RESUMO
Em artigo publicado em 1952, Sérgio Buarque de Holanda destacou o extremo intelectualismo da obra de João Cabral de Melo Neto. O crítico afirmou que sua “poesia mental” não cabia nos padrões modernistas e que nela, pela primeira vez no Brasil, o trabalho da inteligência ganhava posição privilegiada. A despeito da originalidade de sua poesia, a verdade é que, para João Cabral, o modernismo constituiu-se numa espécie de cordão umbilical. Em princípio, sua obra esteve bastante vinculada às poéticas de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Depois, ele afirmou sua discordância com os valores da Geração de 45, que se opunha ao modernismo, dizendo que as possibilidades abertas pelo movimento estavam longe de ser esgotadas. Apesar de criticar Mário de Andrade, a sua concepção do “trabalho de arte” ecoava alguns ensaios do autor de Macunaíma. Este artigo pretende refletir sobre o legado modernista por meio da atualização proposta por João Cabral.
PALAVRAS-CHAVE: João Cabral de Melo Neto; Mário de Andrade; Carlos Drummond de Andrade; Modernismo; Poesia moderna
ABSTRACT
In an article published in 1952, Sérgio Buarque de Holanda highlighted the extreme intellectualism of João Cabral de Melo Neto’s work. The critic stated that João Cabral’s “mental poetry” did not fit into modernist standards and that in him, for the first time in Brazil, the work of intelligence gained a privileged position. Despite the originality of his poetry, the truth is that, for João Cabral, Modernism constituted a kind of umbilical cord. At first, his work was closely linked to the poetics of Carlos Drummond de Andrade and Murilo Mendes. Afterwards, he affirmed his disagreement with the values of the Generation of 45, who were opposed to Modernism, saying that the possibilities opened up by the movement were far from being exhausted. Des- pite criticizing Mário de Andrade, his conception of “work of art” echoed some essays by the author of Macunaíma. This article intends to reflect on the Modernist legacy through the update proposed by João Cabral.
KEYWORDS: João Cabral de Melo Neto; Mário de Andrade; Carlos Drummond de Andrade; Modernism; Modern poetry
Nos dias que sucederam a morte de João Cabral de Melo Neto, ocorrida em 9 de outubro de 1999, a imprensa lamentou não apenas a partida do poeta, considerado o maior em atividade no Brasil, mas também o encerramento de um longo período da poesia brasileira. Sua morte, frisou em editorial o jornal Folha de S.Paulo, dava a impressão de que se perdera “o último grande elo com um certo Brasil”, que no passado havia sonhado com um destino e um pensamento próprios. Tal país e tal desejo de autonomia teriam nascido com o movimento modernista de 1922. “O poeta levou o modernismo a um ápice no país, mas de modo peculiar”, sintetizou o jornal. Outras opiniões foram ouvidas e ratificaram a ideia de que, no apagar das luzes do século XX, estávamos nos despedindo da “alta modernidade” e do “modernismo clássico”, como disseram, respectivamente, Silviano Santiago e Alexei Bueno. Nas palavras de Carlito Azevedo, “o século XX, quanto à poesia brasileira, acabou com a morte de Cabral, como acabou também o poeta como símbolo da nacionalidade” (Dias, 1999).
Cinquenta anos antes, quando o pernambucano foi consagrado como a voz poética mais original de sua geração, afirmações dessa natureza teriam causado estranhamento, pois o que se imaginava então era que sua obra significasse, ao contrário, a superação do modernismo. Em artigo publicado em agosto de 1952, Sérgio Buarque de Holanda (1992, p.525) destacou o “extremo intelectualismo” da obra cabralina: “Creio que pela primeira vez, em toda a história da nossa poesia, o trabalho da inteligência ganha uma posição privilegiada e um soberano prestígio”. Para o crítico, era patente a incompatibilidade entre essa “poesia mental” e os padrões generalizados pelos modernistas. Em outro artigo, ele confessaria sua admiração por essa obra que se colocava “em posição de nítido antagonismo não apenas com a de toda a sua geração, mas, ainda, com toda a tradição de nossa poesia” (ibidem, p.531).
A apresentação da conferência “Poesia e composição”, de João Cabral, em São Paulo, no mesmo ano de 1952, foi uma das ocasiões em que ficou patente o antagonismo - ali teria ocorrido, na expressão de Affonso Romano de Sant’Anna (2014, p.10), um “cisma” na história da poesia brasileira. No texto, Cabral dividiu os poetas em duas categorias: a dos que entendem a criação poética como um estado de espírito, uma experiência “quase divina”, algo que se impõe ao poeta, e a dos que consideram o trabalho artístico como um exercício racional, no qual o poeta se impõe ao poema, a partir de motivos escolhidos com plena consciência. “A composição literária oscila permanentemente entre dois pontos extremos a que é possível levar as ideias de inspiração e trabalho de arte” (Melo Neto, 1995, p.725). No caso brasileiro, segundo ele, a primeira categoria infelizmente era predominante. Mas Cabral timbrava em ser um “artista intelectual”, para quem o trabalho seria a própria fonte da criação.
“Inspiração” é o título da composição de abertura de Pauliceia desvairada, o primeiro livro de poesia moderna publicado no Brasil. Nos versos iniciais, Mário de Andrade (1922, p.43), atendendo a um forte impulso lírico, canta a cidade múltipla e contraditória, cujo progresso também lhe causa estranhamento: “São Paulo! comoção de minha vida.../ Os meus amores são flores feitas de original.../ Arlequinal [...]”. Fiel à herança romântica, o poeta revela, já no “Prefácio interessantíssimo” que antecede os poemas, a sua atração pelo “desvairismo”, isto é, o “estado afetivo sublime, vizinho da sublime loucura” (ibidem, p.31), que para ele origina o poema. A fórmula proposta por Paul Dermée - “Lirismo + Arte = Poesia” - é reaproveitada por Mário para lembrar que o trabalho consciente da forma também era importante na criação poética. Esse, porém, deveria estar subordinado à inspiração, corrigindo apenas os excessos, sem jamais reprimir a “doida carreira do estado lírico” (ibidem, p.15). Na contramão desses princípios, a conferência de João Cabral, que curiosamente foi lida na Biblioteca Mário de Andrade, recusou a espontaneidade modernista. A geração de 1922, cuja produção era vista àquela altura como marcada por improviso, desleixo formal e excessiva simplicidade, era um dos veios centrais da corrente poética à qual se contrapunha o construtivismo do autor de O engenheiro. Para João Cabral, o esforço racional da composição não se limitava a um mero retoque, ao olho crítico aplicado posteriormente à obra, conforme defendera Mário de Andrade, mas constituía “a origem do próprio poema” (Melo Neto, 1995, p.733).
Depois do caminho aberto por Pauliceia desvairada, a produção literária e crítica que circulou em revistas modernistas como Klaxon e Estética deu continuidade à posição anticlássica e anti-intelectualista de Mário de Andrade. Se esse atenuou seu desvairismo inicial ao acentuar, em A escrava que não é Isaura, o papel da inteligência como instância organizadora, que completaria o impulso lírico, Estética - fundada por Prudente de Moraes Neto e o mesmo Sérgio Buarque de Holanda que mais tarde apontaria a singularidade da poesia cabralina - insistiu em conceber a obra de arte como expressão do inconsciente e das intuições de seu criador. O irracionalismo estava em quase todas as páginas da revista, não só nas composições que seguiam o modelo da “escrita automática”, mas nos artigos dos mais diversos colaboradores. O poeta sensorial é mais valorizado que o poeta cerebral, conforme os termos usados por Rodrigo Mello Franco de Andrade em texto sobre Ribeiro Couto. Sérgio Buarque cita e endossa palavras de Rubens Borba de Moraes: “A velocidade da vida moderna obriga o artista a realizar depressa o que ele sentiu depressa, antes da inteligência intervir” (Holanda, 1925, p.224). Para Rubens, o irracionalismo podia ser considerado o fundamento da arte moderna.
Na “Carta aberta a Alberto de Oliveira”, também divulgada por Estética, Mário de Andrade (1925, p.335) ataca a literatura formalista dos parnasianos, acusando-os de terem recalcado o “lirismo bonito que tinham dentro do coração”. Contra a ordem, a objetividade e a atitude intelectual que caracterizam a arte clássica, despersonalizando-a, em toda parte se fará o elogio do indivíduo, da interioridade, da marca pessoal do poeta, do ritmo próprio que este imprime com sinceridade a suas criações. Desprezados por João Cabral, os poetas românticos eram vistos como precursores das práticas libertárias que moviam a vanguarda modernista. No entender de Prudente Moraes Neto (1925, p.316), “agora é que estamos tendo um verdadeiro Romantismo”.
Entre os nordestinos, bem antes do aparecimento de João Cabral de Melo Neto e da Geração de 45, prevaleceu sempre um posicionamento crítico e resistente ao espírito modernista. Uma rara exceção foi Joaquim Inojosa, que travou contato em 1922, em São Paulo, com os líderes do movimento e regressou deslumbrado ao Recife, disposto a ser o arauto do futurismo. No ano seguinte, com inspiração no livro de poemas de Mário de Andrade, Inojosa criou a revista Mauriceia. Sua militância a favor do modernismo foi o contraponto à campanha, levada a cabo por Gilberto Freyre, em favor do “regionalismo tradicionalista”. Freyre regressou ao Brasil em 1923, depois de seis anos de estudos nos Estados Unidos, bradando contra a Semana de Arte Moderna, que ele chamava de “comédia”, e a “desenfreada mania de modernismo” (apud Azevedo, 1984, p.124). No ano seguinte, criou o Centro Regionalista do Nordeste, cujas ideias repercutiram no romance de José Lins do Rego, na poesia de Jorge de Lima, na pintura de Cícero Dias e no pensamento de muitos outros intelectuais e artistas. O modernismo paulista era condenado por sua atitude iconoclasta, destruidora, contrária à tradição. Amante da cozinha, Gilberto Freyre escreveu que “o temperamento brasileiro se revela mais artisticamente no tempero das comidas patriarcais e de rua que na poesia, em geral destemperada e só de escândalo, dos ‘modernistas’ e ‘universalistas’” (apud Castello, 1961, p.55).
Na defesa do programa regionalista e tradicionalista, José Lins do Rego foi ainda mais polêmico do que Freyre. Segundo ele, o movimento literário surgido no Nordeste não tinha qualquer relação com o modernismo de Macunaíma. O livro de Mário de Andrade, a seu ver, era cerebral, uma mera compilação de folclore, e tão arrevesado e antinatural quanto os sonetos de Alberto de Oliveira (cf. Bueno, 2006, p.61-2). Visão semelhante foi declarada por Graciliano Ramos, que acompanhou de longe - trabalhando numa loja de tecidos no sertão alagoano - o que chamou de “movimentozinho”, uma “tapeação desonesta” (apud Senna, 1978, p.50). Com exceção de Manuel Bandeira, os modernistas lhe pareciam falsos, cabotinos.
Considerado historicamente como um desdobramento do modernismo de 1922, o chamado “romance de 30”, na verdade, se esforçou por recusar os laços com a geração anterior. “O modernismo morreu”, afirmou categoricamente Tristão de Athayde em artigo publicado em 1936 na revista Lanterna Verde. Sua herança literária teria sido maior em espírito do que em obras. “Os modernistas não construíram: usaram a picareta e espalharam o terror”, escreveu Graciliano (apud Coelho, 2012, p.78). Para a geração de 1930, o movimento havia sido incompleto e estava superado. Aos novos escritores, caberia o papel de serem os verdadeiros construtores da nova arte. Os defensores da corrente espiritualista, oposta à do romance social nordestino, também desejavam manter distância dos “desvairismos” vanguardistas. Nesse ponto os oponentes estavam de pleno acordo. Tanto Octávio de Faria como Jorge Amado - que se considerava um “pós-modernista” - achavam que a geração de 1922, apesar de sua ênfase na brasilidade, não havia conseguido de fato criar raízes e revelar o verdadeiro Brasil.
Para os nordestinos, o marco inaugural da moderna literatura brasileira havia sido A bagaceira, romance de José Américo de Almeida publicado no mesmo ano de 1928 em que apareceram Macunaíma e a Revista de Antropofagia. Com sua obra de caráter realista, espécie de documento da seca, do cangaço e da vida nos engenhos, o autor reagia “como nordestino” contra a “literatura de importação” difundida em São Paulo (apud Nogueira, 2001, p.92). Ao romancista paraibano, João Cabral dedicaria um dos poemas do livro Agrestes: “Muito marcou o adolescente/ o que pareceu tua desarte/ vendo em livro o que tinha ouvido,/ bem antes de ouvir dos Andrades” (Melo Neto, 1995, p.558). Em diversos depoimentos, alinhado com a geração de 1930, o poeta defenderia o regionalismo e a existência de uma cultura nordestina: “O homem só é amplamente homem quando é regional. Se me tirar a estrutura ideológica do pernambucano, eu nada sou”; “O homem não chega ao geral sem partir do particular. Não se pode chegar ao nacional sem ser regional” (apud Athayde, 1998, p.86). De acordo com Cabral, era absurda a suposição de que pudesse existir um brasileiro “em geral”, atribuída por ele a Mário de Andrade:
Esta história de identidade nacional foi ele quem inventou. Esta história de fazer uma síntese do que “é” Brasil é coisa dele. Este “fusionismo” é bobagem. Se você pegar o Gilberto Freyre, a Casa-grande é um livro sobre o cotidiano da escravidão. Não quer sínteses. Por isso que é bom. (apud Athayde, 1998, p.137)
No campo da poesia, a batalha travada pela Geração de 45 se pautava pelo objetivo bem diverso de restaurar a linguagem poética rebaixada pelos modernistas. Os poetas surgidos no período recusaram o prosaísmo coloquial em favor de uma perspectiva mais formalista e aristocrática, como se pretendessem retornar ao velho parnasianismo. Na avaliação do crítico Álvaro Lins (1946), entre eles não havia nenhum talento realmente original. Apesar da ansiedade em libertarem-se do movimento modernista, estavam todos, segundo o crítico, ainda vinculados aos grandes poetas da fase anterior: “Nem todas as gerações estão destinadas a empresas revolucionárias” (ibidem). No entanto, Lins achou possível detectar alguma insurreição, mesmo discreta, no plano da linguagem poética. Se em 1922 a novidade era o informe, “o que é revolucionário hoje é o senso da forma, a construção artística”, concluiu o crítico.
Desde o seu aparecimento, em 1947, no Rio de Janeiro, a revista Orfeu divulgou a campanha dos “novíssimos” contra o que chamavam de “os gagás de 22” (Melo Neto, 2001, p.100). Outro órgão de combate era a Revista Brasileira de Poesia, lançada em São Paulo. O alvo preferencial dos ataques foi Drummond. Num artigo publicado na revista Joaquim, de Curitiba, em 1948, o poeta mineiro despertou a ira dos rapazes ao apontar a volta ao cartaz das “declamadoras” como a “primeira conquista séria da poesia dos novíssimos”. Disse ainda que, ressuscitando os sonetos com chave de ouro, haviam retrocedido ao tempo de Guimarães Passos e que, nesse epílogo da revolução modernista, logo as pombas voltariam aos pombais etc. “Quanto a nós, remanescentes da ‘escola’ vencida, os párias do verso livre”, ironizou Drummond, “tempo é de reconhecer a derrota. Eia, pois, irmãos! Amarremos a trouxa e, à sorrelfa, piremos” (Andrade, 1948).
No número de estreia da Revista Brasileira de Poesia, Tristão de Athayde, por considerar o movimento não uma ruptura, mas um prolongamento da poesia anterior, preferiu chamá-lo de “neomodernismo”. Já o crítico Sérgio Milliet procurou enfatizar o descompasso entre o ideário reacionário de 1945, restaurador de formas tradicionais, e a “poesia descabelada” de 1922, o que o levaria a atribuir ao movimento a qualificação oposta de “antimodernismo”. De acordo com Milliet (1948), o livro Psicologia da composição, de João Cabral de Melo Neto, era a comprovação do abismo existente entre os novos poetas e seus “antepassados revolucionários e antropófagos”. Em abril de 1948, Antonio Candido fez um discurso na abertura do I Congresso Paulista de Poesia. Comparando versos dos livros Pauliceia desvairada e O engenheiro, o crítico mostrou a diferença entre a “geração que procurava reconciliar-se com o mundo concreto” (Candido, 2002, p.165), à qual pertencia Mário de Andrade, e a tendência contrária para a evasão, a abstração e o mistério que definia a nova geração, da qual seriam típicos os poemas de João Cabral.
O poeta pernambucano também participou do debate. Na série de artigos intitulada “A Geração de 45”, publicada em 1952, logo após a apresentação da conferência “Poesia e composição”, Cabral observou que os novos poetas “encontraram já uma determinada poesia brasileira, em pleno funcionamento, com a qual era impossível não contar” (Melo Neto, 1995, p.745). Em outras palavras, no seu entendimento era impossível inventar um novo caminho: “Uma geração pode continuar a outra” (ibidem, p.742). Nas entrevistas, ao falar sobre a poesia contemporânea, insistiu que não se devia confundi-la com a “poesia de combate” dos modernistas. Enquanto esses haviam feito um trabalho importante de “limpeza do terreno”, o que competia à nova geração, segundo ele, era estender e consolidar as conquistas.
Na realidade, se os demais poetas, em seu desejo de afirmação, procuravam se distinguir da geração de 1922, João Cabral sabia que estava ligado àqueles antecessores como por um cordão umbilical. Foi graças à poesia modernista, lida pela primeira vez ao final da adolescência no Recife, que ele começou a escrever versos. A descoberta se deu na pioneira Antologia da língua portuguesa, de Estêvão Cruz, cujas primeiras cem páginas eram dedicadas à literatura da década de 1920. Três poemas então o impressionaram: “Não sei dançar”, texto de abertura do livro Libertinagem, de Manuel Bandeira; “Essa negra Fulô”, extraído de Novos poemas, de Jorge de Lima; e “Noturno de Belo Horizonte”, uma das composições mais importantes do Clã do Jabuti, de Mário de Andrade. A antologia trazia ainda outros poemas, além de textos críticos de Graça Aranha, Tristão de Athayde e Agripino Grieco, entre outros. No prefácio, o organizador justificava a decisão de iniciar a obra pela literatura contemporânea, alegando que assim estaria cumprida uma nova orientação do Ministério da Educação: “É preferível começar pelas obras modernas, porque somente elas, por mais comunicativas, provocam emoções sinceras e despertam o prazer dos estudos desta natureza” (Cruz, 1934, p.9). No caso de João Cabral, a estratégia se comprovou eficaz. Até então o adolescente tinha horror à poesia, porque as antologias não iam além da poesia parnasiana. O contato com o modernismo mudou completamente a sua visão.
No Diário de Pernambuco, o jovem poeta passou a ler não apenas as resenhas literárias de Agripino Grieco, favoráveis ao modernismo, mas também os editoriais de Assis Chateaubriand. Esse o agradava pela leveza de sua linguagem falada, informal, que fazia lembrar a escrita dos modernistas, conforme ressaltaria mais tarde, em 1969, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. De acordo com Cabral, era impossível que Chateaubriand não tivesse sido marcado, senão pelas teorias, ao menos pela dicção dos modernistas, “que lutavam para criar uma literatura que usasse uma língua mais aproximada da que se usa no Brasil” (Melo Neto, 1995, p.783), e depois, na década de 1930, pela prosa dos ficcionistas do Sul e do Nordeste.
No volume Pedra do sono, de forte caráter surrealista, além da dedicatória a Drummond, o próprio título, emprestado de um lugarejo no interior de Pernambuco, deixava evidente, como observou John Gledson (2003, p.177), a filiação do autor à tradição modernista: “Ele segue os passos de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, cujos Remate de males (1930) e Brejo das almas (1934) também aproveitam a poesia inesperadamente irônica de certos topônimos brasileiros”. Dentre os poetas modernistas, outra presença importante na poesia cabralina inicial é Murilo Mendes, que lhe ensinou a “imagem plástica”, a importância de “dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo” (apud Campos, 1992, p.80).
Nenhum poeta, entretanto, o influenciou tanto como Drummond, a quem dedicaria também O engenheiro, seu terceiro livro, depois de haver retomado, no segundo, Os três mal-amados, os personagens masculinos do poema “Quadrilha”, de Alguma poesia. Da obra drummondiana, ele teria assimilado não apenas a “maneira prosaica”, mas sobretudo a visão irônica, problematizadora da poesia e do eu lírico - entidade que em Pedra do sono se torna fantasmagórica, a um só tempo presente e ausente, um “eu morto”, objeto de contemplação, conforme registra o poema de abertura do livro. A atitude de autodepreciação do eu, geralmente cômica, vinha de poetas modernistas como Mário e Bandeira, tendo adquirido em Drummond, como mostra John Gledson, um novo grau de complexidade, que despertou o interesse do jovem poeta pernambucano. Da autocrítica do eu à negação do lirismo, seria apenas um passo.
Ao comentar os versos de Alguma poesia, Mário de Andrade (1974, p.33-4) deu ênfase ao combate entre sensibilidade e inteligência nessa “poesia de explosões sucessivas”, na qual a confissão lírica, sempre que se expandia, era desarmada pelo “diabo da inteligência”, por uma “reação intelectual”. Essa linha mais racionalista, em contraste com a tendência primitivista predominante nos periódicos modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, podia ser igualmente observada em A Revista, fundada em 1925 em Belo Horizonte. Nos artigos de Drummond, Emílio Moura e Martins de Almeida, seus fundadores, notava-se, a par do respeito à tradição e do gosto pela vida intelectual, o apreço por valores como equilíbrio, clareza e racionalidade.
A esse respeito, é interessante observar a crítica feita ao parnasianismo por Drummond. Em vez de considerá-lo, a exemplo de Mário de Andrade, como lírica recalcada, o poeta mineiro o censura justamente pelo contrário, a saber, o “excesso de poesia”, que em sua opinião “viciou o temperamento brasileiro”, nessa terra “tão abundante de lirismo” (Andrade, 1925, p.50-1). O que Drummond ataca não são os valores clássicos - ou a tendência intelectualista reprovada por Mário -, mas o uso banal e artificioso dos recursos poéticos. Já Emílio Moura (1925, p.17), no ensaio “Da poesia moderna”, faz a defesa da “autocrítica rigorosa” e do trabalho vigilante, acrescentando que no lirismo a inteligência tem ação permanente: “A análise ilumina-o na sua objetivação. Intelectualismo puro? Essa tendência é uma face curiosa da poesia moderna”.
Embora dedicado ao mestre mineiro - “A Carlos Drummond de Andrade, meu amigo” -, O engenheiro foi lido posteriormente como início da superação das influências modernistas na poesia de João Cabral, que a partir de então tomaria como modelo a arquitetura moderna de Le Corbusier, valorizada por defender os princípios da racionalidade e da funcionalidade. Enquanto Drummond publicava A rosa do povo, seu último livro de poesia social e, ao mesmo tempo, ápice de sua lírica modernista, iniciada nos anos 1920, o poeta pernambucano parecia abandonar o diálogo com os primeiros modernistas, “destruidores”, em favor de uma adesão ao momento construtivo do modernismo brasileiro, representado pelas obras de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. “Este é o ‘engenheiro’ que lhe apresento, sem saber se você fará dele um seu amigo”, escreveu em 1943 em carta a Drummond, quando lhe enviou a primeira versão do poema que daria título ao novo livro (Melo Neto, 2001, p.191). “A água, o vento, a claridade/ de um lado o rio, no alto as nuvens,/ situavam na natureza o edifício/ crescendo de suas forças simples”, diz a estrofe final do poema (Melo Neto, 1995, p.70). A comparação entre “O engenheiro” e “Edifício Esplendor”, do livro José, publicado um ano antes pelo poeta mineiro, mostra grandes diferenças, como ressaltou John Gledson. No lugar do entusiasmo com o “mundo justo” sonhado pelo engenheiro, “Edifício Esplendor” revela a decepção com a vida desumanizante experimentada nessas construções modernas: “Entretanto há muito/ se acabaram os homens./ Ficaram apenas/ tristes moradores” (Andrade, 1992, p.81).
A relação entre dois poemas importantes - o drummondiano “A flor e a náusea”, de A rosa do povo, e o cabralino “Antiode (contra a poesia dita profunda)”, de Psicologia da composição - também foi apontada pela crítica. No primeiro caso, temos o nascimento inesperado de uma flor, que fura o asfalto da cidade num tempo de guerra e ditaduras, pobre e injusto: “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera” (Andrade, 1992, p.97). No segundo, publicado dois anos depois, reaparece a associação entre flor e fezes: “Poesia, te escrevia:/ flor!, conhecendo/ que és fezes. Fezes/ como qualquer” (Melo Neto, 1995, p.98). No final dos anos 1940, o que interessava a Cabral era rejeitar os conceitos de “sublime” e “transcendental” que atraíam os poetas de 45 e também os que pertenciam à geração anterior, como Drummond, que após a experiência do engajamento se deixara seduzir pelos mesmos valores. A partir de então, Cabral procuraria ser mais modernista que os próprios modernistas: “Criou uma linguagem dessublimada, na esteira de A rosa do povo, ao passo que Drummond incorporou parcialmente o sublime, que estava na moda” (Moriconi, 2002). Em sentido inverso, Cabral apostaria na radicalização de sua poesia antilírica: “Poesia, te escrevo/ agora: fezes, as/ fezes vivas que és” (Melo Neto, 1995, p.101).
“Poesia e composição”, a mencionada conferência de 1952, escrita depois que a relação e a correspondência entre os dois, antes tão amistosa, já havia esfriado, também dialoga com Drummond. Ao afirmar que a composição poética “para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura” (Melo Neto, 1995, p.723), Cabral alude diretamente ao poema “Procura da poesia”, de A rosa do povo - referência que será desdobrada, negativamente, alguns parágrafos adiante. Se a primeira alusão parece indicar uma identificação, a segunda, ao contrário, manifestará um dissenso. Segundo o conferencista, a atitude mais comum entre os poetas, especialmente na literatura brasileira, “é a atitude do poeta que espera que o poema aconteça, sem jamais forçá-lo a ‘desprender-se do limbo’” (ibidem, p.730). Em “Procura da poesia”, Drummond havia escrito: “Não forces o poema a desprender-se do limbo./ Não colhas no chão o poema que se perdeu” (Andrade, 1992, p.96).
Na trajetória drummondiana, segundo José Guilherme Merquior (2012, p.56-7), teria havido uma passagem da “poética do vivido” - na qual o poeta, limitando-se a uma “concepção pré-técnica” da poesia, entendida como “poesia-acontecimento”, é mais um receptor do que um criador dos seus versos - para uma compreensão mais voltada à experiência da linguagem e às dificuldades do processo de composição. No poema “O lutador”, de José, emerge uma concepção dramática, oposta à poética mais espontânea do primeiro Drummond - o Drummond modernista, que, a despeito de sua “tendência anticonstrutiva”, seria curiosamente o predileto tanto de João Cabral quanto dos poetas concretos. Na opinião de Cabral, a partir de Sentimento do mundo o poeta mineiro teria “desbocado” e se tornado “discursivo” como Pablo Neruda - “saiu da atmosfera modernista do poema curto e parodístico”, nas palavras de Affonso Romano de Sant’Anna (2014, p.34). Em depoimento a Ferreira Gullar (2020), ao comentar sua incapacidade para fazer uma “poesia fluente”, o poeta pernambucano acrescentou: “O tipo de poesia que sou capaz de fazer é aquele do primeiro Carlos Drummond e até hoje eu mantenho isso”. O que os distanciava era a noção de “poesia-acontecimento”, que para Cabral se manteve mesmo na poesia drummondiana madura - a atitude de espera tranquila, paciência e resignação, aconselhada em “Procura da poesia”.
Na década de 1950, porém, a poesia cabralina deixou de ser apenas “construção”, abstração e hermetismo, para empreender um retorno à realidade e à vida. Embora seu nome ainda fosse apontado não apenas como representante, mas como “chefe de fila da geração de 45”, João Cabral se sentia cada vez mais distanciado daquele grupo de poetas. Passara a desprezar o idealismo, o esteticismo, as palavras abstratas, a busca do sublime. Desejava introduzir na sua poesia o vocábulo prosaico, “pesado de realidade, sujo de realidades inferiores” (Melo Neto, 1995, p.752). Nisso seguia de perto seus modelos das décadas de 1920 e 1930, matriz a que fora reconduzido após uma vivência de três anos em Barcelona, marcada por contatos intensos tanto com a ideologia marxista quanto com a poesia primitiva espanhola.
Foi em Barcelona que Cabral escreveu O cão sem plumas, sua primeira obra voltada à realidade brasileira. “Ando com muita preguiça e lentidão trabalhando num poema sobre o nosso Capibaribe. A coisa é lenta porque estou tentando cortar com ela muitas amarras com a minha passada literatura gagá e torre-de-marfim”, escreveu o poeta em 1949, em carta a Manuel Bandeira (Melo Neto, 2001, p.114). Prova da reviravolta foi a sua nova opinião sobre a arte abstrata, que na Europa ele passara a rejeitar, a exemplo do “neoparnasianismo-esteticismo da geração de 45”. Na correspondência com Bandeira, o poeta afirmou que “ser abstrato é trágico e ridículo para um brasileiro”, visão que também o aproximava da pintura figurativa das décadas anteriores. Para ele, estava claro que, na Europa, Mário de Andrade e Manuel Bandeira interessavam mais do que os escritores “espiritualistas” e “introspectivos abstratos”. A guinada também foi registrada por Drummond nas páginas do Correio da Manhã. Ao fazer o balanço literário de 1950, o poeta mineiro destacou O cão sem plumas, observando que o livro continha uma “essência de Brasil que muita obra pretensamente nacional não seria capaz de revelar-nos” (Andrade, 1951).
Em 1952, de volta ao Brasil, João Cabral afirmou em textos e entrevistas o fracasso da Geração de 45: “O movimento de 45 está, praticamente, morto. Pecava pela falta de contato com o popular, com a realidade. Procurarei fazer com a poesia o que fizeram os autores do romance de 30” (Portella, 1952). Os elogios à literatura regionalista dos anos 1930 se alternavam com as referências à poesia modernista: “Na verdade, as possibilidades do terreno aberto pelo modernismo longe estão de esgotadas”, escreveu na série de artigos “A geração de 45”, publicada no Diário Carioca (Melo Neto, 1995, p.743). Sem desconsiderar a influência da literatura estrangeira - primeiro a francesa, no Recife, depois a espanhola e a inglesa -, o poeta, por meio dessa atualização do modernismo, realizou então o que Antonio Candido chamaria de “superação da dependência”, isto é, a capacidade de produzir grandes obras influenciadas “não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores”. Em outras palavras, Cabral vinha confirmar a importância de estabelecer “causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados às outras culturas” (Candido, 1989, p.153).
Em 1953, a publicação de O rio renovou o ataque ao refinamento estético e à “poesia dita profunda” da Geração de 45. “Tentei fazer um livro poético com assuntos considerados não poéticos, uma reação contra o rumo que tem tomado grande parte da poesia atual”, explicou o poeta (cf. Laclette, 1953). Em depoimento concedido no mesmo ano a Vinicius de Moraes (1953), quando esse lhe perguntou como, para ele, se conhecia um poeta, Cabral respondeu: “Pela maneira como ele introduz a prosa na poesia. Sou contra poemas com temas e palavras reconhecidamente poéticas”. Estava restaurada a batalha modernista contra a linguagem elevada, a pose aristocrática, o “estilo doutor”, a literatura de gabinete que ainda resistia no Brasil, apesar da renovação estabelecida nas décadas anteriores.
Uma conexão surpreendente entre a poesia cabralina dos anos 1950 e a obra de Mário de Andrade foi proposta por Lêdo Ivo. Em seu entender, as “nascentes” dos poemas cabralinos sobre o Capibaribe, O cão sem plumas e O rio, deveriam ser buscadas na “Meditação sobre o Tietê”. Longe de qualquer bucolismo, ambos os poetas teriam construído a realidade do “rio-esgoto”, de águas pesadas e sujas, transformadas em latrina das cidades que atravessavam (apud Cardeal, 2017). Entretanto, João Cabral negava qualquer proximidade e dizia mesmo jamais ter lido o poema de Mário de Andrade. Em face do autor de Macunaíma, manteria sempre uma posição arisca, fruto de uma relação desencontrada,1 que não lhe permitia reconhecer, naquele período em que tanto enfatizava a dimensão social da arte e o combate ao individualismo, as suas diversas afinidades com o pensamento estético de Mário. A partir da década de 1930, esse manifestara enfaticamente a valorização do artesanato como um modo de controlar a “desmedida inflação e imposição do eu” (apud Cardeal, 2017), presente na obra de tantos poetas brasileiros. Com a divulgação dessas ideias, pretendia mostrar que o modernismo não era, como muitos pensavam, sinônimo de improviso e anarquia.
Entre os ensaios escritos por Cabral nos anos 1950, “Poesia e composição” e “Da função moderna da poesia”, e os que foram produzidos anteriormente por Mário de Andrade, como “O artista e o artesão”, havia um nítido parentesco. No final dos anos 1930, o líder modernista fazia críticas ao formalismo, visto como sinônimo de individualismo, mas também reprovava a ignorância da arte da linguagem. “Desapareceram os artistas do verso, e, o que é pior, poesia virou inspiração” (Andrade, 2002, p.22), afirmou, em artigo sobre a poesia de Vinicius de Moraes, referindo-se aos novos poetas espiritualistas. Na contramão da lírica desvairada, agora a espontaneidade produzia desconfiança: “Ora, poesia é uma arte também, e isso de cantar como sabiá só fica bem para os sabiás do mato” (ibidem).
Em um artigo intitulado “Permanência de Mário e do Modernismo”, Willy Lewin (1960), líder do grupo literário pernambucano ao qual pertenceu João Cabral em sua juventude, observou que, durante muito tempo, a crítica reclamou do excesso de “intelectualismo” do autor de Clã do jabuti e era frequente o juízo segundo o qual “o espírito ‘crítico’ de Mário de Andrade prejudicava o poeta”. Trata-se da mesma crítica que depois se tornou rotineira no caso da poesia cabralina. A esse respeito, cabe destacar ainda a presença de Le Corbusier - autor da epígrafe do livro O engenheiro, “machine à émouvoir” - no volume A escrava que não é Isaura, onde aparece, em letras garrafais, a frase “A OBRA DE ARTE É UMA MÁQUINA DE PRODUZIR COMOÇÕES”. Um dos editores da revista francesa L’Esprit Nouveau, Le Corbusier, bem antes de ser eleito por Cabral, foi uma das matrizes da estética modernista (cf. Cardeal, 2017). Em nota de rodapé, motivada pela citação, Mário acrescentou a observação de Edgar Alan Poe, na Filosofia da composição, segundo a qual o poema “O corvo” fora construído “com a precisão e a rigidez dum problema de matemática” (Andrade, 2009, p.294).
A distinção entre lirismo (hipertrofia do autor em detrimento da obra, despreocupação formal) e arte (trabalho coerente, elaboração estética) estava presente desde cedo no pensamento de Mário de Andrade. O “trabalho de arte” foi enfaticamente defendido em carta enviada em 1940 a Alphonsus de Guimaraens Filho: “O que você tem, sobretudo, é de escrever muito, muitíssimo, forçar mesmo a chegada da poesia, gastar seu estado de poesia de até fazer sangue” (apud Goh, 2013, p.216). O poema forçado - e não inspirado ou pacientemente esperado - retornaria depois na conferência de Cabral, para quem era necessário, como vimos, forçar o poema a “desprender-se do limbo”.
Outras afinidades, em campos diversos, aproximavam João Cabral e Mário de Andrade. Uma delas foi a recusa da língua e da tradição cultural francesa. O poeta pernambucano se interessou pelas literaturas das línguas espanhola e inglesa, que considerava mais concretas e objetivas. Já a literatura e a língua dos franceses eram, a seu ver, demasiado rígidas e não tinham grande contribuição a dar aos brasileiros, como também pensava o autor de Macunaíma. Quando vivia em Barcelona, Cabral estranhou a arquitetura escultórica e decorativa de Antoni Gaudí, que nada tinha de funcional. Opinião curiosamente parecida com a de Mário de Andrade, que também estranhava as extravagâncias de Gaudí, acusando sua obra de ser menos arquitetura do que um “desapoderado espírito separatista” (apud Cardeal, 2017). Para ambos, o excesso de personalidade era o que estragava.
A obsessão pelo sono também os aproximava. No ensaio “Amor e medo”, Mário de Andrade (1974, p.223), analisando a poesia de Álvares de Azevedo, associa sono e lirismo - “O sono é a mais original invenção do seu lirismo” -, temas do primeiro texto teórico de João Cabral, “Considerações sobre o poeta dormindo”, e do seu livro de estreia, Pedra do sono. Já a situação narrativa de O rio - o discurso do Capibaribe, que vê o poeta como “o escrivão/ que foi escrevendo o que eu dizia” (Melo Neto, 1995, p.128) - parece fazer eco ao epílogo de Macunaíma, no qual o narrador revela que a história fora contada a ele por um papagaio que, por sua vez, a tinha ouvido do próprio herói. A mescla da ficção com nomes e dados da realidade, que ocorre com frequência na rapsódia de Mário, é um recurso também utilizado nos poemas cabralinos da década de 1950. Ao resenhar o volume Duas águas, Eduardo Portella (1956) opinou que Morte e vida severina, “a primeira peça caracteristicamente brasileira”, era a correção do “equívoco modernista”, que aparecia em Macunaíma e Cobra Norato, de tentar realizar, com técnica europeia, uma obra nacional. Mais do que uma correção, a conquista dessa “originalidade consciente, ‘situada’”, no dizer do crítico, poderia ser considerada um alargamento da contribuição modernista.
Em entrevista ao Jornal de Letras, em 1953, ao comentar os rumos tomados pela literatura brasileira, que para ele vivia um “péssimo momento”, em virtude do predomínio da poesia e da preferência generalizada pelo tratamento lírico na crônica e no romance, João Cabral fez referência a outra passagem importante da obra de Mário de Andrade. Em sua opinião, os escritores teriam perdido leitores por haverem se afastado de seus assuntos, que haviam se tornado perigosos desde a implantação do Estado Novo. A partir daquele ano de 1937, até mesmo os nordestinos aderiram ao romance psicológico, criando personagens fracassados e ensimesmados - complementou o poeta, retomando os termos da reflexão feita por Mário de Andrade no ensaio “A elegia de abril”, publicado em 1941 no primeiro número da revista Clima.
Nos anos 1940, na correspondência com Drummond, João Cabral há havia feito alusão ao texto, com uma ressalva significativa: “O ar de derrota não é nenhuma perversão nacional, mas simplesmente o tom de qualquer pessoa falando sozinha” (Melo Neto, 2001, p.205), afirmou o poeta, acrescentando que a literatura, em vez de refletir a miséria, deveria ser vista como “sorriso da sociedade”, um “veículo de alegria, saúde”, que desse coragem para a luta. Já na década de 1950, a alusão a Mário de Andrade servia como apoio para a crítica à nova geração do “romance psicológico”, que para ele era um “abrandamento da célebre geração ‘Elegia de abril’”, pois “dos romancistas que voltam para o quarto passamos aos que já não saem de si mesmos” (Melo Neto, 1953a). Era lamentável, em sua opinião, que tivesse ocorrido a “desintegração do romance pelo lirismo e pela vagueza psicológica” (Melo Neto, 1953b). Em todos os gêneros, o que passou a predominar foi o lirismo, presente tanto nas fantasias arbitrárias de Murilo Rubião como nas pesquisas de linguagem realizadas por Clarice Lispector, conforme observou no artigo “Esboço de panorama”, publicado também em 1953 pelo tabloide Flan. Pela voz de João Cabral, podemos depreender o que seriam as falas de Mário de Andrade a respeito da nova geração.
A leitura de “A elegia de abril” o acompanhou por muitos anos, como se nota ainda em sua correspondência com Otto Lara Resende, na qual o poeta, em 1959, voltou a exprimir seu desagrado com os “romances vazios do nosso país” (apud Martin, 2013, p.26). A exemplo desse ensaio, a figura do próprio escritor parecia mesmo constituir uma de suas ideias fixas. Quando vivia em Barcelona, uma das ideias de livros que teve para impressão em sua prensa manual, comunicada em carta a Lauro Escorel, foi uma seleção de poemas de vários autores sobre a morte de Mário de Andrade. Em cartas ou entrevistas, João Cabral se lembrava com frequência do seu desafeto, convertido em fixação. Tal como Bandeira, Mário para ele era um abridor de caminhos. Conforme diria mais tarde, ambos eram “bois de cambão” que, por puxar o carro, se distinguiam dos “bois de coice”, que na descida da ladeira se encarregavam de freá-lo (Melo Neto, 1996, p.23). O seu modo de ver o caso de Drummond era diferente: boi de cambão no princípio, o seu mestre de outrora teria acabado como boi de coice.
Nos anos 1950, o combate cabralino à Geração de 45 seria engrossado pelos ataques dos poetas concretos, que entraram ruidosamente em cena no mesmo ano em que o poeta pernambucano publicou Duas águas. O concretismo, sem prejuízo de seu caráter internacional, empreendeu a retomada do diálogo com 1922, à qual dariam continuidade posteriormente outros artistas e movimentos, em diversos setores da cultura brasileira. Na visão de Cabral, o concretismo havia dado ao Brasil uma “extraordinária consciência crítica” e passara a desempenhar “um papel idêntico ao de Mário no seu tempo” (apud Athayde, 1998, p.21). O poeta chegaria a dizer que o movimento era mais importante e atualizado do que o modernismo de 1922. Orgulhava-se de ser visto pelos concretos como um precursor. Na verdade, surgindo e se consagrando entre dois modernismos, o dos anos 1920-1930 e o dos anos 1950-1960, João Cabral influenciou não apenas as novas vanguardas construtivistas, mas também a poesia e outras formas de arte participante, estando na base do lirismo “sujo/ como a miséria brasileira” de Ferreira Gullar (2008, p.296). “Continuador original” dos modernistas, Cabral foi, portanto, uma peça fundamental no aprofundamento e na atualização do movimento hoje centenário.
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Nota
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1
Em entrevista de 1987, João Cabral comentou suas desavenças com Mário de Andrade: “O Mário de Andrade... Uma vez eu estava com o Breno Accioly no Rio de Janeiro, em 44. Eu cheguei ao Rio em 42, e o Accioly disse: ‘Você não quer conhecer o Mário de Andrade, ele está aí no Hotel Natal, na Cinelândia.’ Eu disse: ‘Vamos’. Eu já tinha publicado dois livros e havia mandado para ele. O Breno me apresentou a ele, e o Mário de Andrade não fez a menor referência. A indiferença dele pela minha poesia era um negócio, tanto que uma das coisas que eu acho mais engraçadas é que tenho a impressão que sou o único poeta da minha geração no Brasil que não recebeu uma carta de Mário de Andrade, que não há nenhum sujeito em Bodocó que tenha mandado um livro para Mário de Andrade, para quem ele não tenha escrito. Ele nunca me mandou uma palavra e quando me conheceu, era como se eu fosse o caixa do açougue...” (Cardoso, 1987).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
12 Dez 2021 -
Aceito
20 Dez 2021