: alguns obstáculos ao desenvolvimento herdados do passado”. Jan de Vries, de Berkeley, falou sobre “Peculiaridades e ambiguidades da desenvolvimento ‘pré-industrial’ nos Países Baixos”. (N. E.)
  • 2
    Presidente do Istituto Internazionale di Storia Economica Francesco Datini.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2020
  • Aceito
    27 Set 2020
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