RESUMO
Este artigo discute as imbricações do contexto tecnológico contemporâneo com o consumo e a comunicação publicitária no cenário brasileiro. Para isso, partimos de uma revisão teórica sobre a expansão acelerada da tecnologia digital, que, se, por um lado, trouxe, inicialmente, promessas democráticas e inclusivas, com o amplo acesso e compartilhamento de informações; por outro, ao longo do tempo, provocou efeitos nocivos, sobretudo em âmbito social, político e ideológico. O consumo insere-se nessa discussão de forma central, já que a posse e a manipulação de dados e algoritmos ocorrem por poucas e poderosas empresas privadas globais, que têm seu modelo econômico baseado na publicidade. Finalmente, apresentaremos ações mercadológicas que exemplificam a posição periférica dos consumidores-cidadãos do país neste debate.
PALAVRAS-CHAVE: Consumo; Comunicação; Vigilância; Publicidade; Tecnologia
ABSTRACT
This article discusses the imbrications of the contemporary technological context with consumption and advertising in the Brazilian scenario. For this, we start with a theoretical review on the accelerated expansion of digital technology, which, on the one hand, initially brought democratic and inclusive promises, with broad access and sharing of information; on the other hand, over time, it had harmful effects, especially in the social, political, and ideological spheres. Consumption is centrally part of this discussion, since the possession and manipulation of data and algorithms occur by a few powerful global private companies, which have their economic model based on advertising. Finally, we will present market actions that exemplify the peripheral position of the country’s consumer-citizens in this debate.
KEYWORDS: Consumption; Communication; Surveillance; Advertising; Technology
Introdução
Por mais que se saiba que a discussão polarizada entre a tecnofilia e a tecnofobia seja ultrapassada - dado que já não se trata (se é que um dia se tratou) de se ter ou não a presença do que vulgarmente vem se chamando de “tecnologia” na vida das pessoas; uma vez que dificilmente se consegue delimitar com clareza do que é que se está falando quando se assume um lado nessa discussão; mas também por essa polarização se revelar dicotômica, simplista, conveniente, infrutífera e, no limite, contraproducente -, ainda assim se nota a prevalência de duas visões predominantes sobre a relação entre as tecnologias ligadas ao digital e as dimensões individuais, sociais, culturais e políticas da vida.
Por um lado, discutem-se os avanços tecnológicos ligados ao digital, destacando novidades como a Inteligência Artificial (IA), a internet das coisas (IoT), o big data, os algoritmos e o metaverso, quase sempre a partir de um ponto de vista mais neutro ou elogioso, privilegiando aspectos técnicos, práticos, cotidianos e mercadológicos. Por outro, emergem questionamentos sobre o direito à privacidade, a propriedade de dados digitais de usuários, a cultura da vigilância e o controle desses dados digitais por empresas privadas e governos, no mais das vezes a partir de um ponto de vista crítico, que se concentra em aspectos sociais, econômicos e políticos. Não se trata, entretanto, da mesma visão dicotômica de antes. Estamos agora sob o signo da ambiguidade, da complexidade e do paradoxo, de modo que causas e efeitos se intercambiam, elogios e críticas se compensam, havendo a necessidade de se pensar essas novas possibilidades tecnológicas por diferentes perspectivas, com distintas abordagens teóricas.
As possibilidades para pensar o digital na contemporaneidade apontam para múltiplas perspectivas e olhares. Para este artigo, concentraremos nossa atenção em destacar imbricações do cenário tecnológico com a comunicação, o consumo e a publicidade, e suas interações que levam a alterações na linguagem e nos processos de midiatização, isto é, uma lógica de transformação social na mediação dos dispositivos comunicacionais, sobretudos os digitais, que passam a construir ou delinear os sentidos de realidades (Couldry; Hepp, 2017).
Este artigo deriva das atividades acadêmicas desenvolvidas na Cátedra Oscar Sala, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), realizadas durante o ano 2021, sob a coordenação da Catedrática Lucia Santaella, tendo por temática maior “As novas condições da interdisciplinaridade em tempos de simbiose humano-tecnologias”. Nosso objetivo, como grupo de pesquisa, foi pensar os fenômenos tecnológicos ligados ao digital em articulação com os seus efeitos na política e na cultura, por exemplo. Durante as discussões e debates da Cátedra, conseguimos perceber a relevância de se entender as lógicas de representação desses fenômenos ditos tecnológicos a partir dos processos das mediações do consumo (Perez; Trindade, 2019), já que marcas e publicidade materializam em seus discursos as lógicas simbólicas que se instauram na percepção das potências de sentidos das tecnologias para o imaginário dos consumidores numa dada sociedade - a saber, essa nossa, contemporânea, brasileira, latino-americana.
Partimos de uma revisão bibliográfica com obras de destaque produzidas na última década, alinhada aos estudos desenvolvidos no decorrer da Cátedra, sobre tecnologia, vigilância e visibilidade. Neste artigo, propomos uma discussão específica sobre esses assuntos aplicados à tecnologia, ao consumo e à publicidade no contexto periférico brasileiro, apresentando os pontos mais relevantes na produção acadêmica atual desses temas, pautados por autores nacionais e internacionais selecionados que nos permitem realizar esse enfoque, deixando de lado uma visão mais dicotômica e assumindo aqui um perfil de maior complexidade, menos conclusivo, e cada vez mais crítico. Na sequência, adentramos mais especificamente o cenário tecnológico brasileiro, com a apresentação de informações empíricas de consumos midiáticos digitais e seus usos por empresas e marcas em ações que envolvem a IoT e aplicativos. Com isso, buscamos exemplificar a posição periférica dos consumidores-cidadãos do país nesse debate, e que refletem as discussões teóricas atuais sobre a tecnologia e suas contradições ante a exclusão digital, bem como as práticas midiatizadas pelas marcas que moldam o consumo e que constituem novas formas de visibilidade, aceitação da vigilância e reforço de desigualdades no cotidiano brasileiro.
Tecnologia, vigilância e visibilidade
A produção acadêmica sobre o contexto tecnológico é caracterizada pela amplitude e pela efemeridade em razão da natureza evolutiva do objeto estudado, que é alterado frequentemente a cada inovação tecnológica. Podemos afirmar que são muitas as dificuldades para acompanhar “os passos cambiantes do mundo digital e as transmutações socioculturais e psíquicas que ele provoca. Mas, sem escapatória, os riscos têm de ser assumidos” (Santaella, 2013, p.20). Por isso, mais que discussões conclusivas, há frequentemente aberturas para novos olhares e indagações, em posições mais ou menos otimistas e ativistas, o que mostra um terreno em construção, ainda pouco estável e sujeito a muitos desdobramentos, mas que precisa ser desbravado.
Os estudos que têm a tecnologia como aspecto central têm uma tradição extensa, e que não poderia ser abarcada a contento num único artigo pela multiplicidade de perspectivas. Isso ocorre porque o digital atua como camada invisível e onipresente nas realidades vivenciadas pelos sujeitos nas suas práticas no cotidiano. Nelas, processos de dataficação são desenvolvidos para diferentes finalidades e interesses, num “emaranhado confuso de geopolítica, finança global, consumismo desenfreado e acelerada apropriação corporativa dos nossos relacionamentos mais íntimos” (Morozov, 2018, p.7). Nesse ambiente de informação e comunicação ubíqua, destacamos a dimensão econômica e comercial, que tem a publicidade e o consumo como objetivos na utilização de dados para monitorar e manipular comportamentos desejados pelos interesses do capital. Esse conceito, conhecido como “Capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2021), tem como ponto de partida a evolução histórica do capitalismo e a transformação de sua lógica com o digital e as chamadas big techs. A sociedade, via ação dessas empresas, foi direcionada a criar uma relação de forte dependência com tais tecnologias ao adotar rapidamente dinâmicas comunicacionais e informacionais que são transformadas em uma quantidade de dados comercializável sem precedentes, pois a concepção dessas tecnologias atende o que Muniz Sodré (2014, p.56) configura como uma nova forma de aparência das lógicas de financeirização do capital.
Noutra esteira complementar a essa discussão, Yuk Hui (2020) ressalta que existe um equívoco geral de que todas as técnicas são iguais, de que as habilidades e produtos artificiais de todas as culturas podem ser reduzidos a uma coisa chamada tecnologia. E, de fato, é quase impossível negar que as técnicas podem ser entendidas como extensão do corpo ou externalização da memória. No entanto, podem não ser percebidas ou refletidas da mesma forma em diferentes culturas (Hui, 2016, p.9). Portanto, há diferentes percepções e formas de apropriações em contextos distintos, como as que ocorrem nas periferias de consumidores de tecnologia do Brasil.
O conceito de “cosmotécnica” do referido autor diz respeito às tecnologias desenvolvidas em contextos locais, pertencendo e definindo certo cosmos cultural, cuja retomada permitiria pensar numa filosofia da nova era, em conjunto e pela diversidade técnica, tecnológica, política e cultural. A cosmotécnica delineia, portanto, de entrada, a relação entre a tecnologia e a localidade, ou seja, uma busca dos lugares que permitem que a tecnologia se diferencie. De algum modo, o consumo das tecnologias em contextos periféricos demonstra os paradoxos entre as intencionalidades dos criadores de tecnologias e suas formas de apropriações e usos, mostrando ou apontando para outras cosmotécnicas possíveis.
As big techs estabeleceram uma relação assimétrica com a sociedade, já que a prioridade são os anunciantes. Ou seja, a sociedade e o comum, no sentido dado por Sodré (2014), não são prioritários, com a transformação das subjetividades em objetos e dados que são mercantilizados de forma muitas vezes pouco transparente e a serviço das lógicas do capital. Vive-se o início da “era da midiatização dataficada” (Couldry; Hepp, 2017, p.139), isto é, uma nova dimensão de materialidades e fenômenos comunicacionais, como também discutem André Lemos (2020 e 2022) e Byung-Chul Han (2022), que destacam o olhar da comunicação e do consumo sobre uma construção das realidades mediada pelos processos dataficados.
Por outro lado, é preciso reconhecer de forma mais abrangente a relação entre vigilantes e vigiados (Lyon, 2018). Esses últimos podem se mostrar cada vez mais conscientes e ativos, num entendimento menos reducionista e passivo, e que aponta para uma maior maturidade nas relações dos indivíduos com as tecnologias digitais da comunicação, incluindo nesse rol a discussão sobre a conscientização sobre os usos de dados dos usuários-consumidores pelas plataformas digitais. Ou seja, os vigiados podem desenvolver estratégias de vigilância, nas quais a entrega de dados é vista em razão da conveniência dos consumidores. Nesse sentido, entram em campo o desejo, o prazer e a satisfação pela exposição e visibilidade, em práticas atualmente corriqueiras nas redes sociais digitais, que envolvem lógicas publicitárias e de consumo. Ou seja, não devemos reduzir a experiência da vigilância a um formato unidimensional ou binário de aquiescência ou resistência (Lyon, 2018, p.166).
No contexto brasileiro, Fernanda Bruno e parceiros têm se destacado na reflexão da vigilância digital, considerando a tecnodiversidade, que se manifesta pela problemática da vigilância e da captura de dados de usuários para interesses puramente econômicos, em contextos periféricos. Essa tecnodiversidade tratada pelo grupo (Bruno et al., 2018) é vista pela perspectiva dos que estão à margem, fora do controle dos mecanismos de vigilância. Há também discussões para a construção de uma agenda de pesquisa sobre a vigilância, tecnologia e sociedade no contexto latino-americano como uma preocupação sobre o lugar que ocupamos no cenário digital mundial (Firmino; Bruno, 2022). Outra discussão nessa mesma linha é feita pelos pesquisadores chilenos Tironi e Valderrama (2021), que abordam a descolonização dos algoritmos no contexto latino-americano. Todas essas publicações convergem para a discussão da tecnodiversidade e a problemática das suas cosmotécnicas, combativas à perspectiva hegemônica de uma cosmotécnica única, a das big techs.
A visibilidade na rede também pode ser entendida como forma de resistência, ativismo e mobilização de grupos em função dos mais diferentes interesses, indo além da simples expansão das possibilidades de participação tradicionais. Entretanto, podemos pensar também na vigilância (ou da não vigilância) em termos de invisibilidade, que pode ocorrer de forma intencional e deliberada, mas também como uma consequência de assimetrias e distorções em razão de desigualdades sociais, culturais e econômicas, num cenário de exclusão digital que pode refletir e acentuar outras exclusões tradicionais.
Por isso, apesar de a narrativa tradicional, baseada num utopismo digital, ter considerado a tecnologia como uma arma para os fracos e pobres, talvez seja necessário compreendê-la também como uma “arma apontada aos fracos e pobres” (Morozov, 2018, p.173), especialmente quando se levam em conta o poder do Norte Global e os feudos formados pelas empresas estadunidenses, cujo domínio da tecnologia mais avançada se estende também para um controle geral do mundo como um todo (Morozov, 2018, p.11).
Segundo Beiguelman (2021), ao discutir a visibilidade e a vigilância de dados nos ambientes digitais “o que vemos” nos ambientes digitais “nos olha”. O rastreamento de conteúdos faz-se operar numa profilagem, isto é, uma forma de acumular dados sobre pessoas com base em seus gostos e hábitos, que buscam possibilitar a previsão de comportamentos de grupos de consumidores com perfis semelhantes em seus dados, que aperfeiçoam o direcionamento das mensagens de caráter publicitário (Beiguelman, 2021, p.49).
Portanto, embora reconhecendo os recursos aparentemente antiautoritários e anti-hierarquizadores do digital, há a existência de estruturas hipercentralizadas e instituições antidemocráticas que podem reforçar práticas de dominação estigmatizadoras (García Canclini, 2020, p.150). De algum modo, a visão desse autor não exclui o diálogo complexo com as percepções de Bourdieu (2011) de que a estratificação de classes gera exclusão. Entretanto, a lógica aspiracional, independentemente dos capitais culturais, mostra uma distinção em que os gostos entre públicos, pelo trabalho de aprendizagem de máquina com dados em algoritmos, revelam-se com grande potência racionalizante, traduzindo-se em informações e dados menores (small data) sobre grupos e nichos de mercado.
Nesse cenário desafiador, a publicidade e o consumo são eixos centrais, não só como modelo econômico, mas também como prática comunicacional e expressiva, utilizada por instituições e indivíduos em suas narrativas e processos de interações sociais, com importantes efeitos de sentido. Isso ocorre justamente por apontarem paradoxos entre modos globais dos usos e consumos de tecnologia e táticas cotidianas, no melhor sentido dado por Michel De Certeau (1998, p.97), sobre usos que inovam ou revelam, a partir dos horizontes periféricos, ações não previstas pelos seus idealizadores, como acontece em muitos casos peculiares ao contexto brasileiro, como buscaremos configurar mais à frente neste artigo.
Consumo: do sociológico ao tecnológico
São do século XIX os primeiros estudos do consumo, no campo das ciências sociais, dedicados a compreender na esfera social os efeitos das transformações ocorridas no campo da produção e da economia nos séculos anteriores. Além de Karl Marx (2008), com a sua Contribuição para a crítica da economia política, publicado em 1859, antes de O capital (Marx, 2011), que é de 1867, destacam-se também Thorstein Veblen (1983), com A teoria da classe ociosa (1899), e Georg Simmel (2015; 1957), com Psicologia do dinheiro (1900) e Fashion (1904). Como convém à produção dos autores dessa época e desse campo, são obras que exploram a relação do consumo com os meios de produção.
Uma segunda geração de autores, por assim dizer, é constituída nas décadas intermediárias do século XX, agregando aos estudos do consumo outras perspectivas e interesses. Jean Baudrillard (2019; 2010) leva o pensamento crítico marxista para a esfera concreta do consumo cotidiano, tratando de moda e vestuário, revistas e cadernos de variedades, vitrines, propaganda e design. Mary Douglas e Baron Isherwood (2004) aportam aos estudos do consumo o ponto de vista antropológico, reduzindo o caráter crítico das reflexões, privilegiando as questões culturais e de produção de sentido. Colin Campbell (2001; 2006) é outro que pode ser neste rol incluído, por também trazer contribuições inovadoras às teorias do consumo, ao discutir o consumo na constituição das identidades e das subjetividades.
São esses autores que abrem caminho e viabilizam, em certa medida, o surgimento de obras sobre consumo que, na virada do século XX para o XXI, alcançam grande sucesso, em demonstração simultânea não apenas da relevância do tema no contexto atual, mas também do crescente interesse acadêmico pelo consumo. Zygmunt Bauman (2008) revela a participação central do consumo na constituição daquilo que ele vinha à altura chamando de “modernidade líquida” (Bauman, 2001), já indiciando os efeitos do consumo em camadas mais profundas da existência social. Gilles Lipovetsky (1989, 2007; Lipovetsky; Serroy, 2015) propõe diferentes e inusitadas reflexões a respeito de como o consumo vem se transformando em lógica geral da vida na contemporaneidade. Grant McCracken (2003; 2012) não apenas propõe uma profunda revisão histórico-bibliográfica dos estudos sobre consumo, como também explicita como é possível - e necessário - articular os estudos mais densos sobre consumo com questões práticas e mercadológicas contemporâneas: gestão de marcas, publicidade, design automobilístico, entre outros aspectos, que agem como força de moldagem das práticas cotidianas dos indivíduos, mas que não se restringem às práticas imaginadas pelos setor produtivo e que enriquecem os sentidos da crítica analítica aos consumos, como uma manifestação social e comunicacional.
Desse modo, reconhecemos que muitos outros autores poderiam ter sido aqui mencionados, por outras tantas contribuições aos estudos do consumo. Neil McKendrick et al. (2018), com sua contribuição histórica; Daniel Miller (2013) e Horst e Miller (2012), tratando da cultura material e da transformação cultural das coisas materiais para um fluxo de imaterialidades em ambientes digitais, que, com certas reservas teórico-metodológicas, dialogam com as motivações pragmatistas da pesquisa sobre novas materialidades de André Lemos (2022) no Brasil, por exemplo.
Mas a perspectiva dos estudos dos consumos materiais nem sempre se preocupa com a exclusão digital e nem mostra as práticas digitais de segmentos sociais menos favorecidos. Entendemos que essa é uma importante dimensão das agendas de pesquisa sobre comunicação e consumo. Nesse sentido, alguns trabalhos importantes podem ser destacados, como por exemplo o de Sérgio Amadeu Silveira (2001), que historicamente pesquisa a exclusão digital no país. Nessas pesquisas, reforça-se a ideia de que a tecnologia não traz necessariamente o progresso de forma homogênea para todos, e que a exclusão digital vem como consequência da ação político-econômica orientada aos interesses de uma minoria hegemônica. Ressaltamos também os trabalhos de Machado (2016) e Machado e Soares (2018), que se ocupam, a partir da influência de Daniel Miller, a entender práticas de consumos digitais de populações em favelas.
E no sentido de nos aproximarmos de uma reflexão sobre o consumo que contemple a controvérsia dos excluídos digitais, um autor nos parece especialmente interessante: Néstor García Canclini - por trazer a perspectiva periférica global aos estudos do consumo, assumindo ponto de vista arrojado para o contexto da época, dando conta dos paradoxos que o fenômeno do consumo moderno encerra na América Latina, com suas particularidades e idiossincrasias. Seu livro Consumidores e cidadãos (García Canclini, 1995) antecipa muitos pontos das discussões que estão presentes nas produções mais atuais sobre consumo.
Além de García Canclini, Byung-Chul Han (2018, p.119), filósofo sul-coreano de grande sucesso na atualidade, também já citado, afirma que “não somos mais agentes ativos, não somos cidadãos, mas sim consumidores passivos”, repisando com certo radicalismo e alguma simplificação o que García Canclini (1995, p.35 e 37) já havia dito, décadas atrás, em abordagem muito mais complexa:
As visões de consumo e de cidadania poderiam mudar se as estudássemos conjuntamente, com instrumentos da economia e da sociologia política, mas tomando-as também como processos culturais. [...] Ao repensar a cidadania em conexão com o consumo e como estratégia política, procuro um marco conceitual em que possam ser consideradas conjuntamente as atividades do consumo cultural que configuram uma dimensão da cidadania.
Numa outra visão sobre consumo e cidadania, Sodré (2014) critica a visão de García Canclini, por esse último estabelecer o seu binômio na hierarquia “consumo e cidadania”, observando que uma cidadania subordinada ao consumo se manifesta em componentes frágeis a uma autêntica construção de processo civilizatório pautado em parâmetros emancipatórios e igualitários, para a construção do comum. O correto, na visão de Sodré, seria hierarquizar a noção de cidadãos e depois imprimir-lhes a marca social de consumidores, num patamar em que ser cidadão não esteja subordinado à condição de poder consumir.
Em que pese a crítica a García Canclini por Sodré, cujo princípio é justo, destacamos que o primeiro autor, em sua obra mais recente, Ciudadanos reemplazados por algoritmos (García Canclini, 2020), oferece reflexão adensada sobre os efeitos dos avanços tecnológicos do digital na cidadania. O autor debruça-se sobre o mesmo fenômeno que serviu de base para as obras já mencionadas de Zuboff (2021), e Morozov (2018), privilegiando a questão da cidadania. “Dada a opacidade dos algoritmos e a transparência dos nossos dados, esse vínculo laboral assimétrico e desigual põe em dúvida nossa capacidade de atuarmos como cidadãos” (García Canclini, 2020, p.81, tradução nossa).
Essa reflexão também não se afasta da análise social do consumo de pesquisadores como Alan Warde (2017), que afirma que o consumo é sempre avaliado sob conotações morais, de interesse público popular e de significados políticos e econômicos. E isso deixaria de lado seu impacto nas constituições das identidades pessoais e nas posições sociais dos sujeitos no mundo. Segundo o autor, é preciso explicar o consumo não em termos de compra de mercadorias, mas de organização e coordenação de práticas cotidianas.
Já em relação aos meios de comunicação e seus processos, o que García Canclini ilumina, em sua obra, é o alto grau de complexidade que esses processos adquirem quando, em vez do rádio, da televisão e dos jornais, passam a ser atravessados pelas tecnologias do digital, com destaque para os dados e os algoritmos.
Acompanhando os demais autores, García Canclini reconhece a publicidade como elemento central nessas novas lógicas e sistemas. E, quando se compreende que a publicidade, está no cerne desses modelos de negócio que definem essa nova concepção de capitalismo, baseado nos dados e nos algoritmos, outras questões precisam ser consideradas, daí o destaque que oferecemos a este autor neste artigo, uma vez que, o tema da publicidade nunca é devidamente aprofundado nessas discussões.
Muitos dos autores até aqui citados explicitam a centralidade profunda da publicidade neste novo contexto. Reconhecem que os sistemas automatizados de leilões, baseados em dados voltados ao consumo, são o grande motor dessa nova economia. Mas se furtam a olhar mais detidamente sobre o que diz a publicidade, em suas mensagens, sobre tudo isso. Considerando que a publicidade, como discurso representativo, tem papel importante na construção dos sentidos das realidades em que circulam, bem como colaborara na consolidação e na legitimação de determinadas visões de mundo (Rocha, 2006; Santaella; Nöth, 2010; Trindade, 2022, Pompeu, 2021), interessa-nos verificar como isso se dá no que diz respeito aos significados da tecnologia promovidos pelo consumo e pela publicidade.
Após essa reflexão, buscamos na sequência mostrar algumas manifestações ocorridas no contexto brasileiro que empiricamente configuram alguns aspectos gerais importantes da realidade dos consumos de tecnologia em nosso país, em termos de uso midiáticos digitais, e sua conexão estrita com as lógicas publicitárias e mercadológicas na promessa de um novo modo de vida digitalizado.
Tecnologia, consumo e publicidade no contexto periférico brasileiro
No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, imperava no país um certo entusiasmo com o advento da internet. Como mencionamos anteriormente, Silveira (2001) foi um dos pioneiros a promover uma discussão sobre a exclusão digital no Brasil, ao problematizar duas questões principais: se a tecnologia do digital poderia combater a pobreza, e quais seriam os melhores instrumentos para garantir a todos o acesso às tecnologias da informação em uma sociedade hipercapitalista e multiexcludente.
Tais questões sinalizavam profundas alterações econômicas, sociais e culturais em curso, e o autor percebeu que o acesso, o tipo de apropriação e os usos destas tecnologias, bem como o controle dos fluxos de informação trariam novas questões políticas. As disputas em torno das aplicações tecnológicas e de seu futuro já se evidenciavam e discutia-se um novo ponto na agenda pública no interior da revolução tecnológica de então: o enfrentamento da exclusão digital.
Hoje, ao observarmos dados recentes divulgados pelo IBGE via PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação - 2021) (Amorim, 2022), percebemos que a exclusão digital ainda é um entrave à inserção do país ao estágio avançado de uma civilização digitalizada, mesmo com a aceleração mandatória em razão da pandemia do Covid-19. Os resultados mostram que 7.2 milhões de famílias permaneciam sem conexão à rede em casa em 2021. E 28.2 milhões de brasileiros de 10 anos ou mais de idade não usavam a internet (15,3% da população), sendo 3.6 milhões deles estudantes, a maioria da rede pública de ensino (94,7%).1
Os dois motivos mais mencionados para a exclusão digital foram não saber usar a internet (42,2%) e falta de interesse em acessar a internet (27,7%). Motivos financeiros também foram apontados para a falta de acesso à internet: 14% disseram que o acesso à rede era caro, e 6,2%, que o equipamento eletrônico necessário era caro. Dentre os que usavam a internet em 2021, o meio de acesso mais adotado foi o telefone móvel celular (98,8%), seguido pela televisão (45,1%). Esse número de conectados via televisor foi considerado uma novidade, pois superou a conexão por microcomputadores (41,9%) e pelo tablet (9,3%).
Esses dados fazem constatar o nosso contexto periférico no consumo digital, no qual custos elevados para a conexão e para a aquisição de equipamentos fazem que um pouco mais 15% da população com 10 anos ou mais de idade sejam excluídos digitalmente.
Portanto, ao se falar de consumo midiático digital no Brasil, é preciso destacar que estamos analisando somente uma parte da população, aquela com condições socioeconômicas mínimas para usufruir desses dispositivos, que se distribuem em distintos Brasis.
Sobre os usos das tecnologias e sua relação com o consumo, destacamos as compras pelos dispositivos móveis, via aplicativos de compras. O Panorama Mobile Time/Opinion Box (dez., 2022),2 pesquisa realizada semestralmente sobre o uso de apps no Brasil, mostra que 63% dos entrevistados já realizaram alguma compra por aplicativo.
Os usos também incluem as aplicações para a troca de mensagens rápidas (como o WhatsApp e o Telegram) e interações nas Redes Sociais Digitais (Facebook, Instagram e TikTok, entre outras), que envolvem comunicações entre pessoas, comunidades e marcas. No mesmo sentido, as possibilidades de entretenimento no universo virtual cresceram nos últimos anos, como games online e serviços de streaming de filmes e música (como o Netflix e o Spotify). Entre 2021 e 2022, passou de 64% para 69% a proporção de brasileiros com smartphone que assinam alguma plataforma paga de filmes e séries. No caso de streaming de música, o aumento foi de 37% para 41% no mesmo período.
Nesse cenário de aumento nas compras on-line, uso de aplicativos, redes sociais, games e conteúdos de streaming, revelam-se inúmeras e profundas interações do marketing e da publicidade com a tecnologia. Com isso, uma ciberpublicidade (Atem; Oliveira; Azevedo, 2014) surgiu a partir das adaptações necessárias ao cenário de evolução digital, com consequências tanto no âmbito econômico quanto no midiático-cultural.
Do ponto de vista econômico, a publicidade digital é baseada tanto na presença de marcas em razão da audiência na rede quanto na exploração dos dados dos usuários para fins comerciais. Há o direcionamento de publicidade cada vez mais segmentada de acordo com interesses e perfis, o que pode trazer muitas vezes a sensação de perseguição e vigilância. Esse cenário exemplifica uma visibilidade panóptica, na qual a maioria é observada por uma minoria, com evidentes relações assimétricas de poder e possibilidades, tanto de monitoramento do comportamento quanto de alteração deles.
As novas formas publicitárias digitais se materializam em mensagens comerciais que parecem surgir num passe de mágica, após qualquer menção ou busca on-line a determinado produto ou marca. Há uma intensa ação dos algoritmos, via aprendizado de máquina, que processa dados e possibilita ações institucionais e promocionais e, ao mesmo tempo, nutre o condicionamento pela repetição de comportamentos identificados como padrões de consumo de grupos a partir do tratamento dos dados de experiências de usos. Isso instiga os indivíduos à repetição de cliques, visualizações e, sobretudo, a ações repetidas de compra, em fluxo constante.
Mesmo com avanços na legislação do país em relação à proteção de dados, trazendo uma nova dimensão civilizatória do consumo,3 ainda há pouco entendimento das pessoas sobre as naturezas dos dados e sobre o direito à privacidade nas experiências de usos dos consumos digitais.
Outro aspecto a ser destacado são as promessas publicitárias e mercadológicas que surgem a cada novo gadget, que valorizam a inserção dos consumidores num mundo tecnológico que representa o futuro. Nele, há somente vantagens para quem mais rapidamente aderir ao novo produto ou serviço (que são lançados incessantemente), seja um aparelho celular avançado, um plano de dados com alta velocidade, seja um eletrodoméstico conectado à internet. Ou seja, reflexões mais complexas sobre as consequências do uso das tecnologias, apropriação de dados dos usuários e suas formas de uso pelas plataformas digitais, acabam negligenciadas ou minimizadas, subordinadas aos objetivos de mercado das empresas e à construção dessa narrativa de consumo dominante, que é tecnofílica, restrita e parcial. Aos olhos do mercado, o consumo da tecnologia deixa de lado paradoxos associados ao seu uso (Mick; Fournier, 1998), como controle e caos, integração e isolamento, e liberdade e escravidão.
Um produto que pode ser utilizado para exemplificar igualmente a visão parcial desses paradoxos é o smartphone (telefone inteligente), fundamental no cotidiano do consumidor brasileiro. Com ele, houve a promessa de que o indivíduo poderia se comunicar num país geograficamente muito amplo e com infraestrutura deficiente. A adoção (ou não) à conexão móvel promoveu outro tipo de divisão da sociedade: entre os que podem, pertencem e vivenciam plenamente o “novo” e aqueles para os quais este futuro tecnológico se torna inalcançável, com barreiras para o acesso aos territórios informacionais e comunicacionais que compõem grande parte da vida híbrida atual.
Nesse sentido, o prefixo smart (inteligente) vem sendo adotado como um adjetivo que nomeia uma série de produtos que têm em comum a conectividade e, com ela, a possibilidade de transmissão e recebimento de dados numa lógica de rede em nuvem que sugere integração e intangibilidade. Com isso, reforça-se a ideia de um estilo de vida contemporâneo baseado na inovação e na tecnologia, com os alardeados benefícios de maior facilidade, agilidade, autonomia e liberdade - “termos positivos, resplandecentes, que indicam uma emancipação. [...] Quem poderia ser contra tudo isso?” (Morozov; Bria, 2019, p.15).
O universo de produtos e serviços smart impacta mercadologicamente tanto novas categorias quanto outras já conhecidas, ressignificadas a partir das possibilidades informacionais e comunicativas trazidas pela conectividade. São exemplos conhecidos os relógios e televisores inteligentes (smartwatches e smart TVs), mas o conceito abrange uma infinidade de objetos que podem compor uma casa, uma cidade e uma vida inteligentes.
Há dispositivos interconectados que compõem uma nova geração de eletrodomésticos (geladeiras, fogões, microondas, aspiradores, ar-condicionado, entre outros), ligados a centrais comandadas por assistentes virtuais que acionam também o funcionamento de dispositivos inteligentes de iluminação, fechaduras, tomadas, câmeras de segurança e sensores de movimento, permitindo o monitoramento à distância, por exemplo.
Um símbolo desses dispositivos inteligentes é a Alexa, da Amazon, uma assistente pessoal desenvolvida com o objetivo de auxiliar na execução de tarefas diárias e cotidianas, mas que, na realidade do Brasil, é um artigo em grande medida inacessível. O potencial de recursos da assistente para uma vida e uma casa inteligentes não é plenamente utilizado ou viável por uma série de fatores. Excetuando-se os smartphones e os computadores, os demais aparelhos inteligentes e conectáveis ainda possuem pequena penetração no país - somente 5,5% da população afirmam ter um dispositivo inteligente em casa.4 Ou seja, para parcela significativa da população, a IoT é limitada em suas potencialidades de usos, tanto pelo acesso aos dispositivos quanto pelos custos da conectividade, ainda cara aos usuários no país, como indicam as pesquisas que apresentamos anteriormente.
Além disso, o uso pleno desses produtos depende do desenvolvimento sucessivo de infraestruturas mais velozes, a exemplo da tecnologia 5G, introduzida no país em 2022. Com isso, as deficiências da infraestrutura de telecomunicações também colocam o Brasil em contexto periférico de uma forma mais ampla, diminuindo o potencial para aumentar a produtividade da economia e impulsionar empresas inovadoras a partir da conexão entre coisas e redes digitais de informações (Marques, 2017).
Vimos, portanto, que a promoção da vida smart deixa de lado também as questões associadas à exclusão digital, além das discussões emergentes sobre segurança, privacidade e vigilância, que criam fissuras nesse imaginário idealizado. Para minimizar essas preocupações, a publicidade também é acionada, como ocorre em campanhas veiculadas pelas big techs a partir de 2021. A Apple (“Privacidade. Isso é iPhone”) e o WhatsApp (“Privacidade para suas mensagens”) são dois exemplos.
Como visto, destacamos nesta seção as promessas publicitárias que reiteram a visibilidade de uma existência constituída, necessariamente, pelo consumo tecnológico amplo e irrestrito. Com isso, um modo de viver dataficado, vigilante e centralizado é consolidado. Nessa vida smart, algorítmica, os paradoxos do consumo tecnológico são suavizados, apresentando as novidades de forma sedutora e emoldurada. Além disso, ressaltamos como o acesso a muitos desses produtos ainda é restrito a um segmento privilegiado, fortalecendo uma distinção não só dentro da sociedade brasileira, mas também trazendo a ideia de um consumo ainda periférico em relação ao Norte global, seja por razões mercadológicas ou de infraestrutura tecnológica.
Considerações finais
Como “embalagem” de um sistema (Arruda, 2015) - o capitalista e, agora também, baseado em dados -, a publicidade embrenha-se cada vez mais nas engrenagens imateriais que sustentam e movem a vida nos tempos atuais, articulando comunicação, consumo, política, cidadania e economia. Por isso, como “artifício” (Piratininga, 1994), precisa também oferecer na sua camada expressiva um mundo fabuloso e irremediavelmente desejado, que se alcança pelo consumo da tecnologia. Eis a publicidade contemporânea, como lógica estruturante, que reveste a si mesma, promovendo na forma de anúncios, slogans e todas as possibilidades que houver uma realidade parcial, desigual, muitas vezes injusta, que dela própria se serve para fins maiores, sempre ligados ao capital.
O que há de novo e o que permanece nessa forma atual de fazer publicidade? A publicidade, desde a crítica à estetização do consumo pelas mercadorias de Karl Marx, colabora como meio eficaz para a fetichização das mercadorias. Isto é, trata-se de uma ação de investimento libidinal nos objetos de consumo, configuradora de dispositivos que despertam a presença do desejo humano sobre as coisas nos bens de consumo e que se faz incorporar esteticamente aos bens/marcas, por meio de um tratamento simbólico de suas formas comunicativas de existir para o consumo e para as lógicas de financeirização do capital.
Essa fetichização dos bens permite nos sentirmos seduzidos por objetos, traço esse que permanece e sempre demarcará o lugar de ação da publicidade como dispositivo acional dos desejos humanos de consumo. Entretanto, a tecnologia dos algoritmos no consumo acrescenta a esse processo, na sua possibilidade técnica seletiva e preditiva pela análise e gestão de dados, um efeito mágico poderoso do mundo capitalista junto ao senso comum da maioria dos consumidores: o do reconhecimento das vontades de consumo, transformadas em desejos, que na ocultação da técnica, cria a ilusão da magia fetichizante que impregna nossos consumos.
O desafio para se proteger desse efeito é fazer valer o respeito à privacidade de dados nos usos e consumos digitais como valor ético, legal e cívico, e oferecer limites aos efeitos da ação publicitária dos algoritmos, sob pena de não estarmos contribuindo para a conformação de uma sociedade de cidadãos-consumidores e darmos continuidade à perspectiva de reafirmação de consumidores-cidadãos como todos os prejuízos ao processo civilizatório que essa inversão de termos na sua hierarquização neste caso traz. Dar ciência dos novos artifícios tecnológicos da publicidade é um dever para a consolidação do binômio cidadania-consumo.
Os entroncamentos do consumo com a cidadania, de alguma forma, sempre estiveram subjacentes aos estudos e às teorias do consumo - ainda que muitas vezes relegados a um certo pano de fundo. Ganharam destaque precoce na visão de García Canclini, brotando de um contexto latino-americano em que tanto a cidadania quanto o consumo sempre tiveram contornos dramaticamente particulares, para hoje alcançar o centro e a tona das discussões, em âmbito global. É justamente quando os pilares da democracia se veem fraturados (Santaella, 2016; Levtsky; Ziblatt, 2018; Runciman, 2018; Abranches et al., 2019; Mounk, 2019; O’Neil, 2020; Przeworski, 2020), os princípios do capitalismo resultam questionados (Dardot; Laval, 2016; Harvey, 2016; Castells, 2017; Belluzzo; Galípolo, 2019; Brown, 2019; Berardi, 2020; Dowbor, 2020; Fraser; Jaeggi, 2020; Moreira, 2020; Bucci, 2021) e a própria crença na noção de estado vacila (Mazzucato, 2014), que as conexões profundas e intrincadas entre consumo e cidadania ganham relevância.
Neste artigo, procuramos demonstrar a importância de se pensar a publicidade nessa sua articulação com a tecnologia, mas passando também pela sua natureza sígnica, expressiva e comunicacional. Nesse sentido, em relação aos aspectos midiático-culturais, destacamos as mediações do consumo e a midiatização publicitária de uma vida smart, baseada num imaginário mágico e utópico com o consumo de produtos conectados e dataficados - esses mesmos que, ao nos oferecerem inúmeras facilidades, nos tomam em troca dados de todos os tipos -, que devem ser constantemente renovados em processos de obsolescência acelerados. Tudo isso parece ter grande ressonância numa cultura que valoriza o novo e o jovem, como regra, e que ameaça com a exclusão (profissional, educacional, social…) quem não aderir a uma novidade e a uma vida “inteligente”.
Vivenciamos no consumo e na publicidade de produtos associados à tecnologia a construção de um regime de visibilidade (e invisibilidade) que envolve os dispositivos tecnológicos não só como mercadorias, ofertas e objetos da comunicação publicitária, mas também como mediadores simbólicos onipresentes. É assim que a tecnologia abre (e fecha) espaços de visibilidade de forma abrangente e tentacular, espalhando-se em dimensões que combinam a esfera pública e privada, com temáticas que aproximam o consumo tecnológico de aspectos políticos centrais para o desenvolvimento de uma sociedade.
Referências
- ABRANCHES, S. et al. Democracia em risco? São Paulo: Cia. das Letras, 2019.
-
AMORIM, D. Brasil tinha 7,3 milhões de lares sem internet e 28,2 milhões de excluídos digitais em 2021. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 set. 2022. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/economia/brasil-exclusao-digital-2021/>. Acesso em: 5 maio 2023.
» https://www.estadao.com.br/economia/brasil-exclusao-digital-2021 - ATEM, G. N.; OLIVEIRA, T.; AZEVEDO, S. Ciberpublicidade. Rio de Janeiro: E-papers, 2014.
- ARRUDA, M. A. do N. A embalagem do sistema. São Paulo: Edusp, 2015.
- BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: 70, 2010.
- _______. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2019.
- BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
- _______. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
- BEIGUELMAN, G. Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021.
- BELLUZZO, L. G.; GALÍPOLO, G. A escassez na abundância capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019.
- BERARDI, F. Asfixia. São Paulo: Ubu, 2020.
- BOURDIEU, P. A distinção. Porto Alegre: Souk, 2011.
- BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Politeia, 2019.
- BRUNO, F.; CARDOSO, B.; KANASHIRO, M.; ALBUQUERQUE, L. S. G. (Org.) Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018.
- BUCCI, E. A superindústria do imaginário. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
- CAMPBELL, C. A ética romântica e o espírito do consumo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
- _______. Eu compro, logo sei que existo. In: BARBOSA, L.; CAMPBELL, C. (Org.) Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
- CASTELLS, M. (Org.) Outra economia é possível. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
- COULDRY, N.; HEPP, A. The mediated construction of reality. Cambridge: Polity Press. 2017.
- DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
- DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes. 1998.
- DOUGLAS, M.; ISHERWOOD, B. O mundo dos bens. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
- DOWBOR, L. O capitalismo se desloca. São Paulo: Sesc, 2020.
- FIRMINO, R. J.; BRUNO, F. Building a Latin American agenda for studies on surveillance, technology, and society. Surveillance & Society, v.20, n.4, p.357-63, 2022. Acesso em: 5 maio 2023.
- FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalismo em debate. São Paulo: Boitempo, 2020.
- GARCÍA CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
- _______. Ciudadanos reemplazados por algoritmos. Bielefeld University Press, 2020.
- HAN, B-C. No enxame. Petrópolis: Vozes, 2018.
- _______. Não coisas: reviravolta do mundo da vida. Petrópolis: Vozes, 2022.
- HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016.
- HORST, H. A.; MILLER, D. (Ed.). Digital anthropology. Oxford: Berg Publishers, 2012.
- HUI, Y. On the existence of digital objects. Minneapolis: University of Minnesota, 2016.
- _______. Tecnodiversidade. São Paulo: UBU. 2020.
-
LEMOS, A. Epistemologia da comunicação, neomaterialismo e cultura digital. Galáxia, n.43, p.54-66, jan./abr. 2020. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/43970/31631>. Acesso em: 3 mar. 2023.
» https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/43970/31631 - _______. A comunicação das coisas: Teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Annablume, 2022.
- LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
- LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
- _______. A felicidade paradoxal. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
- LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
- LYON, D. Cultura da vigilância. In: BRUNO, F. et al. (Org.) Tecnopolíticas da vigilância. São Paulo: Boitempo, 2018.
- MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
- _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2011.
- MACHADO, M. Imaginários sociais sobre as favelas cariocas: o turismo-cultural do museu de favela e seus modos de ativação digital. Diálogo com a economia criativa, v.1, p.61, 2016.
- MACHADO, M.; SOARES, A. Experiências e consumo digital no Museu de Favela. Memória e Informação, v.2, p.51-65, 2018.
- MARQUES, F. O Brasil da internet das coisas. Pesquisa Fapesp. São Paulo, p.18-27. set. 2017.
- MAZZUCATO, M. O estado empreendedor. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014.
- MCCRACKEN, G. Cultura & consumo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2003.
- _______. Cultura & consumo II. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
- MCKENDRICK, N.; BREWER, J.; PLUMB, J. H. The birth of a consumer society. Brighton: Edward Everett Root, 2018.
- MICK, D.; FOURNIER, S. Paradoxes of technology. Journal of Consumer Research, v.25, n.20, p.123-43, 1998.
- MILLER, D. Trecos, troços e coisas. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
- MOREIRA, E. Economia do desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
- MOROZOV, E. Big tech. São Paulo: Ubu, 2018.
- MOROZOV, E.; BRIA, F. A cidade inteligente. São Paulo: Ubu, 2019.
- MOUNK, Y. O povo contra a democracia. São Paulo: Cia. das Letras, 2019.
- O’NEIL, C. Algoritmos de destruição em massa. Santo André: Rua do Sabão, 2020.
- PEREZ, C.; TRINDADE, E. Três dimensões para compreender as mediações comunicacionais do consumo na contemporaneidade. MATRIZes, v.13, n.3, p.109-26, 2019.
- PIRATININGA, L. C. de. Publicidade. São Paulo: TA Queiroz, 1994.
- POMPEU, B. De onde veio, onde está e para onde vai a publicidade? São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2021.
- PRZEWORSKI, A. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
- ROCHA, E. Representações do consumo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.
- RUNCIMAN, D. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.
- SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua. São Paulo: Paulus, 2013
- _______. Temas e dilemas do pós-digital. São Paulo: Paulus, 2016.
- SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Estratégias semióticas da publicidade. São Paulo: Thomson, 2010.
- SILVEIRA, S. A. Exclusão digital: a miséria na era da informação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
- SIMMEL, G. Fashion. American Journal of Sociology, v.62, n.6, p.541-58, 1957.
- _______. Psicologia do dinheiro. São Paulo: Texto e Grafia, 2015.
- SODRÉ, M. A ciência do comum notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes. 2014.
-
TIRONI, M.; VALDERRAMA, M. Descolonizando los sistemas algorítmicos: diseño crítico para la problematización de algoritmos y datos digitales desde el sur. Palabra Clave, v.24, n.3, p.1-33, 2021. Disponível em: <http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0122-82852021000302432>. Acesso em: 5 maio 2023.
» http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0122-82852021000302432 - TRINDADE, E. Mediações algorítmicas do consumo: interações midiatizadas entre marcas e consumidores e formas de escrituras. In: FERREIRA, J. et al. (Org.) Sapiens midiatizado: conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie. Santa Maria: Facos-UFSM, 2022.
- VEBLEN, T. A teoria da classe ociosa. São Paulo: Abril, 1983.
- WARDE, A. Consumption: a sociological analysis. Manchester, UK: Palgrave Macmillan, 2017.
- ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. São Paulo: Intrínseca, 2021.
Notas
-
1
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação 2021, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
-
2
Disponivel em: <https://blog.opinionbox.com/pesquisa-sobre-aplicativos-no-brasil/>
-
3
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) entrou em vigor em 18.9.2020, com aprovação do Senado Federal. Trata-se um marco legal que regulamenta o uso, a proteção e a transferência de dados pessoais no Brasil. A LGPD (Lei n.13.709, de 2018) garante maior controle dos cidadãos sobre suas informações pessoais, exigindo consentimento explícito para coleta e uso dos dados e obriga a oferta de opções para o usuário visualizar, corrigir e excluir esses dados. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/18/lei-geral-de-protecao-de-dados-entra-em-vigor>
-
4
Dados de janeiro de 2021. Fonte: Data Reportal.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2024
Histórico
-
Recebido
18 Nov 2022 -
Aceito
19 Jul 2023