RESUMO
O artigo analisa o caso de uma cena teatral produzida na Bahia entre 1551 e 1552 pelo grupo jesuítico ligado a Manuel da Nóbrega, que se deu na forma de uma performance pelas ruas da cidade. Anterior a qualquer forma de espetáculo literário, e desvinculado de um contexto religioso, o ato cênico é revelador das contradições do trabalho jesuítico nos primeiros anos, após sua chegada ao território com o Governo Geral de Thomé de Souza.
PALAVRAS-CHAVE: Jesuítas; Teatro; Manuel da Nóbrega
ABSTRACT
The article analyzes the unusual case of a theatrical scene produced in Bahia between 1551 and 1552 by the Jesuit group linked to Manuel da Nóbrega, which took the form of a performance in the streets of the city. Previous to any form of literary spectacle, and detached from a religious context, the scenic act reveals the contradictions of Jesuit work in the early years, after its arrival in the territory with the General Government of Thomé de Souza.
KEYWORDS: Jesuits; Theatre; Manuel da Nóbrega
Desde a chegada dos jesuítas à Bahia, com a frota do governador geral Thomé de Souza, em 1549, o grupo de seis missionários liderados por Manuel da Nóbrega procurou organizar ações de caráter espetacular. Ocorreram como procissões festivas do calendário litúrgico, na forma dos corais dos meninos da catequese pelas aldeias, ou dos desfiles dos adultos em disciplinas sangrentas para expiação de culpas, pelas ruas da cidade em construção. Também os sermões da palavra assumiam, invariavelmente, caráter cênico. Na quase totalidade dos casos a dimensão cênica se produzia em cerimônias de finalidade religiosa.
A mais notável exceção do século XVI pode ser encontrada no episódio de uma suposta mortificação pública, que também se deu na forma de uma cena itinerante, de grande impacto nos debates do tempo. É o caso da venda de um padre da Companhia pela cidade de Salvador, entre 1551 e 1552, como se fosse um escravizado. Essa extraordinária performance foi realizada, ao que tudo indica, para promover um debate público sobre a ajuda econômica necessária à casa dos meninos. Foi produzida para impressionar os “homens branquos” da cidade, num tempo em que as experiências de “espetacularização” das práticas religiosas mais incomuns surgiam fora da cidade, nas tentativas de conversão dos tupinambás. E não foi apresentada como obra de ficção: tanto o sacerdote como o público julgavam que a venda pública do padre jesuíta era real.
Ao que parece, somente o idealizador da performance, Manuel da Nóbrega e o pregoeiro, que anunciava o sacerdote-mercadoria, conheciam a “teatralidade” invisível. A perplexidade suscitada pela cena improvável tem registro na mesma carta em que o bispo Pero Fernandes, em meio aos muitos desacordos com os procedimentos “dissonantes da razão” adotados pelos jesuítas da Bahia, comenta o caso:
Também achei um muito grande escândalo neste povo pelo Padre Nóbrega mandar vender por toda esta cidade e pela Vila Velha que está daqui meia légua, com pregão de pregoeiro, a outro padre sacerdote que se chama Paiva para comprar rosas para os meninos. Por ser coisa tão nova e insólita me quis informar do Padre Nóbrega. Disse-me que era exercício e espírito da companhia. Aqui me recolhi para alcançar o fundamento da coisa, somente lhe disse que coisa tão nova e feita na praça devia ser, antes de se fazer, muito bem pensada, se edificaria ou ofenderia ne licentia nostra ofendiculum sit infirmis et ne ulli demus offenssionem, ne vituperetur ministerium nostrum. E lhe trouxe à memoria aquilo de São Paulo: rationabile sit obsequium vestrum, et alibi dicit sitis simplicis et sine querela in médio nationis pravae, porque pareceu excessivo e abater muito o estado sacerdotal mandar vender um sacerdote pelas ruas e (parecer) que os negros tomariam isto muito mal, e os brancos o tinham por heresia, e todos riram e murmuraram disso, e ninguém se edificou. Respondeu-me que de nenhuma coisa estava tão soberbo como de mandar vender ao dito Padre. (Leite, 1956, p.362-3)
O bispo, que não presenciou o fato ocorrido meses antes, entendia que o escândalo e o riso projetavam a sombra da heresia sobre a imagem da igreja local, então unificada sob seu controle, além de ironizar a relação hierárquica pretendida com os “negros” (indígenas). Nóbrega, por outro lado, considera a desaprovação episcopal uma parte das incompreensões gerais de Pero Fernandes quanto ao “exercício e espírito” que distinguiam a atuação da Companhia de Jesus.
O principal ator da performance, conduzido pelas praças, e posto em leilão, foi o padre Manuel de Paiva. Era o sacerdote mais velho da Companhia naquele século. Chegou à Bahia na segunda missão, desembarcada em Salvador em abril de 1550. Em seus fragmentos históricos, Anchieta apresenta-o como homem de “grande esforço de ânimo e forças”, sujeito “pesado” e “intrépido para todo o perigo corporal”. Relata que Paiva “uma vez pregou a Paixão não sei quantas horas de joelhos”, assombrando seus companheiros por um fervor que suplantava seu pouco conhecimento de letras. Estudou latim mais tarde, com o próprio Anchieta, em Piratininga, onde foi reitor da casa por alguns anos. Seu destemor e sua estrutura corporal, apesar da idade, tornavam-no requisitado em situações de enfrentamento físico. Acompanhou como capelão, por exemplo, quando estava em São Vicente, as tropas da vila nos ataques contra os tamoios: “em uma guerra e em outra foi sempre o Padre Paiva sem medo com cruz na mão, diante até a cerca das aldeias” (Anchieta, 1989, p.123). Seu provável companheiro cênico, no papel de pregoeiro, era um dos mais jovens religiosos do primeiro grupo, o irmão Vicente Rodrigues.
Durante a ausência de Nóbrega em 1551, quando Paiva assumiu a função de responsável pela casa da Bahia, ambos se envolveram no absurdo caso do furto de um corpo humano, em meio a uma cerimônia antropofágica, o que indica a disposição da dupla a gestos extremos. De acordo com carta do ano seguinte, o irmão Vicente Rodrigues mantinha “grandes disputas” discursivas com o “muito soberbo” morubixaba Porta Grande, quando o visitava na taba que ficava próxima à cidade, na atual região do Carmo, onde os cristãos ergueram a ermida do Calvário. Porta Grande, até morrer, seguiu desdenhando das palavras cristãs e preferindo confiar nos pajés de sua comunidade (Leite, 1956, p.304). O caso do cadáver demonstra o fracasso da pregação cristã em relação ao costume mais tradicional dos tupinambás daquele tempo, a vingança ritual. Deu-se em meados de 1551, quando os parentes da esposa de um outro indígena, cristianizado, conhecido como Bastião Telles, o obrigaram, pelo costume indígena da colaboração entre genro e sogro, a ceder o corpo de um inimigo, trazido no barco após expedição guerreira, para que tivesse sua cabeça quebrada e fosse comido em rito de vingança próximo a Salvador. Quando o corpo inimigo chegou à taba dos filhos de Porta Grande (àquela altura já falecido), os dois jesuítas se mobilizaram para evitar a consumação do rito antropofágico e literalmente se agarraram ao cadáver, quando estava em preparo para ser moqueado, com as carnes expostas, e interromperam a celebração que era próxima à cidade:
Acudimos o padre Paiva e eu com grandes brados de repreensão, dizendo como Deus os havia de castigar, e assim com aquele ímpeto lho tomamos por uma parte e eles por outra, de maneira que era grande multidão sobre nós, assim homens quanto mulheres. E já o tinham chamuscado e consertado para o abrirem e fazerem repartição. Tremiam como vergas quando no-lo queriam tomar, porque era a maior desonra que lhes podiam fazer. [...] Porém, Aquele que é toda fortaleza no-la deu e o tomamos e enterramos dentro de uma cerca que eu tinha feito, pegado com a ermida e casa onde pousava. (Azpilcueta Navarro et al., 1988, p.136-7)
A disputa seguiu noite adentro, pois alguns indígenas localizaram a cova improvisada próxima da ermida, desenterram o corpo e ameaçaram os jesuítas. Retomaram, então, os cantos, danças e bebidas da festa, o que permitiu ao padre Paiva e Rodrigues aproveitarem-se do momento de distração e levar “secretamente” aquele corpo, que estava inchado e “fedia muito”, para ser enterrado novamente, agora mais longe, junto à muralha da cidade, num local onde não poderia ser mais descoberto, apesar das escavações feitas pelos tupinambás. O responsável pela crise, Bastião Teles, filho de outro “principal”, morreu subitamente pouco tempo depois desse evento, algo considerado simbólico pelos jesuítas. Seu funeral foi realizado com “procissão dos meninos e muita gente”. Foi enterrado na ermida do Calvário com “missa cantada de defuntos”. A capelinha e o casebre passaram a ser cuidados pelo pai do indígena Teles, um “principal” que se tornou seu mordomo. Passou a ser frequentada, desde então, também pelos “brancos”.
A performance da venda do padre Paiva pelo irmão Rodrigues pode ter ocorrido depois desse episódio crítico, que se deu enquanto Nóbrega estava em Pernambuco, onde morou por seis meses a partir de 26 ou 27 de julho de 1551. Ele já estava de volta à Bahia no início de fevereiro de 1552. A decisão de designar os mesmos dois religiosos para a performance da venda do padre, nesse caso, poderia ser um castigo pelos excessos cometidos. Ou pode ter sido, também, uma provação anterior à partida do superior, quando Paiva assumiria a responsabilidade da casa da Bahia, tendo Rodrigues como subordinado. A opinião de Nóbrega sobre ambos, registrada anos depois, em 1557, revela que não os admirava pela inteligência: Paiva, apesar de “zeloso e virtuoso”, tem “pouco saber natural”; e Rodrigues, que “tem boa maneira e é edificativo”, apesar do honesto juízo, é “mui idiota e ignorante” (Nóbrega, 2000, p.274)
A observação do bispo sobre a motivação econômica da cena (“para comprar rosas para os meninos”) a atribui à insuficiência das esmolas para a manutenção de uma casa que crescia de habitantes, obrigada a adquirir mais mantimentos nas roças. Por outro lado, existe na imagem uma razão simbólica ligada à crítica geral dos jesuítas à escravização injusta, pregação que vinha sendo feita nas missas de festas, e que tinha como objetivo demonstrar a perversão da compra e venda de pessoas capturadas sem razões de guerra, sobretudo mulheres, cuja posse para uso sexual confrontava o sacramento do casamento e a obediência coletiva às leis cristãs. O caso alude, assim, também, ao episódio recente da libertação dos carijós cristãos escravizados, que foram devolvidos a suas terras ao sul de São Vicente, em novembro de 1549, numa ação organizada pelos jesuítas com o apoio do governador, o que gerou um descontentamento entre os brancos proprietários que durou muito tempo.
Na performance da venda, o padre Paiva era puxado por uma corda amarrada a seu pescoço, segundo a maneira tradicional com que os escravizados eram transportados. Foi exposto pelas ruas e praças da cidade e também fora da muralha, pelo caminho até a Vila Velha. O irmão pregoeiro que anunciava o padre-mercadoria recebia ofertas, e o final do leilão ocorreria num dia próximo. Nos Textos históricos, Anchieta (1989, p.122) menciona a longa duração da cena, e a crença de Paiva sobre a consumação da própria venda:
Em chegando à Baía, como a pobreza era muita, o Padre Nóbrega, com este pretexto, como era muito fervente no espirito da mortificação, tão exercitado dos Irmãos em Portugal, mandou vender o Padre Paiva, entregando-o a um porteiro que o apregoasse pela cidade, se havia quem o quisesse comprar, e foi a cousa tão de siso que se persuadiam todos ser verdade, e que por falta do necessário o vendiam, e não faltava quem desse cem e mais cruzados por ele, para o ter por seu capelão, espantados da obediência e humildade do Padre Paiva, o qual também se persuadia que de verdade o mandavam vender, e dizia aos homens que o comprassem, que os serviria muito bem. Até que daí a alguns dias que o porteiro andou nisto, dando recado ao padre Nóbrega do que passava e quanto subia o preço que davam por ele, entenderam o negócio, ficando todos mui edificados da maneira da Companhia.
Os relatos não se distanciam da verdade quando argumentam que a prática cênica tem relação com o “espírito de mortificação” da Companhia em Portugal, o que explica a suposta “soberba” com que Nóbrega defendeu a cena da acusação do bispo. Serafim Leite (1956, p.562), historiador jesuíta do século XX, ainda interpretava o episódio como um exemplo de “mortificação e ficção pia da venda pública ao estilo do tempo”.
O modelo de Nóbrega nessas ações espetaculares era o provincial de Portugal Simão Rodrigues, um fundador da Companhia de Jesus ao lado de Loyola, remanescente do grupo de Paris. Assim como admirava o fervor das disciplinas de sangue pela cidade e os toques de sinetas pelos arrabaldes, para acordar os pecadores e lembrá-los do inferno, ação da qual Nóbrega participou em Coimbra, Rodrigues gostava de aplicar provações aos novatos, conforme a tradição dos trotes universitários ou dos cortejos satíricos das formaturas. Nóbrega ao certo assistiu ao exercício de “mortificação da vontade” imposto pelo provincial ao afamado organista Ambrósio Ferreira, quando esse entrou na Companhia, em Coimbra, em 1545. Para que comprovasse a decisão de deixar para trás o passado musical e o prestígio adquirido na corte, e fosse capaz de “meter debaixo dos pés a própria estimação”, o neófito teve que caminhar da baixa à cidade alta vestindo seu antigo traje cortesão, “com capa e espada e uma caveira nas mãos, à vista de toda a cidade”, parando para rezar em cada igreja do caminho, no que foi seguido por meninos que dele troçavam e o agrediam, por julgarem que expiava alguma culpa feia (Tellez, 1695, p.234-5). A um ex-mercador de origem castelhana, João Fernandes, Simão Rodrigues impôs prova iniciática semelhante, em Lisboa. Fernandes teve que atravessar a rua Nova dos mercadores em trajes de seda e montado num jumento sem sela, num percurso da baixa até a Mouraria (Pacheco, 1987, p.115-16). Simão Rodrigues foi condenado ao ostracismo nos últimos dias de 1551. A crise portuguesa teve relação com questões econômicas sobre o projeto de formação de colégios em vários países, por uma intimidade excessiva com a nobreza portuguesa, denunciadas pelo padre Luís Gonçalves da Câmara, que o sucedeu. Entretanto, é provável que algo mais tenha contribuído para o exílio de 20 anos: o modo extravagante com que Rodrigues expandia a ideia de mortificação pública, espetacularizando a obediência dos inferiores, submetidos a seu personalismo.
Nóbrega desembarcou no Brasil julgando válidas tais performances probatórias que tangenciam o sadismo. O padre Paiva, apesar da idade, foi intimado por ele a se deitar no chão e a rolar colina abaixo, “por um monte muito íngreme” da Bahia, o que “ele fez logo sem nenhuma dilação indo a tombos pelo monte abaixo, até que lhe disseram que bastava” (Anchieta, 1989, p.123).
Também a crônica seiscentista de Simão Vasconcellos entende que a performance era uma prova de “mortificação e obediência” com propósito de edificação. Escrita num tempo em que o conceito de teatro (como forma social de produção do imaginário) começava a aparecer no vocabulário europeu, ela é curiosamente apresentada como um espetáculo composto por atos. O relato imaginativo de Vasconcellos no século seguinte contém falas das personagens e tensão ficcional. Informa, segundo a memória oral do colégio, que o ator-pregoeiro era o “padre” Vicente Rodrigues, na verdade ainda um irmão. E ela descreve o efeito suscitado no público, ao mencionar um debate com o ouvidor geral, e as explicações de Nóbrega ao governador:
A este (Padre Manuel de Paiva), com pretexto da pobreza em que então viviam, mandou (Nóbrega) vender a pregão pelas praças; entoando o porteiro em voz alta: “Quem quer comprar este homem? Que é já sacerdote pode servir em muitos usos.” E foi tão de siso o pregão, que chegou a persuadir-se o povo, que ia deveras (porque continuou alguns dias;) e já somente se duvidava, se era acerto desfazer-se a Companhia deste Religioso, tendo tão poucos. O governador Tomé de Sousa propôs o caso ao Ouvidor Pero Borges; e acrescentou: “Eu nunca vi vender Sacerdote de missa; mas como vejo que os Padres o fazem, não ouso condená-lo.” Não faltava quem prometesse já até cem cruzados pelo Padre Paiva; e os moradores de Villa Velha subiram o lance, porque o queriam para seu capelão. Espantavam-se todos de ver espetáculo tão novo; porém o vendido Padre aos lançadores desculpava o feito por via da pobreza: e quando era perguntado, se estava resoluto a servir? respondia que sim; porque ele era dos superiores, e que podiam estes dispor dos seus, como melhor lhes parecesse. A segunda figura deste ato foi o Padre Vicente Rodrigues; porque este era o pregoeiro, que ia bradando pelas praças; e pôde pôr-se em questão, qual dos dois ficou mais mortificado, se o que era apregoado calando, ou se o que apregoava bradando? Assentado com efeito o dia em que se havia de arrematar o lanço, quando todos esperavam o fim, declarou o Padre Nóbrega ao Governador, e mais amigos da Companhia, o espírito com que aquela fingida venda se fazia, por exercício de mortificação e obediência: os quais ficaram edificados, e não menos exercitados os dois Padres que fizeram a figura do ato. (Vasconcellos, 1977, p.216)
Na informação histórica publicada algumas décadas depois sobre o conjunto das ações da Companhia em Portugal, no trecho em que Balthazar Tellez apresenta o grupo pioneiro do Brasil, ele narra o mesmo episódio associado ao retrato do padre Manuel Paiva. Considera o caso uma resposta de Nóbrega aos “apertos que todos passavam, e à falta de meios que havia para se acudir aos pobres, aos doentes, e, principalmente, aos índios, novamente convertidos” (Tellez, 1695, p.493), e vincula a cena ao exemplo de São Paulino, bispo de Nola, cidade da Campânia italiana, contemporâneo de Santo Agostinho, que se empenhou em resgatar cristãos escravizados, levados por guerreiros vândalos que atacaram Roma.
Nas versões ibéricas das legendas de santos do tempo, reunidas em diversas edições da Flos Sanctorum, aparece a imagem lendária desse Paulino que, não dispondo de mais recursos da Igreja para os resgates de escravizados, teria se oferecido, ele próprio, para ser trocado pelo filho de uma viúva pobre, tornando-se cativo no norte da África (Rosário, 1681, p.537). O gesto de se oferecer como mercadoria humana, segundo a hipótese do cronista, teria inspirado Nóbrega a igual “exemplo de caridade”, proposição que foi aceita pelo Padre Paiva de bom grado. A versão da crônica portuguesa não menciona o irmão Rodrigues, mas sim a mediação de um negociante profissional (“Entrega-o logo a um corretor de escravos, que o trouxe por muitos dias pelas ruas e praças com pregão público, como se costuma fazer naquela nova cidade da Bahia aos escravos”) (Tellez, 1695, p.494) e registra a cifra de 120 mil cruzados, oferecida por um senhor de engenho que queria ter o jesuíta como capelão de sua fazenda (ibidem). A justificativa de Balthazar Tellez para a performance extraordinária é a seguinte: “A estes extremos, tão fora da opinião e do juízo dos homens, chegam os Santos, pelo amor que têm a seus próximos”.
Seja por razões ligadas a uma pedagogia da obediência ou à necessidade econômica de inspirar maior caridade dos endinheirados de Salvador, a cena trazia uma novidade em relação à tradição jesuítica europeia: a condição mercantil era exposta com crueza e estimulava a negociação real e o debate sobre valores. Ainda que pudesse ser comparada à imagem do bispo santo da Roma antiga, seu sentido pleno não provém do passado, mas da comparação com a atualidade cotidiana do colonialismo moderno. O pregão no mercado de escravizados tornava-se a cena fundamental das relações sociais na colônia, apenas estranhável pelo fato de ser um padre a peça de leilão. Sem esse sentido reflexivo, não haveria repercussão na cidade nem a suspeita de heresia do bispo, ou sequer a necessidade de justificação, pelos cronistas, da analogia com santidades excêntricas da Antiguidade.
Naquele mesmo período, uma imagem semelhante foi produzida em Valência, durante o carnaval de 1552. Seis jesuítas descalços saíram pela cidade espanhola com cordas penduradas nos pescoços, em meio a uma festa popular. Pararam em pontos planejados e pregaram contra a vaidade do mundo, convocando a população à penitência na quaresma que chegava (O’Malley, 2004, p.150). A imagem cênica das cordas no pescoço tinha, àquela altura, uma tradição de representação cênica medieval, em festas religiosas. Aludia ao jugo demoníaco dos prazeres do corpo e do mundo, dos quais era preciso se libertar. Eram casos em que a ironia religiosa, a despeito da existência de mercados europeus de escravizados, era exposta. Na performance de Salvador, o imaginário escravista não era, porém, metafórico. Seu simbolismo oculto seria discutido a posteriori: o gesto do pregoeiro de expor o “pesado padre Paiva” e publicizar seu valor de uso como capelão privativo visava ao recebimento de ofertas monetárias. E a voz do negociante coisificava o corpo negociado, convidando a um debate de preço. O padre-mercadoria estava ali, concretamente, para ser trocado por dinheiro.
Se observarmos as cartas de Nóbrega do período, em particular as redigidas após a estada de seis meses em Olinda, verificamos que a reflexão sobre a mercantilização da vida colonial aparece de modo enfático, sendo sua preocupação maior naquele momento em que a performance foi produzida. Existe uma peça retórica de 1552, redigida como carta pastoral para ser lida no púlpito de Olinda pelo padre Antonio Pires, na ocasião da festa de Pentecostes, quando Nóbrega já estava na Bahia. Ali ele convoca a que “os moradores de Pernambuco” perseverem em Cristo nos seguintes termos:
Vós, irmãos, a que eu nas entranhas de Jesus Cristo desejo ver salvos, mercai muita perseverança, muita temperança, grande castidade, e se não poderdes guardar tanta coisa dos ladrões, que por vossos sentidos entram a roubar, enchei vossa alma de caridade, e nisto empregai todo vosso mealheiro, porque é fogo tão forte que fogem dele os demônios [...]. (Nóbrega, 2000, p.109)
A metáfora mercadejante - que menciona as moedas do cofre da alma - supõe, segundo a técnica retórica jesuítica, uma adaptação ao ponto de vista contrário: o ato de mercadejar se dissolve numa caridade gerada pelas línguas de fogo do Espírito Santo, cuja chama a tudo atiça “que até os matos se queimassem com ele”. E a peroração convoca a que os demais tratos mercantis da vida real se transformem sob o calor do lume espiritual:
Estas são as fazendas principais que haveis de fazer no Brasil; este é o trato que deveis de ter com os cidadãos da cidade de Jerusalém celestial, mandardes lá muitos gemidos, muitas setas de fogo. O portador, que leva e traz, é o mesmo Espírito Santo. Ó trato bendito, não de açúcar corruptível, mas de graça, mais saborosa que favo de mel, quão poucos há que te queiram ter! Quão poucos mercadores da vida eterna se acham! (ibidem, p.110)
Nóbrega imagina uma cidade do Espírito em que “todos possuem suas riquezas em paz”, onde se trocam apenas “mercadorias espirituais de graça, de virtudes, de consolações”, em que as pagas são feitas com moedas “de outro fogo de glória” - as únicas aceitas na “cidade de riba” (ibidem, p.111). A superação da cidade mundana, tal como em Santo Agostinho, se combina a uma confiança na graça divina, o que aproxima seu pensamento do luteranismo. O texto celebra, ainda, o poder carismático de uma festa, Pentecostes, que evoca o espírito e a letra do cristianismo primitivo. Essa força seria antídoto ao momento colonial em que o “açúcar corruptível” anunciava sua dimensão totalizadora.
A percepção de uma realidade nova e incontornável imposta pelo mercantilismo escravista surge nos escritos de Manuel da Nóbrega após o contato com a Nova Lusitânia, a capitania erguida nas terras de Paraná-ambuc, Pernambuco. Na vila de Duarte Coelho e nos engenhos próximos, em 1551, já havia muitos escravizados da Guiné, no trabalho da produção açucareira, em número equiparável ao de escravizados indígenas. Para o donatário, pioneiro na importação de mão de obra africana, a medida surgia como reação ao descontrole social provocado pelos tráficos internos com indígenas. Do ponto de vista do capitão-fidalgo de Pernambuco, o protótipo do homem branco que vinha ao território dos brasis era o do mercenário, o que ameaçava a estabilidade do trabalho com escravizados indígenas. Numa carta enviada em dezembro de 1546 ao rei - determinante para a decisão de Dom João III de implantar um Governo Geral -, Duarte Coelho informa que eram postos em “alvoroço os povoamentos” toda vez que apareciam os caravelões vindos do sul para capturar gente nas tabas. E o cativeiro injusto teria aumentado desde a chegada das levas de degredados de Portugal, processo iniciado pela coroa três anos antes. Também os capitães, segundo ele, abusavam do poder de declarar guerras falsas, justificativa para mais raptos. Os maiores contribuíam para que sua gente andasse “salteando por todas as partes”. O território se submetia, assim, aos atos desses “homens de por aí”, que “não fazem, mas desfazem no bem que se deve de fazer, porque mercenarius, mercenarius sum” (Albuquerque, 1989, p.97).
A imagem de uma sociedade de mercenários seria mais tarde um tópico letrado da colônia. Ainda que apareça na carta de Duarte Coelho algo do preconceito fidalgo em relação aos “desorelhados” pobres do reino, ela identifica uma relação emergente, objetiva e subjetiva: a condição mercenária da vida colonial, que se multiplicaria com o escravismo transatlântico, estimulado por gente como o próprio donatário.
Nóbrega, após a estada em Olinda, manifesta visão semelhante sobre o caráter-mercadoria da sociabilidade colonial decorrente da dependência dos escravizados. A performance da venda do padre, em última instância, era a corporificação dessa abstração nascente, o negócio escravista, segundo o padrão alegórico da cena medieval. Como observa Vasconcellos (1977, p.216) - em termos semelhantes aos de Hegel sobre a dialética senhor-escravo -, era uma cena em que tanto o pregoeiro como o vendido estavam implicados no ato. Performance que punha em questão “qual dos dois ficou mais mortificado, se o que era apregoado calando, ou se o que apregoava bradando?”.
Um último sentido da performance se liga à eficácia do próprio projeto jesuítico da conversão. Ao fim de dois anos de trabalhos, não havia dúvidas de que a cristianização de adultos indígenas só produzia algum efeito com os escravizados. O afastamento do trabalho braçal nos dias de domingo e festa, obrigação de todo cristão, entrava na conta desse sucesso restrito. Em localidades de maior avanço produtivo, como Pernambuco, os indígenas escravizados que se diziam cristãos eram autorizados a participar da doutrina e da pregação. A disputa do tempo livre com seus proprietários só se resolveria anos depois, com a ampliação plena dos tratos de África e com a “legitimidade” absurda de sua escravização, aceita de modo controverso pelos jesuítas, após longos debates. Enquanto isso não ocorreu, os escravizados africanos de Pernambuco frequentavam igreja em grandes grupos: “Andam tais que assim em festas como pela semana, o tempo que podem furtar vem a que lhes ensinemos as orações, e muitos antes de irem pescar ou a seus trabalhos hão de ir rezar à igreja e o mesmo da tornada, antes que entrem em casa. E destes é a multidão tanta que não cabem na igreja, e muitas vezes é necessário fazerem duas esquipações deles [...]” (Nóbrega, 2000, p.94.)
Nóbrega pode ser considerado o primeiro performer do Brasil se pensarmos que seu plano cênico, imposto como mortificação ao padre Paiva e ao irmão Rodrigues, entendia não ser possível representar a dimensão inumana dos tratos coloniais. Daí a procura do choque não ficcional pela exposição do corpo de um homem de Deus, com vistas a um efeito de perplexidade gerado pela presença física, choque que acabou por não se realizar na medida em que o negócio foi considerado mais do que possível, foi considerado normal. Os sentidos de pasmo se neutralizaram em meio à performatividade maior, a das trocas universalizadas, fundamento de um capitalismo emergente que a tudo torna abstrato, também ao padre, em meio ao riso dissolvente e conciliatório dos que não estavam com a corda no pescoço. Somente o sentido herético da cena, ao rebaixar um funcionário da Igreja, reverberou nos ambientes de cultura religiosa da cidade, e foi esse espanto condenatório que chegou ao bispo.
As ações missionárias com os povos indígenas nos primeiros anos aconteciam como tentativas iniciais de adaptação cultural, no intuito de uma gradativa substituição do imaginário ritual indígena pela religiosidade cristã. A realidade colonial mostrava, por outro lado, que apenas os desgarrados da vida comunitária - os escravizados da terra - se aproximavam do novo imaginário da mortificação e da salvação cristãs na medida em que isso concretizava o objetivo mundano de ganhar algum tempo longe do trabalho braçal.
A crença difusa num “outro fogo da glória” capaz de queimar todos os matos, como um Tatá imprevisível, com suas línguas ardentes sopradas do Espírito Santo, poderia ser alimentada pelos jesuítas desde que os indígenas estivessem sujeitos às cordas da autoridade régia e afastados de sua vida nômade. Após a chegada do bispo, quando o perdão passou a ser comprado e vendido na terra, a oposição ao escravismo colonial se converteu em negociação por partes dos jesuítas, em realpolitik, até que viesse a concordância, sempre relativa, com o modo de ser mercenarius. Em pouco tempo, os jesuítas, por meio das confrarias e colégios se tornaram, eles próprios, grandes proprietários de terras e de pessoas escravizadas, participando dos tratos mundanos da mercadoria, distanciando-se mais e mais de seu voto de pobreza e da necessidade de esmolas. Depois que Nóbrega deixou a Bahia, o bispo seguiu considerando que as mortificações eram “parvoíces e coisas de doidos, idiotas e ignorantes” (Leite, 1956, p.468), conforme disse a Vicente Rodrigues. Do ponto de vista dos jesuítas, a imagem do religioso à venda continha também uma tragicidade, a deles próprios, talvez o último aspecto da performance desesperada de Nóbrega.
Referências
- ALBUQUERQUE, L. de. Alguns documentos sobre a colonização do Brasil: século XVI. Lisboa: Alfa, 1989.
- ANCHIETA, J. de. Textos históricos. Pesquisa, introdução e notas Pe. Hélio Abranches Viotti, S.J. São Paulo: Loyola, 1989.
- LEITE, S. (Ed.) Monumenta Brasiliae I (1538-1553). Roma: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1956.
- NAVARRO, Azpilcueta; Outros. Cartas avulsas: 1550-1568. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
- NÓBREGA, M. Cartas do Brasil e mais escritos do P. Manuel da Nóbrega (Opera Omnia). Introd. e notas de Serafim Leite S.I. Edição fac-similar. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.
- O’MALLEY, J. W. (S. J.) Os primeiros jesuítas. São Leopoldo: Unisinos; Bauru: Edusc, 2004.
- PACHECO, J. C. M. (S.J.) Simão Rodrigues: iniciador da Companhia de Jesus em Portugal. Braga: Editorial Apostolado da Oração; São Paulo: Loyola, 1987.
- ROSÁRIO, D. (Fr.) Flos Sanctorum: historia da vidas de Christo N.S. e de sua santissima mãy, vidas dos santos e suas festas repartidas pelos doze mezes, com sermões e praticas que servem para muytas festas do ano. Lisboa: Antonio Craebeeck de Mello impressor da Casa Real, 1681.
- TAPAJÓS, V. C. C. História administrativa do Brasil; a política administrativa de D. João III. 2.ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília; Fundação Centro de Formação do Servidor Público, 1983.
- TELLEZ, B. Chronica da Companhia de Iesu na província de Portugal, e do que fizeram nas conquistas deste Reyno, os religiosos que na mesma Província entraram nos annos em que vivio S. Ignacio de Loyola, nosso fundador. Lisboa: Paulo Craesbeeck, 1695. v.I, Livro II, Cap. 2.
- VASCONCELOS, S. Crônica da companhia de Jesus. 3.ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1977. v.I, p.216.
Nota
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2024
Histórico
-
Recebido
16 Set 2022 -
Aceito
17 Out 2022