Open-access A compreensão feita de diálogos e silêncios

“Horrível semelhante enormidade arrumar-se no coração da gente.”

Acompanhadas fatalmente de lágrimas, tais palavras do fim do conto “Minsk”, do volume Insônia (1947), moram na nossa memória de leitores de Graciliano Ramos: partilhamos do amor da pequena Luciana por sua jandaia Minsk, maravilha capaz de cores e de voos, para então experienciarmos com ela a dor sem fim do periquito morto sob seus pés. Dolorosamente belo, o conto antológico nos provoca esse soluço: como pode suceder isso, quem diria que o gosto de Luciana pela liberdade e sua alegria lúdica de caminhar de costas poderiam redundar no infortúnio de pisar o ser amado e tirar-lhe a vida?

Pequeno o coração de Luciana e o de toda a gente para encontrar rumo e suportar tamanho sofrimento, a palavra escolhida por Graciliano para sintetizar os passos de Luciana, “enormidade”, concentra o sentido do desmesurado, da dor desproporcional, e, etimologicamente, significa “o que foge à norma”. A menina fugia às convenções em seu entusiasmo ao brincar; mas também não é normal, e sim trágico, ter sido a causa da morte da própria ave querida, feita de beleza e fragilidade.

Escrito em julho de 1941, com o nome do gueto então estabelecido na cidade homônima quando da ofensiva alemã contra a União Soviética, o conto “Minsk”, provocando comoção, pede cuidado e atenção para com todos os viventes, para que nenhum seja pisado. Ciente do valor ético e estético do conto, Ricardo Ramos Filho, escritor dedicado ao público infantojuvenil e estudioso em especial de A Terra dos Meninos Pelados (1937), criação de Graciliano voltada a esse público, entreviu na narrativa “Minsk” um livro também para crianças e jovens, e a obra saiu em 2013 pela Galera Record, com ilustrações de Rosinha.

A transformação do suporte do texto, do volume de contos para a autonomia de obra ilustrada, baseou-se na integridade do escrito de Graciliano Ramos, com seu potencial de traduzir em imagens e cores a compreensão recíproca entre Luciana e o periquito, como a existente entre o Menino Mais Velho e a cachorra Baleia em Vidas secas (1938). E incluía o desafio de oferecer ao público infantojuvenil o elemento trágico, a morte da ave, desastre da menina.

Significativamente, no momento em que vem estudando a adaptação de clássicos como Minsk para crianças e jovens, Ricardo Ramos Filho se lançou ao mesmo tempo no caminho inverso e escreveu sua obra de estreia para o público adulto. Neto de Graciliano Ramos e filho de Ricardo Ramos, o autor de Conversa comigo (Penalux, 2019) carrega a genética não apenas física como também cultural, literária, ética e política; mas se calculam os impasses de seu percurso, traduzíveis com palavras de “Minsk”: imagine-se semelhante “enormidade” artística familiar, extraordinária, arrumar-se no coração e na consciência da gente!

Desde a crônica de abertura, que nomeia o volume de 44 textos de Ricardo, prefaciado por Edmar Monteiro Filho, delineia-se uma dialética entre conversar consigo, refletir, e dialogar com o outro, tendo por base e horizonte um olhar crítico e os sonhos, que seguram, como na epígrafe de Saramago, “o mundo na sua órbita”. “Conversa comigo”, no conto, é uma interpelação feita pela mulher, pedido incisivo e afetuoso para que o marido partilhe seus pensamentos e sentimentos. Com o verbo na segunda pessoa, o imperativo do título se estende aos leitores, em busca de ações de companheirismo, de escuta. Ao mesmo tempo, conversa comigo contém o substantivo do monólogo essencial, os silêncios de reflexão e incomunicabilidade pressupostos em meio aos diálogos. A conversa cotidiana do casal, com suas trocas truncadas, entre football e flamboyant, estabelece o tom de humor e sabedoria da crônica, convite para percebermos o óbvio difícil: cada pessoa tem seus interesses, diferenças de gosto, mas ao mesmo tempo podem estar juntas, com sua singularidade respeitada, criando diálogos acompanhados do silêncio pleno de amor e companheirismo.


O escritor Graciliano Ramos (1892-1953).

Em “Macaco-prego”, de carona com o olhar do motorista e suas canções ouvidas no carro, surpreende-nos um inusitado símio andando de mãos dadas com um homem ao celular, na calçada de um bairro rico de São Paulo. Até identificar que o menino suposto de longe era um macaco-prego, o cronista externa sua indignação com o fato cotidiano de as crianças, bem como os animais, serem preteridos a favor do aparelho celular. Junto com a carga afetiva de quem ama crianças e bichos, Lucianas e Minsks, a leveza da crônica traz a agudez de quem reconhece a realidade, em especial brasileira, de desigualdades sociais, exploração e conchavos políticos; e o estilo conciso traduz as contradições, ainda mais escancaradas quando da greve de caminhoneiros de 2018, entre o fluir em discursos falsos e fruir de privilégios, dos poderosos, e o paralisar-se em escassez, da maioria: “Seguem dominado e dominante. Como é tão comum no Jardim Paulista”; “E sigo meu caminho pelas ruas vazias que os caminhões inventaram”.

Demanda igualmente conversa a existência de mendigos: destaco a arte de “Recordações de um outro tempo”, “Oi, amigos!” e “Outono” que, dando voz à busca por sobrevivência e à morte desses viventes, ecoam nossa dor social e existencial.

“Eu, triste, você, violenta”: como um refrão, dirigido a São Paulo na crônica que leva o nome da cidade, tais palavras expressam a identificação do escritor com o espaço em que escolheu viver, invadida pela constatação dura de terem ambos envelhecido mal. Ao pedido de conversa, o leitor aqui acode em silêncio melancólico: a sofisticação de avenidas e restaurantes da capital paulista de fato se apaga quando as pessoas não são mais amáveis, o trânsito e a poluição pesam, amigos sofrem sequestro relâmpago; mas, junto com Ricardo, ainda é possível admirar ipês e a algazarra resistente das maritacas.

Assim, o convite é para dialogar com essas e outras belas crônicas, como “Irmãozinho”, “Feedback”, “Rua Simpatia”, “Nada de novo na fronte”, “Caixa eletrônico”, “Atrás dos meus sonhos”, “Juninho”, “Velório”, “Questão de pedras”, “Ano vindouro”… Entre a introspecção, a projeção do eu e o desejo de respostas, ansiando por transformar o mundo cheio de injustiças, Ricardo Ramos Filho, depois de oferecer as cores de Minsk a mais leitores, exerce e partilha conosco a responsabilidade de escrever, de abrir conversas com crianças e com adultos. Para arrematar, se em “Leilão” não alcançou uma primeira edição de Vidas secas autografada para o bisavô Américo, nestes registros poético-críticos da memória e dos fatos cotidianos deu mais da arte de Graciliano e Ricardo Ramos, continuando seus sonhos.

Referências

  • RAMOS, G. Minsk. Ilustrações de Rosinha. Rio de Janeiro: Galera Record, 2013.
  • _______. A Terra dos Meninos Pelados [1937]. Ilustrações de Jean-Claude Ramos Alphen. Rio de Janeiro: Galera Record, 2014.
  • _______. Minsk. In: Insônia. [1947]. 32.ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.
  • RAMOS FILHO, R. Conversa comigo. Guaratinguetá: Penalux, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2020
  • Aceito
    21 Dez 2020
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